Flor do deserto, mutilação genital feminina e direitos humanos

July 19, 2017 | Autor: R. Cerveira Citta... | Categoria: Direitos Humanos, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
Share Embed


Descrição do Produto

Flor do deserto, mutilação genital feminina e direitos humanos


Rodrigo Cerveira Cittadino




O filme Flor do deserto, dirigido por Sherry Hormann, conta a história
real de Waris Dirie (interpretada pela etíope Liya Kebede), somali nascida
numa tribo de nômades que veio a tornar-se uma famosa supermodelo, após uma
trajetória repleta de percalços. Baseado no livro autobiográfico escrito
por Dirie, o enredo desenvolve-se a partir da perspectiva da protagonista.
Marcada aos cinco anos de idade pela chaga física e psicológica decorrente
do corte genital, Waris foge de sua comunidade aos treze, ao descobrir
estar prometida em casamento a um homem bem mais velho. Depois da penosa
travessia pelo deserto, a jovem chega a Mogadíscio, capital da Somália,
onde passa a viver com a avó. Mais tarde parte para Londres, e aí perambula
entre múltiplos empregos, até que o fotógrafo Terry Donaldson (Timothy
Spall) a repara, abrindo caminho para que ela decidisse ingressar na
carreira de modelo. A escolha não a isenta de preocupações, pois não só a
polícia migratória inglesa a persegue, mas tampouco a abandona o trauma e
as dores da operação/violência que sofrera quando criança. Direta ou
indiretamente, o filme aborda uma miríade de temas – tais como o debate
sobre o que significa ser mulher, entre outros –, porém o foco sem dúvida
recai sobre a questão da mutilação genital. Pelo prisma dos Direitos
Humanos, a temática bem se enquadra no clássico confronto entre
universalismo e relativismo cultural.
A discussão acerca da própria nomenclatura da prática revela matizes
ora universalistas, ora relativistas, ora ecléticas. De início, empregou-se
a expressão técnica "circuncisão feminina". Todavia, a patente similaridade
entre essa terminologia e a da "circuncisão masculina" suscitou críticas,
pois ensejava que se traçassem paralelos entre o que se considerava uma
clara violação de direitos humanos, de um lado, e um procedimento médico
provedor de benefícios higiênicos e à saúde, de outro. Em especial no meio
acadêmico, é evidente que controvérsias remanescem[1]. Não obstante, em
1970 cunhou-se a locução "mutilação genital" (female genital mutilation –
FGM), que em 1990 seria adotada pelo Comitê Interafricano sobre Práticas
Tradicionais Prejudiciais à Saúde de Mulheres e Crianças, de Adis Abeba.
Subsequentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU) acolheria a
expressão em vários de seus documentos, por recomendação da Organização
Mundial da Saúde (OMS). Tratar o ato em tela como "mutilação" permite que
se saliente sua gravidade, imputando-lhe uma conotação negativa, de
violência ou agressão, e legitimando sua condenação. Em 1999, em
contrapartida, a utilização do termo "corte" (female genital cutting –
FGC), mais neutro, veio a ser defendida pelo Relator Especial da ONU sobre
Práticas Tradicionais, que chamou a atenção para o risco de se demonizar
culturas, religiões e comunidades ao privilegiar-se a terminologia FGM
(UNICEF, 2005, p. 1-2). Por mostrar-se concernido com semelhante
problemática, parece-nos que o relator das Nações Unidas enunciou, em
alguma medida, o espírito da doutrina do relativismo cultural.
A Recomendação Geral n. 14 do Comitê sobre a Eliminação da
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que explicitamente se remete aos
artigos 10 e 12 da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (1979), fala em "circuncisão feminina"
(CEDAW, 2011). Ao longo deste trabalho, usaremos como intercambiáveis as
locuções "circuncisão feminina", "corte genital" e "mutilação genital", e
assim procederemos mais por motivos estilísticos – arranjar sinônimos – do
que por qualquer afinidade normativa.
Antes de prosseguirmos, convém estabelecermos certas definições.
Conforme apontamos acima, nosso enfoque primará pelo embate entre
universalismo e relativismo cultural. Contudo, posto que serão os insights
de Jack Donnelly que nos fornecerão embasamento teórico, talvez "embate"
não consista na melhor palavra. Para além da mera dicotomia envolvendo o
pensamento universalista e o relativista, o autor encara-os com extremos de
um continuum, cujo centro apresenta uma área cinzenta que admite uma
miríade de meios-termos. Se o relativismo radical sustenta que a cultura é
a única fonte de normas, o universalismo radical postula a validade
universal e incontestável de regras morais e direitos. Embora conceba
outras posturas, Donnelly advoga pelo universalismo robusto (strong
universalism), que reconhece a existência de um núcleo duro de direitos
humanos universais, sujeitos, no entanto, a variações de acordo com os
contextos locais, no que tange a sua interpretação e às formas de
implementação (Donnelly, 2003, p. 89-90).
Em outra obra, International Human Rights (2006), o autor enumera três
fundamentos para seu universalismo, ao passo que rejeita explicações de
teor histórico-antropológico ou ontológico (p. 39-48). O primeiro argumento
é o da universalidade funcional: os direitos humanos representam, por
enquanto, a resposta mais efetiva às ameaças que mercados capitalistas e
Estados soberanos – modelos que se difundiram mundo afora – impõem à
dignidade humana (Donnelly, 2006, p. 43). Ora, no caso estudado, as
pressões à integridade de Waris não advêm de fenômenos modernos, mas, ao
contrário, de costumes (tidos como) tradicionais. O segundo fundamento
refere-se à universalidade legal atribuída à Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH). Ainda que verdadeira, a alegação complica-se
quando aplicada à situação da mutilação genital na Somália. O compromisso
do governo e instituições sólidas constituem fatores essenciais à
efetividade dos direitos humanos, entretanto o Estado somali vem
experimentando desde 1991 uma guerra civil intermitente. Além disso,
Mogadíscio não participa da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher de 1979 (UNTC, 2011). Como terceiro
baluarte ao universalismo, Donnelly cita um profundo consenso internacional
quanto ao conteúdo da Declaração Universal, que "largely reflects its cross-
cultural substantive attractions. People, when given a chance, usually (in
the contemporary world) choose human rights, irrespective of region,
religion or culture." (Donnelly, 2006, p. 47) Veremos a seguir que nem
sempre, particularmente em comunidades demasiado fechadas em si mesmas, tal
qual a tribo de Waris, a opção pelos direitos humanos – isto é, a opção em
prol da extinção da prática da circuncisão feminina – é assim tão cabal
quanto o autor propõe.
A despeito de tomarmos essas precauções, concordamos com Donnelly em
muitos pontos. Todavia, não cremos que pura e simplesmente abraçar o
universalismo robusto resolva o dilema que o filme Flor do deserto ostenta.
Isso porque não conseguimos entrever nenhuma interpretação que, buscando
ajustar os direitos humanos às demandas culturais locais – de sorte a, por
exemplo, justificar o corte genital –, não chegue a desnaturá-los por
completo. "[N]ot all 'interpretations' are equally plausible or
defensible." (Donnelly, 2003, p. 96) Ademais, nem sequer cabe aqui sugerir
que há um choque entre dois ou mais direitos humanos, entre, digamos, a
equidade de gênero e a liberdade religiosa – e note-se que a prevalência
desta consagra, por vezes, um argumento a favor da circuncisão masculina –,
pois nenhuma religião prescreve (nem como recomendável, nem como
obrigatória) a circuncisão feminina, embora não raramente os praticantes a
compreendea nesses termos (Althaus, 1997; WHO, 2010).
Estamos cientes dos vícios inerentes à assunção de uma posição
categórica. Ao agirmos assim, talvez acabemos por julgar o Outro com base
em nossos pré-conceitos e preconceitos, e talvez involuntária e
implicitamente ergamos uma hierarquia "civilizado x não-civilizado". Por
outro lado, pautar-nos por um distanciamento crítico exacerbado, apesar de
consignar uma exigência importante ao intelectual, pode desembocar, no
limite, em irresponsabilidade, em renúncia a nossos valores morais. Por
conseguinte, defendemos: a mutilação genital não é justificável, pois viola
direitos humanos – o direito à igualdade de gênero (arts. 2º e 3º da DUDH)
e direitos da criança[2], já que a grande maioria das circuncisões se dá em
meninas e jovens com menos de 18 anos.
Conforme Donnelly (2003, p. 84) esclarece:


"Our problems arise, it seems to me, because we face competing
institutions. We want to recognize the importance of traditional
values and institutions as well as the rights of modern nations,
states, communities, and individuals to choose their own
destiny"


De fato, tradição consiste numa das principais razões[3] por trás da
prática do corte genital. E se no caso em tela temos de defrontar uma
escolha entre direitos humanos e tradição, ficamos com os direitos humanos.
Reconhecemos que diferentes culturas devem ser respeitadas. Afinal, dado
que os símbolos, hábitos e regras que compõem uma cultura provêm de
apropriações seletivas de um passado e um presente em que não vigoram
consensos (Donnelly, 2003, p. 102), ela é, em última instância, expressão
da autonomia de seus membros. Qualquer cultura deve ser pensada menos como
um todo homogêneo e estático, e mais como um processo sempre inacabado. Se
uma tradição reflete a autonomia daqueles que a selecionaram, determinadas
tradições podem oprimir as parcelas da comunidade que não tiveram voz no
momento da seleção, e não têm voz para mudar o status quo desigual em que
vivem. "[T]he existence of a given custom does not mean that the custom is
either adaptive, optimal or consented to by a majority of its adherents."
(Zechenter, 1997, apud Donnelly, 2003, p. 102) Por si só, a tradição não se
autolegitima.
Isso em teoria. Na prática a força da tradição não deve ser ignorada,
pois promove pressões bastante tangíveis sobre os indivíduos de uma
sociedade[4]. Se uma criança não é capaz (nem lhe é dada a chance) de
escolher se quer ou não passar pela experiência do corte genital, sua mãe
tampouco é plenamente autônoma quando a submete à mutilação. Salvo exceções
muito específicas, uma mãe jamais permitiria que sua filha fosse sujeita a
uma operação tão nefastamente cruel e dolorosa; se o faz, é porque ou não
percebe como violento o procedimento, ou o encara como necessário e,
destarte, o tolera. "Because of their lack of choice and the powerful
influence of tradition, many girls accept circumcision as a necessary, and
even natural, part of life..." (Althaus, 1997) É por isso que a afirmação
de Donnelly – de que, se tivessem a oportunidade de optar entre direitos
humanos ou mutilação, as pessoas definitivamente optariam pelos direitos
humanos – deve ser lida com cautela. Bem assim a estratégia mencionada por
Rhoda Howard (apud Donnelly, 2003, p. 105), de modificar a legislação
nacional de modo a admitir que as mulheres rejeitem ("opt out") práticas
tradicionais.
Donnelly (2003, p. 13) registra que uma das possíveis fontes de
direitos humanos corresponde às necessidades ("human needs"). Costas
Douzinas (2000) aparenta trilhar caminho semelhante (entre seus vários
caminhos e assuntos), quando, ao analisar Hobbes, traça para os direitos
humanos um fundamento na "legalização do desejo". Tendo em consideração
essas leituras, pode-se especular que, se uma mulher imersa numa comunidade
que tradicionalmente realiza o corte genital não quer extirpá-lo, talvez
ela assim pense porque não se sente violada, porque não dispõe do desejo de
não sofrer a circuncisão. Ou talvez ela apenas não saiba que não precisa
ser mutilada, como Waris quando descobre que sua colega londrina não fora
operada – e logo em seguida lamenta ter sido forçada ao corte. A personagem
Waris (e provavelmente a Waris real) teria escolhido os direitos humanos,
se a chance tivesse-lhe sido oferecida em tempo.
Outras mulheres, entretanto, talvez respondam igualmente à egípcia
citada em artigo da Anistia Internacional, ao falar a respeito de suas
filhas: "Of course I shall have them circumcised exactly as their parents,
grandparents and sisters were circumcised. This is our custom" (Amnesty
International, 1997). Diante desses casos, não há muito a fazer senão
educar, instruir, esclarecer, mudar a mentalidade. Sim, isso soa bastante
como "missão civilizadora", parece odioso, e sem dúvida críticas pós-
colonialistas razoáveis bem teriam cabimento. Não obstante, deve-se levar a
cabo tal empreitada? Nós acreditamos que sim, e por duas razões. A
primeira: a maneira como tem ocorrido a implementação de ações em prol da
transformação não é impositiva, conforme se depreende do que está
prescrito, por exemplo, no relatório da UNICEF a respeito da circuncisão
feminina, no item Changing the social convention (2005, p. 23 e seguintes).
A segunda: a mutilação contribui para reproduzir uma hierarquia artificial
e perniciosa entre o homem e a mulher e, além disso, de acordo com a OMS,
ela traz "no health benefits, only harm" (WHO, 2010).
































Referências bibliográficas


ABU-SAHLIEH. Sami A. Aldeeb. To mutilate in the name of Jehovah or
Allah:
legitimization of male and female circumcision. Medicine and Law, v. 13, n.
7-8, p. 575-622, jul. 1994. Disponível em:
. Acesso em: 31 de maio
2011.


ALTHAUS, Frances A.. Female circumcision: rite of passage or violation
of rights?. International Family Planning Perspectives (Guttmacher
Institute), v. 23, n. 3, set. 1997. Disponível em:
. Acesso em: 31 de
maio 2011.


AMNESTY INTERNATIONAL. What is female genital mutilation?. Library,
out. 1997. Disponível em:
. Acesso em: 31 de maio 2011.


CEDAW. General Recommendation No. 14 (ninth session, 1990). General
recommendations made by the Committee on the Elimination of Discrimination
against Women, 2011. Disponível em:
. Acesso em: 31 de maio 2011.


DONNELLY, Jack. International human rights. Third Edition. Boulder,
CO: Westview Press, 2006.


_____. Universal human rights in theory and practice. New York:
Cornell University Press, 2003.


DOUZINAS, Costas. The end of human rights. Oxford: Hart Publishing,
2000.


PIOVESAN, Flávia. Código de Direito Internacional dos Direitos Humanos
anotado. São Paulo, DPJ Editora, 2008.


UNICEF. Changing a harmful social convention: female genital
mutilation/cutting. UNICEF Innocenti Research Centre. Florence (Italy):
Giuntina, 2005. Disponível em:
. Acesso em: 31 de maio 2011.


UNTC. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination
against Women. United Nations Treaty Collection, 2011. Disponível em:
. Acesso em: 31 de maio 2011.


WHO. Female genital mutilation. Media centre, Fact sheet N° 241, fev.
2010. Disponível em:
. Acesso em:
31 de maio 2011.
-----------------------
[1] Guidicelli-Delage comenta que o interesse em se diferenciar a
circuncisão feminina da masculina reside eminentemente em razões culturais,
referentes às nossas concepções sobre o que é normal e o que é estranho:
"If a family from Mali may in France have a son circumcised, but may not
have a daughter excised, it is because male circumcision belongs to a
cultural order which is more or less ours, male circumcision belongs to
this Judeo-Christian ideology which is the melting pot of our culture and
this ideology does not know excision and never did" (apud Abu-Sahlieh,
1994). Por sua vez, Abu-Sahlieh ressalta que não se pode medir o que é mais
ou menos violento ao corpo, se a circuncisão feminina ou a masculina:
"Juridical logic cannot acknowledge the distinction between male and female
circumcision, both being the mutilation of healthy organs and consequently
damaging the physical integrity of the child…" (1994).

[2] Consoante o disposto no art. 19 da Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989): "... para proteger a criança contra todas as formas de
violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente (...) enquanto
estiver sob a guarda dos pais..." (Piovesan, 2008, p. 338). Invocamos ainda
o Comentário Geral n. 2, parágrafo 5, do Comitê sobre os Direitos da
Criança: "... o estágio de desenvolvimento da criança a torna
particularmente vulnerável às violações de direitos humanos; suas opiniões
são raramente levadas em conta..." (Piovesan, 2008, p. 314). Quanto à
Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher de 1979, decidimos não recorrer a ela expressamente porque a Somália
(caso em questão) dela não faz parte; valem ser mencionados, não obstante,
seus arts. 12 (correlato à Recomendação Geral n. 14 do CEDAW) e 5º: "Os
Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas para: a) modificar os
padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a
alcançar a eliminação de preconceitos e práticas consuetudinárias e de
qualquer outra índole que estejam baseados na ideia de inferioridade ou
superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens
e mulheres." (Piovesan, 2008, p. 229).
[3] Outros motivos podem ser arrolados: preservação da virgindade antes do
casamento, garantia da fidelidade após o casamento, culto a um ideal de
feminilidade associado à "docilidade" e "submissão", crenças sobre higiene
e noções de estética (uma mulher não circuncidada é tida como "impura"),
ideia de que aumenta o prazer sexual do homem e previne a mortalidade de
recém-nascidos, etc. (Amnesty International, 1997; Althaus, 1997).
[4] Acrescentem-se ainda como fatores limitadores do livre-arbítrio: a
rejeição social às "impuras" não circuncidadas e o fato de que, em alguns
grupos, a circuncisão é pré-requisito para uma mulher se casar – o que, por
sua vez, é pré-requisito para a própria sobrevivência em sociedades
patriarcais (Amnesty International, 1997).
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.