Flores do Desengano: poética do poder na América portuguesa. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013. Apresentação e Introdução.

August 7, 2017 | Autor: Guilherme Luz | Categoria: Retórica, Poética, Literatura Colonial, América Portuguesa
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Guilherme Amaral Luz

Flores do desengano: poética do poder na América portuguesa (sécs. XVI-XVIII).

APRESENTAÇÃO DE LUÍS FELIPE SILVÉRIO LIMA E

INTRODUÇÃO: FLORES IMPERIAIS

SÃO PAULO: EDITORA FAP-UNIFESP, 2013.

APRESENTAÇÃO Luís Filipe Silvério Lima

Poucos trabalhos na historiografia sobre a América Portuguesa têm se usado das fontes ditas literárias para além de um caráter complementar e de apoio aos outros documentos (administrativos, inquisitoriais, etc.). Por vezes, aquelas servem somente para ilustrar, exemplificar ou ainda tirar delas boas epígrafes para capítulos. Se os romances, as novelas, os contos, as peças, os poemas, enfim, a Literatura entraram definitivamente, em suas variadas dimensões, para as pesquisas dos historiadores brasileiros sobre os séculos XIX e XX, o mesmo ainda não se deu para as Letras “coloniais”. Estas, mais amplas, englobavam ainda sermões, crônicas, relatos, entre outras práticas letradas de um período que não pautava seus discursos pela diferenciação entre ficção e veracidade. Este é, portanto, um campo vasto a explorar. Ou melhor, a retomar pois como bem sinaliza Guilherme Amaral Luz, ao dedicar seu trabalho a Sérgio Buarque de Holanda (acompanhado de Capistrano de Abreu), houve historiadores que já o fizeram. E é este caminho – e esta genealogia – , em diálogo pertinente com a historiografia sobre o Brasil colonial, que nos faz percorrer Luz ao longo dos oito ensaios deste livro. Menos que textos de fronteira entre os estudos literários e os históricos, os capítulos pelos quais caminhamos partem de problemas postos – e aqui está um dos méritos do livro – na produção historiográfica recente específica sobre os séculos XVI, XVII e XVIII mas sem perder de vista a discussão mais ampla trazida pelos chamados clássicos. Para além disso, ao optar por aproximar esses pontos opostos – clássicos e produção recente – de modo crítico e problematizado, supera uma dicotomia recorrente nas últimas décadas entre a defesa arraigada de marcos e conceitos estabelecidos em

meados do século passado, e a necessidade reiterada de afirmar a obsolescência por si só das discussões mais antigas. Em outras palavras, Luz mostra que o tratar detido das representações e das práticas letradas pode ser uma opção para contornar oposições fundadas, por vezes, mais na disputa por espaços acadêmicos do que propriamente pautadas por problemas de interpretação (sempre verossímeis como nos lembra o autor, e portanto provisórios enquanto efeitos discursivos elas próprios) do passado. Cada capítulo, ou ensaio como prefere Luz, debruça-se em uma ou duas obras centrais da produção letrada da época (de Gandavo a Antonil) e, por meio de uma análise detida e profunda, aponta os elementos organizadores das práticas discursivas como forma de construção dos lugares de poder. Ao utilizar, desse modo, fontes que chamaríamos hoje de “literárias” para uma densa interpretação histórica, Luz não só se posiciona numa renovação dos estudos historiográficos que têm pensado na Literatura, mas o faz com extrema propriedade, superando uma suposta exterioridade ao “fato” (e, por vezes, às fontes) que o termo “literário” carrega pela qual se dissocia a construção discursiva, os repertórios empregados, os efeitos gerados (e buscados) na audiência, e as práticas sociais. Os oito ensaios estudam práticas letradas, mais do que literatura como fonte. Ao optar por esta senda, não foge do debate historiográfico sobre a formação e manutenção do poder na América Portuguesa, muito pelo contrário, enfrenta-o, dispondo os argumentos e recursos necessários de modo, dir-se-ia nos seiscentos, discreto e agudo. Para tanto, opera a partir do lugar da concórdia, conceito que, segundo Luz, organizava as práticas da época. Concórdia esta que, menos do que mostrar a inexistência de conflitos, era o meio pelo qual tentava-se dar conta deles, organizando – e mantendo, com violência, se necessário – de modo hierárquico e desigual a sociedade. Concórdia que se supunha poder conter, em sua construção discursiva, os contrários, porque na desarmonia dos opostos (gentios, cristãos; escravos, senhores; etíopes, portugueses; mulheres, homens) se fundava e levantava, equitativa e distintamente, o Império Português. Concórdia que tinha como fiel da balança o poder

real e seus representantes, distribuindo-se as partes em relação a eles e entre si. Concórdia que era traduzida nos sermões de Vieira, na Prosopopeia de Bento Teixeira, no poema heroico de Anchieta, e ao ser assim transladada refundava em palavra o mesmo princípio ordenador e o fazia repercutir, por voz e pena, não somente como mero discurso mas como uma ação no interior desses mesmos domínios ultramarinos. Menos do que restrito a efeitos e ornatos, resultavam em convencimento e mobilização dos afetos e humores de audiências, pensando-se as letras “coloniais” (ou “imperiais”?) como um agir concreto no espaço do Império. Concórdia que, de modo distributivo, organiza própria e apropriadamente as flores – de princípio dispostas e colhidas ao sabor dos percalços de pesquisa – deste livro, desenganando o argumento daquele que se aproxima delas esperando ensaios reunidos para avolumar produção. Se hoje as condições para a feitura do trabalho acadêmico – como nos adverte o autor com certo humor (melancólico) talvez – não permitiram a redação de uma obra unívoca tal qual (supostamente) alguns clássicos atualmente combatidos, os ensaios aqui se conversam para além da mesma temática. Há praticamente uma unidade de ação entre eles, convincente e plausível, que nos leva de página em página em uma leitura agradável apesar de matérias espinhosas e longínquas, como se tornaram a oratória sacra, a poética das epopeias e dos versos heroicos. Reside ai outro mérito do trabalho. Permitir aos leitores de hoje aproximarem-se das ruínas de um mundo passado, que precisam, como fragmentos, ser significadas por lentes próprias e alheias ao(s) seu(s) tempo(s) – nas duas pontas , hoje e ontem. Nesse jogo alternado entre focar e desfocar, entre perto e longe, produz-se um efeito de compreensão possível sobre aquilo que nos é hoje tão distante – apesar de o reclamarmos como “nosso” passado e “nos” dizendo respeito e “nos” explicando. Pensar essas poéticas, aqui apresentadas em flores, vai além de desvendar um passado comum que nos fale; faz refletir sobre a própria criação (histórica e historiográfica) desse passado colonial, e de como o olhamos e nele nos espelhamos. Porém, menos do que reflexo, (ante)vemos uma invenção (ou várias), não no sentido

de criação original, mas de aplicação de artes que operam lugares, preceitos, geram efeitos, edificam “palácios da memória” os quais formam um sentido imperial. É preciso pensá-las para entender as formas – e práticas – de soberania deste Império em suas partes americanas. É a isto que estas flores nos convidam. Pensá-las de um modo, se não definitivo, pois assim não o pretende – pelo contrário, sempre anunciando-o, modestamente, como provisório –, mas que impressiona como leitura precisa, arguta e refletida, que não deixa de considerar e operar os elementos mais pertinentes e adequados para as possíveis compreensões das fontes/flores. Neste sentido, temos aqui, nestas páginas, um palácio, não só na planta, mas fundado e levantado em pedras. Oito. Colocadas uma em cima da outra com rigor, precisão e criatividade. Resta-nos agora segui-las, uma a uma, e ver o que o horizonte, lá do alto, do cimo delas, nos mostra.

Lisboa, 29 de junho de 2011.

INTRODUÇÃO FLORES IMPERIAIS É preciso se parecer, em méritos, com um rei porque a verdadeira soberania está na virtude. (Gracián, Baltazar. A arte da prudência, 1647.)

Flos – “flor” em latim – possui diversas conotações para além do sentido literal, tais como: momento, embora vigoroso, passageiro e fugaz da vida, “a flor da idade”; vigor, brilho, felicidade; o(s) melhor(es), o(s) excelente(s), “a flor da nobreza” e, ainda, tecnicamente, pode significar, em Retórica, as figuras de ornato, componentes da elocutio. No vocabulário português de Rafael Bluteau, editado no século XVIII, a palavra flor recebe um verbete relativamente longo, em que se destacam muitos desses sentidos. Em química, por exemplo, o letrado esclarece que flor “é a matéria mais pura, sublimada”. Por outro lado, citando passagem de Santo Isidoro, Bluteau enuncia uma sentença segundo a qual flores dicti sunt quasi fluores, aludindo, por metáfora, ao caráter passageiro de suas formosura e vida (BLUTEAU, R., 1712-1728. p. 141-142.). A tensão entre virtudes e fugacidade como própria das flores delas fazem signos bastante adequados às alegorias de vanitas. Belas e passageiras, são como a juventude e, significando também figuras de elocução retórica, passam a aludir à vaidade do conhecimento e da eloquência, temas recorrentes em suas representações pictóricas seiscentistas. A bela aparência das flores é equívoca, pois, ao mesmo tempo em que evidencia virtudes, sugere a presença da morte. Assim, mostra e oculta, e oculta mostrando, a beleza a ser verdadeiramente cultuada: a beleza que escapa à morte (ou que se encontra com a boa morte) e não a que se extingue com ela. Flores também são os excelentes, “a flor da tropa”, a “flor dos poetas”, como exemplifica Bluteau (Idem Ibidem). Na tradição cristã, são as vidas santas, flos sanctorum, das hagiografias medievais e modernas. As flores são, assim, espelhos de virtudes, vidas que, na sua fugacidade, demonstram uma beleza universal, ensinando pelo exemplo de devoção e de obras pias, dentre as quais se destaca o martírio. Em tal direção, Bluteau indica que florear também se refere ao ato de louvar, de reconhecer, portanto, a excelência de quem ou do que se ornamenta com as flores do discurso (Idem. p. 143). Louvar, desse modo, implica, da parte do orador, capacidade de dar graça ao que faz. Sua pena e sua voz devem tornar-se instrumentos habilmente conduzidos, de modo a evidenciar as virtudes do objeto de louvor. As flores do discurso

prestam-se à demonstração das flores das virtudes. As flores são ficções a serviço da verdade, verdade que as reduz a pó. Flores são signos da primavera e dos funerais, da transitoriedade da vida e da pureza redentora da matéria sublimada. Flores evidenciam a iminência da morte, que ensina os homens a viverem como flores. Na tradição satírica, por outro lado, as flores podem significar falta de decoro e excessos sensuais. Bluteau alude a esses sentidos, no seu verbete dedicado à Flora, deusa do panteão greco-latino, que, nas sátiras de Juvenal, é representada como meretriz. Em sua homenagem, os romanos faziam os ditos jogos floraes, em que mulheres corriam por toda noite ao som de trombetas (Idem. p. 142). As flores, aqui, formam a própria figura dos enganos. Nelas, perdem-se os homens cativos de suas paixões e sentidos. Na direção exposta, o brilho, o vigor, a felicidade e a vida das flores acabam sobrepondo-se às suas fugacidade e inconstância, invisíveis diante das “flores das faces” dos incautos. As flores verdadeiramente educativas, segundo parecer moral evidente nas vanitae dos seiscentos, não podem se separar da morte, da grande senhora dos desenganos. “Flores da face”, esclarece Bluteau, são os olhos (Idem. p. 141). Os olhos, na tradição cristã, são os lugares do corpo pelos quais as imagens passam do exterior ao interior, produzindo seus efeitos na alma (no entendimento, na vontade, na memória). Os olhos veem e, além disso, choram. Analisando o lugar das lágrimas nos sermões de Pe. Vieira, Florence Lévi demonstra que, assim como em Pascal, Santo Agostinho e Bossuet, elas são as traduções mais perfeitas do coração humano. Ao chorar, os olhos liberam as lágrimas, que são uma espécie de “ver interior”. Mais ainda, as lágrimas são expressões doces ou amargas do coração e se produzem a partir de imagens construídas por palavras. O olho que chora é, assim, o olho que enxerga, a boca que prova, o ouvido que escuta . As “flores da face” são por onde as evidências da fé entram e saem de corações atritos e contritos. Elas testemunham e demonstram a verdade e, assim, desenganam, dissipam as vaidades. As visões exteriores, ao atingirem o coração, produzem as lágrimas que convertem: as visões interiores (LÉVI, F., 2008. pp. 23-30). As flores exemplares da sociedade, do discurso, das virtudes, da vaidade, dos louvores, dos sentidos, da face, dos enganos e dos desenganos estão todas em serviço do aperfeiçoamento moral do cristão no mundo da Contra Reforma. As flores são, portanto, políticas, são objetos de educação moral e, logo, de construção ética de determinados homens. São de flores, naturalmente, que as abelhas da Sicília, cantadas por Virgílio no canto IV das Geórgicas, produzem o mel mais puro e doce que já se teria provado... Das flores, sai a seiva que, processada por uma sociedade hierarquizada, disciplinada e harmônica, nutre a grandeza do Império Romano. Na reformatio imperii

das monarquias ibéricas católicas1, também estão presentes as flores imperiais. Os objetos e práticas retóricas e poéticas lusas e espanholas na Europa ou no ultramar são algumas das espécies mais vistosas de tais flores. Pelas folhas dessas flores, percebem-se respirações e inspirações para a nutrição de vassalos leais, servos eticamente comprometidos com a coroa e com o “bem comum”. São flores que louvam os méritos dos excelentes e os transformam em exemplos a serem imitados. São flores de virtudes e, logo, conforme sugere Gracián na epígrafe escolhida para esta introdução, de soberania. As flores são como espelhos do Rei dispostos para a alma dos súditos. O assunto mais geral deste livro é, portanto, relativo a flores. Os objetos retóricopoéticos que nos chegam das práticas letradas lusas dos séculos XVI ao XVIII, relacionadas à América portuguesa, são o seu foco. Mais especificamente, interessam aqueles objetos destinados à prescrição de valores a serem seguidos por agentes da colonização, homens portugueses letrados que, no reino ou no ultramar, ocupavam-se de funções ligadas à expansão, administração, economia e/ou defesa do Império. Por isso, cremos que os textos escolhidos para análise quando, em termos retóricos, não podem ser circunscritos no gênero epidítico, aproximam-se dele ou com ele se mesclam de maneira muito familiar. Se não são textos que, na totalidade, têm como objetivo louvar ou repreender as ações de suas personagens; todos eles, ainda que parcialmente, passam por isso, ou seja, pelo discurso demonstrativo, ora pela via do vitupério, ora do encômio. Em termos poéticos, muitos desses textos são familiares ao gênero épico ou a variantes panegíricas, com os quais a própria historiografia da época articula-se. Um dos casos mais exemplares disso é O Valeroso Lucideno, que combina, deliberadamente, preceitos da épica com os da história –aqui pensada como historia magistra vitae, inseparável, portanto, da tradição retórica ciceroniana –, de tal modo que seu “auctor”, Frei Manuel Calado, pode ser assim elogiado pelos seus pares: De Túlio o sutil, e o eloqüente, De Tácito o político, e galante, Com espírito vemos mais avante Em vós, pois escreveis tão doutamente. Se o Metro tem de Homero o excelente, A prosa tem de Lívio o elegante, Empresa de um ânimo gigante,

1

Entendemos a reformatio imperii conforme J. Pocock a trabalha em seu clássico estudo sobre T. Carlyle. Para o historiador britânico, Portugal e Espanha, a partir dos séculos XV e XVI, transformariam o sentido de império, passando a representá-lo em sua dimensão oceânica, e não mais continental, e exercido não mais sobre “bárbaros”, mas sobre “selvagens”. Nesse sentido, mais do que o tradicional translatio imperii, que implicaria um laço de continuidade dos Estados Ibéricos com a dignidade romana e, posteriormente, germânica; Portugal, bem como o fez a Espanha, seguiu no caminho de submeter a noção de império à outra: a de uma enorme e universal monarquia cristã. Cf.: POCOCK, J. G. A., 1999. pp. 239240.

Este, que dais a luz livro eminente. Reduzis a notícias, em sustância, Com peregrino estilo, e evidência, Do Luso, contra o Belga a repugnância: Invejado vos faz em competência Na prosa destes versos a elegância, Nos versos desta prosa a eloqüência. (ADRIÃO, M. APUD: CALADO, M., 1987, v. 1. p. 29)

Percebe-se que, da história, Frei Manuel Calado consegue compor um “estilo peregrino”, médio, humilde, chão, capaz de dar evidência, na forma de notícias, à superioridade dos portugueses-católicos (a serem invejados) em relação aos “repugnantes” holandeses-calvinistas (Belgas), efeito que se alcança por meio de elegância e eloquência. A elegância do estilo chão vem da história, de Tito Lívio, munido da prudência política ensinada por Tácito. A eloquência vem de (Marco) Túlio (Cícero) e de Homero, quer dizer: da arte retórica (no caso, do gênero demonstrativo) e do metro (no caso, do gênero épico). Por fim, o elogio finaliza-se com dois versos bastante engenhosos: “na prosa destes versos a elegância, / nos versos desta prosa a eloquência”. Em outros termos, os versos de Calado apresentam evidências que lhe fornecem elegância histórica, ao mesmo passo em que, à sua prosa, acrescenta-se a força épica, que lhe faz ganhar em eloquência. Juntas, história e épica potencializam a produção dos efeitos desejados: o heroísmo católico e lusitano contra a sordidez e a soberbia dos calvinistas holandeses. O caso acima ilustra um importante aspecto das letras que se pintavam e navegavam pelas águas e portos do Império português, aspecto que se constitui como a preocupação básica deste trabalho e um dos elementos estruturantes das artes poéticas e retóricas desenvolvidas em meios cortesãos, eclesiásticos, militares e/ou burocráticos no mundo luso dos séculos XVI ao XVIII. Ilustra um fenômeno – como percebe, por exemplo, Eduardo Sinkevisque – familiar à historiografia coeva, como aquela relativa às Guerras Holandesas. Como história, no sentido de mestra da vida, essas práticas letradas apresentavam-se como “saber honesto” e, assim, fundiam “o passado, exemplarmente narrado, com o tempo presente de sua enunciação, no empenho constante de empreender ações honestas e virtuosas”. Mais especificamente no caso ibérico, Sinkevisque ainda reconhece que, “em mundos católicos, esse é um dos principais decoros políticos interpretado providencialmente, cuja memória dos casos se faz por meio da erudição que autoriza a ideia de eleição de um povo, como o português, como causa segunda de Deus na história” (SINKEVISQUE, E., 2005. pp. 5256). Pode-se dizer que essas “flores” não separam o louvor em memória dos grandes feitos da “visão interior” que os integra à concepção providencialista da história. Assim, o passado exemplar e o presente da enunciação são iluminados pelo devir, no caso, a profecia, a missão, o Império...

As flores imperiais, teologicamente, justificam-se como produção do belo e do feio e, como tais, do virtuoso e do vil; daquilo em que se devem repousar as paixões e daquilo que, por oposição, deve gerar repulsa. Seu objetivo é produzir prazer e, como tal, suscitar paixões, como se aprende de São Tomás de Aquino. Tratam-se, contudo, de prazeres sensíveis e intelectuais, ligados, pois, também à vontade e à razão. São paixões honestas, voltadas à dilação da alma, à sede de beatitude; à ativação da razão e ao aperfeiçoamento de suas operações2. Partimos, pois, do pressuposto geral que as “flores imperiais” lusitanas – entendidas como exemplares retórico-poéticos próprios ou familiares do gênero demonstrativo – buscam levar seus auditórios a um estado emocional

favorável

aos

seus

projetos

políticos,

produzindo

identificação,

reconhecimento e, finalmente, desejo de ação (e mimese), conforme os exemplos heroicos narrados ou em oposição às figuras vituperadas pelo viés satírico.

A organização desta obra é, em parte, efeito das práticas contemporâneas da academia. Seus “capítulos” são antes “ensaios”, cujas versões preliminares foram publicadas em revistas e publicizadas em colóquios ao longo dos últimos cinco ou seis anos. Neste livro, busquei dar-lhes um arranjo original, a eles conferir certa unidade verossímil, ainda que não alicerçada sobre uma metanarrativa artificial. Os textos presentes têm uma história em comum. Eles foram originados de projetos de pesquisa que perseguiram um conjunto constante de preocupações: a formação de laços políticos coloniais; o papel de sentimentos morais e do ethos católico na constituição desses laços; a materialização desses laços em torno de afetos e sentimentos de pertença ao Império e, sobretudo, os lugares das artes poéticas e retóricas na constituição dos pactos concernentes à colonização, entendidos em suas dimensões não só econômicas, mas também (e ao mesmo tempo) sociais, políticas, culturais e éticas. Assim, buscamos ordenar os textos aqui dispostos conforme um fluxo que, em si, já contasse uma história, vamos a ela... O texto escolhido para abrir os demais ensaios foi Produção da Concórdia, em que se busca compreender, em termos mais conceituais e historiográficos, os papéis das práticas letradas como componentes da propaganda imperial portuguesa nas suas colônias americanas. Publicado originalmente na revista Varia Historia, este texto foi produzido por volta de 2006 com o objetivo de sistematizar reflexões que vinham sendo realizadas a respeito do que, inspirado em Geertz, passei a nomear “poética do poder” na América portuguesa. Naquele momento, meus estudos verticalizavam-se sobre o panegírico fúnebre em homenagem a D. Afonso Furtado de Mendonça – objeto 2

Sobre o prazer, de uma perspectiva tomista, sugerimos a leitura das Questiones 31 a 34 da Prima Secundae da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino.

específico de outro ensaio presente neste livro. Na ocasião, a preocupação com os aspectos cerimoniais e espetaculares (especialmente ligados à esfera fúnebre) da representação política dos seiscentos despertou-me para a problemática da “poética do poder”, sugerindo-me a consideração dos mecanismos retóricos de sua produção, no caso, ligados ao próprio gênero epidítico, com seus modos próprios de qualificação, amplificação e exemplificação. Assim, os rituais representativos e constitutivos dos pactos políticos se me apresentaram como chave possível a partir da qual se poderiam travar diálogos com a nova historiografia política da América portuguesa, recentemente preocupada com questões relativas à extensão do poder monárquico (metropolitano, imperial...) nas colônias e suas negociações e conflitos com os poderes localmente estabelecidos. Nesse sentido, o conceito de concórdia, um dos fundamentos teológicopolíticos caros ao período estudado, funcionou como uma espécie de “lugar ético” aglutinador, artificialmente construído por meio de rituais retórica e poeticamente orientados. O caráter ético do lugar da concórdia na propaganda imperial portuguesa nas colônias americanas compõe o eixo das problemáticas estruturantes dos três ensaios subsequentes. Chamamos atenção para um elemento do discurso demonstrativo para o qual, recentemente, alertou Loïc Nicolas em artigo publicado na revista Rhetorica. Argumenta esse autor que, sendo o discurso epidítico apresentado como revelação da “verdade” em que ética e esteticamente a comunidade deve se reconhecer; sua eficácia depende, muito especialmente, da autorização do orador como uma espécie de “ser sem corpo”, cuja voz se exibe como presença de um “outro invisível”, superior, uma instituição portadora do saber, posicionada em um lugar inacessível (NICOLAS, L., 2009. pp. 115-141). Nos três ensaios, buscamos compreender como esta voz se constrói a partir da apropriação dos lugares do aedo e do histor nas letras católicas dos séculos XVI e XVII na América portuguesa. Assim, buscamos compreender a origem da autoridade das vozes que se anunciam a partir de Anchieta, Gandavo e do “anônimo” Bento Teixeira, autor de Prosopopeia, como lugares a partir dos quais se puderam apresentar, com “efeito de realidade”, princípios éticos para a ação colonizadora portuguesa no Ultramar. Nesses três ensaios, os valores relativos à colonização não estão separados dos lugares institucionais (políticos) e metafísicos (teológicos) que, em performance junto aos seus auditórios particulares (a comunidade histórica a que pertencem e que procuram normatizar, ordenar), dão luz à “verdade” e/ou aos feitos heroicos narrados. Não se separam, portanto, também dos gêneros poéticos e retóricos capazes de engendrar tais lugares nas “vozes sem corpos” de poetas e historiógrafos. O quinto ensaio na sequência é sobre o panegírico fúnebre em homenagem a D. Afonso Furtado de Mendonça. Este texto tem lugar central no conjunto dos

argumentos que compõem este livro. Por um lado, ele se apresenta como conclusão parcial das reflexões concernentes aos papéis da poética laudatória e do discurso epidítico na proposição de um ethos imperial português na América. Por outro, ele apresenta uma espécie de retrato paradigmático da ordem teológico-política pressuposta e prescrita nas representações poético-retóricas do poder, interpretando suas configurações espaciais (supostamente atemporais e fixas) e o seu movimento no plano providencial da salvação da comunidade, inseparável de uma “esperança” no devir para a boa morte. Neste ensaio, a temática da boa morte recolocará em maior evidência a problemática do desengano, efeito sensivelmente buscado nas poéticas cristãs e com forte apelo político na “cultura barroca”3. Em torno dessa problemática, os três últimos ensaios, em conjunto, irão versar, enfatizando um aspecto dramático da propaganda política na América portuguesa no caminho da produção da concórdia: o efeito do enriquecimento colonial (e, por extensão, das próprias formas da colonização) sobre o ethos imperial do português e sobre a moral dos súditos de uma monarquia corporativa no ultramar. Vale dizer que, no conjunto das análises empreendidas, buscamos focalizar as representações políticas em suas dimensões retóricas. Isso quer dizer que elas não são reflexos de realidades pressupostas, mas programas, argumentos, armas linguageiras voltadas a produzir efeitos e proliferá-los em certos espaços sócio-políticos. Nesse sentido, elas conformam dispositivos simbólicos carregados de poder. Em torno delas, há critérios de validação claramente “expirados”, sem qualquer eficácia prática no nosso tempo presente. Antes de serem tratados como objetos “literários” – o que por si só, seria anacrônico –, veem-se, aqui, tais objetos como peças de valor fugaz, ainda que mobilizem tópicas de eficácia mais duradouras e, muitas vezes, se proponham como portadoras de verdades universais. Isso não exclui, muito ao contrário, a exemplaridade de tais objetos como representativos de uso excelente das tradições retóricas e poéticas em que bebem. A beleza de tais objetos encontra-se em serem flores e, como tais, transitórias.

Gostaríamos, por último, antes de passarmos aos textos que dão corpo aos nossos argumentos, agradecer a algumas pessoas e instituições que favoreceram a execução destes estudos e deste acabamento final. Mas acima de tudo, agradeço

Referimo-nos à “cultura barroca” em sentido histórico. Não se trata aqui de um conceito estilístico com características morfológicas de vigência trans-histórica. Antes, preferimos tratá-la tal como faz J. A. Maravall, para quem o conceito deve ser entendido como definidor de uma época da história ocidental em que o Estado (marcadamente aristocrático e cortesão) teve que adaptar suas formas de propaganda ao advento de uma sociedade de massas. Cf.: MARAVALL, J. A., 1997, pp. 41-61. 3

Àquele para quem a humildade é a maior das elegâncias, Deus; pois nesta árvore, sem os frutos, não há flores. Em primeiro lugar, devo reconhecer o apoio institucional e financeiro que venho obtendo, desde 2005, da FAPEMIG, por meio de projetos de pesquisa que para a agência tenho submetido desde então. Do mesmo modo, agradeço à UFU, instituição em que trabalho, pelo apoio à realização de meus estudos e pesquisas, cumprindo, assim, parte do seu papel de Universidade. Agradeço também aos conselhos e editores dos periódicos em que, primeiramente, versões dos textos deste livro fizeram-se publicar, a saber: ArtCultura (UFU), História & Perspectivas (UFU), Varia Historia (UFMG), Clio: Série História do Nordeste (UFPE), Tempo Brasileiro (Rio de Janeiro), Tempo (UFF), Praesentia: Revista Venezoelana de Estudios Clásicos (Universidad de los Andes, Mérida) e Revista do Centro de Estudos Portugueses (UFMG). Aos meus alunos, principalmente meus orientandos, devo manifestar enorme gratidão, reconhecendo, neles, interlocutores diretos, além de olhos e mentes brilhantes. Não poderia deixar de mencionar, nominalmente, entre eles, aqueles que participaram diretamente das pesquisas das quais este livro resultou: Clara Rodrigues Couto, Cléber Vinícius do Amaral Felipe, Érika Silva Quites Machado, Jonnathan Monteiro Margoliner e Stela Beatriz Duarte. Junto a eles, agradeço aos colegas da UFU que se dispuseram a discutir resultados provisórios das pesquisas: Luciene Lehmkuhl, Jacy Alves de Seixas, Christina Lopreato, Antônio de Almeida, Daniel Faria, Joana Muylaert e Luciene Azevedo. Dentre os interlocutores “mais distantes”, gostaria de registrar, em primeiro lugar, a generosidade e a amizade com as quais o colega Luís Filipe Silvério Lima se dispôs a ler e comentar quase que cada linha das versões preliminares de todos os textos aqui reunidos. Preciso agradecê-lo, portanto, de formas múltiplas: pela amizade, pela qualidade das leituras, pelo prazer da convivência e, lógico, pelos momentos mais descontraídos de gargalhadas, regados a muita cerveja ou vinho! Também agradeço, pela inspiração constante, aos professores Alcir Pécora e João Adolfo Hansen, que para mim já são quase mitos, e ao Paulo Miceli, meu orientador de sempre... Mais pontualmente, agradeço comentários, “prensas”, dicas, leituras e trocas de ideias de profissionais que tenho em altíssimo respeito e com os quais fui me (re)encontrando nesta jornada: Marina Massimi, José Maria de Paiva (e aos demais colegas do DESCHUBRA), Rodrigo Bentes Monteiro, Ana Lúcia de Oliveira, Andréa Daher, Rafael Ruiz, Ana Lúcia Nemi, Sidney Chalhoub, Adriano Machado Ribeiro, Marília Ribeiro e outros cujos nomes, muitas vezes, ficaram ocultos pelos anonimatos das agências e dos conselhos editoriais de periódicos ou, simplesmente, pela minha mal exercitada memória. A esses últimos, peço humildes desculpas.

Finalizando, gostaria de deixar minha homenagem aqui a alguns intelectuais que, já não estando mais nesta vida, servem de enorme referência para mim, tanto aqueles que eu conheci em carne e osso, quanto os que somente vi em papel. Primeiramente, ao meu grande professor José Roberto do Amaral Lapa, quem eu nunca me canso de homenagear. Em segundo lugar, aos dois historiadores que me ajudaram a conceber alternativas interessantes para a escrita fragmentária que o ritmo da academia nos leva a produzir: Sérgio Buarque de Holanda e João Capistrano de Abreu, ensaístas primorosos que, nem por isso, deixaram de lado o rigor da reflexão e dos métodos. Aos dois últimos e à minha família (Flavia e Vinícius, especialmente) dedico estas flores.

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