Filosofia, Direito e Psicanálise em Slavoj Zizek_

September 30, 2017 | Autor: D. Alves Teixeira | Categoria: Marxism, Philosophy Of Law, Slavoj Žižek, Estudo Juridico
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Sumário

Introdução........................................................................................................................................ p 2 1.

A filosofia de Slavoj Zizek........................................................................................................... p 3

2.

Slavoj Zizek e o marxismo.......................................................................................................... p 8

3.

Leituras de Zizek sobre a psicanálise........................................................................................... p 15

4.

Leituras de Zizek sobre o direito.................................................................................................. p 23

5.

Para uma Crítica do Direito e do Estado em “Em defesa das Causas Perdidas” 5.1

O Estado de Coisas........................................................................................................... p 31

5.2

As lições do passado......................................................................................................... p 44

5.3

O que se há de fazer.......................................................................................................... p 61

Conclusão....................................................................................................................................... p 78 Bibliografia.................................................................................................................................... p 80

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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo construir uma crítica do Direito e do Estado na sociedade contemporânea a partir do pensamento e da obra do filósofo esloveno Slavoj Zizek, em especial a partir de sua visão política e social elaborada no livro “Em defesa das Causas Perdidas.”. Para tanto, de suma importância será também as reflexões e ensinamentos do professor Alysson Leandro Mascaro em sua perspectiva sobre o marxismo jurídico e a tradição da teoria crítica do direito. Primeiramente, apresentaremos as principais características e fundamentos da teoria de Zizek, expondo suas principais influências e direcionamentos, as críticas favoráveis como também as eventuais análises negativas de seu pensamento, com a ajuda de pensadores como Christian Dunker e Vladimir Safatle, que já se debruçaram sobre a obra do filósofo a partir de suas principais áreas de conhecimento, a psicanálise e o marxismo. Em seguida entraremos mais especificamente no espírito e na proposta do livro base desta tese, buscando as principais críticas ao Direito e ao Estado que possam ser elaboradas a partir de sua filosofia, tentando empreender neste percurso uma análise preocupada com a totalidade da vida social e o modo pelo qual a teoria jurídica e do Estado participam da constituição política e ideológica da sociedade capitalista, seus entraves, contradições e possibilidades de transformação.

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1.

A filosofia de Slavoj Zizek

A curiosidade acerca de sua vasta obra e a importância dos estudos filosóficos do esloveno Slavoj Zizek vem aumentando nos últimos tempos, posicionando-o como um dos mais importantes críticos da contemporaneidade. Nascido em Liubliana, capital da Eslovênia, em 1949, com graduações e doutorados em filosofia e psicanálise, Slavoj Zizek tem demonstrado durante a evolução de seu pensamento ser um pensador que, além de demonstrar grande capacidade teórica e ampla formação filosófica, não deixar de lado o posicionamento crítico e político perante um quase completo sufocamento das teorias emancipatórias provocadas pela ascensão do pensamento neoliberal.

Para tanto tem como principais ferramentas teóricas para a dissecação do acomodado sensocomum de nossos tempos o marxismo e a psicanálise. Desde suas primeiras obras serão estas duas correntes do pensamento suas principais referências e com elas exercera sua capacidade crítica nas análises dos mais variados temas da sociedade contemporânea, como a música, religião, cristianismo, cinema, entre muitos outros. Neste trabalho iremos nos concentrar em seu livro Em defesa das Causas Perdidas, um livro marcadamente político em que Slavoj Zizek procura desenvolver suas ideias e teorias acerca dos impasses gerados pela progressiva consolidação da ideologia capitalista nos tempos atuais.

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Neste livro mesmo, já na introdução, Zizek ressaltará o porquê do marxismo e da psicanálise, que desde os tempos da Escola de Frankfurt são dois temas que se aproximam, marcando uma crítica profunda e estimulante da sociedade, não sem grandes controvérsias e contradições, serem as únicas correntes filosóficas que atualmente se engajam em uma crítica contundente do presente. Dirá o filósofo:

Restam somente duas teorias que ainda indicam e praticam essa noção engajada de verdade: o marxismo e a psicanálise. Ambas são teorias de luta, não só teorias sobre a luta, mas teorias que estão, elas mesmas, engajadas numa luta: sua história não consiste num acúmulo de conhecimentos neutros, pois é marcada por cismas, heresias, expulsões. É por isso que, em ambas, a relação entre teoria e prática é propriamente dialética; em outras palavras, é de uma tensão irredutível: a teoria não é somente o fundamento conceitual da prática , ela explica ao mesmo tempo por que a prática, em última análise, está condenada ao fracasso...1

Neste trecho, já nos deparamos com uma das características fundamentais do pensamento zizekiano. Após exaltar a capacidade crítica do marxismo e da psicanálise, logo em seguida espanta-nos com a estranha afirmação de que ambas as teorias “estão condenadas ao fracasso” quando de sua prática efetiva. Isto porque o forte pensamento de Slavoj Zizek não encontra limites em sua crítica, não se intimida nunca nem em contestar seus próprios fundamentos e, na verdade, tem nesta uma de suas principais características. Suas obras não são escritas linearmente e tendo como base somente uma teoria ou concepção, mas trata-se sim de uma análise ampla e provocadora, que, com suas intervenções pontuais, análises rigorosas e questionadoras das questões presentes, procuram desmontar o discurso liberal que permeia os tempos atuais, visando mais colocar em dúvida o que parecia certo do que simplesmente apresentar uma “solução”, desmascarando as ideologias ocultas que norteiam a filosofia contemporânea. Sobre isto, diz o professor Marcelo Gomes Franco Grillo, em seu livro O Direito da Filosofia de Slavoj Zizek: Apesar de controverso, por certo ponto de vista, Zizek está inserto na pós-modernidade, e não somente por uma questão cronológica, porém, porque constrói seu pensamento multifacetadamente, versátil na forma interdisciplinar como trata os temas propostos, não se apegando à tradição como mera reprodução das teorias. Ao contrário: vale-se de um conjunto de ciências e teorias contemporâneas para criar uma filosofia rica e original. É original pela junção que faz de pensadores como Hegel, Marx e Lacan, entre si e o estruturalismo francês, e pela mistura do erudito com o popular, em linguagem provocativa e comparativa ao extremo, a qual usa de construções particulares, compostas por leituras do cinema da Psicanálise e do cotidiano. É a criação de um filosofar que não obedece a uma linha acadêmica rígida, tradicional. 2

Também sobre a filosofia de Slavoj Zizek, assevera Christian Ingo Lenz Dunker, em Zizek Critico: Política e Psicanálise na era do Multiculturalismo:

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Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 21 Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 32

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Zizek não é um pensador sistemático que nos convida para a arqueologia e a reconstrução do movimento de seus conceitos, ao gosto da prática universitária corrente, mas também não corresponde ao intelectual edificante, ensaístico ou opinativo, interessado apenas em questões pontuais e intervenções localizadas, O modo mais eficaz de captar a lógica de seus textos é atentar para a constância de seu estilo, que se desenvolve ao modo de um intelectual engajado, isto é, de um pensador que, sobretudo, toma posições. Em geral tais posições nos fazem rever o próprio mapa, ou as coordenadas simbólicas de que dispomos para localizar a questão.3

Assim, trata-se de uma tarefa ingrata situar o amplo e sinuoso pensamento de Slavoj Zizek entre as filosofias contemporâneas. A principal dificuldade está em sua intrincada relação com o marxismo, ora aparecendo como crítico do marxismo, ora como marxista propriamente dito, ou por vezes também tentando resgatar o próprio Marx, em sua literalidade, antes das muitas e conflituosas teorias e práticas que a teoria marxista originou. Por outro lado, também se aproxima e dialoga com muitas outras correntes do pensamento filosófico do século XX, como o existencialismo, principalmente com Heidegger, além de Derrida, Alain Badiou, Adorno, Foucault e o estruturalismo francês de Lévi-Strauss e Louis Althusser.

Para alguns Slavoj Zizek estaria situado dentro da pós-modernidade. Sua escrita pouco linear, a variedade de temas e o contínuo diálogo com outras áreas do pensamento e da ciência o colocariam neste patamar. Em seus livros, o filósofo esloveno debate e repercute ideias oriundas das ciências cognitivas, contesta ou dialoga com seus próprios críticos, além de comentar livros e filmes que possam exemplificar a aplicação de sua teoria. Temos aqui outra característica marcante do pensamento de Slavoj Zizek, a aproximação crítica entre os grandes pensamentos da filosofia e obras da mais baixa cultura pop global. Sobre a pós-modernidade de Slavoj Zizek, novamente ressalta o professor Marcelo Gomes Franco Grillo: Por isso, defende-se que a relação de Zizek com o que se define como pós-modernidade, o é mais pela linguagem e pela utilização do cotidiano ‘pós-moderno’ e globalizado, tudo isto com a finalidade de exemplificar seu pensamento. Esse rareia entre a arte e a política, a filosofia clássica e a crença, o religioso e o profano, o teórico e o popular. Sua diversidade aponta para o hibridismo de cunho heteróclito, que privilegia tanto o registro alto quanto o registro baixo, borrando suas fronteiras com o intuito critico de colocar ambos no mesmo patamar de análise. Fatos esse inegáveis na leitura e estudo de sua obra. 4

É notório também em sua obra que seu estilo e método tentam ao mesmo tempo transportar o leitor para a crítica conceitual dos nossos tempos, retirando-o do conformismo e do senso-comum, sem, entretanto, ter a pretensão de esgotar em seu discurso as possibilidades e questões do presente, abrindo espaço para a reflexão ativa do leitor, demonstrando que os impasses teóricos do pensamento repercutem

Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.47 4 Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 37 3

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também na prática cotidiana e somente serão resolvidos através da postura engajada e da prática contínua da crítica. Novamente o professor Christian Ingo Lenz Dunker: O engajamento de Zizek deve ser encarado de modo diferente da participação ritual em movimentos sociais. Ele estará sempre desconstruindo sua própria posição, produzindo aberturas e se relocalizando em novos debates. Como ele afirma em uma entrevista: ’Não se esqueça que comigo as coisas sempre são o contrário do que parecem’ (BOYNTON, 2001). (...) O chiste, o humor, a capacidade de reunir erudito e popular, trafegando pela vasta gama de problemas e autores das ciências humanas, do passado e do presente, em linguagem clara e provocativa, colocaram Zizek definitivamente em evidência no final da década de 90. Zizek conseguiu absorver aspectos da retórica do pós-modernismo sem endossar suas teses. 5

Portanto, ao falarmos de Slavoj Zizek, falaremos de um estudioso que decidiu sair do ambiente acadêmico estrito, levando consigo a teoria lacaniana da psicanálise, relacionando-a com os mais variados temas do cotidiano e da contemporaneidade (contrariando muitos neste ponto, que não gostam de ver os conceitos rígidos e circunscritos da psicanálise fora de seu lugar de aplicação), além de, em suas últimas obras, propor um ousado retorno a Hegel. Assim, trata-se de um filósofo que afirma com convicção sua posição de esquerda, ressalta a importância de fazê-lo, e encontra nas críticas que recebe justamente um meio para reabrir o campo das possibilidades do presente.

A intenção de Slavoj Zizek, principalmente no livro que estudaremos, Em defesa das causa perdidas, é demonstrar que, diante do consenso absoluto que envolve a maioria dos intelectuais e acadêmicos acerca da democracia neoliberal como forma última e necessária de governo, existe uma necessidade de renovação radical da esquerda, através do exame crítico dos eventos do passado, para ali reencontrar os potenciais emancipatórios sufocados. É preciso dar um passo atrás, analisar com coragem e sem preconceitos os terríveis eventos do totalitarismo europeu (nazismo, stalinismo, fascismo), assumilos como catástrofes e erros, mas que escondem, em meio a seus erros mesmo, os caminhos para dar um passo à frente em direção ao socialismo pleno. Em sua introdução ao referido livro, dirá o professor Alysson Leandro Mascaro: Repetir não é provar a fraqueza do que se busca novamente, mas sim demonstrar a necessidade premente de volver ao passado para concretizar sua grandeza, buscando, no mínimo, errar menos nessa nova retomada do processo revolucionário. O potencial emancipatório que ainda não se esgotou continua a nos perseguir, e o futuro que nos persegue pode ser o futuro do próprio passado. A irrupção da revolução passada se deu em um momento incerto, e sua repetição presente também assim se apresentará, porque o ato revolucionário ‘é sempre prematuro’. Nunca haverá de se esperar um tempo certo para a revolução, então, para Zizek, o amanhã que é futuro pode já ser hoje. (...) Para Zizek, em tempos dinâmicos que chegam até a plena manipulação tecnológica da natureza, onde a única estabilidade é a própria exploração capitalista, contra a qual já se luta e já se perde há Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 50

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tempos, trata-se de mostrar que é possível fazer a defesa das causas perdidas para agora perder melhor ou, quiçá, plenamente ganhar.6

Neste trabalho iremos nos concentrar, portanto, dentro da variedade de temas e fatos abordados por Slavoj Zizek, em sua visão política do mundo contemporâneo, abordando criticamente as questões sobre o Estado, a democracia, o direito e capitalismo, contrastando o entendimento corriqueiro da teoria positivista, hoje prevalecente no universo jurídico, com as constatações oriundas das análises feitas por Zizek através da psicanálise e do marxismo.

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Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 17

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2. Slavoj Zizek e o marxismo

Como afirmamos anteriormente, Slavoj Zizek é um filósofo que possui seu método próprio de escrever, não se prende a uma forma linear de escrita e reflexão. Em seus livros, passa repentinamente da análise de um fato ou acontecimento para a mais alta psicanálise de Jacques Lacan, culminando na passagem de algum filme cult. Assim, espera conseguir trazer as reflexões filosóficas para dentro do cotidiano e provocar críticas mais diretas e contundentes ao senso comum liberal. Entretanto, com este procedimento, muitas vezes é difícil traçar com precisão qual é verdadeiramente o posicionamento de Slavoj Zizek. Por vezes contraditório, o filósofo de Liubliana, em suas entrevistas, muda sua opinião acerca de asserções feitas anteriormente, se desmente, levanta novas questões e revisa seu próprio entendimento acerca do mundo contemporâneo.

Esta questão se torna mais patente e relevante acerca de sua intricada relação com o marxismo. Dentro do próprio marxismo, existem aqueles que entendem que seu pensamento não poderia ser chamado de marxista propriamente dito. Ao se utilizar de variadas teorias e filosofias em suas análises, Slavoj Zizek acabaria por se afastar demasiadamente da teoria marxista “pura”, subvertendo sua capacidade crítica. Assim, o marxismo estaria presente de forma secundária em sua obra, como parte de seu arcabouço filosófico mais amplo, e suas interpretações levariam a uma crítica excessivamente alegórica da realidade, que ignoraria alguns dos pressupostos básicos do marxismo. Sobre esta 8

problemática, afirma o professor Ian Parker, em ensaio publicado na coleção Zizek crítico: Política e Psicanálise na era do multiculturalismo: No trabalho de Zizek, a oposição marxista ao capitalismo pode também muito facilmente ser vista como uma tentativa desvairada de fazer algo acontecer, algo obsessivo e fútil, ou como lamentação histérica contra o que os outros estão fazendo a nós. Nos dois casos, o transe neurótico (neurótico obsessivo e histérico) do ativista é contido, ou mesmo provocado, pelo capitalismo. Pode-se detectar no marxismo uma nova propensão no processo ‘interpassivo’ pelo qual nós nos subordinamos aos outros que agem no nosso lugar, olhando para o processo político como uma fonte de entretenimento, muito similarmente ao modo pelo qual assistimos a uma comédia na televisão e nos baseamos na claque de risadas para apreciarmos o programa. O marxismo poderia ser visto, mesmo hoje, como mais uma repetição da tentativa de encontrar os outros que acreditam numa substituição mais fácil, conveniente, para a nossa própria crença. Por mais importantes que sejam estas advertências, o próprio Zizek foi bem sucedido em desubstancializar tão completamente qualquer projeto político, que ele próprio termina não acreditando em nada. Freud pode ter mostrado algo sobre a natureza dos sintomas que Marx já tinha detectado na sua análise das mercadorias, mas parece que a mensagem suprimida, que Zizek quer tomar de Lacan, é a de que precisamos aprender a desfrutar tais sintomas. 7

Assim, a profusão de caminhos diferentes e as seguidas reviravoltas em suas investigações filosóficas acabariam em um beco sem saída, uma teorização que, em que pese à energia e a capacidade intelectual de Zizek, não estabeleceria nenhum ponto firme ou projeto positivo. Continua Ian Parker: Zizek entrelaçou Hegel, Lacan e Marx num nó teórico tão apertado, que somente um ‘ato’ desesperado de recusa individual permanece disponível para qualquer um que tomar seriamente tudo isso. Este tipo de ato poderia se disfarçar como algo que irá mudar as coordenadas simbólicas de um sistema político, mas que, na realidade, nos leva para bem longe de qualquer projeto de mudança coletiva. A desubstancialização completa da vida diária encorajada pela psicanálise lacaniana, reconfigurada como uma visão de mundo, é então tornada compatível com uma imagem do capitalismo virtual; é isto é então teoricamente conectado a um foco hegeliano classicamente idealista sobre ao domínio da aparência como tal. Só então seria realmente possível acatar Zizek e ‘manter as aparências’(Zizek, 1998:996) e apenas a aparência do marxismo. Esta é uma melancólica conclusão para o que deveria ser uma intervenção teórica radical na prática política. 8

Também o professor Marcelo Gomes Franco Grillo reflete de forma parecida sobre o marxismo de Zizek:

Entretanto, várias ressalvas deverão ser feitas à sua obra, principalmente à sua tomada de posição pelo marxismo. Justamente por Zizek ser um autor que trata de diversos temas e utiliza-se de uma variedade muito grande de correntes filosóficas, seu marxismo acaba por ficar diluído na sua produção intelectual. Algumas conformações teóricas de Zizek são contraditórias ao marxismo, como, por exemplo, as intervenções sobre o universalismo, as quais não estão claramente calcadas nos alicerces da teoria marxista, Zizek guarda certa referência ao Idealismo Alemão hegeliano junção com a teoria lacaniana, sendo, neste aspecto, bastante contraditório com disposições e teorizações marxistas literais em sua obra.9 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 169 8 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 169 9 Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 42 7

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Estas palavras demonstram bem qual a problemática do relacionamento de Zizek com o marxismo. Suas intervenções teóricas, ao procurarem em múltiplas áreas do pensamento filosófico recursos e fundamentos para sua crítica, não seguem uma linha diretamente marxista, normalmente preferindo (re)interpretar todo o arcabouço utilizado pelo senso comum para a problematização do assunto em questão e assim tentar traçar uma linha para separar aquilo que pode ser uma mistificação ideológica da verdadeira crítica.

A ambiguidade do marxismo de Slavoj Zizek não deve ser encarada como uma defasagem em sua crítica ao capitalismo. Neste ponto, o que encontramos em Zizek é sua constatação de que, com o fim da guerra fria e a Queda do Muro de Berlim, decretando o fim da comunidade de países pretensamente socialista do leste europeu, e a crescente do capitalismo neoliberal globalizado e globalizante, a esquerda radical (ou o que sobrou dela, como gosta de ressaltar) deveria passar por uma profunda reflexão acerca não só de seus pressupostos teóricos, como também de sua participação histórica, seus erros e vitórias. Os fracassos destas tentativas de uma sociedade socialista devem nos ensinar as lições que precisaremos contra o avanço do conservadorismo liberal e propor novos avanços na construção de uma sociedade mais justa.

A completa virtualização do capital sucedida pela predominância do capital financeiro, as novas formas de comunicação praticamente instantânea, a implantação crescente de um mercado mundial são fenômenos para os quais as formas tradicionais de análise marxista não dão conta do campo todo, não são capazes de decifrar completamente as complexas estruturas e contradições do capitalismo tardio. Para Slavoj Zizek, esses acontecimentos levam o capitalismo a um novo patamar ideológico, assim descrito em seu livro Menos que nada: Encontramos aqui a diferença lacaniana entre realidade e Real: ‘realidade’ é a realidade social das pessoas atuais envolvidas na interação e nos processos produtivos, ao passo que o Real é o inexorável espectro ‘abstrato’ lógico do Capital que determina o que acontece na realidade social. Essa lacuna se torna tangível no modo como a situação econômica de um país pode ser considerada boa e estável por economistas internacionais, mesmo quando a maioria do povo está em situação pior que antes – a realidade não importa, o que importa é a situação do Capital. E, hoje, não seria isso mais verdadeiro que nunca? Os fenômenos geralmente classificados como característicos do ‘capitalismo virtual’ (mercado futuro e especulações financeiras assemelhadas) não apontam na direção do reino da ‘abstração real’ em sua forma mais pura, muito mais radical do que na época de Marx? Em suma, a forma mais elevada de ideologia não envolve ser preso na espectralidade ideológica, deixando para trás as relações e as pessoas reais, mas precisamente ignorar esse Real da Espectralidade e fingir abordar de maneira direta ‘as pessoas reais e seus problemas reais’. Os visitantes da Bolsa de Valores de Londres recebem

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um folheto que explica como o mercado de ações não diz respeito a flutuações misteriosas, mas sim a pessoas reais e seus produtos – isso é ideologia em sua forma mais pura.10

Portanto, muito antes de ser um mundo “pós-ideológico”, em que os liberais finalmente cantam com louvor a superação da utopia socialista responsável pelos desastres do começo do século passado, o período histórico que nos encontramos se encontra mergulhado em uma profunda mistificação sobre suas próprias crenças e ideologias. Sobre a utopia neoliberal, dirá Slavoj Zizek em Primeiro como tragédia, depois como farsa:

Assim, depois de denunciar o utopismo dos suspeitos de sempre, talvez tenha chegado a hora de nos concentrarmos na própria utopia liberal. É assim que devemos responder aos que desdenham qualquer tentativa de questionar os fundamentos da ordem capitalista-democrática-liberal por serem, eles mesmos, perigosamente utópicos: o que enfrentamos na crise atual são as consequências do âmago utópico dessa mesma ordem. Embora o liberalismo se apresente como o antiutopismo personificado, e o triunfo do neoliberalismo apareçam como um sinal de que deixamos para trás os projetos utópicos responsáveis pelos horrores totalitários do século XX, está cada vez mais claro hoje que a verdadeira época utópica foram os alegres anos 1990 de Clinton, quando acreditávamos que finalmente havíamos chegado ao ‘fim da história’ e que a humanidade finalmente encontrara a fórmula ótima da ordem socioeconômica. Mas a experiência das décadas recentes mostra claramente que o mercado não é um mecanismo benigno que funciona melhor quando é deixado por conta própria; é necessária uma boa dose de violência externa ao mercado para estabelecer e manter as condições de seu funcionamento.11

Aqui Slavoj Zizek ressalta o aspecto mistificador da ideologia liberal, desvendando o âmago utópico daqueles que acreditam na existência de uma ordem harmônica dentro da lógica de mercado capitalista. Para nós, juristas, será importante ressaltar que o pensamento zizekiano irá se aproximar muitas vezes do entendimento propagado por E.G.V. Pachukanis em sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo. A íntima ligação entre o Sujeito de Direito e a forma-mercadoria, a exploração capitalista maquiada de troca livre no espaço do mercado, onde o trabalhador é forçado a vender sua mão de obra como outra mercadoria qualquer, será explorada por Zizek como mais um dos pontos nevrálgicos da ideologia liberal. Novamente o professor Marcelo Gomes Franco Grillo: Slavoj Zizek, em alguns momentos, estabelece uma compreensão do Direito muito semelhante à de Pachukanis e, dessa forma igualmente à obra literal de Marx. O filósofo de Liubliana desenvolve uma parte de suas observações sobre o marxismo e o Direito, valendo-se da Psicanálise lacaniana e, assim, traz uma contribuição bastante importante para a questão da equivalência da forma-mercadoria à forma jurídica, na passagem do feudalismo ao capitalismo, precisando o sintoma social; a outra parte, a qual não conta com o repertório da Psicanálise, é a que se assemelharia, mais diretamente, à intervenção de Pachukanis. Essa última tem por base a forma-mercadoria equivalente à forma jurídica, na universalização da igualdade formal e da liberdade como sendo a própria universalização da exploração e da dominação de classe, pois mediadora da troca mercantil e da obtenção da mais valia.12 Zizek, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p. 87 11 Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 73. 12 Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 80. 10

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Vejamos o próprio Slavoj Zizek analisando a condição paradoxal da “liberdade” do trabalhador no mercado, em passagem de um de seus primeiros livros, O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan:

Esse procedimento implica, pois, uma certa lógica da exceção: toda universalidade ideológica – por exemplo, a da liberdade, da justiça e da equidade, etc.- é ‘falsa’, comporta necessariamente um caso específico que desbarata sua unidade, que desnuda sua falibilidade. Liberdade: essa é a noção universal que compreende muitas espécies (liberdade de fala e de consciência, de imprensa, de comércio); pois bem, existe, por necessidade estrutural, uma liberdade específica que subverte o conceito universal da liberdade: a liberdade da força de trabalho de vender livremente no mercado sua força de trabalho. Essa liberdade é o próprio inverso da liberdade efetiva, porque pela venda livre de sua força de trabalho, o trabalhador perde sua liberdade: o conteúdo efetivo desse ato livre de venda é a escravização ao capital. (...) Não se explora a força de trabalho de maneira a não lhe a não lhe restituir seu valor pleno: a troca entre o capitalista e o trabalhador é – em princípio, pelo menos – uma troca equivalente, em que o trabalhador recebe todo o valor de sua força de trabalho. A escamoteação consiste em que a ‘força de trabalho’ é uma mercadoria paradoxal cujo uso – o próprio trabalho – produz um excedente do valor em relação a capitalista... Logo, temos novamente uma universalidade ideológica, a da troca justa, equivalente, e uma troca paradoxal, a força de trabalho pelo salário, que justamente enquanto equivalente funciona como a própria exploração.13

Se nestas questões Slavoj Zizek compartilha com Marx e seus intérpretes a crítica da ideologia e das mistificações ocultas no pensamento liberal, onde estaria, portanto, o seu distanciamento do marxismo? Além do fato de Zizek elaborar suas críticas utilizando-se de diferentes filosofias, encontramos em suas obras uma crítica relativamente constante à Marx referente ao “economicismo” e à sua análise do comunismo com uma etapa necessária dentro de uma lógica de evolução linear do sistema capitalista. Vejamos como Zizek explica esta questão: Recordemos a descrição marxista a respeito da superação do capitalismo: o capitalismo deflagrou a dinâmica avassaladora da produtividade que se autoaprimora; no capitalismo, ‘tudo que é sólido desmancha no ar’, o capitalismo é o maior revolucionário da história da humanidade; por outro lado, essa dinâmica capitalista é impulsionada por seu próprio obstáculo ou antagonismo inerente: o maior do capitalismo (da produtividade capitalista que se autoaprimora) é o próprio Capital, isto é, o desenvolvimento incessante e o revolucionamento suas próprias condições materiais, a dança louca da espiral incondicional de produtividade, uma última análise, não passam de uma ‘fuit em avante’ desesperada para fugir de suas contradições inerentes e debilitantes... O erro fundamental de Marx foi concluir, a partir dessas noções, que seria possível uma nova ordem social mais elevada (o comunismo), uma ordem que não só manteria, como também elevaria a um nível mais alto e libertaria de forma total e efetiva o potencial da espiral ascendente de produtividade, sem que esta se frustrasse com as crises econômicas destrutivas.14

O maior problema aqui talvez não se trate tanto do “erro de Marx”, mas o modo como essa retórica foi apropriada por frentes pretensamente “progressistas”, que, com o avanço das redes sociais, 13 14

Zizek, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1996, p. 139. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 197

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das tecnologias de comunicação, imaginam um mundo em que as trocas imediatas dos indivíduos permitam finalmente a realização do capitalismo sem atritos, sem necessidade de intervenção do Estado, criando assim uma comunidade global irrestrita. Tal visão, bastante acreditada na próspera década de 90 (para o neoliberalismo), mostrou-se completamente errônea com a crise econômica de 2008, que culminou em uma grande intervenção do estado americano no sistema financeiro, tornando novamente latente a boa dose de controle e violência necessários para manter as “condições ideais” de mercado. Segue Zizek: E é como se esse lógica do ‘obstáculo como condição positiva’ que está por trás das tentativas socialistas de superar o capitalismo voltasse agora com força total no próprio capitalismo: este só pode vicejar totalmente não no reinado irrestrito do mercado, mas apenas quando um obstáculo (desde a intervenção mínima do estado de bem-estar social até e inclusive o domínio político direto do Partido Comunista, como acontece na China) restringe seu desregrado comportamento destrutivo.15

Tratamos aqui de uma questão fundamental para Zizek. Qualquer tentativa de isolar o econômico do político, procurando meios para dar vazão total ao potencial autorevolucionário do mercado, já é, em si, uma decisão não só econômica, mas também política. Isto porque, para Zizek, política e economia são duas faces da mesma moeda, condicionam-se mutuamente conforme os conflitos sociais e as relações de classe tomem um ou outro direcionamento. Diz o filósofo em A visão em paralaxe: “Entretanto, a maior paralaxe marxiana não é aquela entre economia e política, entre a ‘crítica da economia política’, com sua lógica de mercadorias, e a luta política, com sua lógica de antagonismos? Ambas as lógicas são ‘transcendentais’, não meramente ôntico-empíricas; e ambas são irredutíveis uma a outra”.16

O professor Alysson Leandro Mascaro chega à conclusão parecida em seu livro Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia. Também para Alysson Mascaro, a tensão entre economia e política é perceptível na obra de Marx, o que acabou gerando diversas interpretações diferentes sobre os caminhos possíveis para uma revolução socialista:

A evolução histórica do pensamento de Marx permite essa duplicidade de leituras em relação à utopia, ora a negando, ora sendo seu artífice. A filosofia de Marx transparece ser um projeto contraditório e de possibilidades múltiplas. Nela, pode-se ver, ao mesmo tempo, a esperança nas leis econômicas que conduziriam o mundo inexoravelmente ao socialismo ao lado de páginas convocando o proletariado à luta revolucionária, sem a qual não se daria a superação do capitalismo. Esta duplicidade de Marx é constante, perpassando sua obra de uma

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Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 197. Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 82.

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tensão muito fina. Por toda sua obra passa uma dificuldade profunda, que é a de divisar um cerne único para o entendimento da grande questão da transformação do capitalismo.17

Veremos que, para Slavoj Zizek, trata-se muito mais de reenfatizar o papel central da política radical de esquerda como única saída contra o que ele mesmo chama de sociedade “pós-política” administrada, ou seja, trata-se de reafirmar a potencial emancipatório e revolucionário do homem contra o conformismo e utilitarismo hedonista do homem contemporâneo. Além de explorar a crítica do capitalismo global com um fundamento teórico que vai além do marxismo, através da psicanálise lacaniana e da filosofia hegeliana, Zizek também procura revelar quais são os novos paradigmas e problemas de nosso tempo para os quais a teoria marxista ainda se mostra relevante e contundente, adequando-a as novas conjunturas sociais e políticas.

Mascaro, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 35.

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3. Leituras de Slavoj Zizek sobre a psicanálise

O envolvimento de Zizek com a psicanálise é profundo, e perpassa toda a sua obra. Desde seu doutorado em psicanálise, com a obra O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan, o filósofo esloveno demonstrará sua proximidade tanto da psicanálise como do marxismo, e, assim como neste, também suscitara certo embaraço dentro do meio psicanalítico, ao retirar a psicanálise da clausura da clínica e expô-lo ao conturbado e por vezes contraditório ambiente da cultura.

Para alguns, Zizek estaria assim se arriscando em um terreno perigoso, ao se utilizar da psicanálise, que diz respeito aos transtornos mentais, para fazer análises da sociedade como um todo, o que poderia afetar o necessário rigor teórico da técnica psicanalítica. Não que isto fosse exatamente uma novidade. A aplicação dos métodos psicanalíticos em teorias filosóficas foi utilizada em larga escala pela Escola de Frankfurt e seu freudo-marxismo, como salienta Alysson Leandro Mascaro em seu livro Utopia e Direito; Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia: Das contestações e debates da filosofia em torno de Freud, é a Escola de Frankfurt que se destaca e assume, desde cedo, o freudismo como seu problema e, mais profundamente, como de um de seus instrumentos de reflexão. Desde seu início, a psicanálise pareceu-lhe um mundo apto a desvendar problemas que o marxismo tomado que era na sua acepção vulgar – não conseguiu desvendar.18 Mascaro, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 61.

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Assim, nos pensadores da Escola de Frankfurt o potencial emancipatório e explosivo da junção do marxismo com a psicologia freudiana já se mostrava um caminho frutífero para a filosofia de seu tempo. Por caminhos diversos, ambas levam a uma crítica direta e engajada da sociedade, na denúncia da insatisfação e da injustiça do presente, como analisa Marcelo Gomes Franco Grillo:

A psicanálise, como forma de entender a sociedade, teve grandes adeptos na Escola de Frankfurt, principalmente Herbert Marcuse, que estabelece a relação desse conhecimento com a Filosofia pelo viés marxista. Essa convergência das duas ciências, Psicanálise e Marxismo, pode ser acusada já no nascimento de suas teorias e, principalmente, na importação dos conceitos psicanalíticos procedidos pelos marxistas para ressaltar os processos mentais subjetivos, os quais, possivelmente, o materialismo não alcançaria, compreendendo igualmente o irracional do homem e a sociedade.19

Slavoj Zizek, no entanto, dá passos à diante na relação entre estas duas teorias. Já foi ressaltada a relação problemática do autor com o marxismo na opinião de alguns de seus comentadores, e, na psicanálise, Zizek será o responsável por dar certa continuidade aos estudos da Escola de Frankfurt ao se utilizar do método psicanalítico daquele que, segundo muitos, foi o melhor interprete de Freud, Jacques Lacan. Sobre esta passagem, de Freud a Lacan, diz Zizek no livro Como ler Lacan:

Em contraste com as verdades ‘evidentes’ abraçadas pelos críticos de Freud, meu objetivo é demonstrar que só hoje o tempo da psicanálise está chegando. Vistos através dos olhos de Lacan, através do que Lacan chamou de seu ‘retorno a Freud’, os insights fundamentais de Freud emergem finalmente em sua verdadeira dimensão. Lacan compreendeu esse retorno como retorno não ao que Freud disse, mas ao âmago da revolução freudiana, da qual o próprio Freud não tinha plena consciência.20

Zizek irá então se valer da teoria lacaniana para uma crítica ampla da sociedade, utilizando-a na análise dos mais triviais eventos cotidianos, na cultura pop e nos filmes hollywoodianos, reintroduzindo a psicanálise como uma ciência de alto poder dialético e contestatório. Isto não deixará de angariar críticas, como lembra Christian Ingo Dunker, na coletânea Zízek crítico:

Os marxistas ressaltam seu excesso de lacanismo, sua complacência liberal e a falta de uma desconstrução crítica do pensamento de Marx. Os psicanalistas destacam seu excessivo culturalismo, baseados no tradicional argumento de que as extensões e as aplicações da psicanálise são em geral usurpações conceituais.21

Também, Zizek será responsável por um retorno à modernidade, ao realizar a aproximação entre os pensamentos de Hegel e Lacan, principalmente, mas também Kant, Schelling e outros filósofos do Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 88. Zizek, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 2010, p. 8. 21 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.77. 19 20

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idealismo alemão, para avaliar as mudanças e consequências do chamado pensamento “pós-moderno”. Assim, empreenderá uma busca inovadora ao efetivamente voltar-se novamente para as questões suscitadas pelo movimento iluminista na Idade Moderna, seus avanços e retrocessos, e assim reavivar os debates acerca das condições da razão e do pensamento. Sobre esta questão, novamente o professor Christian Ingo Dunker em Zizek crítico: Sua tese de doutorado, acerca das relações entre Hegel e Lacan, bem como a análise pessoal empreendida neste período, começam a sedimentar uma combinação entre crítica da cultura prática política e estudos acadêmicos, baseados em autores clássicos, que raramente se encontra. Temos então seu retorno a Hegel como forma de crítica ao marxismo tradicional. Neste retorno impõe-se a influência de Lacan. 22

Assim, sua aproximação se dará principalmente com Hegel, como em seu mais recente livro, Menos que nada: a sombra do materialismo dialético, em que procura demonstrar uma nova interpretação do pensamento hegeliano que, segundo o próprio autor, foi muitas vezes refutado como “panlogicista” e idealista de forma muito abrupta, sem um aprofundamento mais crítico em suas obras. Dirá Slavoj Zizek no livro O mais sublime dos histéricos; Hegel com Lacan:

De maneira comparável, poderíamos considerar que a filosofia dos últimos dois séculos constituiu-se por um distanciamento de Hegel. Hegel encarna o monstro do "panlogicismo", da mediação dialética total da realidade, da dissolução total da realidade no automovimento da Ideia; frente a esse monstro, afirmou-se de maneiras diversificadas o elemento que supostamente escaparia à mediação do conceito. (...) Para nós, essa figura do Hegel "panlogicista" que devora e mortifica a substância viva do particular é o real de seus críticos, o real no sentido lacaniano: a construção de um ponto que não existe efetivamente (um monstro sem relação com o próprio Hegel), mas que, não obstante, tem de ser pressuposto para que possamos legitimar nossa postura mediante a referência negativa ao outro, ou seja, um esforço de distanciamento.23

Nessa volta a Hegel, temos mais umas das características que Zizek carrega em comum com alguns marxistas, que já há um algum tempo travam uma dura batalha pra tentar elucidar ou construir a tênue linha que liga Hegel a Marx. Trata-se de um debate complexo e que muitas vezes opõe pessoas que aparentemente pensavam de forma semelhante e aproxima filosofias que antes pareciam completamente discordantes. Ainda assim é grande a importância desta discussão, já que busca a recuperação do potencial crítico do materialismo dialético e do marxismo.

Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.49. 23 Zizek, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1996, p. 14. 22

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É neste ponto que o pensamento lacaniano começará a ajudar Zizek a avaliar a progressão da filosofia desde o movimento do Iluminismo até os nossos tempos. Freud, o pai da psicanálise, em sua teoria, colocou em questão a preponderância da razão tão exaltada pelos modernistas, ao teorizar noções como “inconsciente”, “pulsões” e “libido”, além de inserir a sexualidade como ponto de suma importância na análise das relações sociais. Sobre esta característica de Freud, dirá Alysson Leandro Mascaro no já referido livro Utopia e Direito: O freudismo, sendo um movimento de volta ás paragens do inconsciente, representa um afastamento substancial da tradição do pensamento moderno, iluminista, que enxerga nos limites da razão os quadrantes da humanidade. O freudismo é a tentativa veemente de explicar a humanidade mais fora que dentro da racionalidade, sejam as ações humanas, sejam suas dores seus juízos e seus valores.24

Lacan fará uma espécie de ligação entre essa espécie de “pós-modernidade” de Freud e a modernidade. Ao se utilizar de conceitos hegelianos como sujeito, o Outro, dialética e alienação, Lacan se debruçara sobre a obra de Freud fazendo-lhe uma incisiva e elucidativa análise, sem perder ou até mesmo potencializando seu caráter crítico. Para Zizek, Lacan foi aquele que melhor soube “repetir” Freud, e através dele talvez seja possível reacender o núcleo subversivo da psicanálise, em tempos em que também esta já se acha mergulhada na complacência neoliberal e misticismos obscurantistas.

Slavoj Zizek se utilizará então de muitos dos conceitos elaborados por Lacan para elaborar sua crítica da contemporaneidade. Uma das principais teorias de Lacan, e que renderá algumas das melhores críticas à sociedade pós-moderna, é o desenvolvimento de seu entendimento do supereu. Lacan, ao se aproximar deste conceito criado por Freud, irá estabelecer uma diferença crucial no modo como o supereu se constitui nos indivíduos e nas relações sociais, durante a evolução histórica e as transformações ocorridas no decorrer do século XX. Ao se defrontar com a queda da figura paterna na sociedade do pósguerra, o psicanalista francês constatará que tal fato, ao contrário de diminuir a repressão social e aumentar a satisfação dos indivíduos, acentuava as pressões por gozo e os sentimentos de culpa e depressão na sociedade. Assim explica o professor Vladimir Safatle, em seu artigo Depois da culpabilidade: figuras do supereu na sociedade de consumo:

Entretanto o declínio da figura ideal paterna não significa em absoluto decréscimo da pressão do supereu e de suas consequências. Lacan trabalhou 30 anos até chegar à explicação de que o declínio do imago paterno abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade que se assemelhava mais ao pai primevo do mito Mascaro, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 61. 24

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freudiano de Totem e Tabu, ou seja, ao pai-senhor do gozo que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz e obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura tradicional de um pai que converge imperativos de repressão e sublimação.25

Assim, a reformulação de Lacan do supereu culminará com a conceituação do imperativo superegóico como “Goze!”. Ao invés da ordem repressiva e inibidora do pai freudiano, aparecerá o mandamento incondicional e obsceno de jouissance a qualquer custo do pai primitivo. Prossegue Vladimir Safatle: Fundamentalmente, significa dizer que a identificação do sujeito com os tais tipos será introjetada através de um supereu não mais vinculado à repressão, mas ao imperativo de gozo. Daí porque Lacan pode afirmar que: ‘o supereu se origina deste pai original mais do que do místico, deste apelo como tal ao gozo puro, ou seja, pelo apelo também a não-castração: Goza!’ Os processos de socialização tendem assim a não estarem mais vinculados a mecanismos de repressão, mas a mecanismos que cobra a gratificação irrestrita.26

Esta transformação sofrida pelo supereu será fundamental para Zizek fundamentar sua crítica da sociedade neoliberal capitalista que vem se consolidando com o fim da guerra fria. Os teóricos da escola da Frankfurt, preocupados que estavam em analisar uma Europa que vivia um período de grandes guerras, racismo e violência bruta, sempre se valeram da noção de supereu freudiano, repressora e inibidora, em suas análises. Com a consolidação da política neoliberal de mercado e a mercantilização progressiva dos mais variados setores da sociedade passamos para uma nova configuração do supereu, ligado agora à busca de prazer, consumo e ganhos pessoais, como assinala Marcelo Gomes Franco Grillo, em O direito na filosofia de Slavoj Zizek: Lacan opera uma inversão da crítica freudiana do supereu como instância da repressão social. Para Lacan, a sociedade capitalista contemporânea está associada à conquista constante do prazer, o que se vê, na prática, por exemplo, pelo incentivo ao consumo e a todos os prazeres inerentes ao circuito volátil do capital. (...) É própria da sociedade de consumo a importância maior dada ao consumo como propulsor inerente do prazer, em um movimento cíclico e contínuo representado pela equação: consumo/prazer/consumo.27

Este será um dos passos que Zizek fará, com a ajuda de Lacan, em relação ás interpretações psicanalíticas dos fenômenos sociais, que bem demonstram como a consolidação da forma capitalista de produção provocaram mudanças substancias nos processos intersubjetivos. Aqui também esta novamente Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 130. 26 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 130. 27 Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 92. 25

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em evidência a aliança entre o marxismo e a psicanálise. A denúncia há tanto tempo feita por Marx, do estranho caráter fetichista da mercadoria, encontra-se, em nossos tempos de capitalismo tardio, mais válida do que nunca, e somente esta passagem do supereu repressivo para o supereu todo gozador elaborada por Lacan consegue aprofundar a crítica ao capitalismo, ao adentrar nas consequências psicossociais que repercutem nos processos de subjetivação como consequência de uma sociedade estruturada em torno da forma-mercadoria e do livre mercado.

Para decifrar mais profundamente o fetiche da mercadoria e o livre mercado, a psicanálise será peça fundamental para Zizek também em sua crítica da ideologia neoliberal. Nesta parte de seu pensamento podemos encontrar algumas das mais ricas e relevantes análises do filósofo. Sua constatação sobre os tempos atuais é incisiva e demolidora. Muito antes de vivermos em tempos pós-ideológicos, como acreditam os defensores da democracia neoliberal, para Zizek vivemos o auge da ideologia capitalista. Em meio às crises econômicas em diversos países, risco de catástrofes ecológicas de escala global, o avanço de novas e mais variadas formas de exclusão social (favelas, segregações sociais, racismo), a crença no livre-mercado e na democracia burguesa continua como formas sociais últimas e necessárias continua, impedindo assim contestações mais agudas das próprias estruturas sociais que fomentam as desigualdades e as misérias das excluídos do circuito do capital.

Não basta simplesmente buscar a mudança, mas saber precisamente o que mudar para verdadeiramente intervir naquilo que é sintomático. Assim, Zizek buscará no conceito de Real e ato da psicanálise lacaniana os meios para, respectivamente, expor e atacar a ideologia capitalista dominante de nosso tempo. O desmonte do sujeito no capitalismo se dará, através de Zizek, na análise cirúrgica de suas posições perante o social, expondo assim as crenças irrefletidas e a negação fetichista que envolve suas relações com ideologia dominante, como expõe o professor José Luiz Aidar Prado em seu texto O lugar crítico do intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível, também publicado na coletânea Zizek crítico:

É a tese da Ideologia Dominante: no capitalismo tardio, com a expansão dos meios de comunicação de massa, a ideologia penetra ‘em todos os poros do corpo social’, mas ‘o peso da ideologia como tal diminui: os indivíduos não agem da forma como agem em função, primordialmente, de suas crenças ou convicções ideológicas- ou seja, a reprodução do sistema, em sua maior parte, contorna a ideologia e confia na coerção, nas normas legais e no Estado’ (...) Agora a ideologia não é mais um conjunto ‘de convicções articuladas sobre a natureza do homem, da sociedade e do universo’, nem o conjunto de aparelhos que a sustentam, mas a ‘rede elusiva de pressupostos e

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atitudes implícitos, quase-espontâneos, que forma um momento irredutível de reprodução de práticas ‘não ideológicas’ (econômicas, legais, políticas, sexuais etc.).28

Portanto, a ideologia não está tanto nos grandes pensamentos e instituições da sociedade, mas sim nas ações cotidianas que os indivíduos praticam sistematicamente, de forma que os costumes mercantis e capitalistas são progressivamente assentados como parte inevitável da ação social e encarados como uma espécie de Destino. “Cada indivíduo percebe o mercado como um sistema objetivo que o confronta, embora não haja mercado objetivo, apenas a interação da multidão de indivíduos – de modo que, embora cada indivíduo saiba disso muito bem, o espectro do mercado objetivo é a experiência de fato desse mesmo indivíduo, que determina seus atos e crenças.”29 A palavra crença deve aqui ser notada em todo o seu peso, na medida de algo que só existe enquanto o sujeito se relaciona com ela enquanto tal.

Assim, somente o Ato como intervenção no Real, no sentido lacaniano, e mais radicalmente conceituado por Zizek para a política, é capaz de revolver as crenças pressupostas e imaginárias que norteiam as relações sociais concretas no capitalismo e levar o sujeito novamente ao encontro traumático com sua liberdade e poder de decidir, possibilitando assim a contestação das próprias coordenadas do pensamento, como afirma José Luiz Aidar Prado em Zizek Crítico: Em outras palavras, o sujeito que pratica esse ato real não é o sujeito intencional, o sujeito sistêmico que planeja o ato visando fins segundo a razão estratégica, segundo a lógica do analista simbólico de que falávamos no início deste texto. O ato real ocorre de modo imprevisto, que sacode a vida dos que o praticam e é revolucionário, no sentido de que coloca em xeque a lógica sistêmica, a razão puramente instrumental, do extrato economicista – o ato altera as regras do jogo, inaugurando, por assim dizer, uma nova realidade: ‘um ato propriamente dito libera uma força de negatividade que avassala as fundações de nosso ser’, colocando em xeque a fantasia ideológica.30

O problema da ideologia será levado em Zizek, com a ajuda da psicanálise lacaniana, a um novo patamar, estreitando ainda mais os laços da psicanálise e do marxismo na crítica social. Através da análise minuciosa de conceitos lacanianos como fantasia, objeto a e fantasma, Zizek colocará novamente o espelho diante do sujeito atual e da sociedade de que faz parte, revelando não só seus paradoxos e

Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.93 29 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 447. 30 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.112. 28

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inconsistências, mas também seus possíveis horizontes emancipatórios, que somente poderão florescer com o envolvimento radical e corajoso do indivíduo em sua experiência de vida e de morte.

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4. Leituras de Slavoj Zizek sobre o direito

Como já ressaltado, a obra de Slavoj Zizek é extensa e variada, cruza com vários autores e temas diferentes, em intenso diálogo com diversas questões da filosofia e da atualidade. Portanto, qualquer pretensão de estabelecer uma filosofia da direito definitiva em Zizek não poderá encontrar bons resultados, como, pelo contrário, somente ofuscaria a intensidade de seu pensamento e a amplitude de sua crítica. Assim abaliza Marcelo Gomes Franco Grillo em O direito da filosofia de Slavoj Zizek: Por isso, se dirá que o pensamento do Direito em Slavoj Zizek é heteróclito e ligado às críticas que faz da política neoliberal e da sociedade contemporânea, nas suas múltiplas formas de expressão. Impossível estabelecer o Direito, em Zizek, isoladamente; compatibilizá-lo, seria contrariar a filosofia ímpar que o pensador esloveno produz. O discurso do Direito haverá de ser visto conjuntamente com a constatação do enunciado hegemônico do capitalismo e do liberalismo e com a retomada das questões da ideologia e da Psicanálise, em uma ontologia da totalidade, na busca e retorno das bases ético-filosóficas e marxistas do conhecimento.31

O direito será então visto por Zizek por diferentes ângulos, dependendo da questão a ser analisada, de seu fundo ideológico e momento histórico. Algumas vezes, a crítica marxista prevalecerá, e o direito será inserido como mais uma das formas de dominação no modo de produção capitalista. Outras vezes, a crítica será feita diretamente ao direito como mecanismo de mistificação ideológica, como ferramenta neoliberal para a obliteração dos reais problemas. Também, e não menos importante, a psicanálise entrará com um potencial de análise diferenciado, ao estabelecer como a Lei e o direito (em sentido mais amplo 31

Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 55.

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do que o normalmente concebido pelo jurista contemporâneo, estritamente interessado no fenômeno reducionista do positivismo) surgem e norteiam o comportamento do indivíduo nas relações sociais. Esta é uma tentativa de delimitar as possíveis leituras de Zizek sobre o fenômeno jurídico, como também conclui Marcelo Gomes Franco Grillo:

Portanto, em Zizek, há uma abordagem crítica não-marxista do Direito – aquela de crítica ao Direito neoliberal. Há a textualidade zizekiana próxima à tradição marxista – aquela que relaciona a Psicanálise, as teorias do poder e outros temas jurídicos (p.ex.: democracia) com a teoria marxista; e, a última posição, a de maior literalidade à obra de Marx – aquela que se assemelha ao jusfilósofo Pachukanis.32

Isto que foi dito acerca da relação entre o direito e a filosofia de Zizek também o pode ser acerca do Estado. Este também será analisado com base no marxismo, as teorias do poder e com a consolidação histórica da forma de produção capitalista. No entanto, um aspecto interessante e diferenciado em Zizek será o retorno à teoria hegeliana do Estado. O autor, que assumidamente toma posição pelo hegelianismo, levantará novamente as questões da negatividade, da universalidade e de outros temas que envolvem a determinação do conceito de Estado em Hegel, problematizando assim novamente as relações entre indivíduo e Estado. Zizek explorará bastante em Hegel, conjuntamente com Lacan, a problemática relação entre indivíduo e totalidade, sociedade civil e Estado, público e privado, sujeito e objeto, entre outras antinomias resultantes tanto do movimento filosófico iluminista como pelo surgimento do Estado moderno quando da ascensão da burguesia e de seu ideário de liberalismo mercantil.

Recentemente, era comum acreditar que a consolidação do mercado global no capitalismo resultaria em uma diminuição progressiva ou até a extinção do Estado moderno. A passagem ao capitalismo mundial sem fronteiras, conjuntamente com o advento das formas praticamente instantâneas de comunicação, proporcionariam finalmente a realização da democracia direta, não sendo mais necessária a presença intrusiva do Estado nas relações multilaterais e multiculturais entre os eficientes agentes da economia global, como analisa Alysson Leandro Mascaro no livro Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro: De fato, a desagregação do mínimo de ordenação imposta ao capitalismo no pós-guerra se dá a partir de uma busca de rompimentos das peias sociais e institucionais que atravancam os lucros máximos por meio dos grandes grupos econômicos capitalistas e dos governos que lhes são consortes. O capitalismo ilimitado pelo trabalho ou

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Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 53.

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pelo Estado passou a ser o objetivo último a ser alcançado pelos grandes grupos empresariais e pelos governos que com eles agem em simbiose.33

Este sonho veio por terra com a crise financeira mundial ocorrida no fim da primeira década do século XXI. Esta somente foi “resolvida” através da forte intervenção estatal, quando o estado norteamericano injetou uma enorme quantidade de dinheiro público na economia para saldar a gigantesca dívida acumulada pelos bancos em sua alucinada busca por mais lucros. Tal fato demonstra muito bem a forte ligação entre Estado e capitalismo, como este somente pode crescer e prosperar em condições que não são nada naturais, mas sim através de uma boa dose de violência política e sistêmica. Portanto, a questão do Estado não só está longe de acabar como também somente agora entra em sua verdadeira problemática, quando o capitalismo global cria não só cada vez mais Estados pelo globo, como também cria uma nova dinâmica de relacionamento entre estes Estados, em um fenômeno chamado pelo teórico marxista alemão Joachim Hirsch de sistema de Estados, que tem por base a internacionalização do modo de produção capitalista e as formas políticas e sociais que lhe são características. Obviamente, a democracia também está estritamente relacionada com tudo isto, como forma política que mais se adaptou ao capitalismo. Ao institucionalizar a política no Estado, a democracia funciona como uma instância de regulação social e controle político, a serviço do capital, reduzindo os antagonismos sociais a um instável e conflituoso jogo de coalizões e consensos.

A crítica mais direta ao direito elaborada por Slavoj Zizek, em que aponta com clareza e ousadia intelectual os disparates de nossos atribulados tempos, se dá com relação aos direitos humanos. Para Zizek, estes, como os direitos “mínimos” dados aos excluídos de toda espécie do capitalismo global, mascaram os verdadeiros problemas e a luta de classes, acabando por sustentar uma abordagem apolítica dos fenômenos sociais:

É claro que a reação não menos espontânea do radical de esquerda é de desconfiança e menosprezo: primeiro, porque a neutralidade da referência aos direitos humanos é obviamente uma ficção – na constelação atual, essa referência aos direitos humanos serve à Nova Ordem Mundial dominada pelos EUA. A pergunta a ser feita sobre qualquer intervenção que se faça em nome dos direitos humanos é, portanto, sempre esta: em que critério foi baseada? Por que albaneses na Sérvia e não palestinos em Israel, curdos na Turquia, e assim por diante? Por que se boicota Cuba, quando um regime muito mais duro como o da Coréia do Norte recebe auxílio gratuito para desenvolver sua capacidade de produzir energia atômica ‘segura’? Aqui, é claro, entramos no mundo obscuro do capital internacional, e seus interesses estratégicos. Mais que isso, essa legitimação puramente humanitário-ética de uma intervenção a despolitiza inteiramente, transformando-a em intervenção numa catástrofe humanitária por razões puramente morais, em vez de uma intervenção numa luta política bem definida.34 Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 152. 34 Zizek, Slavoj. Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917. São Paulo, Ed. Boitempo, 2005, p.285 33

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Esta visão de Zizek é assim resumida por Marcelo Gomes Franco Grillo: “Na atualidade, os direitos humanos constituem-se, em muitas vezes, um discurso vazio, panfletário de interesses diretos dos defensores do capitalismo global e, nesse sentido, a filosofia de Slavoj Zizek é crítica e realista, informando essa problemática em uma análise contundente das ‘razões’ dos direitos humanos.”35 Também para Alysson Leandro Mascaro se evidencia nos últimos tempos a relação entre os direitos humanos e o avanço desenfreado do capitalismo: Um dos mais visíveis resultados da desestruturação do capitalismo a benefício da exploração deste capitalismo ilimitado é percebido no campo do direito. O mais nítido ícone do capitalismo ocidental construído a partir das ruínas da Segunda Guerra Mundial foi o direito. As garantias individuais, fundamentais às possibilidades burguesas são inscritas em uma série histórica de declarações de direitos. Os direitos humanos, assim, galgam, em poucas décadas, a condição de absoluto no discurso comum. 36

Esta é a crítica mais “simples” do pensamento zizekiano ao direito, mas não menos importante, valendo talvez mais por sua ousadia ao tecer críticas ao tão enaltecidos direitos humanos, e assim não só enfrentar o senso comum, como também fazer o senso comum enfrentar a si mesmo. Para Zizek neste ponto trata-se mesmo do gesto violento de fazer valer a Verdade, de desmitificar a ideologia dos direitos humanos e sua pretensa caridade, organizando novamente o campo político através da revelação da contradição e do conflito no cerne da sociedade. Como lembra Marcelo Gomes Franco Grillo, neste ponto Zizek se aproxima da teoria schimittiana da política como lócus da divisão entre amigos/inimigo: “Na teoria do poder, a perspectiva de Zizek, a ser aproveitada para o Direito, concentra-se essencialmente na sua releitura da filosofia schimittiana do Estado de Exceção e da política como espaço público, definido pela dicotomia amigo/inimigo”37. Indubitavelmente, uma das intenções de Zizek é a de radicalizar a noção de político para muito além da racionalidade administrativa e humanitária da democracia burguesa.

Esta crítica se aproxima bastante, para não dizer que se origina mesmo, da crítica marxista do direito. No entanto, a mais alta compreensão já elaborada acerca do direito moderno burguês, enquanto fenômeno social foi a desenvolvida com maior acuidade por Pachukanis em seu livro Teoria Geral do Direito e Marxismo. Neste livro, em uma leitura muito precisa e fiel da obra de Marx, demonstrará a estrita correlação entre a forma-mercadoria e a forma jurídica: Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 133 Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 155. 37 Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 53. 35 36

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O sujeito jurídico é, por conseguinte, um proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens. A sua vontade, juridicamente falando, tem o seu fundamento real no desejo de alienar, na aquisição, e de adquirir, na alienação. Para que tal desejo se realize, é indispensável que haja mútuo acordo entre os desejos dos proprietários de mercadorias. Juridicamente esta relação aparece como contrato, ou como acordo, entre vontades independentes. Eis por que o contrato é um conceito central do direito, pois ele representa um elemento constitutivo da ideia de direito.38

Esta constatação de Pachukanis é assim resumida por Márcio Bilharinho Naves no livro Marxismo e Direito: Assim, Pachukanis pode afirmar que só no modo de produção capitalista é que os indivíduos adquirem o estatuto universal de sujeitos. A forma-sujeito de que se reveste o homem surge como a condição de existência da liberdade e da igualdade que se faz necessária para que se constitua a figura do proprietário privado desses bens, objetos da circulação. É na esfera da circulação das mercadorias, como um elemento dela derivado que opera para tornar possível a troca mercantil, que nasce a forma jurídica do sujeito.39

Encontramos na obra de Slavoj Zizek tanto passagens que se dão com uma crítica mais direta do aspecto ideológico e político do direito, como quando elabora sua crítica dos direitos humanos, como também outros momentos em que esta relação entre direito e mercadoria é destrinchada até suas últimas consequências com a ajuda da psicanálise. O fetichismo da mercadoria, a reificação das relações sociais, o gozo proporcionado pelo consumo, a especulação financeira e a busca infindável por mais lucros e acumulações, todas estas questões que de certa forma já estavam presentes em Marx, chegaram atualmente a níveis que o próprio Marx não imaginava, diante da globalização do capitalismo.

Quando Marx descreve a louca circulação do capital que aprimora a si mesma, cujo caminho solipsista de autofecundação chega hoje ao seu apogeu na especulação metarreflexiva no mercado de futuros, é simplista demais afirmar que o espectro desse monstro autogerado, que segue seu caminho desprezando qualquer preocupação humana ou ambiental, é uma abstração ideológica e que não se deve esquecer que, por trás dessa abstração, há pessoas de verdade e objetos naturais sobre cuja capacidade produtiva e sobre cujos recursos se baseia a circulação do capital, e dos quais ela se alimenta como parasita gigante. O problema é que essa ‘abstração’ não está somente em nossa (do especulador financeiro) falsa percepção da realidade, mas é ‘real’ no sentido exato de que determina a estrutura de processos sociais bastante materiais: o destino de estratos inteiros da população e, às vezes, de países inteiros pode ser decidido pela dança especulativa ‘solipsista’ do capital, que persegue a meta da lucratividade com bem-aventurada indiferença pelo modo como seu movimento afetará a realidade social. Hoje isso não é mais verdadeiro do que nunca? Os fenômenos que costumam ser chamados de ‘capitalismo virtual’ (mercado de futuros e especulações financeiras abstratas semelhantes) não indicam o reinado da ‘abstração real’ em seu aspecto mais puro, de forma muito mais radical do que na época de Marx?40

Pachukanis, Evgeni Bronislávovich. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo, Ed. Acadêmica, 1988, p. 78. 39 Naves, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: Um estudo sobre Pachukanis. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 65 40 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 303. 38

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Isto deslocara um pouco o foco de Zizek do marxismo, ao abordar temas mais existenciais e psicanalíticos para a crítica da forma mercadoria, sem, no entanto, contrariar ou contestar a teoria marxista, como diz Marcelo Gomes Franco Grillo: Pachukanis procede à leitura mais radical do marxismo jurídico, não sendo esta, diretamente, a filiação de Zizek, o qual extravasa, em parte, o radicalismo do marxismo para dizer a sociedade contemporânea, reinterpretando a teoria marxista, mas sem, essencialmente, abandonar as teses literais, pois afirma: ‘No marxismo, como na psicanálise, a verdade emerge literalmente através do erro; é por isso que em ambos os caos a luta contra o “revisionismo” é parte integrante da própria teoria’. Ou seja, Zizek não contraria, em alguns aspectos, a literalidade de uma leitura pachukaniana na análise do Direito e do marxismo; de certa forma, até se filiaria a ela, sendo que toma como pressuposto o marxismo e sai linha de interpretação mais fiel, a da equivalência da formamercadoria e da forma jurídica. Porém, deixa de ser radical, na medida em que sua concepção do marxismo se funda a outras vertentes do pensamento contemporâneo, valendo-se de toda uma tradição crítica – da Escola de Frankfurt às teses de Lacan – e não apenas da leitura direta das obras de Marx, sem, por isso, negar explicitamente o marxismo jurídico ou operar declaradamente o revisionismo que o próprio autor condena.41

Por isto a análise do fenômeno do direito em na obra zizekiana penderá entre a análise pachukiana da relação entre a forma-mercadoria e a forma jurídica burguesa e a crítica mais ampla do direito em sua relação com o Poder, sem que ambas se excluam mutuamente.

Para Zizek, a lei “pura”, normativista, do positivismo jurídico, além de esconder o ideário burguês do mercado, carrega em si fatores sociológicos e culturais que ultrapassam em muito a visão média do jurídico contemporâneo, preocupado somente com a interpretação das normas estatais, sua hermenêutica interpretativa e coerência lógica. A lei fria e pretensamente “neutra” da ordem jurídica estatal tem como seu oposto, seu complemento inerente, o imperativo obsceno de obediência e sujeição. Zizek estabelece aqui novamente a ligação estrutural entre a Lei e o supereu, entre ordem legítima e sua transgressão inerente, como diz no livro A visão em paralaxe: A lógica dessa mudança deveria ser universalizada: a cisão entre Lei pública e seu complemento superegoico obsceno nos faz confrontar o próprio âmago da paralaxe político-ideológica; a Lei pública e seu complemento supergoico não são duas partes diferentes do mesmo edifício legal, são o mesmo e o único ‘conteúdo’ – com uma pequena mudança de ponto de vista, a Lei digna e impessoal assemelha-se a uma máquina obscena de jouissance. Outra leve mudança e as regulações legais que prescrevem nossos deveres e garantem nossos direitos parecem a expressão de um poder impiedoso cuja mensagem a nós, súditos, é: ‘Posso fazer o que quiser com vocês!’42

A ordem legal e seu excesso obsceno não podem ser separados de forma a ficarmos somente com o lado “bom” ou “puro” da lei, ambas são partes inerentes do fenômeno jurídico. No entanto, o jurista 41

Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed Alfa-Ômega, 2011, p. 78.

42

Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 437.

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contemporâneo médio simplesmente ignora essa dimensão superegoica/obscena da lei. Direito e justiça foram a tal ponto aproximados pela teoria positivista que a aplicação da lei estatal tornou-se sinônimo de justiça, quando muito bem poderíamos dizer que o Direito está muito mais ligado ao privilégio e ao Poder do que a justiça propriamente dita, e é neste sentido que Zizek irá predominantemente interpretar o fenômeno jurídico.

O predomínio do discurso jurídico na mídia e nos meios de comunicação como forma de consecução da justiça oculta a verdade de sua opressão e arbitrariedade, como bem demonstra a recente decisão do Superior Tribunal Federal que determinou a aplicação da CLT às empregadas domésticas. A decisão foi comemorada pela mídia como fato “histórico”, que demonstra a “evolução” do Brasil rumo ao Estado de Direito pleno. Obviamente, o anverso obsceno de tal decisão é a ampliação da dominação formal capitalista. A legalidade penetra em cada vez mais setores da vida social, ocultando a opressão contínua e diária da massa de trabalhadores com ações jurídicas e políticas que não passam de remendos e engodos sem fim, que somente garantem a estabilidade e o controle social necessário para a progressiva valorização do capital. As insossas formas de entretenimento veiculadas quase que em tempo integral isolam e alienam os trabalhadores um dos outros, que assim tornam-se incapazes de se mobilizarem ou de compreender sua trágica situação.

Talvez seja neste ponto que encontramos uma das características mais importantes da filosofia de Slavoj Zizek, sua recusa em acreditar em qualquer forma de mudança gradual ou reformismo, propondo a recuperação do potencial emancipatório radical de esquerda como única forma de sairmos da letargia propagada pelo hedonismo da ideologia liberal e sua “esquerda” parasitária, que, preocupada em simplesmente exigir cada vez mais direitos sociais e igualdade formal dentro do capitalismo, se esquece de que a verdadeira missão é derrubá-lo.

Portanto, podemos dizer que o entendimento de Slavoj Zizek acerca do direito em muito se aproxima daquele elaborado por Karl Marx, ao denunciar a estrita relação entre a forma jurídica e a mercadoria quando da consolidação do domínio burguês na modernidade, e assim rejeitar qualquer possibilidade de mudança radical da sociedade a partir do universo jurídico positivista oriundo do pensamento burguês. Zizek é certamente um filósofo que privilegia a política como meio de transformação social, como demonstram também suas severas críticas à democracia e à neutralização do político no capitalismo tardio. 29

Zizek se valerá assim do marxismo, da psicanálise social e de alguns temas do existencialismo em sua crítica do direito contemporâneo, propondo também um reexame do pensamento moderno, suas conquistas e avanços, mas também impasses e contradições, que ainda reverberam nos tempos atuais. O posicionamento de Zizek frente ao direito é assim resumido por Marcelo Gomes Franco Grillo:

A partir de sua filosofia político- jurídica, a crítica ao Direito não só é possível como poderá ocorrer em várias frentes. A mais radical a ser feita, conforme já se colocou, é a marxista. Constatar que todo o arcabouço jurídico decorre da forma-mercadoria, e que o Direito é um instrumento que proporciona a exploração capitalista, é uma das mais radicais possibilidades para a crítica do direito contemporâneo, partindo de Zizek. A outra, menos radical, constitui-se de algumas leituras da Psicanálise Social, que acusam a preponderância do neoliberalismo, da substituição da segurança jurídica pela flexibilização do ordenamento legal no interesse do capitalismo global. Aqui, a compreensão se daria por meio das intervenções de Lacan, na mudança do superego proibitivo para o imperativo do gozo na sociedade.43

Ao analisarmos o direito em Slavoj Zizek estaremos certos de que não encontraremos uma única direção, uma teoria geral ou até mesmo uma conceituação do que seja para ele o direito. Este por vezes será inserido em uma crítica da ideologia neoliberal capitalista, ou também poderá ser analisado a partir da psicanálise social e das relações de poder. Certo somente que em nenhum momento Zizek enxergará no direito um instrumento de transformação social, pelo contrário, compartilha com os marxistas o entendimento de que a superação da forma jurídica nas relações sociais é condição necessária para o fim da exploração capitalista e o surgimento de uma nova sociedade.

43

Grillo, Marcelo Gomes Franco. O direito na filosofia de Slavoj Zizek. São Paulo, Ed. Alfa-Ômega, 2011, p. 145.

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5. Para uma crítica do Estado e do Direito em “Em defesa das causas Perdidas”

5.1 O Estado de Coisas

O sujeito de direito

O conceito de sujeito de direito é amplamente difundido e utilizado no universo jurídico, sendo poucos aqueles que se preocupam em estudá-lo em maiores pormenores. Assentado que está o discurso neoliberal, o sujeito de direito é comumente entendido como um bem em si mesmo, uma conquista prodigiosa, a garantia de todos de ser respeitado e de ver resguardada sua dignidade. Contestá-lo se torna então inimaginável, como também se torna a ordem a que serve tal conceito.

O marxismo jurídico, entretanto, conhece bem o fundo ideológico e histórico em que ocorre a construção do conceito de sujeito de direito, durante a modernidade. Com a ascensão da burguesia ao 31

poder e a consolidação do modo de produção capitalista, o direito, como forma específica de relação social, cresce em importância, tendo em vista as crescentes atividades mercantis e as trocas comerciais que começam a dominar a sociedade. Se, portanto, é a troca que constitui a liberdade do homem, podemos dizer que quanto mais se alarga a esfera de comercialização, mais livre então pode ele ser, de tal modo que a expressão mais ‘acabada’, a mais completa, a mais absoluta de sua liberdade é a liberdade de disposição de si mesmo como mercadoria. Aqui podemos encontrar o homem reduzido à sua ‘essência’: no ato de troca de si mesmo o homem realiza a sua liberdade, portanto, a liberdade do homem aparece no ato de disposição de si como mercadoria, no qual o homem se torna um proprietário que carrega em si, em sua ‘alma’, o objeto de seu comércio, um proprietário que realiza em si mesmo a qualidade de sujeito e de objeto de direito.44

O sujeito de direito, através da análise materialista histórica do marxismo, recebe uma denotação completamente diferente daquela oferecida por um jurista positivista. Este se recusa a perceber a dimensão histórica e ideológica que deram origem ao direito como hoje o conhecemos, em sua formação espaço temporal específica. O princípio da legalidade, o surgimento do Estado de direito, a positivação do direito natural são todos fatos oriundos do advento da sociedade burguesa e, portanto, procuram principalmente resguardar a propriedade privada e garantir o contrato civil, pilares das relações capitalistas.

A vitória das leis sobre o arbítrio dos homens acompanhou a vitória do capitalismo sobre as formas econômicas que lhe eram anteriores. A liberdade dentro das leis, princípio da legalidade, era irmã da liberdade no mercado, no qual se compra ou se vende a partir da própria vontade. A igualdade formal, que serviu de lema das revoluções liberais, é o espelho de um mundo feito um grande mercado, no qual todos se igualam na condição de compradores e vendedores, no qual até a exploração deixa de ser mando direto de um senhor sobre um escravo e passa a ser a igual vontade jurídica de patrão e proletário.45

Não se pode separar, portanto, o surgimento da legalidade estatal e seus princípios da figura do proprietário privado e da forma-mercadoria. Quando a burguesia tomou o poder, a regulação do espaço social enquanto um mercado, onde sujeitos livres assumem obrigações recíprocas, tornou-se prioridade para o processo de acumulação de capital. O contrato civil foi assim verdadeiro paradigma da construção do direito moderno. A responsabilidade do indivíduo e sua pressuposta autonomia volitiva lançaram as bases para uma nova forma de sujeição, agora não mais obrigado perante há um rei ou senhor, mas formalmente livre para se obrigar perante seus pares, submetendo-se tão somente ao Estado enquanto instituição neutra responsável pelo “bem comum”. Jacques-Alain Miller, um dos difusores da obra de Naves, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: Um estudo sobre Pachukanis. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 67 44

45

Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 21.

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Lacan, lembra em seu livro Lacan Elucidado a estrita relação existente entre o sujeito interpelado pela experiência analítica e o sujeito de direito oriundo das revoluções burguesas: E que o psicanalista, como tal, se dirige ao sujeito de direito: sempre ao sujeito, ético e de direito. Pode tratar todas as enfermidades mentais desde que exista sujeito ético e de direito; sujeito que possa responder. Responder, eis aí a condição da experiência analítica: que o sujeito possa responder sobre o que faz e o que diz. Sujeito é um termo de direito.46

A responsabilidade contratual necessária para a segurança e confiabilidade dos negócios jurídicos burgueses demanda então este sujeito que possa responder pelos seus atos e ditos. O instituto da maioridade no direito civil, bem como o da culpabilidade no direito penal estão também vinculados a este mesmo sujeito de direito que surge com a lógica de mercado capitalista, um sujeito autônomo e formalmente livre, capaz de contratar e assumir responsabilidades perante os outros.

Não devemos menosprezar este fato, a autonomia do sujeito é uma das mais importantes construções da modernidade e do iluminismo, teorizada principalmente por Kant, e que levou a profundas modificações históricas que ainda hoje repercutem e se fazem sentir. Analisa Slavoj Zizek sobre Kant: Entretanto, longe de ser uma limitação, essa característica nos leva ao âmago da autonomia ética kantiana: não é possível derivar da própria Lei moral as normas concretas que tenho de seguir em minha situação específica, o que significa que é o próprio sujeito que tem de assumir a responsabilidade de traduzir a injunção abstrata da Lei moral numa série de obrigações concretas. (...) o propósito da ênfase de Kant na autonomia e na responsabilidade morais totais do sujeito é exatamente impedir quaisquer dessas manobras para jogar a culpa em alguma representação do grande Outro.47

Podemos perceber assim o contraste existente entre análise de viés psicanalítico da noção de sujeito e a do pensamento marxista. Este demonstra como, historicamente, o sujeito de direito está ligado ao proprietário privado e as trocas mercantis da sociedade capitalista, enquanto aquele fala de um indivíduo que se defronta com a responsabilidade e a angústia de ter de autodeterminar-se em meio há um processo de contínua perda de identidade, que se acentua desde a modernidade com a reificação das relações sociais provocada pelo sistema capitalista e as instituições “anônimas” do Estado que lhe dão suporte. Se de um lado temos um aumento da aparência de liberdade propiciada pela crescente de serviços e mercadorias disponíveis, de outro temos um quase completo sufocamento do individuo pelas forças de mercado há que deve adaptar-se e consentir. Assim, precisamente no encontro entre o sujeito de direito e a forma-mercadoria encontramos o sintoma social que desmente a liberdade burguesa e revela as muitas 46 47

Miller, Jacques-Alain. Lacan Elucidado. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1997, p. 337. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 231

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contradições, desigualdades e conflitos resultantes da difusão do modo de produção e da ideologia capitalista por todo o mundo.

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Sujeito e Mercadoria

A mercadoria é um fator essencial para a acumulação capitalista. Através da contínua circulação de seus produtos no mercado, o capitalista pode acumular capital e assim consolidar seu poder financeiro. Entretanto, o que é certo para a teoria marxista é que entre todas as mercadorias que circulam no mercado, uma delas se destaca como uma forma paradoxal de mercadoria que sustentam toda a exploração capitalista. O trabalhador, alijado dos instrumentos de produção, é obrigado a se vender ao capitalista em troca de salário, utilizando seu corpo e força de trabalho como verdadeira mercadoria, e é justamente a apropriação da mais-valia produzida pelo trabalho explorado que permite a acumulação capitalista. Assim, Marx pode dizer que a mercadoria é um fenômeno tipicamente capitalista, muito embora a mercadoria exista muito antes do surgimento desse modo de produção. É que, não obstante nas sociedades pré-capitalistas o produto do trabalho possa se revestir da forma da mercadoria, só na sociedade burguesa ocorre essa ‘mercantilização’ universal, em virtude não só de que praticamente todos os produtos são mercadorias, mas também em virtude de que a própria força de trabalho se constitui como mercadoria. Isto está evidentemente relacionado com a emergência do trabalho abstrato como realmente trabalho abstrato, como simples dispêndio de força de trabalho, indiferente em relação à ‘qualidade’ do trabalho, isto é, a fatores como a habilidade, destreza, etc., do trabalhador. O domínio do valor de troca só se dá, portanto, em uma sociedade cuja organização do processo de trabalho está estruturada de modo a tornar o operário simples ‘apêndice' da máquina, simples fornecedor de trabalho vivo ‘indiferenciado’.48

Naves, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: Um estudo sobre Pachukanis. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 62. 48

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A troca “justa” entre capitalista e trabalhador, mediada pelo contrato jurídico, elaborado por dois sujeitos de direito livres que se comprometem mutuamente, ofusca a relação de dominação exercida pelo capital, transformando-a, formalmente, em relação equivalente e equânime. Neste ponto paradoxal, em que a exploração é disfarçada de troca justa, se revela para Zizek o sintoma da sociedade capitalista.

Por isso é que a descoberta do sintoma deve ser buscada na maneira como Marx conceituou a passagem do feudalismo ao capitalismo. Como estabelecimento da sociedade burguesa, as relações de dominação e servidão foram recalcadas: aparentemente, pela forma, lidamos com relações entre sujeitos livres, libertos de qualquer fetichismo em suas relações interpessoais; a verdade recalcada — a da persistência da dominação e da servidão — irrompe num sintoma que subverte a aparência ideológica da igualdade, liberdade etc. Esse sintoma em que surge a verdade das relações sociais são precisamente as "relações sociais das coisas": as relações sociais decisivas, as de exploração, não podem ser detectadas analisando-se as relações interpessoais — temos de voltar os olhos para as "relações sociais entre as coisas", diversamente da sociedade feudal, onde: ‘Qualquer que seja a maneira como julgamos as máscaras usadas pelos homens nessa sociedade, as relações sociais das pessoas em seus respectivos trabalhos se afirmam nitidamente como suas próprias relações pessoais, em vez de se disfarçar em relações sociais entre coisas, entre produtos do trabalho.’(Marx,1969, p. 73.) Que as relações sociais das pessoas, em vez de se afirmarem nitidamente como suas próprias relações pessoais, se disfarçam em relações sociais entre coisas, eis aí uma belíssima definição do sintoma, eis aí a "histeria conversiva" própria do capitalismo.49

Na sociedade capitalista tardia de nossos tempos a relação de dominação entre capital e trabalho chega ao auge, conjuntamente com sua mistificação. Mesmo os grandes empresários, juristas e outros mais privilegiados podem também ser considerados proletários, trabalham para o capital e obedecem a seus ditames. A servidão voluntária e o consentimento tácito da maior parte da população com a exploração operada pelos capitalistas são retribuídos por estes com uma série infindável de entretenimentos e distrações inúteis, feitas para aliviar e distrair a massa explorada de sua degradante situação. Na sociedade hedonista de consumo, o sujeito passa a tratar a si mesmo como mercadoria.

Na condição de sujeito-proprietário, o homem faz circular a si mesmo como objeto de troca, pois em sua existência, como lembra Bernard Edelman, ele só aparece como representante dessa mercadoria que ele possui: a si mesmo, de modo que se pode dizer que o homem como sujeito de direito é constituído para a troca, e é justamente essa condição que realiza sua liberdade.50

Consequência também da mudança do supereu repressivo clássico freudiano para o supereu todo gozador, elaborado por Lacan. Na atual sociedade, voltada para o mercado e a produção ininterrupta do supérfluo, o indivíduo é bombardeado incessantemente com promessas de prazer e felicidade através de produtos cuja utilidade e necessidade se tornam cada vez mais duvidosas. Os escritórios de marketing e publicidade literalmente produzem e dizem o que e como desejar, desta forma somente aumentando a Zizek, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1996, p. 144. Naves, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: Um estudo sobre Pachukanis. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 68. 49 50

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insatisfação e a passividade da população, que perambula de moda a moda, conforme o mercado lhes diga como devem se satisfazer, para em seguida apresentar um novo produto e uma nova insatisfação. O mundo do consumo pede, por sua vez, uma ética do direito ao gozo, pois o que o discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura do gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo. Ele precisa da regulação do gozo no interior de um universo mercantil estruturado. Para ser mais preciso, ele precisa daquilo que Jacques Lacan chama de ‘mercado do gozo’, gozo disponibilizado através da infinitude plástica da forma-mercadoria.51

A ligação entre sujeito e mercadoria pode ser encontrada mesmo em tempos pretéritos ao capitalismo ao revelar a ligação estrutural do sujeito abstrato e da forma-mercadoria. Em O mais sublime dos histéricos, Zizek demonstra, valendo-se da teoria elaborada por Alfred Sohn-Rethel, como o sujeito transcendental kantiano já estava presente nas relações mercantis, como a troca já envolvia em si o sujeito transcendental que mais tarde irá dominar a teoria da modernidade burguesa. Quem mais avançou no trabalho de destacar o alcance universal da forma-mercadoria foi, sem dúvida, Alfred Sohn-Rethel, um dos ‘companheiros de percurso’ da ‘teoria critica da sociedade’. Sua tese fundamental é que, "dentro da estrutura da forma-mercadoria, é possível destacar o sujeito transcendental" (Sohn-Rethel, 1970, p. 12): a forma-mercadoria articula de antemão a anatomia, o esqueleto do sujeito transcendental kantiano, a rede transcendental das categorias que constituem o quadro a priori do conhecimento científico ‘objetivo’ (...) o aparelho categorial pressuposto pelo procedimento científico (o da ciência da natureza newtoniana, é claro), o quadro conceitual mediante o qual ele apreende a natureza, já está presente na efetividade social, já é operante no ato da troca das mercadorias. Antes que o pensamento pudesse chegar à abstração pura, a abstração já era atuante na efetividade social do mercado: a troca de mercadorias implica uma abstração dupla, a abstração do caráter intercambiável da mercadoria durante o ato de troca e a abstração de sua determinação concreta, particular, empírica sensível (...)52

A filosofia kantiana, ao elaborar o sujeito transcendental “puro” que observa a tudo sem nunca poder chegar à coisa mesma, condenado a ter de a realidade através de conceitos transcendentais apriorísticos, não estava consciente da íntima relação entre este sujeito transcendental e a troca mercantil, que também envolve um processo de abstração referente à passagem do simples valor material do objeto para valor de troca, e mais adiante, no capitalismo avançado, na valorização do próprio valor. A diferença na sociedade burguesa capitalista é que a troca deixa de ser um meio para o simples intercâmbio de mercadorias para ser um fim em si mesmo, como forma de reprodução ad infinitum da mais valia. Instrumentaliza-se então o direito para que este possa proteger o contrato jurídico, a obrigação entabulada pelos particulares, restando ao Estado o poder de intervir, se necessário, através da violência institucionalizada para garantir o cumprimento da obrigação acordada. Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 127 52 Zizek, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1996, p. 135. 51

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As trocas sociais, impessoais, egoísticas, mediada pelo dinheiro, encontram assim seu ápice durante o capitalismo, justificada pelo direito como troca justa e equivalente, operada entre iguais. Porém, como lembra Zizek, a liberdade de compradores e vendedores no mercado é falsa, não só pela condição paradoxal do trabalhador-mercadoria, mas também pelas instituições que tem de atuar de modo nada “imparcial” ou “neutro” para que o mercado possa funcionar. Os pressupostos da sociabilidade capitalista orientam uma ação social baseada na confiança, e mesmo na crença, nas instituições e formas sociais que a sustentam, ainda que o agente da troca não tenha consciência direta dos próprios fundamentos de seus atos.

No mercado – e, em termos mais gerais na troca social baseada no mercado -, os indivíduos se encontram como sujeitos racionais livres, mas esses sujeitos resultam de um processo anterior complexo relativo à dívida simbólica, à autoridade e, acima de tudo, à confiança (no grande Outro que regula as trocas). Em outras palavras, o domínio da troca nunca é puramente simétrico: uma condição a priori de cada participante é dar algo sem retorno para participar do jogo de dar e tomar. Para que a troca no mercado ocorra, é preciso haver sujeitos que participem do pacto simbólico básico e exibam a confiança elementar na palavra. É claro que o mercado é o domínio das mentiras e dos embustes egoístas; entretanto, como ensina Lacan, a mentira, para funcionar, tem de se apresentar e ser aceita como verdade, isto é, a dimensão da verdade já tem de estar estabelecida.53

Este sujeito que compactua com a lógica de mercado e assim reconhece a autoridade simbólica de quem a sustenta é justamente o sujeito de direito. Como analisa Zizek, a troca social não é simétrica, para que o indivíduo possa participar das relações de troca do mercado ele tem de já estar/ser reconhecido como sujeito ao direito, tolhido de sua liberdade e autonomia ao fazer-se instrumento do Grande Outro. Devemos levar está problemática até as últimas consequências e afirmar que a troca em si é antissocial, pautada na lógica da desconfiança recíproca e do interesse pessoal. Foi Marshall Sahlins que propôs uma solução diferente e mais pertinente: a reciprocidade da troca é, em si, totalmente ambígua; em seu aspecto mais fundamental, é destrutiva do laço social, é a lógica da vingança, dente por dente. Para encobrir esse aspecto da troca, para torna-la benevolente e pacífica, é preciso fingir que o presente de cada pessoa é livre e vale por si só.54

Como também é preciso fingir que a troca entre empregador e trabalhador, entre o trabalho e sua contrapartida salarial, é simétrica. Não existe como comprovar essa simetria, esta tem de ser pressuposta para que o sistema capitalista possa operar e justificar-se. É na desmitificação de seus pressupostos e no combate ativo de seus preceitos que deve se buscar a superação do capitalismo. 53 54

Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2012, p. 53. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 44.

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A ideologia neoliberal

O fetiche da mercadoria está vinculado ao trabalho como mercadoria paradoxal. Dentro da sociedade individualista e concorrencial imposta pela economia de mercado livre, o trabalhador é obrigado a vender sua força de trabalho como outra mercadoria qualquer. Não existe verdadeira opção na lógica de mercado, ou o indivíduo participa do jogo volátil do capital e suas exigências incessantes ou é excluído da sociedade e da circulação dos bens produzidos. Como demonstra Zizek, o que acontece é que nas relações capitalistas a relação de dominação entre as pessoas é disfarçada, não aparece diretamente: Aqui, as coisas vão mais fundo: o principal fundamento desse paradoxo é a mudança das relações sociais que ocorre com o surgimento do próprio capitalismo. Deve-se aplicar aqui a velha fórmula do fetichismo da mercadoria, na qual as relações entre as pessoas surgem como relações entre coisas: é por isso que, no capitalismo, somos, como pessoas, todos iguais, temos a mesma dignidade e liberdade- as relações de dominação, que em sociedades passadas eram diretamente relações hierárquicas entre pessoas, são agora transportas para relações entre ‘coisas’(mercadorias). A lógica da dominação que se nega necessariamente como dominação está inscrita no âmago das relações capitalistas.”55

É devido também a esta mistificação que, na relação capitalista, o sujeito de direito, em si a fórmula mesma da dominação e da repressão, aparece como algo “imanente” ou “natural” de todo ser humano. O que esta lógica oculta é a própria constituição do indivíduo como coisa-mercadoria há ser cambiada no mercado.

55

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 209.

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Dentro desta constelação, como se constitui a ideologia? Como afirma Zizek, além de negar a dominação que exerce, o neoliberal não se reconhece como ideológico, e sim como “realista”, ele naturaliza as relações sociais de mercado como leis econômicas inexoráveis e necessárias. Esta é, em verdade, a posição ideológica por excelência, pois não percebe sua própria participação subjetiva naquilo que constitui como “realidade”.

Encontramos aqui o paradoxo básico do liberalismo. A postura anti-ideológica e antiutópica inserem-se no próprio cerne da visão liberal: o liberalismo concebe a sim mesmo como ‘política do mal menor’, sua ambição é produzir ‘a sociedade menos pior possível’, evitando assim o mal maior, já que considera qualquer tentativa de impor diretamente um bem concreto a fonte suprema de todo mal. (...) No entanto, a crítica liberal da ‘tirania do bem’ tem seu preço: quanto mais seu programa permeia a sociedade, mais ele se transforma em seu oposto. (...) A modesta rejeição das utopias termina com a imposição de sua utopia liberal de mercado, que supostamente se tornará realidade quando nos submetermos de maneira apropriada ao mecanismo do mercado e dos direitos humanos.56

Por isso que a ideologia neoliberal se configura através de uma distância cínica de seus próprios pressupostos. Por trás da tolerância multicultural proposta pelo neoliberalismo se encontra a imposição (violenta, se necessário) da lógica de mercado. “A conclusão a ser tirada é que a problemática do multiculturalismo – a coexistência híbrida de diversos mundos da vida culturais – que hoje se impõe é forma de aparecimento de seu oposto, da presença maciça do capitalismo como sistema mundial universal: atesta a homogeneização sem precedentes do mundo contemporâneo.”57 Assim enfatiza Vladimir Safatle: Pois ‘cinismo’ é o nome correto desta posição subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza, de forma absoluta, toda e qualquer determinidade. Ela nega reflexivamente aquilo ao qual ela se vincula criando um universo social ‘carnavalesco’ de aparências reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências.58

O neoliberal entende que os fundamentos de seus atos e seus preceitos são regras lógicas gerais neutras das quais cada um deve se utilizar como forma de alcançar seus objetivos privados e seus ganhos particulares, mantendo os eventuais e marginais problemas do “sistema” como problemas do Estado que nada tem a ver com sua vida “privada”. A diferenciação entre a vida civil e a pública também é uma operação ideológica muito importante para o capitalismo. É mais uma tentativa de separar o espaço “puro” e cientificamente calculável da economia das loucas contingências e contradições da política. O Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2012, p. 50. Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 35. 58 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 134. 56 57

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indivíduo pode então desfrutar despreocupadamente de sua vida particular e dos prazeres do consumo, enquanto os aparelhos de Estado seus representantes democráticos se responsabilizam pelos problemas sociais. Outra maneira de formular a ideia de Badiou de que vivemos num universo sem mundo é afirmar que o funcionamento da ideologia não se baseia mais no mecanismo de interpelação da interpelação dos indivíduos como sujeitos: o que o liberalismo propõe é um mecanismo neutro de direito neutro em termos de valor e assim por diante, um mecanismo ‘cujo funcionamento livre pode gerar automaticamente uma ordem política desejada sem, em nenhum momento, interpelar indivíduos como sujeitos. A jouissance sem nome não pode ser um título de interpelação propriamente dito; ela é mais um tipo de impulso cego sem forma-valor simbólica anexada a ele, todas essas características simbólicas são temporárias e flexíveis e, por isso, o indivíduo é constante chamado a ‘recriar-se’.59

Devemos ressaltar neste ponto como o papel propriamente o papel ideológico do direito no mundo capitalista. O direito neutro e igual para todos, como conceituado pelo positivismo, mais bem exemplificado pela Teoria Pura do Direito de Kelsen, é o auge da ideologia utópica jurídica, voltada para o tecnicismo adaptável de mercado, como leciona Alysson Mascaro: A racionalidade tecnológica do direito, que prepara e prevê as suas próprias mudanças institucionalmente – conseguindo avançar, no direito positivo contemporâneo, para além dos imperativos imutáveis do jusnaturalismo moderno, é uma forma de universalidade que esconde seu caráter e seus compromissos por meio de formalismos que se dão a aparência de necessários e neutros. A individualidade garantida na universalidade de procedimentos, a lógica de mercado sobrepondo-se assepticamente ao pensamento crítico, o sujeito de direito burguês elevado à categoria de universal humano, constituirão uma forma de racionalidade jurídica cuja mais alta presunção é a sua imposição como único pensamento e forma necessária do direito. A própria racionalidade, esvaziada de crítica, passa a operar nos limites da institucionalização legalista.60

Se o anverso da lei é o poder obsceno que a sustenta, ou seja, se as tentativas de encontrar uma forma “pura” da lei é mais uma das miríades do capitalismo, com a qual pretende negar sua própria dominação, o anverso do sujeito de direito é o indivíduo hedonista e utilitarista, preocupado somente com suas próprias idiossincrasias, que não percebe sua participação ativa naquilo que constitui como horizonte de sociabilidade. Este passa então a pautar sua vida na busca do gozo altista, prometido pelas mercadorias e suas propagandas cada vez mais falaciosas. “Com a ‘integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios’, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento central na lógica de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles que instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua conduta pela exigência irredutível de gozo.”61 Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2012, p. 52 Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 50. 61 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 129 59 60

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Além de mistificar as relações de dominação e a exploração da mais valia entre o capital e o trabalho, a ideologia neoliberal também promove um consumismo neurótico de suas mercadorias. Com isso, cresce o sentimento de insatisfação e ansiedade decorrente das promessas infindáveis de gozo enlatado. A liberdade para gozar se transforma em seu oposto, em obrigação de gozar.

Desta forma, a ansiedade e depressão podem ser vistos como sintomas diretamente resultantes da introjeção de um supereu que ordena uma injunção de gozo tão forte e incondicional que toda tentativa de realização efetiva será necessariamente um fracasso. Assim, se o sentimento de culpa aparecia como resultado direto do supereu repressivo que impedia o gozo, a depressão e a ansiedade podem aparecer como o resultado desta nova configuração do supereu que exige o gozo incondicional. 62

Aqui, Slavoj Zizek descreve a ambiguidade da lei e sua transgressão, da transformação da permissão para gozar em obrigação superegóica de gozo, com todas as contradições resultantes. Aqui é necessário ser muito preciso e evitar confundir esse emaranhado da lei com sua transgressão (a lei sustentada pela obrigação oculta de sua própria transgressão) com o supereu propriamente dito como seu oposto (quase) simétrico. De um lado a injunção oculta (não articulada): ‘Goze! Viole a lei!’ reverbera na proibição explícita: de outro (muito mais interessante e desconfortável), a injunção oculta (não articulada) de fracassar reverbera na obrigação permissiva explícita: ‘Seja livre! Goze!’.63

A mercadoria e a publicidade que incitam continuamente ao gozo supergóico e o recrudescimento da legalidade formalista são as duas faces do avanço da ideologia de mercado capitalista. O capitalismo é então naturalizado como “pano de fundo neutro” das múltiplas interações egoístas dos sujeitos de direito no mercado, ocultando o caráter brutal da exploração descarada do desejo e a concorrência ferrenha entre os indivíduos no mercado por posições onde obtenham mais ganhos e privilégios.

A implicação (involuntária) desse raciocínio é que a própria experiência ‘antiessencialista’ da vida social como contingente, em que toda identidade é resultado de articulação discursiva, consequência de uma luta declarada pela hegemonia, funda-se na predominância ‘essencialista’ do capitalismo, que em si, não surge mais como um dos modos de produção possíveis, mas simplesmente como o “pano de fundo neutro” do processo reaberto de (re)articulações contingentes.64

Aí está o impasse propriamente utópico do neoliberalismo. A própria lógica de liberdade mercantil absoluta leva ao seu oposto, na imposição do mercado como única forma possível de sociedade. Trata-se, em verdade, de um avanço das forças conservadoras, em detrimento da esperança e da possibilidade. Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 133. 63 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 109. 64 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 348. 62

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Assim, temos de dar um passo atrás e vermos onde se sufocaram os potenciais emancipatórios do socialismo, para tentarmos reavivar a luta pela justiça social.

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5.2 As lições do passado

A evolução do Estado no pós-fordismo

Desde o colapso da União Soviética e das experiências comunistas no Leste Europeu, no final do século passado, a ideologia neoliberal capitalista viveu momentos de grande prosperidade, a ponto do filósofo americano Francis Fukuyama dizer que vivíamos o “fim da história”, que chegava então em seu apogeu com a queda das últimas resistências às democracias ocidentais burguesas. O principal baluarte deste novo momento era os Estados Unidos, que com sua supremacia econômica, político e militar, passava então à posição de potência hegemônica entre os Estados globais. Tratava-se não só de uma alteração histórica na correlação das forças materiais de cada Estado, mas também de uma homogeneização sem precedentes das formas políticas até então pensadas em todo o mundo, com a quase absoluta vitória do capitalismo e da forma estatal burguesa como formas necessárias e últimas de sociabilidade.

Joachim Hirsch chama esta transformação nas relações sociais de produção de pós-fordismo. Com as mudanças ocorridas nas relações políticas e econômicas, suscitadas principalmente pelo neoliberalismo e a internacionalização maciça do modelo de produção capitalista, as relações estruturais entre os 44

indivíduos, como também entre os Estados, modificaram-se substancialmente, guiadas agora por um capitalismo diferente do modelo clássico americano fordista, tipicamente industrial e do Estado de bem estar social. Agora com predominância do capitalismo financeiro e a volta do paradigma do liberalismo econômico, surge um novo ordenamento das forças internacionais, com a formação de um conflituoso sistema de Estado, reflexo da globalização da forma política e estatal capitalista.

O sistema internacional ‘pós-Westfália’ caracteriza-se por hierarquias de poder e divisões novas. A ‘tríade’ capitalista designa a superpotência estadunidense dominante, irrestrita, pelo menos militarmente, e um bloco de ‘Estados capitalistas forte’, em complexa relação de cooperação e conflito com os Estados Unidos. Eles possuem, em razão de sua força militar-econômica, certa autonomia, ou, caso se queira, de ‘soberania’. Do outro lado, encontram-se os Estados ‘fracos’ ou periféricos, que - em consequência da ausência de um equilíbrio internacional de poder como nos tempos da Guerra Fria -, continuam sob a dominação e dependência do centro global do poder, tanto militar como economicamente.65

Esta nova dinâmica do capital global, que encontra nos Estados Unidos seu apoio militar e econômico fundamental, pauta-se pelo predomínio do capital financeiro e pela mercantilização progressiva de vários setores da vida social, em busca de novas áreas de exploração e valorização do capital. Se o fordismo do começo do século XX ainda pretendia de alguma forma “socializar” o sistema capitalista e oferecer à massa explorada condições mínimas de existência através de serviços públicos e previdência social, no pós-fordismo neoliberal verificamos a decadência e privatização contínua destes serviços, resultando na acentuação das diferenças entre as classes sociais e no estrangulamento econômico dos Estados nacionais frente á pressão do capital financeiro internacionalizado, conforme Alysson Mascaro discorre:

Desde os primeiros governos neoliberais no centro do poder econômico, na Inglaterra e nos Estados Unidos, há um constrangimento global e sistemático das condições de bem social e das políticas de modelo keynesiano. Em termos geopolíticos, a crise do petróleo, a retomada da concorrência armamentista contra o mundo soviético e a posterior dissolução do bloco de tais economias deram condições a um reposicionamento dos Estados Unidos como superpotência mundial. O capital internacional encontra no incontrastável poder militar estadunidense a garantia de sua contínua reprodução, mesmo contra eventuais políticas nacionalistas de resistência. Se a guerra, o armamentismo e a violência passam a ser padrão político de organização das sociedades, em desfavor das políticas de bem-estar social, o neoliberalismo encontra na crescente demanda por liberalização financeira e dos mercados sua bandeira de política econômica.66

Neste período de transição entre o fordismo e o pós-fordismo as principais estruturas sociais e ideológicas do capitalismo sofreram pouca ou nenhuma mudança. A forma política estatal e o positivismo jurídico continuam os principais instrumentos de dominação do capitalismo, tendo por base a ideologia do 65 66

Hirsch, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renavan, 2010, p. 198 Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.123.

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mercado e a separação entre o domínio econômico e político. É justamente esta diferenciação entre a esfera “neutra” do mercado da atividade política, conceituada pela burguesia, que isola de um lado as formas políticas “autênticas” e “democráticas”, reconhecidas pelo Estado e pelo direito, da interação “livre” e autônoma dos sujeitos de direito no mercado, o principal motivo da forma estatal ser inseparável do fenômeno capitalista.

Apesar de normalmente se entender o Estado como um fenômeno mais amplo, que teria se manifestado em vários tipos e formas diferentes no decorrer da história, somente quando a burguesia chega ao poder e o mercado se torna então o centro das relações sociais o Estado pode surgir como uma organização apartada da sociedade, um intermediário para garantir os principais mecanismos do modo de exploração capitalista e a livre circulação das mercadorias, como o contrato jurídico e o sujeito de direito. Ao contrário de outras formas de domínio político, o Estado é um fenômeno tipicamente capitalista. Sobre as razões dessa especificidade, que separa política de economia, não se pode buscar respostas, a princípio, na política, mas sim no capitalismo. (...) A troca de mercadorias é a chave para desvendar essa especificidade. No capitalismo, a apreensão do produto da força de trabalho e dos bens não é mais feita a partir de uma posse bruta ou violência física. Há uma intermediação universal das mercadorias, garantida não por um burguês, mas por uma instância apartada de todos eles. O Estado, assim, se revela como aparato necessário à reprodução capitalista, assegurando a troca das mercadorias e a própria exploração da força de trabalho sob forma assalariada. As instituições jurídicas que se consolidam por meio do aparato estatal – o sujeito de direito e a garantia do contrato e da autonomia da vontade, por exemplo – possibilitam a existência de mecanismos apartados dos próprios exploradores e explorados.67

A separação entre o econômico e o político, do Estado e da sociedade civil, o mercado privado e as instituições públicas encontram-se hoje entre os principais fundamentos da ideologia burguesa, sendo raros os que contestam com verdadeira veemência a predominância desta lógica na sociedade atual. A crença na neutralidade do mercado e de suas formas sociais necessárias, estatais e jurídicas, impede uma contestação veemente da dominação capitalista, reduzindo o plano político aos limites do ordenamento estatal e democráticos, como momento secundário e contingente de formulação de coalizões e consensos. Obviamente, trata-se aqui de ideologia pura, de uma escolha verdadeiramente política pela lógica de mercado.

Tudo isso indica claramente que não há mercado neutro: em cada situação específica, as configurações de mercado são sempre reguladas pelas decisões políticas. O verdadeiro dilema portanto, não é ‘o Estado deveria intervir?’, mas ‘que tipo de intervenção estatal é necessária?’. Essa é uma questão de política real, ou seja, uma

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Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.18.

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luta por definir as coordenadas ‘apolíticas’ básicas de nossas vidas. (...). Não posição ‘objetiva’ especializada à espera de simplesmente ser aplicada; é preciso tomar posição, de um lado ou de outro.68

Assim, vemos que a pretensa separação entre o domínio econômico e o político, um dos principais baluartes da ordem neoliberal, é em verdade um pressuposto ideológico fundamental para o modo de produção capitalista. Desta forma, relega-se ao Estado a função de regular, dentro de si, as muitas contradições e conflitos oriundos das relações capitalistas, promovendo concessões em certos momentos, outros agindo através da violência e da repressão, sempre em favor da classe dominante e do interesse do capital. De tal sorte que podemos mesmo lamentar a completa falta de visão daqueles que entendem que a economia possua “leis próprias” ou tenha algo de “natural” ou “independente” em seu desenvolvimento. Muito pelo contrário, para que o “ambiente ótimo” da valorização do capital seja possível é necessária uma grande quantidade de violência, institucional e psíquica, e de um Estado forte que garanta os pressupostos da exploração capitalista.

Por isto a crise econômica e social é um fator permanente da sociabilidade capitalista, de um sistema de produção que se reproduz através do rearranjo contínuo das forças sociais e políticas conforme a necessidade do capital e às contradições estruturais resultantes do seu processo de globalização. Seu avanço se dá em meio a múltiplos conflitos, econômicos e políticos, que não são seus efeitos secundários ou marginais. A desigualdade, a exploração econômica, a dominação política e o individualismo são a própria essência do sistema capitalista de produção. Somente novas estruturas sociais que tenham a justiça social como meta podem projetar esperanças no futuro. As múltiplas crises do modo de produção capitalista não permitem identificar uma resposta política, tampouco um mesmo padrão de superação ou retomada econômica. Somente futuras dinâmicas que sejam necessariamente socialistas podem ensejar arranjos sociais inovadores, não fundados na concorrência e nos antagonismos de classes, grupos e indivíduos. O capitalismo é crise. Permeado pelas formas sociais, econômicas, políticas, jurídicas e ideológicas que lhe constituem estruturalmente, o desenvolvimento do capitalismo não pode transcender ao que porta – exploração e dominação. Preside o concerto da totalidade da sociabilidade capitalista uma longa e contraditória política da mercadoria.69

O sonho neoliberal do fim das intervenções estatais provou-se então uma ingenuidade teórica que ignorava a estrutura da sociabilidade capitalista, o papel fundamental das instituições estatais para o controle da população e dos mecanismos de exploração. Longe de desaparecer, cresce a importância da forma estatal com a consolidação da forma capitalista de exploração. 68 69

Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 26. Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.128.

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Talvez resida aí a contradição fundamental do capitalismo ‘pós-moderno’ de hoje: enquanto sua lógica é desreguladora, ‘antiestatal’, nômade, desterritorializadora, etc., sua tendência fundamental ao ‘ato de o lucro tornar-se renda’ assinala o fortalecimento do papel do Estado, cuja função reguladora é ainda mais onipresente. A desterritorialização dinâmica coexiste e baseia-se em intervenções cada vez mais autoritárias do Estado e de seus aparelhos legais e outros. Portanto, o que podemos discernir no horizonte de nosso tornar-se histórico é uma sociedade em que o hedonismo e o libertarianismo pessoal coexistem com (e são sustentados por) uma rede complexa de mecanismos estatais reguladores. Hoje, longe de extinguir-se, o Estado acumula forças.70

Se a passagem do modelo fordista para o pós-fordista trouxe consigo um novo arranjo da ordem global, com claro predomínio dos Estados Unidos, as principais estruturas sociais que nele se apresentam, como a forma jurídica, o Estado, a mercadoria, a propriedade privada, etc., continuam a serem os princípios que orientam a atividade política majoritária. É inconcebível pensar-se então em verdadeiras transformações dentro deste arcabouço teórico, de modo que mesmo a tentativa de ressuscitar o Estado de bem estar social pode servir mais para adiar as transformações necessárias das relações sociais, visto que também este não consegue ultrapassar as relações capitalistas de produção. Hoje, a Europa divide-se entre o chamado modelo anglo-saxão – aceitar a ‘modernização’ (adaptação às novas regras da nova ordem global) – e o modelo franco-germânico – salvar o máximo possível do Estado de bem-estar social da ‘velha Europa’. Embora opostas, essas duas opções são lados da mesma moeda, e o caminho não é nem retornar a uma forma idealizada do passado, pois esses modelos estão claramente esgotados, nem convencer os europeus de que, se quiserem sobreviver como potência mundial, terão de se acomodar o mais depressa possível à recente tendência de globalização. Não deveríamos nem nos sentir tentados por esta opção, que provavelmente é a pior: a busca de uma ‘síntese criativa’ entre as tradições europeias e a globalização, visando construir algo que ficamos tentados a chamar de ‘globalização com cara europeia’.71

O presente impasse global, que se tornou ainda mais notório com as muitas revoltas e manifestações de descontentamento ocorridas em todo o mundo, requer antes uma análise crítica e uma atuação política que altere as estruturas fundamentais do modo de produção capitalista, substituindo-as por formas mais justas e equilibradas de produção, voltadas para o interesse coletivo e para as verdadeiras necessidades do ser humano. Para tanto, novos meios de expressão da vontade social e ações coletivas emancipatórias são fundamentais para a construção de instrumentos políticos que consigam pressionar o capital e fazer frente á sua hegemonia no plano político e econômico. Neste contexto, a democracia ocidental burguesa parece ser uma resposta política insuficiente para os muitos problemas e lutas que se avizinham.

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Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 122. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 277.

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Democracia e suas vicissitudes

Desde a idade moderna tem-se a impressão de que a democracia e o capitalismo andam juntos, como se fossem dois fenômenos concomitantes e necessários um ao outro. Existe verdade nesta afirmação, mas, se assim o é, também podemos afirmar que nem sempre o foi, que sua relação foi marcada por profundos conflitos que se fazem presentes até hoje. Na história do capitalismo, encontramos também momentos marcados por regimes de exceção e totalitarismo, como as ditaduras no América do Sul, os regimes fascistas da Europa e, mais recentemente, o capitalismo de Estado chinês. Essa certa oscilação, entre regimes democráticos e outros totalitários, é uma demonstração das contradições e conflitos estruturais que acompanham a disseminação do modo de produção capitalista pelo mundo.

A democracia moderna segue, em muitos aspectos, as mesmas estruturas ideológicas e conceituais que serviram de alicerce para a formação do Estado burguês, sendo assim pautada pelos mesmos princípios e interesses. A separação do privado e do público, do político e econômico, da sociedade civil e do Estado, como também a forma jurídica e a propriedade privada são os elementos que configuram também a democracia burguesa. A ideologia de mercado vai servir então como verdadeiro espelho para a configuração do espaço político da burguesia, de forma que a democracia será a forma política que, pelo menos nos momentos mais prósperos, servirá com maior precisão aos seus anseios de liberalismo econômico. 49

Nas condições capitalistas, a igualdade formal de todos os indivíduos – ou mais precisamente, dos cidadãos – enquanto proprietários de mercadoria em concorrência no mercado, torna-se pela primeira vez na história uma realidade material. Liberdade e igualdade adquirem assim uma base econômica e proporcionam às ideias do Iluminismo uma eficácia geral. A separação em curso entre o ‘Estado’ e a ‘sociedade’, entre ‘política’ e ‘economia’ torna-se a condição decisiva para a instauração de relações de representação democráticas. Somente quando o Estado, como aparelho de força política centralizado, separa-se formalmente da sociedade, e de suas relações de desigualdade e poder, quando o poder econômico e social não é mais diretamente idêntico ao poder político, pode submeter-se a dominação a um controle político democrático. 72

É por razões estruturais, oriundas dos próprios mecanismos de exploração do trabalho pelo capital, que a democracia será em um primeiro momento a forma política que a burguesia utilizará para a construção de seu domínio. A universalização do sujeito de direito e das liberdades civis, com a concomitante separação entre o Estado e a sociedade civil, permite que as relações sociais e as subjetividades assim constituídas se voltem para a troca de mercadorias e a busca do ganho privado, relegando o espaço político para os representantes eleitos da sociedade para os cargos de Estado e suas instituições. Neste ponto, a separação entre o econômico e o político é essencial. Enquanto naquele reina o liberalismo de mercado e a exploração da mais-valia, neste o Estado democrático se torna um regulador dos conflitos e desigualdades sociais resultantes do sistema capitalista de produção, ao mesmo tempo em que legitima a ordem dominante através de eleições “livres” e “independentes”. Os agentes econômicos são tornados sujeitos de direito e, como extensão dessa subjetividade para o plano político, cidadãos. Tal qualificação dos direitos políticos granjeia o acesso ao Estado segundo direitos, deveres, garantias, poderes e obrigações estatuídos juridicamente. Trata-se de um investimento à vida política nos termos da atribuição jurídica para tanto. Seu locus fundamental é o direito, desdobrado no plano eleitoral e no plano da constituição e do resguardo da subjetividade mínima suficiente à reprodução do capital. Sendo cidadãos, os sujeitos de direito se tornam aptos a votar e a serem votados. Na amarra jurídica necessária ao capital, a liberdade negocial, a igualdade formal e a propriedade privada formam o esteio da ação política.73

O neoliberalismo encontra então na democracia sua principal ferramenta ideológica. As movimentações e contestações sociais passam a ter que obedecer ao processo democrático como condição de sua legitimidade, mas neste mesmo processo perdem seu valor subversivo ao terem que se submeterem aos valores “democráticos”, como a propriedade privada e a lei estatal. A separação entre o público e o privado opera também neste momento como forma de proteção da esfera mercantil privada dos conflitos políticos e sociais, apartando-os das relações materiais e levando-os ao espaço “neutro” do Estado, 72 73

Hirsch, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renavan, 2010, p. 91. Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.85.

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formando assim um processo de resolução contínuo e fragmentado dos conflitos sociais que impede uma verdadeira contestação das formas capitalistas. “A democracia, do modo como a palavra é usada hoje, diz respeito, acima de tudo, ao legalismo formal: sua definição mínima é a adesão incondicional a um determinado grupo de regras formais que garantem que os antagonismos sejam totalmente absorvidos pelo jogo agônico.”74 Alysson Mascaro chega à conclusão semelhante em Estado e forma política:

A democracia, lastreada no direito e nas formas de sociabilidade capitalista, representa tanto um espaço de liberdade da deliberação quanto um espaço interditado às lutas contra essas mesmas formas. Por isso, a democracia representa o bloqueio da luta dos trabalhadores mediante formas que não sejam aquelas previstas nos exatos termos jurídicos e políticos dados. Exclui-se, com isso, a possibilidade da luta que extravase o controle e o talhe do mundo estatal e de suas amarras jurídicas. A ação revolucionária é interditada.75

Por outro lado, os mecanismos eleitorais, como o financiamento privado das eleições, que submete a maior parte dos candidatos aos interesses das grandes forças econômicas, garantem que somente ocuparão o Estado os indivíduos compromissados com os valores e instituições da burguesia, ao mesmo tempo em que criam uma aparência de “liberdade de escolha” e “participação popular” no poder. Embora as eleições democráticas realmente alterem as correlações de força e modifiquem os direcionamentos básicos dos governos em alguma medida, deixam incólumes as estruturas de exploração do capital. Slavoj Zizek vai ainda mais longe e demonstra a aproximação existente entre a forma democrática eleitoral atual e a forma mercadoria em que se baseia a atual sociedade.

Entretanto, a maior ameaça à democracia nos países nos países democráticos de hoje não reside nesses dois extremos, mas na morte do político por meio da ‘mercantilização’ da política. O que interessa aqui não é, em primeiro lugar, o fato de que os políticos são embalados e vendidos como mercadorias nas eleições; um problema muito mais profundo é o fato de que as próprias eleições são concebidas como compra de mercadoria (no caso, o poder): envolvem uma competição entre partidos-mercadoria diferentes e nossos votos são o dinheiro que compra o governo que queremos. O que perdemos nessa visão da política como apenas mais um serviço que compramos é a política como um debate público partilhado das questões que dizem respeito a todos nós.76

É costume opor a democracia aos regimes totalitários do século XX, como o fascismo, o nazismo e o stalinismo. Enquanto aquele é o reino da liberdade e igualdade, onde todos os indivíduos são igualmente sujeitos de direito e autônomos em suas decisões, estes foram o horror das tentativas de imposição de uma ordem institucional hierárquica, culminando assim em regimes de exceções responsáveis pelas piores atrocidades da história da humanidade. Como se não fossem os belos regimes

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 267. Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.87. 76 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 286. 74 75

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democráticos do ocidente responsáveis também por grande parte dos mesmos acontecimentos e muitos outros que ainda persistem até os dias de hoje.

Uma análise mais atenta pode demonstrar o que fica obliterado nesta falsa oposição entre a democracia e o totalitarismo. Na democracia os conflitos são colocados “em segundo plano”, entendidos como questões pontuais e contingentes da expansão econômica em si neutra do capitalismo, a serem resolvidas pelo ordenamento e disposições estatais. Desta forma institucionaliza-se o conflito, tornando-o inócuo e negando sua imanência na sociedade capitalista. O fascismo, pelo contrário, admite o conflito, mas desloca-o das relações capitalistas para inimigos exteriores, tais como outros Estados ou nações, ou em casas mais extremos em credos e raças, como a figura do judeu para os nazistas, criando assim uma falsa harmonia social. (...)se a proposta da democracia (institucionalizada) é integrar a própria luta antagônica no espaço institucional/diferencial, transformando-a em agonismo regulamentado, o fascismo segue o sentido oposto. Embora o fascismo, da maneira como age, leve a lógica antagônica a extremos (falando de ‘luta até a morte’ contra os inimigos e sempre mantendo, mas não concretizando, a ameaça mínima e extrainstitucional de violência, de ‘pressão direta do povo’, contornando os complexos canais legais e institucionais), ele postula como meta político exatamente o oposto, um corpo social hierárquico e extremamente ordenado (não admira que sempre recorra a metáforas corporativistas e organicistas). Este contraste pode ser habilmente explicado nos termos da oposição lacaniana entre o ‘sujeito do enunciação’ e o ‘sujeito do enunciado (conteúdo)’: embora a democracia admita a luta antagônica como meta (em lacanês, como enunciado, conteúdo), seu procedimento é sistêmico-regulado; o fascismo, ao contrário, tenta impor a meta da harmonia hierarquicamente estruturada por meio de um antagonismo desregrado.77

De tal sorte que os regimes totalitários não são exceções ao funcionamento “normal” do capitalismo e do liberalismo econômico, que seriam em si democráticos e pacíficos, mas consequências mesmo do avanço do modo de produção capitalista e das contradições dele resultantes. Em todos os momentos que as reivindicações sociais e as lutas políticas ameaçam as estruturas da exploração capitalistas, as amarras jurídicas e estatais são acionadas para a proteção destas estruturas políticas e ideológicas. As ditaduras não são as exceções ao regime capitalista de produção, mas momentos por vezes necessários, e sempre potenciais, em sua contraditória trajetória de consolidação global.

Por isso, não há de se pensar que o modelo político democrático seja uma regra que comporta uma eventual exceção ditatorial ou fascista. O capitalismo se estrutura necessariamente nessas polaridades, incorporando a exceção como regra. Não há experiência de superação das explorações capitalistas granjeada por meio democrático-eleitoral. Toda vez que a sociabilidade capitalista pode ser superada, mecanismos políticos antidemocráticos se apresentam e interferem nesse processo. As formas necessárias à reprodução do capitalismo têm peso estrutural determinante contras as eventuais formas políticas democráticas destoantes. Se o capitalismo 77

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 284.

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porta a democracia como forma política típica, porta no mesmo grau e do mesmo modo a ditadura e os fascismos como suas formas políticas típicas para o caso de disfunção de algum de seus mecanismos.78

Assim, em que pese as substanciais diferenças entre os regimes democráticos e os totalitários, ambos são igualmente mistificadores do conflito que envolve as relações sociais no capitalismo. De um lado, o jogo agônico e a falsa atividade da democracia. De outro, o antagonismo exacerbado da paranoia fascista. O que fica obliterado nesta oposição é exatamente a luta de classes, em torno da qual se estruturam dinamicamente a política, a economia e os conflitos sociais. Para melhor explicar esta relação entre a luta de classes e os processos políticos, devemos nos voltar para a questão da separação entre o econômico e o político operada pelo liberalismo. Isto porque, para Slavoj Zizek, a política e a economia não são dois pares opostos e isolados. Muito antes, ambas relacionam-se e determinam-se reciprocamente.

A política, portanto, é nome da distância entre a ‘economia’ e ela mesma. Seu espaço se abre com a lacuna que separa o econômico, como Causa ausente, da economia em sua ‘determinação oposicional’, como um dos elementos da totalidade social: há política porque a economia é ‘não-todo’, porque o econômico é uma pseudocausa impossível e ‘impotente’. O econômico, portanto, inscreve-se duplamente aqui, no sentido exato que define o Real lacaniano: é o núcleo duro ‘expresso’ em outras lutas por meio de deslocamentos e outras formas de distorção e, ao mesmo tempo, o princípio estruturante dessas distorções. 79

Diante desta relação intrínseca entre o a economia e a política, podemos dizer que se a democracia e o totalitarismo possuíam formas políticas diferentes, tal se dava mais em relação ás questões de representação democrática e legitimidade do poder instituído. No nível econômico mantinham a mesma estrutura de exploração capitalista como política de produção e organização social. Assim, na democracia temos a despolitização da vida social e a consequente fetichização ideológica do mercado, entendido como algo em si e autônomo, enquanto o totalitarismo provoca uma falsa superpolitização da sociedade (contra os “inimigos exteriores”) para obliterar a exploração capitalista. Dois lados da mesma moeda que não dão conta dos problemas estruturais oriundos da sociabilidade burguesa.

Por outro lado, a política ‘pura’, ‘descontaminada’ pela economia, é igualmente ideológica: o economicismo vulgar e o idealismo político-ideológico são dois lados da mesma moeda. A estrutura aqui é a de uma volta para dentro: a ‘luta de classes’ é a política no âmago do econômico. Ou, para explicar de maneira paradoxal, pode-se reduzir todo o conteúdo político, jurídico cultural à ‘base econômica’, ‘decifrando-o’ como sua ‘expressão – tudo, exceto a luta de classes, que é a política no econômico em si.80

Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.88. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 293. 80 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 295. 78 79

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A quase completa naturalização da economia capitalista nos tempos de neoliberalismo levará Slavoj Zizek há afirmar que é hora de “devolver ao domínio ‘econômico’ a dignidade de Verdade, o potencial para eventos.”81. Para tanto, teremos de pensar uma democracia para além da atual política de representação burguesa, uma democracia que intervenha concretamente nas formações das decisões coletivas, políticas e econômicas, dando corpo e voz aos excluídos e explorados contra o capital. Mas a lição de Zizek é clara. A inclusão dos excluídos no espaço político não pode se dar pelas vias “normais” do Estado e do direito, sob pena de perder seu valor subversivo. A presença direta dos excluídos nos domínios do poder só pode ocorrer na forma de terror revolucionário igualitário.

O problema, portanto, é: como regulamentar/institucionalizar o próprio violento impulso democrático igualitário, como impedi-lo de afogar-se na democracia no segundo sentido da palavra (procedimento regulamentado)? Se não houver meio de fazê-lo, então a democracia ‘autêntica’ continua a ser uma explosão utópica momentânea que, no famoso dia seguinte, tem de ser normalizada. Aqui, a dura consequência que se deve aceitar é que esse excesso de democracia igualitária sobre o procedimento democrático só pode ‘institucionalizar-se’ sob o disfarce de seu oposto, como terror democrático-igualitário.82

Portanto, a recuperação da política como um campo de lutas por ideias e hegemonia é um passo fundamental para o avanço das lutas sociais. Contra a pós-política do mundo administrado do capital e os retrocessos fundamentalistas de direita, a esquerda deve apostar novamente no potencial emancipatório da teoria crítica da sociedade, como base para o seu pensamento e atuação, e nas potencialidades do homem e da história para a transformação das relações capitalistas.

81 82

Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 431. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 269.

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Política, Universalidade e Verdade

A igualdade de todos é certamente um dos corolários do direito positivo contemporâneo, figurando quase sempre como um de seus princípios inamovíveis e perenes. Entretanto, como já exposto, a igualdade formal do direito positivo é mais uma consequência da mentalidade ideológica burguesa, voltada para a atividade mercantil e a troca. Os sujeitos de direito, iguais entre si, transacionam livremente suas mercadorias, entre elas a força de trabalho. Certamente, não é este o sentido que Slavoj Zizek dá a palavra quando propõe a necessidade de um retorno à política igualitária radical. Como então pensar a igualdade para além do formalismo jurídico?

Primeiramente, devemos reconhecer o fato que a legalidade estrita é uma falsa igualdade, que ignora as profundas diferenças e desigualdade sociais. A universalização da forma jurídica é condição para que algo como o “pano de fundo neutro” do mercado possa se constituir como uma realidade social concreta. O que se oculta com esta igualdade formal é justamente a exploração do trabalho pelo capital, a apropriação da mais valia pelo capitalista. A força de trabalho como outra mercadoria qualquer se revela então o sintoma da ordem jurídica, o ponto em que a desigualdade material é travestida de igualdade legal. Portanto, uma mercadoria específica – o trabalhador que vende sua força de trabalho – é o sintoma, a exceção necessária que viola as regras do mercado ideal em todos os seus aspectos: em termos de poder da escassez, o

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capitalista goza de uma vantagem estrutural a priori: em relação às informações, o acesso do capitalista é um a priori mais completo, já que ele organiza todo o processo e trata com o mercado, vendendo os produtos; e no que diz respeito às exterioridades, o capitalista pode ignorá-las, enquanto o trabalhador é em si (como pessoa que não é apenas um trabalhador) a exterioridade afetada.83

É a tensão na relação trabalho/capital, sua desigualdade estrutural, que desmente a igualdade jurídica. Uma política igualitária deve então denunciar esta desigualdade, a assimetria das relações de mercado, retomando a Verdade como um conceito fundamental para a orientação política revolucionária. Em tempos “pós-modernos”, neoliberais, falar em Verdade é considerado sinônimo de “totalitarismo”, de “unilateralismo” e “intolerância”. Não há verdade absoluta, toda verdade é relativa, toda tentativa de imposição da Verdade resulta em catástrofes e autoritarismo. Entretanto, afirma Slavoj Zizek, a verdade é parcial, somente acessível quando se escolhe um dos lados, mas nem por isso menos universal.

Assim, a verdade está na posição do trabalhador, no trabalho como mercadoria paradoxal que condiciona a existência do universo de mercadorias “ordinárias”. Ao ter de vender sua força de trabalho no mercado, o trabalhador é reduzido a uma mercadoria comum, que transaciona a si mesmo com outros sujeitos de direito “iguais entre si”. A análise que Zizek faz da universalidade hegeliana pode fornecer um caminho para uma política igualitária que não se reduza ao formalismo legal. A universalidade como vista por Hegel, na opinião de Zizek, não é um receptáculo neutro de uma variedade de particulares, ou seja, o pano de fundo contra o qual emergem ou se constituem os elementos desta universalidade, mas antes o local mesmo de um insuportável impasse ou contradição. O Universal não é o receptáculo abrangente do conteúdo particular, o background pacífico do conflito de particularidades; o Universal ‘como tal’ é o local de um antagonismo insuportável, de autocontradição, e (a miríade de) suas espécies particulares, em última análise, nada mais são que tentativas múltiplas de confundir/conciliar/dominar esse antagonismo. Em outras palavras, o Universal nomeia o local de um ImpasseProblema, de uma Questão candente, e os particulares são as Respostas tentadas, porém fracassadas, desse Problema.84

Para Zizek, a própria universalidade está em conflito consigo mesma, surge como tentativa de resolução do antagonismo que lhe é inerente. Desta lição podemos tirar duas visões políticas que se diferenciam e que demonstram as diferenças existentes entre a perspectiva de universalidade para a direita e a esquerda. Enquanto para aquela o universal é o receptáculo abrangente das particularidades (daí o discurso direitista da tolerância multicultural, do convívio pacífico das múltiplas identidades, perceptível principalmente nos direitos humanos), a esquerda reconhece que a sociedade capitalista carrega em seu 83 84

Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2012, p. 168 Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 54.

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seio o conflito e o antagonismo da luta de classes, lutando politicamente pela emancipação dos explorados e excluídos que, como tais, encarnam diretamente a verdadeira universalidade. O gesto político de esquerda por excelência (em contraste com o tema direitista de ‘cada um tem o seu lugar’) é, pois, questionar a ordem universal concreta existente em nome de seu sintoma, em nome da parte que, embora inerente à ordem universal existente, não tem lugar nela ‘lugar próprio’ (como os imigrantes ilegais e os sem-teto nas nossas sociedades). Este procedimento de identificar-se como o sintoma é o exato e necessário inverso do gesto crítico e ideológico clássico, que consiste em reconhecer o conteúdo particular por trás de alguma noção universal abstrata (“o ‘homem’, de humano, é efetivamente o proprietário branco de sexo masculino”), em denunciar a universalidade neutra como falsa: nela afirma-se pateticamente o ponto de exclusão/exceção inerente, o ‘abjeto’ da ordem positiva concreta como único ponto de verdadeira universalidade, como o ponto que desmente a universalidade concreta existente.85

O Estado, os direitos humanos e a política eleitoreira, pilares da democracia burguesa, foram erigidos em cima de uma concepção de universalidade igualitária que camufla as desigualdades materiais existentes e as imensas massas de excluídos produzidos pela exploração capitalista. Podemos chamar esta parte da sociedade que, como diz Zizek, embora lhe seja inerente, não possui lugar adequado em sua totalidade, encarnando assim o sintoma que desmente a universalidade presente, a “parte de parte alguma”, de proletariado. São estes justamente aqueles que, por força do domínio da ideologia de mercado, são obrigados a vender-se como mercadoria para que possam participar das trocas no sistema capitalista.

Entretanto, na obra de Slavoj Zizek o entendimento do que seja o proletariado sofrerá certa mudança de perspectiva, resultado de sua análise das mudanças ocorridas nos últimos tempos, em relação aquela do marxismo clássico. Para Zizek, o proletariado não é mais somente aquela imagem já comum no imaginário popular do operário fabril, dos trabalhadores explorados pelo patrão ganancioso. Nos tempos presentes, quem ocupa este tipo de posição pode se considerar “privilegiado” por ser regularmente explorado e assim possuir certa comodidade em sua vida. A noção de proletariado deve ser radicalizada em nossos tempos, ela indica a posição daqueles totalmente alijados de suas necessidades mais básicas, literalmente abandonados a sua própria sorte, desprovidos das mínimas condições de existência digna como resultado do progressivo processo de mercantilização dos bens comuns da humanidade e das novas formas de apartheid e exclusões consequentes.

Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.41.

85

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É a referência às ‘áreas comuns’ que justifica o ressuscitamento da noção de comunismo: ela nos permite ver o ‘cerceamento’ progressivo das áreas comuns como um processo de proletarização do que, assim, são excluídos de sua própria substância. Sem dúvida não devemos abandonar a noção do proletariado nem a da posição proletária: ao contrário, a conjuntura atual nos compele a radicalizá-la a um nível existencial muito além da imaginação de Marx. Precisamos de uma noção mais radical de sujeito proletário, um sujeito reduzido ao ponto evanescente do cogito cartesiano.86

O proletariado está ligado em nossos dias com o progressivo “cerceamento das áreas comuns”, em diferentes níveis, desde produtos básicos, como alimentos, água e moradia, sua própria substância social e simbólica, como a propriedade intelectual e a privatização do conhecimento, e vê ameaçada até mesmo sua herança genética diante dos “progressos” obtidos nesta área, com as possibilidades abertas pela ciência de intervenção e mesmo alteração do genoma humano. Slavoj Zizek compara esta situação do proletariado com a formação da subjetividade na psicanálise lacaniana. Privado de sua própria substância, o proletariado se torna um sujeito pós-traumático, “barrado”, como diz Lacan, resultado do confronto com as ameaças criadas pelo avanço descontrolado do modo de produção capitalista. “Entretanto, devemos fazer uma pergunta ainda mais radical: como o surgimento deste sujeito indiferente se relaciona com o processo de ‘cercar’ as áreas comuns, o processo de proletarização daqueles que, com isso, são excluídos de sua própria substância?”87

As políticas humanistas que propõe algo como a ética multiculturalista da solidariedade, ou a necessidade de se estabelecer uma medida “equilibrada” para o capitalismo contemporâneo, o que Zizek chama de “capitalismo socialista”, além de prolongarem a doença, o que talvez seja pior do que ela mesma, deixam de enxergar justamente esta nova situação daqueles que são continuamente excluídos do espaço social. Sua completa falta de identidade, sua posição de dependência das decisões e tratativas tomadas pelo grande capital e seus governos, a completa “midiatização” de sua vida pela tecnologia, longe de transformá-lo em um “igual entre nós”, leva o indivíduo a experimentar o núcleo traumático da subjetividade, chamado pela psicanálise de pulsão de morte, e as tentativas de retorno há algum tipo de “sociedade orgânica” servem somente para mascarar as profundas transformações por que passa a humanidade no presente momento.

Nesse sentido exato, podemos aceitar a fórmula de que a humanidade passará/tem de passar à pós-humanidade – estar inserido num mundo simbólico é a definição de ser-humano. E nesse sentido também, a tecnologia é a promessa de libertação pelo terror. O sujeito que surge nessa e por essa experiência de terror, em última análise,

86 87

Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 83. Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2012, p. 219.

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é o próprio cogito, o abismo de negatividade autorreferencial que forma o âmago da subjetividade transcendental, o sujeito acéfalo da pulsão (de morte). É o sujeito propriamente inumano.88

O aumento exponencial das favelas em todo o mundo, as novas formas de apartheid, com os muros que procuram isolar nações e populações, bem como o racismo e o ódio ao estrangeiro são todas reações ao surgimento deste cogito proletário, daqueles que tem que buscar meios cada vez mais espúrios para sobreviver dentro da lógica de mercado que domina o globo. A política decai então para a polícia, com as massas exploradas e excluídas tendo de ser permanentemente controladas e monitoradas, desde o militarismo policialesco dos Estados contemporâneos até as intervenções “humanitárias” das grandes potências nas “áreas de conflito”. Novamente aqui se trata de uma falsa atividade, uma passagem ao ato que não consegue (e não quer) transformar as relações que sustentam a miséria de nossos tempos.

É a partir desta posição subjetiva do proletariado, de sua drástica situação, reflexo dos impasses e contradições que carreiam a proliferação do capitalismo, que podemos recuperar o terror igualitário como expressão de uma política transformadora que ultrapasse a lógica democrática do consenso e da coalizão. Em artigo publicado recentemente, Zizek explica como a onda de protestos que se espalha por todo o planeta demonstra que as instituições democráticas e estatais que temos hoje não serão suficientes para lidar com os problemas atuais que ameaçam a humanidade como um todo. E será que o mesmo já não se aplica ao Occupy Wall Street? Sob a profusão de (por vezes, confusas) declarações, o movimento Occupy sugere duas ideias básicas: i) o descontentamento com o capitalismo como sistema – o problema é o sistema capitalista em si, não a sua corrupção em particular –; e ii) a consciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidária representativa não é suficiente para combater os excessos capitalistas, ou seja, que a democracia tem de ser reinventada.89

O terror está na forma de inclusão dos excluídos do sistema no terreno político, na inquietação provocada pelos movimentos contestatórios que exigem mudanças e transformações nas relações sociais. Neste momento, a política deixa de ser a mera administração pacificada dos conflitos e o antagonismo surge enquanto tal, desestabilizando o poder estabelecido em nome daqueles que não possuem lugar adequado nas atuais estruturas da sociedade. “E, devemos ser claros nesta questão, a expressão política desse antagonismo radical, a forma como a pressão dos excluídos é experienciada dentro do espaço político estabelecido, sempre tem gosto de terror.”90 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 447. Artigo disponível na página http://outraspalavras.net/posts/zizek-a-caminho-de-uma-ruptura-global/. 90 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 425. 88 89

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O poder nunca pode ser exercido de uma forma “regular”, jamais pode ser completamente “normalizado”, ele é em si excessivo, tal como a vida do ser-humano nunca é uma vida normal, mas também um perturbador excesso de vida nominado pela psicanálise de pulsão de morte, a negatividade radical constituinte da subjetividade. As traumáticas experiências totalitárias do começo do século passado deram origem ao pragmatismo político neoliberal de nossos tempos, que mesmo diante da insuficiência latente do atual sistema de produção, não consegue pensar em novas formas de sociabilidade, pregando uma política de mordaça e difamação daqueles que ainda defendem a necessidade de transformação radical. Contra esta lógica de acomodação e ressentimento, cabe à esquerda novamente radicalizar o espaço político com o potencial emancipatório da Verdade e da justiça.

Ao contrário do que pensa a maioria conservadora da população, os totalitarismos não resultaram da imposição violenta da Verdade, mas, muito antes, da imposição violenta de um engodo, de um fetiche que permitiu que tais regimes continuassem sem que nada mudasse de verdade e o poder mantivesse seu status quo. A questão, portanto, não é entre o uso racional e legítimo do poder como forma de prevenir os regimes fundamentalistas totalitários, mas antes, como o excesso constitutivo do poder soberano será canalizado pelos seus agentes políticos para além da simples representação democrática?

Isso significa que a questão suprema do poder não é se ‘é democraticamente legitimado ou não’, mas: qual é o caráter específico (o ‘conteúdo social’) do ‘excesso totalitário’ que pertence ao poder soberano como tal, independentemente de seu caráter democrático ou não? É nesse nível que o conceito de ‘ditadura do proletariado funciona: nele, o ‘excesso totalitário’ de poder está do lado da ‘parte de parte alguma’, não do lado da ordem social hierárquica, para sermos claros, em última análise, o povo está no poder no sentido soberano total da palavra: em outras palavras, seus representantes não só ocupam temporariamente o lugar vazio do poder, como também, de maneira muito mais radical, eles ‘torcem’ para o lado deles o espaço da própria representação do Estado.91

Os conflitos e contradições resultantes da exploração capitalista não poderão ser resolvidos dentro do espaço que lhe é próprio, nem pelas instituições que lhe dão suporte. As novas políticas da esquerda terão que se arriscar novamente no desconhecido e pensar em formas alternativas de sociabilidade que ultrapassem a forma-mercadoria e, consequentemente, o modo capitalista de produção. Sendo assim, somente o comprometimento parcial e subjetivo com os excluídos da ordem global pode levar à criação de uma nova coletividade igualitária e à reinvenção do comunismo.

91

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 377.

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3.3 O se há de fazer

As novas ameaças

Slavoj Zizek é enfático em afirmar, o sistema capitalista aproxima-se de seu fim. Dizendo isto não quer dizer que sua superação ou transformação seja inexorável. Muito pelo contrário, as últimas duas décadas de neoliberalismo revelam as crescentes injustiças e as contradições do sistema de mercado neoliberal, de forma que podemos prever para as próximas décadas a intensificação dos conflitos sociais e o aumento das desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres. A tendência que se percebe na história atual é o aumento dos processos de exclusão e controle da população. A premissa subjacente deste livro é simples: o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus ‘quatro cavaleiros do apocalipse’ são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo das divisões e exclusões sociais.92

Estas são questões para as quais uma simples “reforma” parcial ou ajustamento político-jurídico não serão respostas suficientes frente aos problemas com que a atual sociedade irá se deparar. São problemas que efetivamente colocarão em xeque as próprias premissas e fundamentos do sistema de 92

Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 11.

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produção capitalista. “O que todas essas lutas têm em comum é a consciência do potencial destrutivo, que pode chegar à autoaniquilação da própria humanidade caso se dê rédeas à lógica capitalista de cercar e fechar essas áreas comuns.”93

Tais ameaças podem muito bem ser enfrentadas sem que tenhamos uma mudança verdadeira no interior da sociedade capitalista. No horizonte da atual sociedade capitalista podemos enxergar uma classe dominante abastada, com acesso aos mais diversos tipo de recursos e serviços, podendo até mesmo alterar sua constituição genética (para evitar doenças hereditárias, escolher as propriedades físicas e psicológicas de seus filhos, etc.), enquanto que para a maioria esmagadora da população mundial faltará os recursos mais básicos. Por isto, o antagonismo principal desta série é o dos incluídos e dos excluídos, entre a minúscula parcela da população detentora do capital e dos meios de produção frente a uma massa cada vez maior de indivíduos privados das mínimas condições de digna existência. Em outras palavras, na série dos quatro antagonismos, como já vimos, o antagonismo entre incluídos e excluídos é fundamental, é o ponto de referência dos outros: sem ele, todos os outros perdem a vertente subversiva: a ecologia se transforma em ‘problema de desenvolvimento sustentável’, a propriedade intelectual em ‘desafio jurídico complexo’, a biogenética em questão ‘ética’.94

Longe de apresentar um aumento da prosperidade e da igualdade, as recentes décadas de neoliberalismo levaram, ao contrário, há um acentuado aumento das divisões sociais. Cresce o abismo entre os grandes ricos e a parte explorada da população. Os gigantescos lucros dos bancos e das grandes empresas aumentam assustadoramente ano a ano, e sua influência e poderio ultrapassam todas as fronteiras nacionais e estabelecem a ditadura do mercado em cada vez mais áreas do globo. Assim, na série de antagonismos provocados pelo capitalismo, somente o antagonismo social entre os incluídos e os excluídos representa a dimensão propriamente política dos dilemas pelos quais passa a presente sociedade, a luta de classes no próprio âmago do social. Os antagonismos da sociedade capitalista e suas contradições oferecem tanto a oportunidade para novas tentativas de mudança e progresso como para o endurecimento ressentido e amedrontado dos setores mais conservadores da sociedade. Trata-se, portanto, de uma questão de justiça social.

Há outra diferença muito importante entre os três primeiros antagonismos e o quarto: os três primeiros dizem respeito, de fato, a questões ligadas à sobrevivência da humanidade da humanidade (econômica, antropológica e 93 94

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 424. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 425.

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até física), mas o quarto, em última análise, é uma questão de justiça. Se a humanidade não resolver a difícil situação ecológica, podemos todos morrer; mas podemos muito bem imaginar uma sociedade capaz de resolver os três primeiros antagonismos por meio de medidas autoritárias que não só mantenham, como fortaleçam as hierarquias, as divisões e as exclusões sociais.95

Devemos destacar entre estes antagonismos um de especial importância para o jurista, o da problemática da propriedade intelectual. Nele podemos observar mais uma vez a proximidade entre o direito atual e a forma-mercadoria. Com a progressiva mercantilização das relações sociais, a preocupação com a propriedade privada e sua proteção se tornam questões de grande relevância jurídica, cuja intenção é resguardar o direito ao lucro. Entretanto, a garantia dos direitos de propriedade intelectual e dos royalties deles resultantes vem se tornando uma tarefa praticamente impossível com a dinamização dos meios de comunicação em massa. “A inadequação da propriedade privada no caso da chamada ‘propriedade intelectual’. O principal antagonismo da nova indústria digital é o seguinte: como manter a forma de propriedade (privada) dentro da qual a lógica do lucro possa se manter (ver também o problema da Napster, a circulação livre de música)?”96

A propriedade intelectual é um fenômeno típico do pós-fordismo, como conceitua Joachim Hirsch, e se relaciona com a crescente contradição entre a produção social e apropriação privada dos lucros resultantes da circulação desta produção como mercadoria:

Uma forma, especificamente pós-fordista, da contradição entre a crescente socialização das forças produtivas e as suas apropriações privadas é resultado do aumento do significado do conhecimento produzido sistematicamente para o processo de reprodução econômica. A informação e o conhecimento são, em princípio, passíveis de multiplicação sem maiores custos e fundamentalmente se subtraem ‘a forma mercadoria. Daí resultam as políticas estatais que se voltam para o asseguramento dos direitos de propriedade intelectual: expansão da defesa de patentes e copyright, garantia da apropriação privada do conhecimento até agora livre, representando uma moderna e significativa forma de acumulação primitiva’.(Brand/Gorg, 2003, 52-ss, Gorz, 2004)97

A propriedade privada funciona aqui é vital para que o indivíduo possa obter lucros através da compra e venda de sua “propriedade intelectual”. A propriedade já não é mais a posse direta de um objeto físico, do qual tem o direito de se dispor e transacionar. O que assim se comercializa e se privatiza é a própria substância social, os meios de expressão da sociedade. Desta forma o fetiche da mercadoria chega Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 88 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 417. 97 Hirsch, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renavan, 2010, p. 190. 95 96

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ao seu auge. Não só quase tudo se transforma em mercadoria, como as próprias relações sociais são diretamente mercantilizadas. Em esferas como a internet, produção, troca e consumo são profundamente entrelaçados e até potencialmente identificados: meu produto é comunicado e consumido por outra pessoa de forma instantânea. Portanto, a noção clássica de Marx de fetichismo da mercadoria, em que as ‘relações entre pessoas’ assumem a forma de ‘relações entre coisa’, tem de ser radicalmente repensada: no ‘trabalho imaterial’, as relações entre as pessoas escondem-se menos ‘sob o verniz da objetividade e são elas mesmas o material de nossa exploração cotidiana’, de modo que não podemos falar de ‘reificação’ no sentido lukacsiano clássico. Longe de ser invisível, a relacionalidade social, em sua própria fluidez, é o próprio objeto de comércio e troca: no ‘capitalismo cultural’, não se vendem (nem se compram) mais objetos que ‘trazem’ experiências culturais ou afetivas, mas vendem-se (e compra-se) diretamente essas mesmas experiências.98

A relação jurídica contratual, pressuposta como entre indivíduos livres e iguais, é a expressão direta desta sociabilidade que pretende tão somente resguardar o ganho rápido e pessoal, tendo por base o intercâmbio mercantil e a acumulação privada. Uma das causas da quase unanimidade da ideologia neoliberal nos nossos tempos se encontra na propagação da realização pessoal como meta última da própria existência, realização esta que é sempre relacionada pelos capitalistas e seus ideólogos a ganhos individuais e posses materiais de produtos e marcas que dotam aqueles que os utilizam da patética distinção social proporcionada pelas insígnias do capital, ao demonstrarem o poder financeiro e econômico daqueles que os portam. A liberdade e a igualdade, essenciais para o mercado, o são ainda para a lógica de reprodução econômica, mas ao seu lado o fundamento da apreensão privada dos meios de produção ganha relevo. A propriedade privada como fundamento do direito ganha espaço e passa a constituir, ao lado da igualdade formal e da liberdade negocial, o corpo do direito privado. A produção capitalista não se assenta mais apenas no logro – comprar por menos e vender mais – mas sim, fundamentalmente, na exploração da mais-valia. A produção, e não a circulação, é que permite a plenitude da auto-reprodução do capital e a exponenciação da acumulação privada.99

As novas ameaças devem ser entendidas e enfrentadas não como falhas marginais ou desvios acidentais do sistema capitalista, mas problemas estruturais que revelam suas falhas e limites inerentes. Slavoj Zizek faz aqui uma comparação com a psicanálise, em que as aparentes falhas ou desvios do paciente (chistes, sonhos e compulsões) servem para demonstrar a verdade do aparelho psíquico do indivíduo, os momentos reprimidos e não resolvidos da constituição de sua subjetividade.

Recordemos a diferença entre as noções capitalistas padrão e marxista a respeito da crise econômica: do ponto de vista capitalista padrão, as crises são ‘falhas temporárias e corrigíveis’ do funcionamento do sistema, enquanto que do ponto de vista marxista são seus momentos de verdade, a ‘exceção’ que só então nos permite perceber a 98 99

Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 117. Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 30.

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verdade do sistema (da mesma maneira que, para Freud, os sonhos e sintomas não são enguiços secundários do aparelho psíquico, mas momentos pelos quais se pode discernir o funcionamento básico recalcado do aparelho psíquico).100

O sono ideológico das últimas décadas de neoliberalismo desvelaram as falhas estruturais do capitalismo e aprofundaram suas contradições. Neste ponto, não é possível nenhum tipo de reformismo gradual, que tenderá tão somente há promover novas formas de manter o mesmo. Precisamos antes de ações radicais que alcancem e transformem o íntimo da estrutura das relações sociais capitalistas.

100

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 386.

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O ato revolucionário

Ciente das mazelas e das injustiças latentes do sistema capitalista não é possível pensar em verdadeiras mudanças dentro do modo de produção atual. Somente com a transformação radical das relações sociais atuais e a consequente superação do capitalismo podemos pensar na construção de uma sociedade mais justa. Slavoj Zizek buscará então na noção de ato tal como elaborada por Lacan para a psicanálise um caminho para uma atuação revolucionária e verdadeiramente transformadora.

O capitalismo, enquanto o modo de produção dominante em nossos tempos, não é uma forma “natural”, muito menos necessária, de sociedade. Se conhecemos atualmente sua vertiginosa ascendente em todo o mundo, isto decorre muito mais da aceitação tácita ou explícita de seu arcabouço ideológico do que de alguma “necessidade histórica”, ou mesmo como parte de algum tipo de “progresso” ou evolução na humanidade. Por mais que tente se apresentar como racional e necessário, o capitalismo é sustentando por premissas e fundamentos datados historicamente, que nem sempre existiram e são perfeitamente passíveis de serem modificados, mas que devem ser polemizados e combatidos ativamente se quisermos pensar em uma nova forma de sociedade. Explica Christian Dunker acerca da noção de fantasia: “A noção de fantasia ideológica não alcança apenas o pano de fundo de uma espécie de falsa cobertura do real. A fantasia ideológica não se opõe à realidade, mas estrutura a própria realidade.”101 Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p.53. 101

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Para Zizek, a ideologia chega ao seu ponto máximo exatamente quando se apresenta como nãoideologia. O que ocorre é que, como revela a psicanálise, não existe realidade “objetiva”, toda realidade é sempre-já mediada “subjetivamente”, sustentada por determinações simbólicas produtos dos discursos dos homens. Devemos tomar cuidado para, com esta afirmação, não cairmos em relativismos sem fim, próprios do capitalismo multiculturalista. Muito antes de significar a “pluralidade de mundos” ou a “realidade de cada um”, o que esta afirmação pretende é acentuar a responsabilidade radical do sujeito com sua fala e atos, com a forma pela qual pensa e entende o mundo que a ele se apresenta. Por isto que a noção de ato é vital para Slavoj Zizek em seu projeto político. O ato, conforme extrai da teoria desenvolvida por Lacan, é justamente a ação do sujeito que reconfigura o campo inteiro daquilo que é possível e impossível dentro da fantasia que sustentam sua noção de “realidade”. O ato teria então sempre algo de retroativo, já que intervêm em seus próprios pressupostos, alterando as premissas que fundamentam a ação do sujeito.

Talvez essa seja a definição mais sucinta do que seja um ato autêntico: em nossa atividade ordinária, de fato só seguimos as coordenadas (fantasmático-virtuais) de nossa identidade, enquanto um ato propriamente dito é o paradoxo de um movimento real que muda (retroativamente) as próprias coordenadas ‘transcendentais’ virtuais do ser do agente, que não só muda a realidade do mundo, como também ‘desperta suas regiões infernais’.102

Existe um claro contraste entre o ato assim elaborado por Zizek com o processo decisório comumente pensado na maior parte da teoria jurídica contemporânea. Enquanto esta procura determinar, através da hermenêutica, da analogia, da interpretação extensiva e outros métodos lógicos e abstratos a “melhor norma aplicável” ao caso concreto dentro do universo jurídico, o ato propriamente dito colocaria em questão a própria forma direito como pressuposto da decisão, em sua específica constituição históricocultural. E, tendo em vista a ligação umbilical entre a legalidade e o capitalismo, um ato revolucionário deve pensar em formas de sociabilidade que ultrapassem a forma jurídica e outras mais que estruturam e possibilitam a exploração capitalista.

A revelação das “regiões infernais” deve possibilitar ao sujeito a capacidade de transformar as próprias condições de sua ação, possibilitando assim se libertar do senso comum e da repetição interminável do mesmo, abrindo espaço para o novo. Obviamente, a capacidade revolucionária do ato 102

Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 316.

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dependerá muito do engajamento efetivo do agente. Se por um lado a “travessia da fantasia” revela ao indivíduo as coordenadas a que estava sujeito sem saber, por outro também demonstra o Real do antagonismo social no seio do capitalismo, a lacuna e a contradição no interior da própria sociedade. Sem tal relação com o impossível do Real, sem essa erupção do Ato-evento, ficará o intelectual devorado pela lógica sistêmica. O ato crítico é político enquanto criador de espaço político em algum lugar onde antes só havia pseudo-política (parapolítica, metapolítica, etc.). A impossibilidade ligada ao Ato-evento exige do intelectual engajamento em termos lógicos e práticos, assumindo risco de um espaço ainda por constituir, para além da hipercolonização do mundo da vida.103

A assunção do risco inerente ao ato revolucionário concorre também para sua realização. Quando se está efetivamente engajado na luta pela transformação radical das relações sociais do capitalismo, as simples “reformas” ou “conciliações” servem somente para perpetuar as formas exploratórias atuais e pacificar as contradições através de métodos que se sustentam por cada vez menos tempo em meio às crises e conflitos próprios do capitalismo. O ato assim carece de apoio externo ou um fundamento que lhe garanta o resultado, somente sendo possível com a assunção total do sujeito de seu risco inerente. Como explica Zizek, a radicalidade da ética lacaniana encontra-se no reconhecimento pelo indivíduo de sua inteira responsabilidade pessoal. A falta de um Grande Outro que garanta o ato, que torne as coordenadas simbólicas da ação completamente discerníveis e transparentes é a própria condição de sua autonomia, colocando-o de frente com sua angústia existencial e com a abissal liberdade de (auto)determinar-se. A severidade da ética lacaniana é que ela exige que abdiquemos totalmente dessa referência – e, além disso, aposta que esse abdicar não só nos põe nas garras de um insegurança ética ou relativismo, ou até solapa as próprias bases da atividade ética, como a renúncia da garantia de algum grande Outro é a própria condição da ética verdadeiramente autônoma.104

Entretanto, e paradoxalmente, em nossos tempos de capitalismo tardio o grande Outro está mais presente do que nunca. Apesar do neoliberalismo pós-fordista atomizar e apartar cada vez mais os indivíduos dentro da sociedade, criando uma aparente autonomia dos indivíduos, a figura do grande Outro está presente no capitalismo nas instituições e relações sociais que garantem a contínua valorização do capital, como cita Alysson Leandro Mascaro em artigo sobre a obra de Slavoj Zizek: “A autoridade do capital, do Estado, do direito, da ordem e das condições morais conservadoras é o grande Outro de nosso

Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. Zizek Crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 112. 104 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 230. 103

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tempo.”105 Zizek aponta como a reificação das relações capitalistas e do mercado como horizontes necessários e intransponíveis acabam por determinar uma vida de resignação e conformismo. Aqui, o impasse é mais profundo do que parece (...): o problema é que o grande Outro continua a funcionar sob o disfarce de ‘segunda natureza’, de sistema social minimamente ‘reificado’ percebido como um Em-si. Cada indivíduo percebe o mercado como um sistema objetivo que confronta, embora não haja mercado ‘objetivo’, apenas a interação da multidão de indivíduos – de modo que, embora cada indivíduo saiba disso muito bem, o espectro do mercado ‘objetivo’ é a experiência de fato desse mesmo indivíduo, que determina seus atos e crenças. Não só o mercado, mas também toda a nossa vida social é determinada por mecanismos reificados. Os cientistas e tecnólogos, que mantêm vivo o progresso tecnológico-científico com sua atividade incessante, ainda assim vivenciam esse Progresso como restrição objetiva que determina e dirige suas vidas: essa restrição é percebida como ‘sistêmica’, ninguém é pessoalmente responsável por ela, todos apenas sente a necessidade de se adaptar a ela. E o mesmo serve para o capitalismo como tal: ninguém é responsável, todos estão presos na ânsia objetivada de competir e lucrar, de manter o fluxo de circulação do capital.106

O sistema capitalista e suas instituições exercem uma pressão constante no indivíduo para que este produza e consuma em tempo praticamente integral. De outro lado, a indústria cultural produz entretenimentos cada vez mais fúteis e incipientes, lançando novas “modas” e “novidades” diariamente, mantendo o trabalhador alienado de sua condição exploratória. Podemos dizer que a democracia liberal capitalista, em termos psicanalíticos, aproxima-se de uma “neurose”, no sentido em que Lacan a definia. A mídia prolifera uma série de pseudoeventos políticos, jurídicos, e sociais, cotidianamente veiculados pelos jornais impressos e televisivos e passivamente testemunhados por uma multidão sem nenhum senso crítico que não aqueles já ditados por esses próprios veículos. Novas formas de mercadoria que incitam e demarcam o desejo dos indivíduos são produzidas diariamente, em uma disputa frenética dos capitalistas por nichos de mercado. Como diz Lacan sobre a neurose, quanto mais faz, mais permanece o mesmo. Provoca-se e incita-se uma atividade incessante para que nada aconteça, e o capital prossiga seu curso triunfante.

Contra esta lógica autopropulsora e neurótica do capitalismo contemporâneo, Zizek elabora o nãoato, ou seja, o ato negativo, como essencial para uma atividade revolucionária que vise atacar os nós estruturais das injustiças de nossa sociedade. Diante desta instigação constante para a pura repetição do Mascaro, Alysson Leandro. Zizek e o pensamento crítico hoje. Artigo disponível em http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/zizek_e_o_pensamento_critico_hoje.pdf 106 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 447. 105

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mesmo, para a atividade lúdica e passiva, a reflexão sobre o ser pode aparecer como a forma mais eficaz de intervir na reprodução da sociabilidade capitalista e nas formas sociais que lhe sustentam. Em outras palavras, enquanto Lúkács et al, pretendem demonstrar como o pensamento é um momento ativo constituinte do ser social, as categorias fundamentais do materialismo dialético (como a negatividade da ‘pulsão de morte’) visam ao aspecto prático da própria passividade do pensamento: como é possível, para um ser vivo, romper/suspender o ciclo de reprodução da vida, instaurar o não ato, o recuo para a distância reflexiva em relação ao ser, como a mais radical das intervenções?107

O não ato como forma radical de intervenção não significa uma atitude “passiva” ou “alienada” por parte do sujeito que o levaria distanciar-se da “realidade”. Pelo contrário, ao ensejar a reflexão ativa, o ato enquanto negativo permiti que os pressupostos e as crenças desmentidas, ou seja, a parte do conhecimento subjetivo que restou objetivada ou “reificada” venha à luz, possibilitando assim uma atividade verdadeiramente transformadora. Diante da atividade alucinante do capitalismo e suas exigências de gozo, a intervenção reflexiva interrompe a falsa atividade e abre espaço para o Novo. Este, porém, somente será construído não só com a negação dos princípios e crenças da antiga ordem, mas com seu combate ativo e destrutivo. Slavoj Zizek explica como se dá o que chama de “política da subtração”: Então, quando a subtração é realmente criadora de um novo espaço? A única resposta adequada é: quando solapa as coordenadas do mesmo sistema do qual se subtrai, atacando o ponto de sua ‘torção sintomal’. Imaginemos o famoso castelo de cartas, ou uma pilha de peças de madeira que se apoiam uma nas outras de maneira tão complexa que se uma única carta ou peça for retirada – subtraída- o edifício todo desmorona: essa é a verdadeira arte da subtração.108

É a partir desta lógica da subtração, que não só nega como também ataca a situação em seu ponto fundamental, que podemos também reabilitar a violência revolucionária. Devemos ressaltar que a democracia neoliberal, apesar de muitos pensarem e acreditarem o contrário, é sustentada por uma violência estrutural e permanente, a violência própria do capitalismo. Não se trata, na maior parte do tempo, de violência física direta, mas da pressão constante da lógica de mercado que condena o indivíduo a vender sua força de trabalho para o capital ou a viver na mais profunda miséria, de forma que o que se sucede é mesmo uma exploração permanente do indivíduo pelas forças de mercado. Não podemos deixar de acusar do mais profundo cinismo todos aqueles que insistem em alguma pretensa harmonia na sociedade burguesa, mascarando os antagonismos e a exploração no seio de nossa sociedade. Contra esta violência permanente do atual sistema, a revolta violenta por parte dos explorados e dos excluídos não só é legítima, como se faz necessária. É vital compreender que não se trata aqui de nenhum tipo de apoio a 107 108

Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 18. Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 405.

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barbarismo ou lutas armadas, mas sim que, como anteriormente mencionado, o ato revolucionário, ao atacar os pressupostos e ideologias que até então sustentavam o sistema explorador, é em si um ato violento, pois age contra a tendência de seu tempo e visa à transformação dos próprios fundamentos da atual sociedade. Zizek conceitua esta violência do ato revolucionário como violência “divina”, pois advém diretamente da realização da justiça pelos explorados:

A ditadura do proletariado, portanto, é outro nome para a ‘violência divina’ benjaminiana que está fora da lei, é uma violência exercida como vingança/justiça brutal – mas por que ‘divina’? ‘Divina’ indica a dimensão do ‘inumano’; deve-se então postular uma dupla igualdade: violência divina = terror inumano = ditadura do proletariado. A ‘violência divina’ benjaminiana deveria ser concebida como divina no sentido exato do antigo mote latino vox Populi, vox dei: não no sentido perverso de que ‘agimos como meros instrumentos da Vontade do povo’, mas como pressuposto heroico da solidão de uma decisão soberana. É uma decisão (matar, arriscar ou perder a própria vida) tomada em absoluta solidão, sem nenhuma cobertura do grande Outro. Embora seja extramoral, não dá licença ao agente apenas para matar com algum tipo de inocência angelical. O mote da violência divina é fiat institia, pereat mundus: é pela justiça, ponto de não distinção entre justiça e vingança, que o ‘povo’ (a parte anônima de parte alguma) impõe seu terror e faz as outras pagarem o preço – o Juízo Final da longa história de opressão, exploração, sofrimento (...)109

Se o outro nome da violência divina é a ditadura do proletariado, é exatamente na luta pelo socialismo/comunismo que se encontram os germes e as sementes de uma transformação radical das relações sociais que permita a emancipação do homem. Trata-se então de pensar, e agir, a favor do social e do coletivo e contra o particular e individual. A transformação não ocorrerá necessariamente, a história não evolui em linha reta e segue lógicas inerentes e eternas, um pensamento, que segundo Zizek, levou Marx a acreditar muito inocentemente que as próprias contradições do capitalismo levariam inexoravelmente ao comunismo. Este é em verdade uma possibilidade, que somente poderá vir a ser tendo como meta sua concretização hoje, com todas as dificuldades e resistências que certamente se levantaram pelo caminho.

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Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 172.

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A hipótese comunista

Os recentes anos de neoliberalismo culminaram na crise financeira de 2008, quando as irresponsáveis especulações financeiras dos bancos norte-americanos causaram a perda de inúmeros empregos e abalaram a economia mundial. Muitos pensam e entendem, desde a modernidade, que a economia de mercado capitalista possui um “equilíbrio natural”, a famosa mão invisível, que as crises e contradições do capitalismo são questões marginais do sistema. Ao contrário, como Marx já observava, as crises de acumulação e regulação são inerentes às relações capitalistas, a crise e a desigualdade são condições mesmas para que o capitalismo promova e regule, em meio aos muitos conflitos que de si resultam, a estabilidade social necessária para a valorização do capital.

Tendo em vista as crescentes contradições oriundas do sistema capitalista, Slavoj Zizek irá trazer de volta à pauta uma ideia e um ideal que os neoliberais pensaram ter sepultado conjuntamente com a União Soviética e o fim da guerra fria, o comunismo. Obviamente, não se trata de uma simples repetição dos regimes “totalitários” ou das velhas lógicas de tomada do poder e do Estado. Trata-se antes de tentar buscar, na hipótese comunista, uma nova perspectiva para as questões que certamente a humanidade irá enfrentar, como a crise ecológica e o acirramento das exclusões sociais. “O mesmo se aplica ao comunismo; ao invés de fazer a pergunta óbvia, ‘A ideia de comunismo ainda é pertinente, ainda pode ser

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usada como ferramenta de análise e prática política’, devemos perguntar o oposto: ‘Como fica, hoje, nossa difícil situação do ponto de vista da ideia comunista?’”110

A questão é, portanto, mudar radicalmente o ponto de vista, ou seja, analisar os problemas de nossa atual sociedade fora dos já batidos e conhecidos argumentos neoliberais de sempre e usar o comunismo como medida e horizonte para o enfrentamento das contradições originárias do capitalismo. Faz-se necessário assim que conceitos considerados intocáveis para a maioria do mundo capitalista, como o mercado, a democracia, o Estado e a propriedade privada sejam analisados criticamente em sua interação com a totalidade da sociedade, como parte de um modo de produção que já se provou injusto, exploratório e insustentável.

A sociedade dos homens, desde os seus primórdios, sempre foi marcada pelo domínio de poucos e a dominação de muitos, pela violência dos mais fortes contra os mais fracos. Entretanto, em vários e sublimes momentos da história, as angústias e humilhações sofridas pelos excluídos culminaram em revoltas e levantes que se ergueram contra a tirania e o desmando de seu tempo, provocando naqueles que testemunhavam tais momentos a esperança de novos tempos.

Agora, mais do que nunca, é preciso insistir no que Badiou chama de ideia ‘eterna’ de comunismo ou ‘invariantes’ comunistas, os ‘quatro conceitos fundamentais’ que agem desde Platão, passam pelas revoltas milenares medievais e chegam ao jacobinismo, ao leninismo e ao maoísmo: justiça igualitária estrita, terror disciplinar, voluntarismo político e confiança no povo. Essa matriz não foi ‘superada’ por uma nova dinâmica pós-moderna, pós-industrial ou pós-sei-lá-o-quê. No entanto, até o momento histórico presente essa ideia eterna funcionou exatamente como ideia platônica que persistia, sempre retornando depois de cada derrota.111

O direito, durante toda a evolução histórica, nunca esteve ao lado dos oprimidos, muito pelo contrário, serviu sempre como instrumento de dominação e legitimação de uma classe sobre a outra. O direito, como hoje o conhecemos, foi forjado no escalpo da tormentosa revolução francesa, e tinha como principal referência o direito civil, do citoyen, em oposição à tirania do Estado absolutista. Este era o direito pensado pela e para a burguesia, que já galgava ao poder. O direito moderno que pretende então propugnar a igualdade jurídica e a liberdade formal de todos, tem como fundamento a racionalidade mercantil da burguesia. Tal pensamento persiste até os nossos tempos como horizonte último e sagrado dos juristas. A eloquência dos direitos humanos e a igualdade formal da lei mascaram com belas cores a exploração sistemática dos indivíduos pelo capitalismo. 110 111

Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 19. Zizek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 108.

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A lei garante um mundo cuja transação formalizada pela aparência de equivalência social e, ao sacralizar a igualdade legal, guarda nos porões escondidos da sociedade aquilo que o altar das leis não vê: a injustiça real, a coerção econômica, a desigualdade que se mantém e agrava. Ao olhar para o altar das leis, o caleidoscópio social se inebria daquilo que sob seus pés não é imediatamente percebido: a igualdade jurídica não é a igualdade real, a legalidade não é a justiça.112

No entanto, no famoso lema da revolução francesa “egalité, liberte, fraternité” ressoa também a “ideia eterna” do comunismo, o potencial emancipatório traído posteriormente pela ascensão da burguesia ao poder. A queda da monarquia e do Estado absolutista e a consequente execução do rei pareciam eventos impossíveis antes de seu acontecimento, um ato de loucura que atentava contra os desígnios do próprio Deus. Entretanto, quando verdadeiramente ocorreram, neste momento sublime e ao mesmo tempo aterrador, tudo parecia possível, e a fraternidade universal de todos os homens despontou, em meio à tirania e a opressão de um homem pelo outro, como possibilidade. A Revolução Francesa foi, para Kant, um sinal da historia no triplo sentido de um signum rememorativum, demonstrativum prognosticum. Os levantes egípcios também são um sinal de que as memórias das longas passadas de opressão autoritária e as lutas por sua abolição reverberam; um evento que agora demonstra a possibilidade de mudança; uma esperança para conquistas futuras. Quaisquer que sejam as dúvidas, medos e compromissos, por aquele instante de entusiasmo, cada um de nos foi livre e participou na liberdade universal da humanidade. Todo o ceticismo encenado atrás das portas, mesmo por muitos progressistas preocupados, se provou errado.113

As energias emancipatórias dos Eventos sublimes do passado continuam a ecoar como possibilidade para o futuro, ao mesmo tempo em que denunciam a injustiça do presente. Por isso, para Zizek, a repetição faz parte do surgimento do novo. Não a repetição de algum acontecimento ou ideia do passado, muito menos a repetição tautológica e conservadora da legalidade formalista, mas a repetição do âmago revolucionário que persegue a história da humanidade desde seu início, do potencial que foi reiteradamente traído e sufocado pelas forças conservadoras e reacionárias, mas que sempre voltou a ressoar nos corações daqueles que se levantaram e denunciaram as misérias de seu tempo. Recordemos o exemplo dado por Walter Benjamin: a Revolução de Outubro repetiu a Revolução Francesa, redimindo seu fracasso, desenterrando e repetindo o mesmo impulso. Já para Kierkegaard, repetição é ‘memória invertida’, um movimento para frente, a produção do Novo, e não a reprodução do velho. ‘Não há nada de novo sob o sol’ é o contraste mais forte com o movimento de repetição. Assim, não só a repetição é o (um dos modos de) surgimento do Novo, como o Novo só pode surgir pela repetição.114

Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 22. Artigo publicado na revista Margem Esquerda n.16 (Boitempo,2011). 114 Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 151. 112 113

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O “excesso” da revolução, ou seja, o lado perturbador e inquietante inerente a todo movimento comprometido com a transformação radical das relações sociais, não pode ser “normalizado”, de forma a termos uma revolução “paulatina” ou “gradual”. Tal como a psicanálise demonstra que o ser humano não é simplesmente um ser em harmonia com a natureza e o todo, mas um ser marcado por uma estranha dimensão chamada pulsão de morte, um excesso de vida que o compele para além do ciclo normal de reprodução biológica, os “excessos” das revoluções do passado voltam sempre a assombrar o presente como marcas de um potencial traído continuamente pela normalização e banalidade da vida cotidiana. Numa primeira abordagem, essa designação só pode parecer um oximoro: a orientação revolucionária para o futuro não é o oposto do apego melancólico ao passado? Mas e se o futuro ao qual se deve ser fiel for o futuro do próprio passado, em outras palavras, o potencial emancipatório que não se realizou por causa do fracasso das tentativas passadas, e por essa razão, continua a nos perseguir? Em seus irônicos comentários sobre a Revolução Francesa, Marx contrapõe o entusiasmo revolucionário ao efeito sóbrio da ‘manhã seguinte’: o resultado real da explosão revolucionária sublime, do Evento de liberdade, igualdade e fraternidade, é o universo utilitário/egoísta e mesquinho do cálculo de mercado. (...) Entretanto, não devemos simplificar Marx: a questão não é a extraída do senso comum de que a realidade vulgar do comércio é a ‘verdade’ do teatro revolucionário, ‘ao qual tudo realmente se resume’. Na explosão revolucionária como Evento, vemos brilhar outra dimensão da emancipação universal que é precisamente o excesso traído pela realidade de mercado que toma conta do ‘dia seguinte’; como tal, esse excesso não é simplesmente abolido, desprezado por ser irrelevante, mas é, por assim dizer, transposto para um estado virtual, continuando a assombrar o imaginário emancipatório como um sonho que aguarda para se realizar. O excesso de entusiasmo revolucionário sobre sua própria substância ou ‘base social real’ é, portanto, literalmente, o de um futuro do/no passado, um Evento espectral que aguarda sua encarnação apropriada. 115

Neste sentido, podemos encontrar entendimento parecido na análise que Alysson Mascaro faz da filosofia de Ernst Bloch. Ao apontar o ser-ainda-não como premissa de sua ontologia e da atividade transformadora, Ernst Bloch propõe também que as energias das lutas de transformação do passado ainda não se esgotaram, e, ao não lograrem encontrar êxito no presente, são carreadas ao futuro e impulsionam os desejos e ambições de um futuro mais justo. “Neste sentido, Bloch remete ao tema, que lhe é caro, da não-contemporaneidade. Os excedentes culturais não-cumpridos, arrastados para outras épocas posteriores, continuam a gerar esperanças que, mesmo não satisfeitas, gerarão outros desejos e um estado de luta pela transformação, não deixando esmorecer o sentido futuro dos impulsos humanos.” 116

Por isso, uma atividade revolucionária voltada para o futuro e assentada sobre a esperança são premissas de um filosofar que não é meramente retórico e que pretende ser efetivo e atento aos sofrimentos do presente. Durante toda a história da humanidade, não foram poucos os que reconheceram e denunciaram as desigualdades de seu tempo, e, tomando partido da Verdade, fizeram ecoar uma vez mais as vozes silentes dos explorados. Homens assim, que eventualmente surgem, e certamente serão Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 390. Mascaro, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 119.

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sempre possíveis, ao tomarem consciência da latente desigualdade do mundo e da necessidade da luta, são tomados por um entusiasmo e uma alegria próprios daqueles que, despertos e vivificados, veem em sua existência a oportunidade do Novo e da transformação.

Para estes que contemplam com olhar forte o horizonte, a história não é um processo “objetivo”, não segue leis próprias ou necessárias, naturais ou científicas, muito menos encontrou algum tipo de apogeu evolucionista no capitalismo e na democracia burguesa. As revoluções igualitárias e emancipatórias do passado foram momentos de ruptura que mudaram radicalmente as percepções e as ideias dos homens, revolveram os entulhos dos costumes e da complacência, desenterrando o potencial criador do homem. O futuro visado por estes levantes, ao não se concretizar, volta no presente, como as promessas não cumpridas de liberdade, igualdade e fraternidade. O que temos aqui não é o tipo de posição historicista/evolucionista que Badiou rejeita, mas algo muito mais radical: um vislumbre de que a própria realidade histórica não é uma ordem positiva, mas um ‘não todo’ que aponta para seu próprio futuro. É essa inclusão do futuro como lacuna na ordem presente que torna esta última ‘não todo’, ontologicamente incompleta, e explode o encerramento em si mesmo do processo historicista/evolucionário. Em resumo, é essa lacuna que nos torna capazes de distinguir do historicismo a historicidade propriamente dita. 117

A luta do presente, e que aponta para o futuro, é indubitavelmente a luta contra o capitalismo e pelo socialismo. As muitas contradições e conflitos que hoje assolam o mundo inteiro se devem principalmente à globalização da lógica mercantil e à internacionalização de um modo de produção baseado necessariamente na exploração de um homem pelo outro. A raiva do estrangeiro, a violência contra as minorias, sexuais ou raciais, o desprezo, a indiferença e a inveja com o próximo são o espelho de um mundo marcado pela concorrência desumana e desumanizante do mercado, uma sociedade dominada pela lógica da competição permanente e desconfiança recíproca. Contra esta lógica bárbara e opressora do capitalismo contemporâneo, o socialismo aposta na fraternidade e no amor universal como caminhos para a justiça.

Está em causa a humanidade. Fazer dela uma terra arrasada, onde só haja o mal – árabes, muçulmanos, comunistas, latino-americanos, índios, gays, negros, minorias, crentes de qualquer religião que não a sua, aidéticos, chineses, norte-coreanos e iraquianos (o ‘eixo do mal’ de Bush), russos e cubanos, judeus, pacifistas, deficientes físicos e mentais, gordos, feios, pobre, favelados, sem-terra, verdes, ativistas de direitos humanos, sindicalistas, nacionalistas e outros mais – e o bem seja o mercado. Ou, de outra maneira, apostar na tolerância, no amor, no respeito e na compreensão do diferente, apostar na justiça e na transformação econômica e social. A negação das possibilidades é a negação da esperança, é a negação das lutas por transformação. Está em causa o

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Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Ed. Boitempo, 2012, p. 356.

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fanatismo à ditadura do arbítrio do bem e do mal, ou então a felicidade e a justiça vislumbradas como possibilidade.118

A hipótese comunista surge então como horizonte de superação das agruras resultantes da dominação capitalista. Desde o lançamento do Manifesto Comunista de Marx e Engels, as muitas tentativas de sua concretização levaram às mais diversas e discrepantes experiências, algumas mais próximas de seus ideais, outras diametralmente opostas. Mas, como diz Slavoj Zizek, é preciso insistir no erro para assim aprender e, na próxima tentativa, errar melhor. A busca por uma sociedade igual e fraterna é uma luta milenar marcada por muitas derrotas e retrocessos que, no entanto, não retiram a importância das possibilidades abertas com muito custo durante a história. A defesa das causas perdidas é a defesa do imorredouro potencial emancipatório do homem, da Verdade e da justiça em meio às trevas do presente. O horizonte comunista é habitado por dois milênios de rebeliões igualitárias fracassadas, de Espártaco em diante – sim, todas foram causas perdidas, mas, como diz G.K. Chesterton em What´s Wrong with the World (O que está errado com o mundo), ‘as causas perdidas são exatamente aquelas que poderiam ter salvado o mundo’.119

Mascaro, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quartier Latin, 2008 p. 162. 119 Zizek, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 66. 118

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Conclusão

Slavoj Zizek é um filósofo que em sua teoria e pensamento combate com muita vivacidade e erudição o senso comum de nosso tempo, dentro e fora do ambiente acadêmico, revolvendo os porões da cultura na sociedade capitalista. Aproximando-se da cultura popular sem perder o cuidado teórico, é definitivamente um filósofo de grande engajamento político, preocupado com os impasses e angústias do mundo. Sua participação e presença nos debates políticos têm servido como um sopro de inspiração e energia nos movimentos sociais de todo o mundo, tão desacreditados desde a ascensão do neoliberalismo, fomentado a discussão e polemizando conceitos que pareciam intocáveis na atual sociabilidade capitalista, como a democracia e os direitos humanos. Em “Em defesa das causas perdidas” as medidas e critérios pelos quais o presente julga o passado e projeta o futuro são radicalmente repensados. A rápida refutação do passado totalitário acaba por mistificar as estruturas que hoje se apresentam na sociedade, como se fossem as formas últimas e definitivas da história, impedindo qualquer questionamento radical das bases da nova ordem capitalista. Também, a confiança que se dá às instituições políticas e econômicas do capitalismo serve mais para manter um otimismo inoperante e insípido, mesmo quando tais estruturam desfalecem diante dos olhos de todos com a intensificação das querelas em todo o mundo.

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Frente a tudo isto, a única esperança é o resgate, entre os escombros do passado e as penúrias do presente, dos movimentos emancipatórios que mudaram radicalmente a história e as relações de poder entre os indivíduos na sociedade, transformando o próprio eixo destas relações e o modo como eram estruturadas. A sociabilidade capitalista, enraizada na exploração, na desigualdade e no excesso, chegará nos anos vindouros em seu limite. O aumento das exclusões sociais, a questão ambiental e as disputas frenéticas por mercado são ameaças que somente poderão ser enfrentadas com o questionamento radical dos próprios fundamentos da atual sociedade. Neste ponto, a coragem para as grandes decisões coletivas será de extrema importância para que as forças políticas que emanam do povo interfiram diretamente nas atuais relações de poder e assim configurem um espaço público que vá para além do círculo monologante do Estado, encontrando assim caminhos para a atividade revolucionária e a transformação social.

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Bibliografia

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_____ Problemas no Paraíso: A caminho de uma ruptura global. Artigo disponível em http://outraspalavras.net/posts/zizek-a-caminho-de-uma-ruptura-global/.

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