Filipi Oliveira - O drama do corpo arrependido em Schopenhauer e Shakespeare

June 14, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Corpo, Trágico, Vontade. Filosofia, Consciência de si
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O drama do corpo arrependido Schopenhauer e Shakespeare

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Filipi Oliveira1 Resumo: pretende-se, neste trabalho, investigar a natureza, as origens e as consequências do arrependimento e do remorso e seus acordos com a Vontade; que - na filosofia de Schopenhauer - representa o substrato da existência fenomenal. Além disso, o presente artigo visa aproximar o discurso conceitual de Schopenhauer com o discurso dramático de Shakespeare, na tentativa de ultrapassar a dicotomia existente entre a episteme e a práxis. Schopenhauer, defensor da arte como meio imediato e eficaz de contemplação das ideias metafísicas e dos postulados morais, pede emprestado à tragédia moderna os instrumentos necessários para apreender o conteúdo e a forma de um corpo dilacerado pelo arrependimento e pelo remorso. Daí o apelo a Shakespeare e, em especial, ao ciclo trágico das peças de maturidade, donde extraímos a figura exemplar do Rei Lear para compreender até que ponto um corpo é capaz de oscilar entre a nobreza do saber e a miséria das paixões. Por meio do espírito casmurro do velho Lear, poderemos vislumbrar os caminhos palmilhados pelo homem em sua sede de poder e na afirmação ou na negação de sua vontade em favor do que a Vontade, regente-mor, instaura como equilíbrio e justiça eternas. Palavras-chave: vontade; corpo; consciência de si; trágico; arrependimento. 

  Mestrando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Para Schopenhauer, não é simplesmente qualquer homem que apreende, na história dos acontecimentos, o sentido da existência material como um tear de porções instantâneas numa extensão dada, tendo a perspicácia e a prudência de atinar para o problema nuclear e global que confere sustentabilidade à existência, a saber: o querer viver. “O homem comum, esse produto industrial que a natureza fabrica à razão de vários milhares por dia, é (...) incapaz, pelo menos de uma maneira contínua” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 196) de perfurar o curso ordinário das coisas e capturar o que é estritamente essencial na vida. É preciso que um homem, cujo corpo excepcional, mesmo a despeito de toda aparência fenomênica no decorrer do devir, consiga encobrir os eventos aleatórios com a tintura objetiva de uma pluralidade de ideias; isto é, de uma pluralidade de “graus determinados e fixos da objetivação da vontade”, que “aparecem nos objetos particulares, como as suas formas eternas, como os seus protótipos” (SCHOPENHAUER, 2001, p.138). Vale lembrar que, para Schopenhauer, não é a racionalidade o “em si” da ideia, mas sim a Vontade que consiste em ser seu conteúdo inteligível. Ele declara: “a vontade constitui o ‘em si’ da ideia, a qual é a objetidade perfeita da vontade”, enquanto o corpo é coisa particular, individuada, “objetidade imperfeita da vontade” (SCHOPENHAUER, 2001, p.189), que conhece o “em si” da Vontade objetivada numa pluralidade de ideias; logo, as ideias contempladas são afecções da Vontade quando esta anseia em se aperfeiçoar enquanto modalidade representacional, mesmo sendo una, imóvel e isenta de multiplicidade. Cabe tão-somente ao gênio artístico, filosófico e religioso, a tarefa de fazê-lo; e não tomando o conhecimento analítico como passaporte confiante para o conhecimento da “coisa em si”, fazendo uso de métodos tradicionais como o cálculo, a dedução, a dialética, etc., mas sim fazendo uso da contemplação desinteressada desses mesmos protótipos e formas que “não entram no espaço e no tempo, ambiente próprio do indivíduo; Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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(...) a sua existência é sempre atual, elas não se tornam enquanto os indivíduos nascem e morrem” (SCHOPENHAUER, 2001, p.138). O nível de conhecimento que eleva o artista, o filósofo e o sábio asceta a terem desvelado a visão do mundo em seu conjunto ideal e paradigmático de “formas gerais da natureza”, é contemplativo, imediato e relampejante; é “um calmo raio de sol que fura as trevas e desafia a violência da tempestade”, que “abstrai o princípio da razão”, “completamente absorvido no objeto”, concebendo as ideias fixas e eternas tais como a própria Vontade constitui-se: como qualitas occulta do mundo, aquela pulsão existente “fora da cadeia das causas e efeitos, que pressupõem o tempo, e que apenas tem significado em relação a ele” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 139). O artista, o filósofo e o sábio asceta são aqueles indivíduos cujos corpos estão disponibilizados adequadamente para empreender tal espécie de mergulho até o interior obscuro da Vontade, trazendo-o à luz por meio de uma consciência refletida e elevada através da qual a pluralidade de ideias metafísicas, quer dizer, de graus de objetivação, se exprimem em sua essência eterna e universal. E como se dá essa disponibilidade para o vislumbre de protótipos universais? [a] através de através de uma disposição para a contemplação pura e desinteressada da existência, que “exige um esquecimento completo da personalidade e das suas relações; assim, a genialidade é apenas a objetidade mais perfeita, isto é, a direção objetiva do espírito, oposta à direção subjetiva que termina na personalidade, isto é, na vontade” (SCHOPENHAUER, 2001, p.195); [b] através de uma disposição para a retidão em relação aos instintos, por meio da qual não basta ao corpo do indivíduo apenas dirigir-se a uma atividade teórica, objetiva da realidade; mas que, antes, deve se esforçar, “deve se manter na intuição pura e aí se perder, para libertar da sujeição da vontade o conhecimento que lhe estava originariamente submetido” (SCHOPENHAUER, 2001, p.195). Pois bem, o que então se desvela por detrás do véu de Maya da www.inquietude.org

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existência? O que este homem de gênio, em função de sua hipertrofia da consciência, subtrai “por algum tempo a serviço da vontade”? Quando “ele pára para contemplar a vida por ela mesma”, esforçando-se “por conceber a ideia de cada coisa”, o que ele antevê? Primeiramente, é preciso ter em conta que o gênio em questão é o gênio artístico; mais precisamente: o gênio poético e dramático. No presente artigo, Shakespeare é quem representa esta consciência avantajada e fora de série, extremamente capacitada para abstrair as coisas particulares, “já não a título de indivíduo, mas a título de puro sujeito que conhece”. Através da produção poética, ele conseguiu estabelecer uma ponte entre o mundo fenomenal da representação e o mundo nomemal da vontade, posto que a obra de arte é apenas um “meio destinado a facilitar o conhecimento” do que há de gracioso e disforme no universo, conhecimento este “que constitui o prazer estético”; por via da obra de arte, sobretudo da obra poética e dramática, “concebemos mais facilmente a ideia (...) do que através da contemplação direta da natureza e da realidade”. Já que “o artista empresta-nos os seus olhos para ver o mundo” - olhos esses densos de uma visão perspicaz, negligente com “todas as contingências que poderiam obscurecê-la” - libertando “a essência das coisas que existe fora de todas as relações” (SCHOPENHAUER, 2001, pp. 204-205), de toda ordem causal dada, que espetáculo é pintado diante de nós? Segundo Schopenhauer, Shakespeare, bem como outros grandes poetas dramáticos, como Sófocles, Ésquilo, Goethe, Calderón, anteviu que a vida é trágica, em seu sulco interior; que ela figura “o espetáculo de um grande infortúnio” composto por um conjunto de atos desastrosos, onde “as dores indescritíveis, as angústias da humanidade, o triunfo dos maus, o poder do acaso que parece ridicularizar-nos, a derrota infalível do justo e do inocente” representam o “símbolo significativo da natureza do mundo e da existência”, no qual presenciamos a vontade “lutar consigo mesma com todo pavor desse conflito” (SCHOPENHAUER, 2001, p.266). Nos dramas de Shakespeare, a máxima expressa por Schopenhauer “o sofrimento é o fundo de toda vida” (SCHOPENHAUER, 2001, p. Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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326) torna-se mote principal para sua criação poética. Em suas peças de maturidade, onde ele pôde se dedicar às tragédias que o tornaram mundialmente conhecido, Shakespeare demorou-se magistralmente sobre o problema existencial do homem, extraindo da experiência a mesma concepção trágica de Schopenhauer, a saber: de que, no fundo, “a vida de cada um de nós, se a abarcarmos no seu conjunto com um só olhar, se apenas considerarmos os traços marcantes, é uma verdadeira tragédia”; uma vez que “desejos nunca atendidos, a dor sempre gasta em vão, as esperanças quebradas por um destino impiedoso, os desenganos cruéis que compõem a vida inteira, o sofrimento que vai aumentando, e, na extremidade de tudo, a morte”; enfim, que todos esses cataclismos existenciais fomentados pela pulsão intensa da Vontade, são “o bastante para fazer uma tragédia” (SCHOPENHAUER, 2001, p.338). O homem, dentro deste quadro lamentável, funciona, ora como um relógio, que “uma vez montado, funciona sem saber por que”, reanimando-se para “retomar o seu estribilho, já repetido uma infinidade de vezes, frase por frase, medida por medida, com variações insignificantes” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 338), ora como um bobo; posto que, em meio à fatalidade do existir, a tortura da vida ainda é completada com o escárnio do destino cruel, que, à beira da morte, não perdoa nenhum indivíduo e zomba de todo apego à vida. Seja como for, o homem é o ator de um drama invisível da Vontade, do daimon embusteiro escondido em cada representação do querer na ordem causal. E, quiçá, o espetáculo mais doloroso seja a tragédia do arrependimento, muito bem pontuada e alinhavada no contexto dramático de Shakespeare. Com base nisso, examinaremos aqui o drama de O rei Lear, e em que medida a tragédia do arrependimento, qual uma corredeira caudalosa, arrasta um corpo de estirpe tão nobre como Lear em direção a um destino fatal; e, por fim, o redime através de uma consciência abnegada da vontade. Sendo assim, dediquemo-nos a compreender o conceito de arrependimento e como ele se processa no corpo trágico do homem, neste “sonho muito curto de espírito infinito que anima a natureza dessa www.inquietude.org

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obstinada vontade de viver” (SCHOPENHAUER, 2001, p.338). Em sua Ética, Spinoza prepara uma noção bastante pertinente. Diz ele: “o arrependimento [Poenitentia] é a tristeza acompanhada da idéia de uma coisa que julgamos ter realizado em virtude de uma decisão livre da alma” (SPINOZA, 2004, p.330). Schopenhauer, por outro lado, já nos oferece outra definição, que complementa a primeira: “o arrependimento é uma correção da nossa noção da relação entre um ato e o seu verdadeiro fim” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 321). Na primeira definição, o que temos diz respeito à afecção causada pela consciência de si, isto é, pela imediata (e profunda) mudança que gera a constatação da imagem do ato mal resolvido e da pessoa agente; outrossim, o consequente sentimento de si para si; e, na segunda definição, o que há é a própria ação da consciência sobre si, infligindo uma autopenitência que é reparar severamente os disparatados juízos. Logo, em dois aspectos, podemos compreender o arrependimento em sua essência e forma: [a] subjetivamente, por meio da mudança interior que sua imagem lhe representa - e que lhe produz sensação de tristeza e ódio - e, outrossim, de uma natural baixa na reserva de forças; e [b] objetivamente, quando a imagem deprimente de si enquanto responsável pela ação lhe advém clara e distintamente como uma noção geral da multiplicidade, isto é, uma ideia. O arrependimento define-se por ser, subjetivamente, “a tristeza acompanhada de ideia”, quer dizer, acompanhada de uma clarividência imediata e aguda, que divisa no espírito, pelo intelecto (e não pela vontade) os motivos que desencadearam a ação desastrosa; e mais: como os motivos “determinam a forma sob a qual se manifesta o caráter, isto é, a conduta” (SCHOPENHAUER, 2001, p.309); como também “é no intelecto que o caráter encontra todos os seus motivos”, o homem vivencia com o arrependimento, a consciência da mudança de seu caráter, pelo modo como alternam os motivos que avivam o querer; posto que esta “é capaz de mudanças, e muitas vezes, oscila entre o erro e a verdade; geralmente, todavia, retifica-se cada vez mais no decurso da vida”. No entanto, o arrependido é capaz de tornar lúcido, para a consciência, a seguinte questão: que o que ele realmente “quer no fundo, o objeto dos desejos Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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do seu ser íntimo”, que é o apetite animal do querer-viver, “não há ação exterior, nem instrução que possa mudar” (SCHOPENHAUER, 2001, p.309). Mas, sua conduta, seu habitual modo de agir, sim; eles podem ser reparados; por existirem tão-somente no domínio da representação, eles podem tomar um curso com retidão, traçando uma linha determinada, “sem vacilações, desvios, retornos, que nos mostram arrependimentos e mágoas”, sem ser “arrastado pelo seu demônio” (SCHOPENUAUER, 2001, p.319). Ainda que seja impossível reparar a cadeia dos eventos, resgatando o passado, a fim de fazê-lo presente de novo, justapondo o tempo, que não pode ser justaposto. Essa impotência de manipulação na seqüência dos atos do querer, esse próprio determinismo do tempo, do espaço e da lei de causalidade, aliado à ideia que se faz da irreversibilidade das ações, alimenta a tristeza no peito do homem. O nome dado por Schopenhauer a esta fórmula de Spinoza é remorso, que nada mais é do que “uma mágoa que vem do conhecimento que a pessoa toma da sua própria natureza em si, isto é, considerada como vontade” (SCHOPENHAUER, 2001, p.312). Desse modo, nos confirma a tese de que o remorso é, antes de tudo, um sentimento; e, como tal, percorre indeterminadamente a consciência, nas encostas obscuras da intimidade corporal; que, por seu turno, só dá sinais de seu estado quando o caráter empírico, representativo, corpóreo, imprime um semblante luminoso sobre a negritude do caráter inteligível, apetitivo, incorpóreo da Vontade, enquanto esta se define como substratum do mundo: ou seja, quando vislumbra de dentro das trevas o raio luminoso que reluz múltiplos graus de objetivação da Vontade através das ideias. Conforme dissera Schopenhauer, o indivíduo toma nota do movimento borbulhante de emoções que se processam com ele, e agoniza; isto porque sente que está irmanado com aquilo que há de mais radical na existência que é o querer. A vontade humana, diante do remorso, amofina-se como se estivesse sob o jugo de um tribunal invisível, que é este corrosivo sentimento a condenar seu ato volitivo; todavia, sem ainda dar nomes à sua ação e sem apresentar os motivos que a levaram a tal. www.inquietude.org

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Na natureza, o corpo de “cada indivíduo, apesar da sua pequenez, ainda que perdido, aniquilado no meio do mundo sem limites, não deixa de se tomar pelo centro de tudo, fazendo mais caso da sua existência e do seu bem-estar que dos de todo o resto”; cada corpo, enquanto eixo central do querer-viver está, irremediavelmente, “pronto a sacrificar a isso tudo o que não é ele, a aniquilar o mundo em proveito desse eu, dessa gota de água no oceano, para prolongar por um momento a sua própria existência” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 348). Por conta desta volúpia, a Vontade põe em luta diversos indivíduos interessados em conservar seu corpo e a sua existência, guarnecendo-se, enquanto pode, dos perigos da morte: “em toda natureza, em todos os graus desta manifestação da vontade, há necessariamente guerra entre os indivíduos de todas as espécies”; e é o egoísmo, “essencial a todos os seres na natureza” (SCHOPENAUER, 2001, p.348), o “princípio de toda esta guerra, na sua própria origem” (SCHOPENHAUER, 2001, p.347). Segundo Schopenhauer, o corpo egoísta é trágico porque sofre, em seu íntimo, a oposição dramática entre o microcosmo e o macrocosmo, isto é, entre a representação e a vontade, num choque inevitável. Isto fica claro quando ele declara que “toda coisa é, por um lado, fenômeno, objeto, e, nesta qualidade, ela é necessidade, por outro, em si, ela é vontade, e, como tal, livre para toda eternidade” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 302). O querer, a mola que anima a Vontade tangencia, de um ponto ao outro, cada criatura que emerge da coisa em si, instituindo-as como vontades em grau menor, que agem querendo, mas em nível microcósmico. Reduzido à condição de sujeito, o homem subordina-se à vontade; esta, por sua vez, atiça interna e imediatamente seu corpo a agir de modo espontâneo e avivado com a sensação estimulante da liberdade; para que depois, mediatamente, seja bloqueado seu desenrolar natural por meio da exterioridade do objeto, de um ser-outro que não ele, de um corpo que se apresenta diante de seu querer, e com o qual se sente excitado ou mortificado pela afecção, ou mesmo pela imaginação da afecção; isto é, quando seu instinto de vida, em virtude do contato com o mundo objetivo, é ampliado no temor ou no gozo com a promessa do desprazer ou prazer, respectivamente. Seja como for, pelo Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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fato de que “todo homem deve à sua vontade ser”, quer dizer, que “seu caráter existe nele primitivamente” (SCHOPENHAUER, 2001, p.308), conclui-se que sua existência está condenada à impulsividade animal que a Vontade lhe outorga, enquanto provedora natural, a título de necessidade; de modo que acredita poder deliberar sobre qualquer circunstância em que se encontre na ordem dos fatos. Sob esse imperativo, desconhecendo ainda o seu caráter universal, ele “deseja sempre, sendo desejo todo o seu ser; desejo que não termina quando algum objeto é alcançado, incapaz de uma satisfação última” (SCHOPENHAUER, 2001, p.324). O teatro secreto da Vontade lança – pelas mãos brilhantes do poeta – os corpos de Lear, Cordélia, Kent, Goneril, Regan, Edmundo, Gloucester e Edgar uns contra os outros, numa alternância entre a inocência e a santidade, a perfídia e a inveja, num jogo de vontades que se acreditam livres; sem, verdadeiramente, sê-las; que parecem ser senhoras do destino de sua conservação e daqueles que ama ou da destruição de si e daqueles que odeia, mas sempre crentes que são senhoras. Assim, cada personagem exposto no drama de Shakespeare tende, infalivelmente, a travar encontros contra ou a favor de outros corpos em semelhante situação ontológica e psicológica, ainda por cima quando estes ameaçam ou beneficiam a perpetuação de seu corpo na existência. Ou seja: na peleja por afirmar o querer-viver, cada indivíduo se apega o quanto pode ao seu corpo, chegando, inclusive, a negar uma vontade co-existente que compartilha com ele anseios que, se não são movidos pelos mesmos motivos, têm, no entanto, o mesmo fundamento: a preservação da espécie. Foi o que fez Lear com as filhas e com Kent, Goneril e Regan com Cordélia, Edmundo com Gloucester, etc. Mas, convém reiterar que esse choque de egos só sucede no domínio da representação, e não no da Vontade, cujo egoísmo jamais se mistura à ordem causal. O mesmo sucede com o arrependimento, que só brota na/pela consciência, e não no/pelo domínio do querer; enquanto o corpo egóico erra, a Vontade, no seu egocentrismo, permanece inabalável a qualquer personalidade: existindo em ato puro e eterno, ela não recua, www.inquietude.org

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não repousa; apenas prolonga na duração a sua atividade impulsiva. São as imagens que o corpo costura equivocadamente com seus juízos preconceituosos e personalizados a respeito do ser-outro (como, por exemplo, o preconceito de Lear contra a atitude generosa de Cordélia), as grandes prejudicadoras de nossas ações; pois, acreditamos cegamente no que sentenciamos como “verdade”; e, convencidos de que somos livres para pensar, ajuizar e agir em nome dessa “verdade”, interferimos no meio em que vivemos com vistas a favorecer o individual sentimento de prazer, alimentando a Vontade em busca de mais fontes de realização da força. Afirmando sua individualidade, o homem põe em pauta o seu desejo, isto é, a consciência refletida acerca do objeto que lhe apetece e lhe promete favorecer e recompensar a força empregada, sobre o qual o querer humano gravita em torno, até “dar o bote”; agindo com precipitação para, enfim, desencadear uma série de pequenas reações que, doravante, inevitavelmente, surtirão efeitos trágicos. Destarte, o bote é dado por uma vontade arrojada e determinada, que, precipitando-se, “destrói ou fere o corpo do outro; ou, então, reduz forças desse corpo ao seu próprio serviço, em vez de deixá-las a serviço da vontade que se manifesta nesse próprio corpo” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 350). Há, certamente, um domínio, uma declarada invasão de um corpo mais dotado em relação a outro, e Schopenhauer entende tal movimento como injustiça; que, em sua essência, pode ser conhecida, iluminada para a consciência na forma da apreensão imediata e total da ideia de injustiça e de seu contrário, a ideia de justiça. Nos dramas de Shakespeare, é visível a presença da contenda entre indivíduos egoístas a lutar injustamente por poder e a conservar seu corpo da morte eminente; e nosso poeta tinha em mente a preocupação clássica de inserir os conflitos em cenários significativos para a posse e a destituição de poder: o cenário palaciano, onde a luta pela legitimidade do poder ganha um realce singular e estritamente necessário. A questão é saber se os personagens shakespearianos, se Lear, por exemplo, deveras Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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acedeu até a superfície objetiva da ideia, após ter-se abstraído de sua precipitação, de seus instintos egoístas e injustos, bem como de toda relatividade igualmente egocêntrica do mundo particular; se deveras Lear superou as diferenças e a ordinária e pequena significância do “isto” e do “aquilo”, do “aqui” e do “agora” das circunstâncias em que a corte o bajulava e o honrava a título de interesses igualmente circunstanciais e medíocres; se ele reconheceu que, ao legar sua coroa para as filhas, deu provas de ser o “insolente” e “complacente” bobo do enredo, único título que ele traz “de nascença” e que, ainda assim, o ignora: “tu”, diz o Bobo mofando, “darias um bom bobo” (SHAKESPEARE, 2008, p. 716). Se, por fim, na tempestade, sofrendo o sublime “esmagamento da vontade”, Lear avistou no horizonte “o arco-íris que paira tranquilo acima deste tumulto desenfreado” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 195). O bardo inglês parece acompanhar, ainda que de longe, a crítica ao teísmo ocidental tão advogada por Schopenhauer. Em suas tragédias, o que assistimos é o afastamento do benéfico e misericordioso Deus cristão, para que, enfim, a discórdia seja levada às últimas consequências, descentralizando a ordem e o poder do Estado; tirando-o, à guisa de terrorismo, das mãos do rei soberano; o que resulta numa dispersão entre muitos indivíduos lançados no concurso de seus desejos particulares. O desejo do Estado, que visa à unidade do múltiplo, é aniquilado, e um grande abscesso é aberto diante do caos: salve-se quem puder, pois o rei, o eixo da cidade, a referência suprema dos homens, abdica de seu governo, livrandose de “todos os encargos, negócios e tarefas”, deixando-o ao sabor de seus descendentes, “confiando-os a forças mais jovens” (SHAKESPEARE, 2008, p. 698). É assim que o faz o rei Lear, esgotado pela velhice, ao ceder o poder às mãos de suas filhas. Cansado de ter os outros astros gravitando em torno de si, Lear põe à prova o amor de suas filhas, para saber quem é digna da recompensa oferecida na forma de dote, de porção de terras. Cordélia, “a nossa alegria, embora a última e mais moça” (SHAKESPEARE, 2008, p. 699), fala depois das irmãs Regan e Goneril; estas últimas, mulheres de www.inquietude.org

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baixíssimo escol, invejosas da caçula e indiferentes ao pai. Sem lubrificar a vontade e os desejos do pai, a mais doce das filhas, que “ama” e “cala”, falando pouco, diz muito mais do que todo o palavreado farsesco e insincero das irmãs – que, no entanto, parecem lograr com a senilidade do pai e com a imagem tentadora do poder. Ao perguntar sobre seu amor, Cordélia só sabe dizer que ama o pai “acima de todas as coisas”, “cumprindo o [...] dever” de honrá-lo e obedecê-lo, e não por motivações escusas e adulações (SHAKESPEARE, 2008, p. 699). De espírito irascível, intolerante e autoritário, o velho Lear deixase levar pelas aparências e pelo sedutor discurso de Regan e Goneril; e, por consequência, esbraveja em cima da simplicidade dos juízos de Cordélia, prejudicando-a: ele clama aos céus a infelicidade de ter uma filha tão “dura” que, por falta de talento bajulador, arrisca perder a herança. Embalado pela cegueira, que não se sensibiliza com a beleza e com a honestidade de uma declaração como a da filha mais moça, o velho arbitra a deserdação da filha sob olhares indignados de alguns (Kent, o amigo fiel) e aliviados de outros (Regan e Goneril): “renego aqui todas as minhas obrigações de pai, parentesco e afinidade e sangue e, de hoje em diante, e para todo o sempre, te considero estranha a meu coração e a mim mesmo” (SHAKESPEARE, 2008, p. 700). Cordélia, enfim, é expulsa do círculo real, levando consigo o que restou de sua devoção, vitimada pela transgressão do pai à lei natural do amor filial, em virtude de sua explosiva individualidade. Até que Lear, depois de ir às turras com Regan e Goneril, por não ter sido assistido à altura, sente-se abandonado pelas filhas e, amargurado, retira-se para um descampado. Uma torrencial tempestade cai, deixando seu corpo à mercê do destino dos trovões e dos relâmpagos. Debilitado e traído pelo egoísmo das filhas, o velho anuncia, profetizando antes de partir: “Se concedermos à natureza humana apenas o que lhe é essencial, a vida dos homens vale tão pouco quanto a do animal. (...) Tenho muitos motivos para chorar; mas este coração estourará em cem mil pedaços antes que eu chore”. (SHAKESPEARE, 2008, pp. 728-729). Relegado ao nada, em meio ao deserto descampado, assolado Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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pelas “cataratas e trombas do céu” e pelos “relâmpagos de enxofre”, Lear tem a imagem de si enquanto corpo vitimado pelo erro de suas paixões, pelo ímpeto e da inconsequência do juízo injusto; isto é, pelo prejuízo que é “próprio da ação de um indivíduo que estende a afirmação da vontade enquanto manifestada pelo seu próprio corpo” (SCHOPENHAUER, 2001, p.355); reconhecendo que a amargura do remorso e da idéia que lhe acompanha “conduz à demência” (SHAKESPEARE, 2008, p. 734). Ele esbraveja à natureza: “aqui estou eu, seu escravo, um pobre velho, débil, doente, desprezado”. Mas, acima de tudo, traído por filhas que espoliaram seu reinado. Com sua consciência macerada pelo remorso de ter gerado filhas desse quilate, Lear, em comovente fragilidade, expõe a sua dor fisiológica e anímica; desvestido completamente da prepotência de rei, ele confessa, dizendo: “quando a alma está em sossego, o corpo é mais sensível – a tempestade da minha alma apaga em meus sentidos toda outra sensação senão a que dói aqui. Ingratidão filial!” (SHAKESPEARE, 2008, p.734) A demência de que sofre Lear é exatamente a incisão dolorosa do remorso sobre seu corpo arrependido; que nada mais é do que o sentimento acompanhante da lembrança da ação retardada que o persegue; ou melhor: a lembrança da injustiça cometida; não de sua vontade contra a vontade de Cordélia, mas sim da vontade das filhas contra a dele: “sou um homem contra quem pecaram muito mais do que pequei” (SHAKESPEARE, 2008, p.732). Lear, enquanto está sob a tempestade na companhia do Bobo e de Edgar, arrepende-se, mas de ter tido filhas como aquelas a quem acusa de ingratidão, e não pela sua injustiça cometida contra a inocente Cordélia. É somente depois da passagem pela tempestade, depois que a senilidade, agravada pela presença perturbadora de Edgar, é assaltada por um estado de insanidade, que a razão cede “ao desespero”; que Lear contempla, absorvido na experiência aterradora, a ideia de injustiça cometida contra a filha. Por isso, faz mister um exame do corpo do personagem Lear; esta é a chave para que compreendamos em que medida a “ingratidão filial” de suas filhas conduziu o homem Lear – e não o rei – a não só agir injustamente e carregar o peso do remorso e do www.inquietude.org

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arrependimento de seus atos volitivos, bem como atingir a redenção final de seu gesto pela consciência iluminada. Na cena I - ato I, Lear, mesmo octogenário, afigura-se energético sentado no trono diante de parentes e súditos, por ocasião da partilha de seu reino. Ali, ele ainda está movido pelo apetite animal comum ao indivíduo, isto é, pela “inteligência” que “permanece numa relação constante com sua vontade”, com a qual procura “conhecer bem os objetos da sua vontade, depois os meios de alcançá-los. Então vê o que tem a fazer, e em geral, não procura saber mais nada” (SCHOPENHAUER, 2001, p.343). Tanto que interdita a ação defensiva de Kent em favor da oprimida Cordélia, dizendo: “não te metas entre o dragão e sua fúria”. Avivado pelo seu egoísmo e pela injustiça naturais, o indivíduo Lear, abstraído de sua posição de rei, exibe em seu corpo uma intumescência energética que o faz recomendar: “meu arco está curvo e a corda tensa; cuidado coma flecha” (SHAKESPEARE, 2008, p. 700). Mas, no III ato, depois que decide varar estrada ao lado do Bobo e de Kent, o corpo de Lear perde a bravata inicial e amolece a carcaça, quedando-se num estado completamente oposto: seu corpo é retraído, minguado, alquebrado pela violência da tempestade, tornando-se, como nas palavras ditas por Gloucester na cena VI - ato IV, um “fragmento arruinado da natureza”; todavia, esse corpo trágico também é visionário, delirante e poético. Ironicamente, nesta condição miserável, a demência toma-lhe o corpo; e, como resultado, eflúvios de genialidade circulam em sua consciência alterada. No entanto, a amargura do remorso e a idéia da injustiça cometida perpetuam enquanto tristeza nascida da impotência para reverter o sentido das ações, mudando o destino cego da vontade; o que lhe resta é, patética e alienadamente, improvisar um tribunal, fazendo do Bobo o “sapientíssimo juiz” delegado para sentenciar e punir as “bruxas desumanas” Goneril “que expulsou o pai de casa a pontapés” e Regan, que, segundo os resultados da “autópsia” do caráter feita por Lear possui um coração “duro” (SHAKESPEARE, 2008, pp.739-740). Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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O desenrolar da trama conduz o corpo arrependido, cindido e ferido de Lear a um progresso visível e, ao mesmo tempo, surpreendente, ainda que tudo conspire contra; pois, à medida que as vontades vão se confrontando, os perigos vão aumentando. O que sucede é que, subitamente, as tropas britânicas em marcha assolam as terras que estão sob a jurisdição da coroa renunciada de Lear e ameaçam ainda mais a instabilidade do poder. Cordélia recupera o pai, retirando-o de seus andrajos rotos e maltrapilhos; Lear é levado para um acampamento e lá é tratado com as devidas providências. Medicado, repousa o corpo remoído pela culpa, cujo “rosto foi exposto à guerra dos ventos” e ao “ribombo profundo e aterrador de trovões relampejantes”. Ao reconhecer a presença de sua filha desterrada, Lear aquieta sua vontade pela força e pela retidão representacional da ideia da injustiça cometida; já se acha liberto dos interesses voláteis propelidos pelo querer, que o conduziram ao erro dos juízos. Comovido com a doçura e com a abnegação da vontade de Cordélia, que, desde o I ato dá provas de seu caráter desinteressado e bondoso ao declarar ao pai: “jamais me casarei como minhas irmãs, para continuar a amar meu pai - unicamente” (SHAKESPEARE, 2008, p. 700); mesmo depois da vontade imperativa do dragão enfurecido que é Lear, Cordélia defende que os “cabelos brancos” do pai devem inspirar “mais compaixão”; mesmo vilipendiada “com motivos”, como o próprio Lear admite; ainda assim, a bondade de Cordélia fá-la desejar sua cura com o remédio de seus lábios, reparando os “violentos ultrajes” das irmãs contra a “figura venerável” do pai (SHAKESPEARE, 2008, p.757). Lear, debilitado pela loucura, reconhece sua “eudade” na figura do ser-outro Cordélia, isto é, a imagem de sua humanidade: “sou velho e louco”, confessa; e pede: “esquece e perdoa”. Mas é ele próprio quem há de se arrepender, invertendo a responsabilidade do ato para si, a fim de, com isso, perdoar seu ato desmedido; seu corpo, nas últimas horas de vida, concentra forças para dizer, com generosidade, a Cordélia: “quando me pedires a benção eu me ajoelharei e pedirei perdão” (SHAKESPEARE, 2008, p.761). No entanto, não chega a conseguir realizar seu intento, pois Cordélia é enforcada a mando da pérfida irmã. Com o cadáver da www.inquietude.org

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filha no colo, Lear, esgotado pelas mágoas do arrependimento, exulta em seus últimos instantes de vida: “eu podia tê-la salvo”. Ainda corrói nele um remorso, mas advindo de sua vontade nobre contra a vontade dos “homens de pedra”, “assassinos, traidores todos!” (SHAKESPEARE, 2008, p.766), e não mais a vontade miserável contra si ou contra Cordélia. O sentimento advindo da ideia de injustiça cometida ganha seu sentido justo: ele anima o corpo a repelir adequadamente a vontade inimiga: o juízo já não se engana, pois a potência representacional que atina com perspicácia e prudência não está mais perturbada pelo ciclo viciado do egoísta querer-viver e querer-conservar da existência e dos interesses meramente circunstanciais advindos daí. Quando Lear, antes um rei, um soberano majestoso, é vítima da conspiração das filhas, e é atocaiado como um rato em seu próprio reinado; quando, enfim, tem a legitimidade de seu direito a agir e a pensar usurpada, tanto pela malícia das filhas quanto pela própria tempestade brutal, Lear promove uma espantosa queda e é rebaixado a nada. No entender de Schopenhauer, a queda de Lear representa a vontade que se permite ser aniquilada, suprimida, resultando “numa contradição do fenômeno consigo mesmo, e assim a liberdade faz vir à luz esses fenômenos, a santidade e a abnegação” (SCHOPENHAUER, 2001, p.303). No movimento mesmo da existência trágica, a vontade encarnada no corpo de Lear é oscilante como o devir da matéria em perpétua atuação e sofrimento; ela dança no “mar de forças” e “ondas de forças” (NIETZSCHE, 2008, p.512) da Vontade, indo da grandeza e da glória à pequenez e à miséria, descendo até os graus de objetivação mais animalizados (como, por exemplo, a injustiça, a ganância, o despotismo, etc.) até ascender novamente aos graus de objetivação espirituais (neste caso, a justiça, o altruísmo e a compaixão); e isto tudo depois de ter experimentado a profundidade do impulso da vontade de viver: o destino conduz sua vontade imperativa e frustrada nas suas ações e desejos, a expor-se “no lugar dos desgraçados”, aprendendo com “os corpos esfaimados, cobertos de andrajos feitos de buracos” a enfrentar a dureza Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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das intempéries, bem como a oferecer o “supérfluo, mostrando um céu mais justo”, renunciando, assim, a “pompa do mundo” (SHAKESPEARE, 2008, p. 734). Ele próprio parece querer tal aniquilação: voluntaria e refletidamente o rei, com nobreza, quer suportar “a tempestade furibunda penetrando até os ossos”. “Cai, torrente do céu, que eu aguentarei!” diz o velho amargurado (SHAKESPEARE, 2008, p.734). Mesmo assim, em meio à tempestade monumental, o corpo de Lear quer participar do sublime da natureza, adentrando na “eclosão” de uma vontade que, dada a experiência estética, “pode chegar a uma plena consciência dela mesma, a um claro e completo conhecimento do seu próprio ser, desse ser que tem como reflexo o universo tomado no seu todo” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 302). Este rebaixamento é o que Schopenhauer chama de sublime negação da vontade de viver, que representa, é bem verdade, o esteio de sua ética e de sua estética. Shakespeare compartilha deste mesmo ideal, e permite que Lear se liberte, contemplando, com perspicácia e prudência, “a sua própria essência representada a si mesma com plena clareza”; descoberta essa que “não pára de modo nenhum o seu querer”. Enquanto contempla a vida no cativeiro, ao lado de sua filha, Lear desvenda o mistério do universo “considerado na sua essência, como espelho da vontade”, liberto do desejo cego; sua vontade opera, “mas com conhecimento, consciência e reflexão” (SCHOPENHAUER, 2001, p.316). Neste caso, com uma reflexão que primeiro teve de perfurar o véu das coisas e enxergar o fundo obscuro, cruel, turvo e delirante da Vontade, do coração do mundo: a tempestade concedeu ao seu corpo esta experiência visceral de liberdade, ou para falar como Spinoza, facultou-lhe uma “experiência de eternidade”, abrindo-lhe o horizonte das idéias; além de fechar-lhe a “ferida enorme aberta em sua alma violentada”, “restabelecendo”, pela via da demência e da poesia, “a harmonia na cabeça delirante deste pai transformado em criança” (SHAKESPEARE, 2008, p. 756). Ao lado de sua filha vitimada pela injustiça e pela cobiça alheias, Lear cessa sua vontade imperativa, deixando de lado “as aparências www.inquietude.org

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individuais”, que, “uma vez conhecidas como tais” inexistem como motivos numa relação causal dada. O que Shakespeare faz Lear contemplar com seu corpo, mesmo combalido com tantas injúrias e desgostos, tem o mesmo efeito pretendido pela ética e pela estética de Schopenhauer, a saber, desempenhar “o papel de calmante para a vontade, graças a qual esta, livremente, se suprime”. Numa mistura de ênfase e de lividez, Lear parece redimir seu corpo poeticamente, isto é, comunicando a idéia da humanidade que “consiste mais na beatitude, na serenidade de alma que um conhecimento liberto de todo querer provoca, por consequência, de toda miséria ligada à individualidade” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 223); além de abstrair todo isto e aquilo em que a consciência se mistura à causalidade e enfraquece o corpo. Ele diz à filha num dos momentos mais comoventes e lúcidos do drama: Não, não, não, não! Vem, não vamos para a prisão. Nós dois sozinhos cantando, como pássaros na gaiola. (...) E assim viveremos, rezando e cantando, lembrando histórias antigas, rindo enquanto ouvimos os pobres vagabundos contarem as novidades sobre as borboletas douradas da corte. E também vamos conversar com eles – de quem perde e de quem ganha; de quem vai e de quem fica; e penetraremos o mistério das coisas como se fôssemos espiões de Deus; e entre os muros da prisão sobreviveremos às seitas e as partidos dos poderosos, que sobrem e descem como a maré debaixo da lua (SHAKESPEARE, 2008, p. 761).

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MACHADO, R. O Nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. NIETZSCHE, F. Vontade de poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. SCHOPENHAUER, A. Mundo como vontade e representação. Trad. M.F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. __________________. Parerga e Paralipomena. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Abril cultural, 1974. SHAKESPEARE, W. Obras escolhidas. Trad. Beatriz Viégas-Faria e Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2008. SPINOZA, B. Ética - Demonstrada à maneira dos geômatras. Trad. Joaquim Ferreira Gomes. São Paulo: Nova Cultural, 2004. SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

Referências HELIODORA, B. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2004. KANT, I. Crítica do juízo do gosto. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. LEFRANC, J. Compreender Schopenhauer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2005. Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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