FLORES, Alfredo de J. Paradoxos modernos do conceito jurídico de pessoa. In: MONTIEL ÁLVAREZ, A.; TEIXEIRA, A.; FELONIUK, W. Perspectivas do discurso jurídico: novos desafios culturais do século XXI, 2017

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ORGANIZAÇÃO Alejandro Montiel Alvarez, Anderson Vichinkeski Teixeira Wagner Silveira Feloniuk

Perspectivas do Discurso Jurídico: novos desafios culturais do século XXI PORTO ALEGRE 2017

Perspectivas do Discurso Jurídico: Novos desafios culturais do século XXI Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Perspectivas do discurso jurídico : novos desafios culturais do século XXI / Alejandro Montiel Alvarez, Anderson Vichinkeski Teixeira e Wagner Silveira Feloniuk (organizadores). Porto Alegre: DM, 2017. Vários autores, 504 p. Bibliografia ISBN: 978-85-68497-06-7 1. Direito : coletânea 2. Hermenêutica 3. Multiculturalismo I. Alvarez, Alejandro Montiel. II. Feloniuk, Wagner Silveira. III. Teixeira, Anderson Vichinkeski CDU- 34 Bibliotecária Responsável Cristiani Kafski da Silva - CRB 10/1711

CONSELHO EDITORIAL

Apoio da Fapergs e da Capes Programa Editoração e Publicação de Obras Científicas - FAPERGS 229/2015 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão do autor.

Editora DM R. Jandyr Maya Faillace, 365 Porto Alegre RS CEP 91240-010l: (51) 3347-5666 [email protected] 4

Perspectivas do Discurso Jurídico - novos desafios culturais do século XXI

PARADOXOS MODERNOS DO CONCEITO JU Alfredo de J. Flores* Sumário: Introdução. 1 As raízes filosóficas do dedutivismo iluminista. 2 O dedutivismo bioético atual. 3 O pragmatismo no debate jurídico anglo-americano. Referências.

O

Introdução

ânea, em que a experiência jurídica se centra no monopólio estatal de construção legislativa e também de aplicação da lei nos casos controversos apresentados aos juízes, seguramente é reflexo dessa expestinta nessa época das codificações, quando comparamos com os períodos eval que teve aplicação durante o Antigo Regime. O processo histórico de leitura da prática jurídica dirigida pela técnica jurídica típica da codificação e pela influência das doutrinas modernas explica a razão de que o conceito de algo de origem jusnaturalista (com sua legitimação numa ordem externa à dos limites do discurso liberal que se consolida em finais do séc. XVIII, é reinterpretada a termo o substrato para os usos deste conceito jurídico nos debates dos últimos tempos. Assim, aqui se apresenta a senda a partir da qual se desenvolve esentão num sistema, qual seja o do direito codificado, superando assim os usos praxista e de direito comum que existiam anteriormente desse termo, na verdade se torna um conceito restrito, de onde se chega à atual não-reconhecimento a determinados seres humanos desta condição de adoxo enquanto se entenda sonalida *

Doutor em Direito e Filosofia (Universitat de València, Espanha). Professor Associado de Metodologia Jurídica (Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito (UFRGS). Asociación . o de Investió-

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o resultado, tal adjetivação a determinados entes, não abarcando a totalicategorias teórico-jurídicas desde a codificação moderna. dos anseios teoréticos desde a Escola de Direito natural racional. E aí se encontra o principal sinal de singularidade que existe no c oque somente podem ser compreendidas desde o discurso liberal que é triunfante depois da Revolução francesa. A bem da verdade, a forma de fazer referência ssona, uma vez que se manifestava no particular, ou seja, segundo os estamentos e as condições dos estatutos pessoais de então. Com isso, esta análise aponta a que o paradigma do pensamento contemporâneo sobre esse tema o qual ainda tem força hoje em dia na área de bioética é a opinião de que importa defender limites ao reconhecimento da personalidade a todo e qualquer ser humano, o que configura o que o professor Jesús Ballesteros cham nnão se configura de uma única maneira; assim, poderemos observar na sequência como o dedutivismo de raiz iluminista e o pragmatismo representaram nos dois últimos séculos um ambiente de construção desta oentendemos ser muito problemática por afirmar categoricamente 1 , isto é, que nem todo ser 1 As raízes filosóficas do dedutivismo iluminista Em primeiro lugar, é impor

o-

temática bioética resultariam em posições ambivalentes com referência ao ser humano, porque são uma construção teórica dos tempos da bio1

Com isso, o prof. Jesús Ballesteros recor A não-identificação entre ser humano e pessoa na hora do reconhecimento dos direitos procede, portanto, da noção estóica e liberal de BALLESTEROS, Jesús. A constituição da imagem atual do homem. Tradução de Albenir I. Querubini Gonçalves. Revisão da tradução de Alfredo de J. Flores. Revista Direito & Justiça, PUC-RS, v. 38, n. 01, 2012, p. 23 por isso, nesse imaginário liberal, não há possibilidade de que

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tecnologia. Neste sentido, o citado discurso seria impensável em outras épocas2, mas não se deve esquecer que seu fundamento seria o ideário da Modernidade, sobretudo a partir da postura de René Descartes 3 ao distina mente consciente, e iiNa verdade, esta visão foi aprofundada a partir da diferenciação que se estabeleceu no pensamento do filósofo inglês John Locke entre 4

consciente e livre, capaz de dispor e, por isso, de ser proprietário. Pode-se afirmar que a citada separação se deu no contexto de construção da concepção liberal-moderna de homem, em que não se vislumbram de forma clara as repercussões no plano político-jurídico. Com efeito, isso somente se notaria no final do séc. XVIII, quando se consolidam as posições ligadas ao pensamento jusnaturalista de matiz racionalista. Por outro lado, é necessário mencionar ainda a visão do filósofo escocês David Hume, que justamente defendia em suas obras uma visão 5 ao estabelecer a unidade de consciência como 2

GOSTINO

rivelato un fallimento il tent modernità ? Perché la pretesa del Bioetica. Torino: G. Giappichelli Editore, 1996. p. 6). 3 Assim, afirma R. DESCARTES probantes more geometrico dispo Meditationes de prima Philosophia in quibus Dei existentia, et animæ à corpore distinctio, demonstrantur substantiæ, quæ esse possunt una absque aliâ, realiter distinguuntur (...). Atqui mens & corpus sunt substantiæ (...), quæ una absque aliâ esse possunt (ut mox probantum est). Ergo mens & corpus realiter distinguuntur (DESCARTES, René. . tome VII. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1973. p. 170). Do mesmo modo, logo no texto de tais Meditationes, na Meditatio Secunda cogitans. Quid est hoc ? Nempe dubitans, intelligens, affirmans, negans, volens, nolens, ibidem. p. 28). 4 Nesse sentido, já havia anotado J. LOCKE ehends all sorts of identity, or will determine it in every case; but to conceive and judge of it aright, we must consider what idea the word it is applied to stands for : it being one thing to be the same substance, another the same man, and a third the same person, if person, man, and substance An essay concerning human understanding. vol. I. New York: Dover Publications, 1959. p. 445). 5 Assim, explicita D. HUME are contrary to that very experience, which is pleaded for them, nor have we any idea of self,

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característica necessária para poder reconhecer a identidade pessoal. Sendo assim, o autor defende a visão de que a pessoa se manifesta em seu caráter anímico a partir do conjunto de várias impressões e ideias, de imaginação, a responsável por ordenar as citadas impressões e ideias 6. Dessa forma, a perspectiva de tal filósofo se converteu em mais uma voz em defesa desse reducionismo, sendo claramente uma explicação enquadrada no estilo dedutivista ilustrado, que serviria de embasamento posteAgora, o ponto crucial de consolidação da visão da Modernidade foi a disposição estabelecida pelo principal filósofo alemão, Immanuel Kant7, que distingue três maneiras de disposição da espécie humana, quais sejam predominam respectivamente o caráter de vivente, racional e responsável no ser humano. Como consequência, o filósofo alemão estabeleceu que a óser um ente racional que também seria responsável. Isso justificaria sua autonomia pela capacidade de estipular suas próprias leis, mas também sintetizaria um fundamento teórico para o se converterá depois nessa bioéticas. Por outro lado, é uma obviedade que o filósofo alemão não

for clear and intelligible. It must be some one impression, that gives rise to every real idea. But self or person is not any one impression, but that to which our several impressions and ideas are sup A treatise of human nature. Baltimore: Penguin Books, 1969. p. 299). 6 Ademais, acrescenta HUME thought or imagination, and as it regards our passions or the concern we take in ourselves. The first is our present subject; and to explain it perfectly we must take the matter pretty deep, and account for that identity, which we atribute to plants and animals; there being a great analogy betwixt it, and t ibidem. p. 301). 7 Deste modo, deve-se lembrar que I. KANT propôs três disposições na espécie humana, a A religião nos limites da simples razão Klassen, als Elemente der Bestimmung des Menschen, bringen : 1. Die Anlage für die Thierheit des Menschen, als eines lebenden; 2. Für die Menschheit desselben, als eines lebenden und zugleich vernünftigen; 3. Für seine Persönlichkeit, als eines vernünftigen und zugleich der KANT, Immanuel. Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (2. Aufl. 1794). In: . Band VI. Berlin: Georg Reimer, 1914. p. 26. Por outro lado, vale recordar ainda o que havia declarado o autor com Crítica da razão pura Identität seiner selbst in verschiedenen Zeiten bewußt ist, ist so fer KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft (1. Aufl. 1781). In: . Band IV. Berlin: Georg Reimer, 1911. p. 227.

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poderia ser responsabilizado por propagar ideias de tal natureza em seu contexto8; entretanto, as linhas bioéticas mais atuais utilizam o pensamento de Kant como fundamento de suas posições reducionistas. 2 O dedutivismo bioético atual Com isso, notautoconsciente e de escolher, como sublinhou em seu momento o então propagador oficial dessa posição, H. T. Engelhardt, no âmbito bioético, de onde se pode deduzir que alguns seres humanos não viriam a cumprir o não restando a eles outra udado de opinião posteriormente, naquele momento não enquadraria mental profundo e os indivíduos em coma, pois, segundo o citado autor, estes não poderiam refletir e, em consequência, não poderiam participar a instância de debate das questões vitais 9 . Nesse caso, tal postura extremada denota certa arbitrariedade, diríamos no limite da irrazoabilidade, pois defenderia uma incapacidade do homem de perceber a realidade em vista de que se submeteria a um padrão reducionista de administração de interesses da vida humana numa sociedade liberal que se consolida política e economicamente. A julgar por tais considerações, é possível constatar que os partidários desse -se de um dedutivismo, 8

Bem recorda Laura PALAZZANI negando la fundamentación ontológica al concepto (con la nota crítica a la metafísica y a la sustancialidad del alma y del sujeto, reduciendo a este último sólo a pensamiento), recupera y valora el significado ético y jurídico (la persona es fin, no medio, tiene « dignidad » y no tiene « (PALAZZANI, Laura. Significados del concepto filosófico de persona y sus implicaciones en el debate bioético y biojurídico actual sobre el estatuto del embrión humano. In: AAVV. Identidad y estatuto del embrión humano. Madrid: Eiunsa, 2000. p. 59-78, esp. p. 6465). 9 Afirmava H. ENGELHARDT -conscious, rational, and concerned with worthiness of blame and praise. The possibility of such entities grounds the possibility of the moral community. It offers us a way of reflecting on the rightness and wrongness of actions and the worthiness or unworthiness of actors. On the other hand, not all humans are persons. Not all humans are self-conscious, rational, and able to conceive of the possibility of blaming and praising. Fetuses, infants, the profoundly mentally retarded, and the hopelessly comatose provide examples of human nonpersons. Such entities are members of the human species. They do not in and of themselves have standing in the moral community. They cannot blame or praise or be worthy of blame or praise. They are not ENGELHARDT, Hugo Tristam. The foundations of bioethics. New York: Oxford University Press, 1986, p. 107).

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especialmente quando se trata do caso do citado autor, que se vincula -se afirmar que isso configura a consolidação da visão de mundo liberal sobre o homem10, estando imbuída de um forte caráter teorético. Por isso, quando para a avaliação do problema da condição jurídica do nascituro, ou então de algum dos outros seres humanos que estão em situação de vulnerabilidade, estão empregando uma perspectiva tipicamente moderna que parte de uma configuração teórica com pretensão de converter-se na única leitura que seria legítima da realidade de onde se pode notar que se nega totalmente a compreensão da ordem natural das coisas que advinha da tradição do pensamento ocidental. ilizam argumentos ainda mais extremados, como P. Singer; este autor defende que a condição moral do feto deveria ser comparada à condição de determinados animais, de maneira especial, os mais desenvolvidos, pois, desse modo, pode-se chegar à conclusão de que o feto não seria uma menta que a existência do feto não teria valor intrínseco, quando se compara a outros animais, e, em vista disso, o critério moral de apreciação da morte do feto por meio de um aborto provocado11 não poderia ser igual ao que que fosse morta por homicídio 12. Não 10

A visão dedutivista que apresentava ENGELHARDT pode ser observada quando este declara

as determined, caused to do the things they do, while on the other hand conceiving of themselves and other persons as moral entities, worthy of blame and praise and therefore free. It is important to realize that Kant is not advancing a metaphysical proposition. He is rather indicating two major and inescapable domains of human reasoning and experience. Our very notion of ourselves as self-conscious, rational entities requires us to treat ourselves as moral agents, as persons, and as knowers. As a consequence, persons stand out as possessing a special importance for moral discussions, for it is such entities who have rights to forbearance and who may not be used without their permission. This moral concern, it must be stressed, focuses not on humans but on persons op. cit. p. 106). 11 Nesse sentido, declara P. SINGER no greater value than the life of a nonhuman animal at a similar level of rationality, selfconsciousness, awareness, capacity to feel, etc. Since no fetus is a person, no fetus has the same claim to life as a person. We have yet to considerer at what point the fetus is likely to become capable of feeling pain. For now it will be enough to say that until that capacity exists, SINGER, Peter. Practical Ethics. 2nd ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 151. 12 Segundo BALLESTEROS, há resquícios do dualismo cartesiano no pensamento bioético Exigencias de la

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muito longe de tal visão, seria possível perceber nos autores que defenderiam tais ideias que se chegaria à situação de apregoar-se a possibilidade 13 , e isso estaria justificafalam os epígonos desse ideário, isso seria ilícito em virtude da capacidade Partindo da simples observação dessas ideias, constata-se que se enquadram no contexto filosófico anglo-saxônico que é fundado no utilitarismo, a base de regulação das relações desse âmbito. Destarte, o fundador de tal ideário, o filósofo inglês J. Bentham, representaria o fundamento último dessa posição no contexto anglo-saxônico, pois, além de absorsa14 . Nesse caso, resulta claro que, desde a vis a partir do fato de que apresenta a possibilidade de sofrer 15, bem ao estilo dignidad humana en biojurídica. Revista Internazionale di Filosofia del Diritto, serie V, anno LXXIX, n. 2, apr-giu 2002, p. 177-208, esp. p. 178). 13 Assim, explica SINGER and so on of a fetal Homo sapiens surpasses that of a cow or pig; but it does not follow that the fetus has a stronger claim to life. There is no rule that says that a potential X has the same a potential X´ to ´A has the rights of an X´, we should not accept that a potential person should have the rights of a person, unless we can be given some specific reason why this should hold op. cit. p. 153). 14 Explica J. BENTHAM em sua Das leis em geral rvient power over such persons as may chance to be circumstanced in a manner to impede the exercise of the principal one. This application of power over persons must be explained in its turn as well as any other: but as this is but one among a great variety of applications and modifications of which that branch of power is susceptible, it will first be proper to give a general explanation of the whole together. To understand the nature and possible modifications of that sort of fictitious entity which is called a power over persons it will be necessary to make a distinction between the corporeal or purely passive faculties of man and his mental or active faculties. By the first I mean those which matter: by the second I mean those which are common to him with other sentient beings only, and which either belong to or constitute the mind. By the first he is assimilated to the legal class of things : it is by (BENTHAM, Jeremy. Of laws in general. London: University of London The Athlone Press, 1970. p. 258). 15 Nesse caso, importa recordar o que haveria de argumentar BENTHAM -grown horse, or dog, is beyond comparison a more rational, as well as a more conversible animal than an infant of a day, or a week, or even a month, old. But suppose the case were otherwise, what would it avail ? The question is not, Can they reason ? nor Can they talk ? but, Can they suffer An introduction to the principles of morals and legislation. London: Mews Gatf, MDCCLXXXIX. p. cccix).

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utilitarista do contexto; desde essa percepção, fica facilmente tranquilo para deduzir boa parte das atuais visões reducionistas que compreendem o ser humano como imagem dos animais, aqui no sentido de que os instintos são a base para a atuação racional. 3 O pragmatismo no debate jurídico anglo-americano De fato, desde o já comentado contexto do dedutivismo bioético anglo-saxônico, talvez não se possa aplicar um critério de razoabilidade âmbito, pois as limitações teóricas são contrárias às antigas perspectivas aristotélicas da prudência, do governo racional dos sentidos. Agora, essa situação não se restringe à filosofia, nem mesmo dentro do ambiente anglo-saxão; na verdade, influi igualmente no critério legislativo do sistema deste modo, observando a obra de W. Blackstone, um dos mais reconhecidos constitucionalistas ingleses, vê-se que se demonstrou partidário dessa visão que dominava tal contexto, pois reconhecia os direitos velmente haveria de influir na legislação inglesa da época, como também repercutiria nos Estados Unidos em razão de sua autoridade doutrinária. Em tal senda, o constitucionalista defendeu que os direitos absolutos do homem deveriam ter uma referência à capacidade de saber o que seria o bem e o mal 16 para si mesmo, em que o poder de escolher tal medida se manifesta no mais desejável, segundo a liberdade natural. Dessa forma, na doutrina jurídica anglo-saxônica, que hoje em dia cada vez mais define o discurso do status do nascituro e de outros seres em vulnerabilidade, há ainda a rna. Tal tradição consuetudinária de construção narrativa dos significados para a comunidade jurídica anglo-saxônica estipulou também uma noção mais representativo seria R. Dworkin. Não por acaso, o citado filósofo

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Por isso, anota W. BLACKSTONE endowed with discernment to know good from evil, and with power of choosing those measures which appear to him to be most desirable, are usually summed up in one general appellation, and denominated the natural liberty of mankind. This natural liberty consists properly in a power of acting as one thinks fit, without any restraint or control, unless by the law of nature : being a right inherent in us by birth, and one of the gifts of God to man at his BLACKSTONE, William. Commenst taries on the Laws of England. 1 Book. Oxford: Clarendon Press, MDCCLXV. p. 121 (ed. facsimile. vol. 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1979).

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Estados Unidos17; e, por essa razão, não seria possível garantir peremptoriamente ditos direitos fundamentais ao nascituro (e, diríamos, também não aos demais vulneráveis, por extensão), ainda que fosse possível uma consideração por parte dos Estados federados americanos de que o citado ente tivesse alguns privilégios no âmbito jurídico. Ainda que se cogite de tal consideração, entendia o autor que isso não passava de uma declaração limitada que não poderia ter repercussão na federação, sendo também uma ficção18 que se atribua personalidade como sucede a uma corporação. De qualquer maneira, essa consideração de pessoas, e disso resultaria o possível conflito de direitos com os demais cidadãos. Nesse caso, fala o autor norte-americano que há um dilema somente resolvido pela Constituição do país, na qual, em sua opinião, seria impossível aos Estados federados definir novas pessoas na população constitucional, porque isso gera conflito no conjunto de direitos dos cidadãos, ademais de desobedecer ao ditame da Constituição nacional. Na verdade, Dworkin sabia que a determinação de um status jurídico para o feto na Constituição americana haveria de repercutir na legislação restante do país, porém a julgar pela jurisprudência constitucional estabelecida pela Suprema Corte, isso não era mais possível, pois com o famoso caso Roe v. Wade de 1973 ficou estabelecida a via para poder fazer legalmente o aborto no país. Ou seja, antes a qual se estabeleceria a partir de determinados critérios considerados -se dizer que seria possível fazer um aborto, exterminando esse feto, sem nenhum obstáculo, pois bastaria para tanto o

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Em razão disso, argumenta R. DWORKIN s not declare a fetus to be a constitutional person. Now we must ask whether the Constitution leaves each state free to decide, if it wishes, that a fetus has the legal status of a person within its borders. Once again, we must take care not to become confused by the ambiguities in the Life s dominion. New York: Vintage Books, 1994. p. 113). 18 Afirma DWORKIN utional difficulties than declaring, as every state has, that corporations are legal persons that enjoy many of the rights real people do, including the right to own property and to sue. Declaring corporations persons is a kind of shorthand for describing a complex network of rights and duties, and so long as states do not use the shorthand to curtail or diminish constitutional rights, there can be no constitutional objection. But the suggestion that the Constitution allows states to bestow personhood on fetuses assumes more than this benign use of the language of personhood. It assumes that a state can curtail constitutional rights by adding new persons to the constitutional population, to the list of those whose constitutional rights are competitive with one another. The constitutional rights any citizen has are of course very much affected by who or what else is also deemed to have constitutional rights, because their ibidem. p. 113).

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enquadramento jurídico que existiria no ordenamento estado-unidense19, segundo o qual a Suprema Corte americana havia solenemente declarado em tal caso. Ademais, tal situação definida pela Suprema Corte teria legitimidade, isso em sua opinião, porque não existiria o poder constitucional20 por parte dos Estados federados, no sentido de poder definir que o feto podeimpossibilidade de garantir os direitos desse nascituro ante os demais concidadãos norte-americanos, em razão da lacuna que se apresentaria no texto constitucional. Em outros termos, tal visão de Dworkin pode soar a necessidade de obediência ao pacto social, a um reconhecimento consensual na lei constitucional do país; com isso, nega tanto a simples observação da realidade concreta da relevância social do nascituro como nega em nome de um postulado filosófico-político as atuais pesquisas científicas que mostram a complexidade da vida humana já desde o ventre materno. Conclusão A breve alusão a autores e passagens que ilustram o processo histórico em que se afirmam os reducionismos do dedutivismo e do pragmatismo dentro do direito ocidental poderia não dar conta, como de fato não dá, de todo o debate a respeito do reconhecimento de um status jurídico aos vulneráveis, como o nascituro. Entretanto, serve a reconstituição dos passos e autores para identificar as fórmulas que são adotadas nos debates, de modo especial, os debates acadêmicos. Nesse caso, a vitória da 19

Assevera DWORKIN ng has these implications, we must reject it. States have no power to overrule the national constitutional arrangement, and if a fetus is not part of the constitutional population under that arrangement, states cannot make it one. The supremacy clause of the Constitution declares that the Constitution is the highest law of the land. If that means anything, it means that the rights the national Constitution guarantees individual American citizens cannot be repealed by the legislatures of the several states, either directly, by flat repealing legislation, or indirectly, by ibidem. p. 114). 20 Nesse sentido, declara DWORKIN right to life, then of course it could constitutionally prohibit abortion even in that case, just as gnancy after which they are viable, and Roe v. Wade permits states to forbid abortion after that point, anyway. An American state, then, has no constitutional power to declare a fetus a ibidem. p. 114-115).

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matriz liberal no Ocidente serve para chancelar uma nova configuração de ideias em que, no momento de sistematizar os conceitos que serão utilizados na codificação e na teoria do Direito, alguns reducionismos tenham penetração nos imaginários a ponto de restringir o uso do conceito de Assim sendo, a lógica do otimismo doutrinário liberal busca apreidade contrário, coloca-os num limbo teórico que seguramente facilitará práticas sociais contrárias a estes. E esse é o fundamento da retórica do aborto e da eutanásia uma visão reducionista que parte de algum postulado do Iluminismo para que se chegue à liberalização de tais práticas atentatórias à vida dos vulneráveis.

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Referências BALLESTEROS, Jesús. A constituição da imagem atual do homem. Tradução de Albenir I. Querubini Gonçalves. Revisão da tradução de Alfredo de J. Flores. Revista Direito & Justiça, PUC-RS, v. 38, n. 01, p. 22-29, 2012. BALLESTEROS, Jesús. Exigencias de la dignidad humana en biojurídica. Revista Internazionale di Filosofia del Diritto, serie V, anno LXXIX, n. 2, p. 177 208, apr giu 2002. BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and legislation. London: Mews Gatf, MDCCLXXXIX. BENTHAM, Jeremy. Of laws in general. London: University of London Press, 1970.

The Athlone

BLACKSTONE, William. Commentaries on the Laws of England. 1st Book. Oxford: Clarendon Press, MDCCLXV (ed. fac-simile. vol. 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1979). GOSTINO, Francesco. Bioetica. Torino: G. Giappichelli Editore, 1996. DESCARTES, René. 1973.

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