Filosofia do Sujeito e o conto «Bartleby» de Herman Melville

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Ensaio
Filosofia do Sujeito e o conto «Bartleby» de Herman Melville
Paulo Figueiredo - 21/05/2012


Para falar de Bartleby e das aulas do seminário Filosofias do Sujeito inserido no Mestrado de Ciências da Comunicação da FCSH, proponho dividir o conto, ou a sua análise, em três partes:
1) A icónica frase "i would prefer not to", proferida pelo personagem Bartleby
2) A relação de Bartleby com o seu patrão
3) Bartleby como a personificação de um acto político
Terminarei analisando Bartleby do ponto de vista da ideia de Reconhecimento conforme trabalhado por Hegel e Ricoeur.
1) Deleuze diz que a fórmula da frase de Bartleby é agramatical, daí resultando uma palavra de ordem de enorme poder: "a fórmula desune as palavras e as coisas, as palavras e as acções mas também os actos linguísticos e as palavras: ela corta a linguagem de qualquer referência a si e ao outro." Quer o autor dizer que ao preferir não preferir, Bartleby apresenta-se como uma figura de inacção que age sobre o escritório e sobre as pessoas que nele trabalham. É uma inacção que é uma acção ao mesmo tempo. A expressão de Bartleby é neutra e não revela uma vontade expressa, é uma fuga à vontade porque Bartleby prefere não preferir. Não é uma afirmação ou uma negação, mas uma zona cinzenta do existir. Agamben fala em "nada como potência" ou "adynamia", Bartleby seria uma "desobra" ou "decriação". Um não fazer que é efectivo e actuante. Agamben utiliza a comparação que Aristóteles fez de noûs, com uma tábua de escrever sobre o qual nada ainda está escrito e que aguarda acção. A "fórmula mágica" como diz António Bento, adquire um outro significado ao conto de Melville e à frase de Bartleby se tivermos em conta o perspectivismo de Nietzsche e a ideia de que a linguagem é figurativa. As figuras estão implícitas na linguagem e o problema, segundo Nietzsche, seria quando não captamos essas figurações, o "como se " ou as metáforas da linguagem. Não só o conto permite um quase infinito número de interpretações diferentes, como é através dessa fórmula de inacção como potência que o próprio Melville consegue escrever o seu conto.
2) Como disse anteriormente Bartleby é uma figura de inacção que age sobre o escritório e sobre quem lá trabalha, principalmente sobre o seu patrão. Essa influência surge primeiramente através de uma progressiva ocupação do espaço (do espacinho atrás do biombo até ocupar o prédio inteiro) e depois através do contágio que a sua frase provoca em seu redor. Retomando Hegel e a discussão sobre o mestre e o escravo, podemos verificar aqui que o patrão é dominado pelo empregado através de um efeito viral. A inépcia de Bartleby obriga os outros a reagir, "é uma inacção que compele acção por parte dos outros" para além de ser um "despertador da consciência alheia" conforme nos diz António Bento. O patrão acaba assim por ser desarmado pela potência passiva de Bartleby invertendo de alguma forma a hierarquia vigente. Se no escravo é a acção que possibilita o reconhecimento pelo outro, já em Bartleby é a inacção que potencia o personagem e o coloca na posição de mestre virtual.
3) Comparado Bartleby com o cardeal Melville do filme "Habemus Papam" de Moretti, compreende-se que ambos encetam uma ruptura com o sistema e as suas normas. Melville (de Moretti) está no Vaticano que, perante a morte do Papa, procura um substituto tendo ele sido ensinado toda a vida para um dia poder vir a ser Papa. Porém, contra o esperado, ele rejeita esse papel e a sua acção suspende tudo à sua volta. Poder-se-ia dizer que a vida compele-o a rejeitar o lugar para poder regressar ao contacto com a vida. Bartleby também suspende tudo à sua volta com a sua frase, rejeitando também deste modo, o sistema instituído. Em ambos assumimos esta rejeição como um acto político. A diferença é que o contexto de Bartleby é o de Wall Street, do capitalismo, da produtividade e do processualismo; enquanto o do cardeal Melville é o sistema religioso. Bartleby rejeita o sistema em seu redor, mas este não é resgatado como o cardeal é. Bartleby é entregue ao abandono de um sistema que não o consegue decifrar. O cardeal possui algo que Bartleby aparenta não ter. O cardeal possui a ipseidade de que Ricoeur falava. A personalidade dele muda durante o filme, apesar da pessoa ser a mesma. Melville é um sujeito com temporalidade e um sujeito narrativo. Tem a capacidade de fazer escolhas, é "virado" para os outros e para as instituições. Bartleby é um ser "emsimesmado", refém da sua própria inacção e incapaz de fazer escolhas. Bartleby prefere sempre não preferir.
Conclusão, Bartleby e o Reconhecimento:
Melville escreveu um personagem com uma aura incógnita. Bartleby é um fantasma ou um holograma. Não possui uma biografia, aparece à porta do escritório sem um CV e a dada altura parece que não tem sequer um corpo físico, apesar da ocupação do espaço ser evidente. Perante família, Estado e sociedade, Bartleby nunca é reconhecido a não ser como copista (a partir de certa altura, nem isso) e por preferir não fazer seja o que for. Segundo Hegel, Homem é aquele que reconhece, é reconhecido e é reconhecido por si próprio, numa lógica de voz passiva em que a afirmação do sujeito não depende do cogito cartesiano "eu sou" ou do sujeito humilhado/ficcionado de Nietzsche, mas do reconhecimento. Hegel indica que se faltar um destes níveis de reconhecimento (Família, Estado e Sociedade), fica posta em causa a subjectividade do individuo. Bartleby, ao engrenar numa lógica de preferência (de não fazer) nunca optando verdadeiramente por nada e apenas repetindo a mesma frase, podemos discernir que não reconhece, não é reconhecido, nem se reconhece a si próprio. Coloca-se mesmo a dúvida se ele reconhece aquilo que lhe pedem para fazer. Na eventualidade de Bartleby reconhecer o sistema de Wall Street mas rejeitá-lo, ainda assim, o sistema não o reconhece a ele como elemento produtivo e "condena-o" à morte. Assim como o movimento dos Indignados rejeita a sistema economicista actual, este sistema não os reconhece como legítimos portadores de uma ideologia própria, apelidando-os de "okupas" e de não-produtivos, pondo-se inclusivamente em causa um direito constitucional como a greve, usando uma palavra de ordem próxima disto, "o que é preciso é que o país produza". Bartleby seria talvez um sujeito infinito no exercício da autonomia como diria Kant que faz o que prefere ou não prefere fazer. No entanto, Bartleby seria determinado pela exterioridade do mundo, pelo mundo empírico e pelos objectos. Enfim, finito pelo condicionamento teórico, mas infinito no seu horizonte de escolha. Concluíndo, podemos pensar o conto como uma fábula de reconhecimento: Bartleby busca o ser reconhecido pela sua lógica de preferência, mas isso nunca chega a acontecer (podemos questionar que é porque não busca o reconhecimento através do trabalho, como diria Hegel...). Bartleby leva-me a fazer a seguinte questão: o que acontecerá quando a Sociedade e o Estado deixarem de reconhecer o individuo a não ser numa lógica Wall streetiana, isto é, numa lógica meramente funcionalista?
Há dias assisti ao filme «Procurem Abrigo» de Jeff Nichols e o protagonista tinha o seu quê de Bartleby. Anunciava uma tempestade apocalíptica ao ponto de estado e sociedade deixarem de reconhecer nele um individuo produtivo. A esperança quedou-se na família que tal como o patrão de Bartleby fez, sentiram-se responsáveis morais por um messias que anuncia qualquer coisa de absurdo (no filme é o apocalipse, em Bartebly é preferir num mundo do obedecer). Tanto um como o outro seriam uma espécie de Noé, só que em vez de animais, levam uma crença ou uma ideologia como eles na arca, os destinos é que são paradoxalmente diferentes. Um é salvo pela família, o outro é abandonado pelo mundo.

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