Filmar o possível: Busca e experiência no documentário \"Em Seus Braços\" (1992), de Naomi Kawase

May 18, 2017 | Autor: Breno Reis | Categoria: Japanese Cinema, Naomi Kawase, Documentário
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8º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação do Rio de Janeiro XII Seminário de Alunos de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 21 a 23 de outubro de 2015.

Filmar o possível1 Busca e experiência no documentário Em Seus Braços (1992), de Naomi Kawase Breno Almeida Brito Reis e Eduardo dos Santos Oliveira (autores)2 Resumo Nosso interesse é investigar como o dispositivo de busca atravessa a composição do documentário Em Seus Braços (Ni Tsutsumarete, 1992), da realizadora japonesa Naomi Kawase: agenciamentos que acontecem na (e com a) imagem. Em um primeiro momento, aproximamos o filme à categoria “documentários de busca”, concebida por Bernadet (2014). Em seguida, tratamos do conceito “imagemexperiência” assinalado por Migliorin (2008) para pensar como a procura pelo pai biológico, experiência pessoal, é também experiência estética. Finalmente, desenvolvemos uma breve análise do filme com a ajuda dos estudos de Michael Renov (2004) sobre o audiovisual autobiográfico independente e nos baseamos em Comolli (2008) para estudar a relação entre corpo e quadro fílmico. Palavras-chave Documentários de busca; experiência; dispositivo; Naomi Kawase; cinema De que adianta se aventurar no desconhecido? O vento sopra e toca flores em imagens que tendem ao branco. Utensílios de cozinha também são tornados cena. Em seguida, o ambiente interno de um apartamento é filmado. Uma mulher canta num karaokê. Uma frase interrompida, uma fotografia borrada, gestos singelos: toques e olhares. É um inventário íntimo esse Em Seus Braços (Ni Tsutsumarete, 1992), da realizadora japonesa Naomi Kawase. Pelo modo como a montagem opera — mistura de registros, sobreposições e 1

Trabalho apresentado no GT 2 – Políticas e Estudos do Audiovisual, da Imagem e do Som do 8º Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. PUC Rio, Rio de Janeiro, outubro de 2015. 2 Graduandos em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará. Agradecemos a Anna Hirata pelas traduções japonês-português, que muito nos auxiliaram na análise do filme.

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fragmentações de imagens — o filme se aproxima de uma colagem. Um álbum de família. Algumas filmagens não começam a partir de um roteiro a ser seguido. Ou tendo como base a elaboração minuciosa de personagens, situações e arcos dramáticos. Às vezes há simplesmente uma regra a ser seguida, um espaço a ser percorrido, um limite temporal a ser obedecido. Ou uma pergunta a ser respondida na companhia de uma câmera. Há obras que implicam uma pesquisa construída na medida em que imagens são produzidas. A câmera é máquina que dispara modulações e acasos que se atualizariam de outra forma caso não houvesse filmagem: agenciamentos e acontecimentos que surgem na (e com a) imagem. É o caso de Em Seus Braços, documentário de média-metragem realizado por uma mulher que resolve ir em busca do próprio pai empunhando uma máquina filmadora. No decorrer dos trinta e nove minutos de duração do filme, Naomi Kawase filma sua certidão de nascimento, fotografias antigas e espaços já habitados por seus pais biológicos, além inserir gravações telefônicas e diálogos com pessoas sobre a própria vida. Um exercício de experiência e descoberta não apenas com aqueles e daqueles que a rodeiam, mas de si. A realizadora japonesa parece fazer uso do ato de filmar em razão de uma urgência pelo sentir. “Filmo para me sentir viva”, diz Naomi Kawase em Carta de Uma Cerejeira Amarela em Flor (Tsuioku no Dansu, 2003), afirmando a relação visceral com seu ofício.Tomar a câmera e filmar é para ela uma necessidade vital. De fato, desde que começou a filmar, ainda aos 18 anos, Kawase se situou no ponto de confluência entre cinema e vida. Pontuada por dramas familiares, a história pessoal de Kawase tem uma potência narrativa que a realizadora passa a explorar mais profundamente em documentários autobiográficos. Ela construiu, ao longo de sua carreira, um cinema que emprega e convoca um olhar íntimo, cuidadoso, “um olhar próximo, atento aos pequenos detalhes, aos pequenos eventos que emergem na superfície da imagem” (REIS FILHO, 2010, p. 77). E há filmes que nunca terminam. Reverberam em outros projetos de seus realizadores. Aqui, por exemplo, as questões com o pai biológico retornam em outras 2

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películas de Naomi Kawase, como em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra (Kya Ka Ra Ba a, 2001), obra repleta de encenações e performances com a câmera.

Busca e dispositivo Em Seus Braços tem como base a situação familiar de Naomi Kawase. O pai a abandona antes do nascimento, e ela é entregue pela mãe aos cuidados dos tios-avós. Kaneichi Kawase, o tio-avô, morre quando Naomi contava 14 anos de idade. A família da garota, então, passa a ser uma única pessoa: Uno Kawase, mãe adotiva, tiaavó biológica, a quem Naomi chama resumidamente de avó. O abandono afetivo do pai biológico e a convivência com Uno são temas recorrentes nos documentários pessoais da realizadora, produções independentes e intimistas que não foram descontinuadas mesmo após o ingresso de Kawase no circuito cinematográfico com o longa-metragem Suzaku (Moe no Suzaku, 1997). Em Seus Braços começa a se delinear no momento em que Naomi, aos 23 anos, empunha a câmera com um objetivo em mente: procurar o pai biológico. Tal propósito desencadeia uma jornada pessoal, um processo de busca que se coaduna à filmagem. Assim sendo, Em Seus Braços se aproxima de um conjunto de filmes que Bernardet (2014) reúne sob a nomenclatura de “documentários de busca”, termo forjado para sistematizar as características em comum de dois documentários brasileiros: Um passaporte húngaro (2001), de Sandra Kogut, e 33 (2002), de Kiko Goifman. [...] são projetos que partem de um alvo bastante preciso, bastante determinado, mas os cineastas não sabem se esse alvo será atingido. Portanto, a filmagem tende a se tornar a documentação do processo. Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não há uma pesquisa prévia; a pesquisa, que frequentemente no documentário é anterior à filmagem, é a própria filmagem. (BERNARDET, 2014, p. 210)

Kogut filma-se ao longo do percurso burocrático para obter passaporte e nacionalidade húngaros, o que a leva também a vasculhar o passado de sua família. Goifman, com intuito similar ao de Kawase, procura a mãe biológica. Os realizadores

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têm um desígnio definido, mas percorrem um caminho de incógnitas e indeterminações ao persegui-lo, evidenciando a dinâmica de “atualização de virtualizações” que caracteriza o cinema documentário (REZENDE, 2013, p. 19). Nesses projetos audiovisuais tão pessoais e autobiográficos, a filmagem, ato produtor de subjetividade, permite que o realizador engendre processos de diferenciação, inventando-se e experimentando-se com a imagem. O sujeito, transitório e moldável, se ultrapassa a cada contato com as forças e afetos que o atravessam (MIGLIORIN, 2015, p. 67). Conclui-se, a partir de Bernardet, que a filmagem é o momento crucial desses filmes. A câmera, mais que aparato de registro, assume um poder catalisador, explorando a dimensão virtual do mundo, disparando subjetividades, provocando acontecimentos. Foi Jean Rouch um dos pioneiros a reconhecer o caráter estimulante e as potências subjetivas da câmera, aspectos explorados explicitamente em Crônica de um verão (Chronique d'un été, 1961) (RENOV, 2004, p. 178). Kawase se posiciona de forma similar a Rouch ao descrever o papel que a câmera assume na realização de seus documentários, especialmente naqueles em que ela filma a tia-avó: NK [Naomi Kawase]: (...) Comecei a filmar com a consciência de que a câmera estava ali. De modo que a Naomi Kawase de todos os dias, que casualmente carregava uma câmera e casualmente captava algumas coisas interessantes em celuloide, começou pouco a pouco a criar conscientemente com a câmera. Esse é o enfoque que adotei. Há um olhar adicional, que surge quando me dou conta de que “estou olhando de determinada maneira” ou “minha tia-avó está olhando de determinada maneira”. AG [Aaron Gerow]: O que significa que, em vez de gravar objetivamente uma relação que já existe, você cria uma relação distinta usando a câmera como uma espécie de mediador? NK: Sim, em certo sentido sinto que superei algo. Essa espécie de preocupação, de ansiedade. Tinha mais determinação, sentia que se conseguia algo distinto, era excitante. Pensei “tenho uma câmera” (risos). Deixei de pensar em como seria se a câmera não estivesse ali, e tentei conseguir isso com a postura de quem efetivamente tem uma câmera. AG: Nesse sentido, em vez da ideia, bastante corrente na teoria documental, segundo a qual a câmera destrói a realidade ao interferir nela, você usa a câmera como uma ferramente positiva, não para destruir, mas para criar uma realidade. NK: Sim, é exatamente assim. Ainda que seja certamente um documentário, desde Caracol [Katatsumori, 1994] tive a convicção de que o resultado era um mundo que eu mesma havia criado. Creio que

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isso é perceptível tanto nos documentários quanto nos filmes de ficção que vieram depois. (GEROW, 2008, p. 115)

Sob essa perspectiva, o documentário desvia das pretensões de representação e passa a operar mecanismos de atualização, através dos quais “algo que não existia, ou que existia como virtualidade, ganha uma forma atual e concreta, material” (REZENDE, 2013, p. 19). Essa operação se dá no momento da tomada; portanto, para além de uma análise do documentário como produto audiovisual, precisamos considerar sua dimensão processual, isto é, as circunstâncias da filmagem e as questões éticas e estéticas que conduzem a aproximação entre realizador e assunto filmado. No emaranhado de virtualidades em que o realizador se embrenha, faz-se necessário criar um dispositivo de filmagem para gerir o fluxo de controle e descontrole entre filme e mundo. Entendendo dispositivo como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2005, p. 13), compreende-se que instituir um possível para filmar — no sentido de inventar condições, regras e modulações para que imagens surjam — é dispositivo fundante de Em Seus Braços. Naomi Kawase cria uma espécie de jogo, estipula regras e condições autoimpostas, de modo a cumprir a tarefa neguentrópica de conformar o imprevisível em narrativa. Ao trazer o conceito de imagem-experiência em Eu Sou Aquele Que Está de Saída (2008), Cezar Migliorin explica que criar um dispositivo de filmagem faz com que o realizador opere forças que extrapolam o cinema e apareça como experimentador (MIGLIORIN, 2008, p. 12). Para ele, a imagem-experiência é antes de tudo um convite ao lugar de incertezas e imprecisões da experiência. É um “encontro com um não-sei-o-que de possibilidades” (Idem, p. 113) Um conjunto de sons, planos, gestos, coreografias, seres, corpos que se relacionam.

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Ainda que Kawase faça eventuais confissões sobre a filmagem, o dispositivo de busca de Em Seus Braços não é descrito explicitamente. Podemos inferi-lo, considerando-o operacionalmente como o conjunto de diretrizes que orientam a trajetória da realizadora. Assim, o dispositivo de busca se manifesta de forma mais concreta quando Kawase obtém o registro civil do pai. A partir deste documento, que contém todos os dez endereços em que o pai morou nos últimos 20 anos, ela cria um itinerário e se submete a percorrê-lo. Através desse périplo pelas antigas residências do pai, espalhadas pelas províncias de Osaka e Hyôgo, Kawase empreende um acercamento tímido. Caso apresentasse qualquer urgência pelo encontro, seria mais útil para o processo de busca que Kawase se dirigisse ao endereço mais recente. Mas ela tinha outras intenções, como revelou posteriormente em master class proferida no Festival de Cine 4+1: Depois de se separar de mim, meu pai se mudou para dez lugares diferentes. Durante 20 anos, viveu em várias casas. Eu fui a cada uma delas. Evidentemente, meu pai já não estava lá. O que eu buscava eram apenas suas memórias e o rastro de que ele havia estado ali. Tratava de sentir o que ele havia vivido. Eu ia de cidade em cidade. E filmava o pôr do sol, uma árvore balançando ao vento, escutava as crianças brincando. Filmar esse tipo de cenas era o importante para mim. Provavelmente as memórias de meu pai e de minha mãe sejam iguais ao que eu gravei. Fui recriando-as. Como dizia inicialmente, eu havia experimentado a beleza de gravar o tempo com a câmera 8mm. Portanto, não é que meus pais tenham me dito pessoalmente, eu simplesmente fui a esses lugares e tratei de recuperar e regenerar esse tempo perdido que eles viveram. Para mim, esse tempo nunca existiu. Não pude conviver com eles, portanto eu mesma regenerei esse tempo. (FESTIVAL DE CINE 4+1, 2011)

Compreende-se, então, que Kawase não busca imediatamente o pai em sua materialidade, o encontro físico. Ela hesita frente à possibilidade de encontrá-lo e não ser reconhecida, o que significaria para ela a negação de sua própria existência (FESTIVAL DE CINE 4+1, 2011). Ao percorrer as casas do pai, Kawase pretende atualizar em imagens as memórias que os locais suscitam. Filmar os ambientes em que ela poderia ter convivido com os pais é uma forma de experimentar passados contigentes. Ela também explora essa “memória dos objetos”, a “sobrevivência de seu passado em seu presente” (REZENDE, 2013, p. 20), ao visitar uma antiga residência da mãe e os locais onde foram tiradas algumas de suas fotos de infância. Ela superpõe 6

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as fotos a esses ambientes e, ao passo que estes permanecem inalterados, as pessoas fotografadas desaparecem. O filme de Kawase fala mais de memórias fragmentadas e do sentimento de ausência, em vez de descrever propriamente a história pessoal do pai e da mãe. Ela efetua, dessa forma, a passagem do particular ao universal. Concatenando a busca O gesto de montar o filme também nos parece relevante ao considerar um filme fundado por um dispositivo de busca. Como a luz se inscreve na película, a montagem também é uma escritura, campo em que os descontroles permanecem. De acordo com Migliorin, a montagem é o lugar de manutenção do dispositivo como seara em que acontecimentos podem se dar. Isto é, a montagem mantém a potência do dispositivo respeitando a sua contingência temporal ou apresentando o germe de desestabilização no processo mesmo de organização das imagens. Montagem como modo de conhecimento, lugar que permite acesso ao dispositivo numa instância para além do visível (MIGLIORIN, 2008, p. 33). Portanto, resta-nos identificar quais outros materiais Kawase utiliza para concatenar seu filme, e que sentidos eles agenciam. É a partir do gesto de montar Em Seus Braços que a realizadora empreende diversas colagens e sobreposições ao longo de todo o filme. Vozes em off, gravações telefônicas, relatos pessoais. O som quase nunca coincide com a imagem. Miranda explica que o que se extrai dessa composição assincrônica gira em torno não de uma complexidade suscetível de interpretação, mas de um sensível equilíbrio entre contrastes e deslizamentos “entre a série de buscas de uma mulher jovem que deseja resolver o quebra-cabeças de sua própria origem e seu impulso de completar a si mesma naquilo que não pode ser narrado: naquilo que simplesmente é” (MIRANDA, 2011, p. 103). Timelapse, contraluz, sombras, imagens fragmentadas (figuras 01, 02 e 03). A realizadora implica o próprio corpo em jogos de enquadramento com a câmera que remetem a um processo de autoconhecimento e investigação. Como se pudéssemos ver os rastros de uma presença fantasmagórica que busca atestar a própria existência. 7

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Figuras 01, 02 e 03: Naomi Kawase implica o próprio corpo na filmagem como parte de um processo de investigação. Fonte: Reprodução. Certidão de nascimento, fotografias do passado: memórias de infância. Feridas na pele. Para dar a ver o processo de busca pelo pai (e por si mesma) no filme, Kawase constrói uma espécie de inventário de si e do que a rodeia. Há casas, há natureza, há o vento. De modo semelhante às obras em que a realizadora filma sua tiaavó, Uno Kawase, há gestos simples, como o de cantar e o de aguar as plantas do jardim. Há também o que Renov chama de “câmera compartilhada”, nos momentos em que Naomi e Uno enquadram uma a outra e propõem expressões, atividades, encenações, brincadeiras com a máquina filmadora. De acordo com o autor, esse agenciamento tensiona a autoria da obra e produz descontroles na direção, produzindo e reafirmando redes subjetivas entre os participantes do filme (RENOV, 2004, p. 224). Essa relação orgânica com a câmera potencializa a dinâmica de atualização de virtualidades, sobretudo o “eixo da trans-subjetividade”, relacionado às questões que regem a interação entre a pessoa que filma e a pessoa filmada (REZENDE, 2013, p. 21). O diálogo entre Naomi e Uno, mediado pela câmera, faz germinar novos acontecimentos e situações. É por esta aproximação entre Naomi e Uno que Em Seus Braços se alinha ao conceito de etnografia doméstica, termo com o qual Renov caracteriza uma prática autobiográfica que une interrogações ou motivações pessoais ao interesse etnográfico de documentar a vida de pessoas próximas ao realizador: parentes, familiares. Ao contrário dos filmes etnográficos que se interessam pelo Outro exótico ou pelo Outro de classe, na etnografia doméstica “o Outro é um membro da família que desempenha

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mais o papel de contraponto ou espelho de si do que fonte para pesquisa social ou científica” (RENOV, 2004, p. 216). Nos momentos interativos em que Uno toma a câmera e filma Naomi, o corpo da realizadora se inscreve na imagem, remetendo ao princípio de “coimplicação” que a etnografia doméstica pressupõe. Em diversos outros planos, Kawase enquadra seu reflexo ou a própria sombra. A presença visível da realizadora funda um circuito de legitimação recíproca entre filme e corpo filmado, de modo que a filmagem seja, antes de tudo, uma experiência à qual o corpo é submetido (COMOLLI, 2008, p. 283). De acordo com Comolli (Idem, p. 285), esta é uma forma de o cinema se distanciar do “devir-espetáculo do mundo”, na medida em que o filme escapa da lógica representativa mimética, sendo, na verdade, o registro da afetação que a filmagem suscita. Neste caso, o documentário é o registro dos acontecimentos disparados por ele mesmo, colocando em cena o corpo atravessado pelas circunstâncias da filmagem, em vez de se fundar na representação de uma realidade preexistente. Com efeito, nos documentários de Kawase – seja abordando as complexas relações com o pai e a tia-avó, ou até mesmo no filme em que ela grava o próprio parto –, a realizadora se submete a experiências pessoais que lhe escapam ao controle e se coadunam à filmagem. Portanto, através dos dispositivos que elabora para se aproximar do Outro familiar e de si mesma, Kawase encara o cinema como a criação de formas de sentir. Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: outra travessia: Revista de Literatura do Programa de Pós-Graduação em Linguística UFSC. Florianópolis, 2005. BERNARDET, Jean-Claude. Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir. (orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder: A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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FESTIVAL DE CINE 4+1. Master Class: Naomi Kawase (Festival de Cine 4+1, 29/10/2011). Vídeo (127min14s). Disponível em: . Acesso em 25 ago. 2015. GEROW, Aaaron. El tema soy yo: Entrevista con Naomi Kawase (1988-2000). in LÓPEZ, José Manuel (Org.). El cine en el umbral. Madri: T&B Editores, 2008. MIGLIORIN, Cezar Avila. Eu sou aquele que está de saída: dispositivo, experiência e biopolítica no documentário contemporâneo. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, CFCH/ECO, 2008. _____________________. Cartas sem resposta: A internet, a educação, o cinema e o Luciano Huck. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. REIS FILHO, Osmar Gonçalves. Reconfigurações do olhar: o háptico na cultura visual contemporânea. In: Visualidades: Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual I Faculdade de Artes Visuais I UFG. – V. 10, n.2 (2012). Goiânia: UFG/ FAV, 2012. MIRANDA, Luis. Dar à luz. Naomi Kawase. In: MAIA, Carla e MOURÃO, Patrícia (org.): O cinema de Naomi Kawase. Rio de Janeiro: CCBB RJ, 2011. RENOV, Michael. The subject of documentary. Minnesota: University of Minnesota, 2004. REZENDE, Luiz Augusto. Microfísica do documentário: ensaio sobre criação e ontologia do documentário. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

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