Fluidez e Hibridação na Música: Direito Autoral, “Cultura da Internet” e a Visão Mediada pela Imprensa

June 14, 2017 | Autor: Bruno Muniz | Categoria: Creativity, Hybridity, Culture, Mediation, The Internet, Piracy
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III Seminário Internacional Organizações e Sociedade: Inovações e Transformações Contemporâneas

Porto Alegre, 11 a 14 de novembro de 2008

Organizações e Instituições Econômicas

Fluidez e Hibridação na Música: Direito Autoral, “Cultura da Internet” e a Visão Mediada pela Imprensa

Bruno Barboza Muniz

Introdução

A troca de músicas pela Internet, o avanço da pirataria, o declínio das grandes gravadoras, o aumento no número de pequenos e bem-sucedidos selos, a proliferação da música eletrônica, a facilidade para se gravar decorrentes de novas tecnologias, todos estas são questões que fazem parte de um novo contexto na produção musical. Assim, é de se esperar que as regras que regem este mercado também sejam colocadas em discussão, e é exatamente isso o que vem

ocorrendo.

O

direito

autoral

tem

sido

amplamente

debatido

nas

universidades, jornais e até dentro do governo – o então ministro da cultura Gilberto Gil tem se mostrado bastante envolvido nesta discussão. Este trabalho se dedica a estudar um contexto de crescente fluidez da música. Esta fluidez surge, ainda que não em toda sua potencialidade, no momento em que a música se digitaliza, depois foi só uma questão de tempo até o surgimento do mp3 e a possibilidade de um intercâmbio altamente veloz destes arquivos compactados. Temos gratuitamente disponível na Internet uma vasta gama de gêneros musicais que qualquer pessoa que domine determinados recursos da rede pode acessar. Como outras “experiências mediadas”, ela nos permite entrar em contato com uma vasta gama de conhecimentos “não-locais”, favorecendo processos de “hibridação” como conceituado por Canclini: “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de formas separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2008, pág. XIX). Temos, portanto, dois processos em paralelo, a música se torna cada vez mais fluida e híbrida. Pretendo estudar a forma como a mídia impressa tem apresentado estas questões, principalmente a ênfase existente na apresentação de uma causalidade entre “pirataria” e “crise das gravadoras”. Irei pensar um pouco esta relação e discutir brevemente experiências que sugerem formas alternativas às das grandes gravadoras de se lidar com o mercado da música. Estudarei também a Internet, utilizando como objeto principal uma rede social que vem ganhando cada vez mais

adeptos entre músicos e artistas em geral, o Myspace. Uma quantidade muito grande de artistas - tanto independentes quanto já estabelecidos e contratados por majors - disponibilizam gratuitamente músicas e vídeos na web através deste meio, que já é a rede social com maior tráfego de usuários nos Estados Unidos. Os debates em torno da adequação da legislação de direitos autorais à atual conjuntura de hibridação e fluidez demonstram claramente a interligação existente entre a capacidade de criar e manipular símbolos e sons para a criação de uma música, com o poder de atribuir a este material o seu nome através do registro, para que posteriormente você possa controlar – no Brasil através do ECAD – todas as suas múltiplas aparições, modificações, reestruturações, edições, etc. Não esquecendo que este controle permite ao autor – ou àquele que retêm seus direitos patrimoniais - extrair retornos econômicos deste trabalho. Por exemplo, a apropriação de músicas criadas por grupos indígenas - nos quais o próprio fazer musical está muitas vezes em descompasso com o padrão da legislação pautado no indivíduo criador - demonstra essa relação entre criação e poder. Certas culturas não possuem o poder – e talvez a inclinação - de controlar suas próprias criações, que podem acabar, contrariamente a sua vontade, em coletâneas de World Music ou registradas em nomes de outros indivíduos que quase nenhuma relação possuem com aquela comunidade (SEEGER, 2004). Economia da música: escassez e fluidez

O desenvolvimento da Internet, do mp3 e das ferramentas de troca peer-topeer afetam um atributo indispensável para que alguma mercadoria possa ser comercializada de maneira lucrativa: a escassez. Caso um produto esteja disponível de maneira ilimitada seu valor cai a zero. Alguns fatores ainda impedem que a música esteja nesta posição, entre eles a exclusão digital. Entretanto, tudo parece caminhar neste sentido. Antes, o vinil e o CD garantiam a escassez, agora esta parece depender cada vez mais de um aparato legal para existir, ou seja, ela precisa ser mantida artificialmente. Para alguns economistas esta situação - a não-rivalidade e não-exclusividade da música - é uma “falha de mercado”, e como

tal deve ser remediada através da legislação vigente de proteção ao autor. Esta literatura sobre “falhas de mercado” é criticada por economistas influentes como Joseph Stiglitz, Mario Cimoli, Giovanni Dosi e Richard Nelson. Uma vez que: “In a profound sense, when judged with standard canons, the whole world can be seen as huge market failure!”(CIMOLI, DOSI, NELSON, STIGLITZ, 2005, p.2). No entanto, esta abordagem é imensamente estabelecida dentro da economia. Segundo a lógica predominante, a criatividade seria ameaçada sem uma legislação que garantisse proteção ao autor, uma vez que este não conseguiria retirar ganhos econômicos do seu trabalho. Esta é a idéia básica do que chamaremos a partir de agora de “argumento do incentivo”: caso aquele que criou uma determinada idéia não seja protegido pela legislação, sua idéia será copiada e ele não conseguirá obter nenhuma recompensa monetária, não havendo incentivo para a criação. Em conjunção com a utilização de pressupostos comportamentais utilitaristas, que atribuem ao individuo um comportamento calculista e estratégico, chega-se à seguinte conclusão: “[caso] inexistisse proteção ou não existiria conhecimento, ou o mesmo somente existiria nas situações técnicas que impedissem a engenharia reversa” (BARBOSA, 2007, p.16). A matriz utilitarista da legislação de proteção ao autor traz inevitavelmente em seu bojo uma forma de atuação do artista marcada pela maximização de sua utilidade. Se os pressupostos utilitaristas já foram criticados inúmeras vezes como irreais, mesmo para a análise de mercados mais sujeitos a esta análise, não posso imaginar um campo de aplicação mais inadequado do que a arte. E a situação se torna ainda pior quando esta perspectiva ideológica é orientadora de instituições responsáveis por regular a atividade criadora. Como coloca Sahlins: “Ao se conceber a criação e o movimento dos bens exclusivamente a partir de suas quantidade pecuniárias (valor de troca), ignora-se o código cultural de propriedades concretas que rege a “utilidade” e, com isso, continua-se incapaz de explicar o que é de fato produzido” (SAHLINS, 2007, p. 180). Conseqüentemente, a legislação vigente parece ignorar não só “o que é de fato produzido”, mas também, como é de fato produzida a criação musical no dias de hoje.

Pirataria e Apagão Aerofonográfico: a visão mediada pela imprensa

Uma característica interessante de ser notada no que diz respeito às matérias retiradas de jornais e revistas do Rio de Janeiro e São Paulo é uma ênfase em questões que dizem respeito diretamente a uma problemática econômica. Assim, a “crise das gravadoras” surge como questão número um em conjunto com o que é considerado a sua causa: a “pirataria”. Os jornalistas ao tratarem da “pirataria” principalmente em termos dos efeitos causados sobre o mercado (“crise das gravadoras”), parecem não se preocupar muito com a idéia de que a própria maneira, ou melhor, maneiras de se fazer

música estão

se modificando

em

paralelo aos

desenvolvimentos

tecnológicos e de mídia. A música se torna crescentemente “impura”, o “culto”, o “popular” e o “massificado” se mesclam (Cancline). Torna-se difícil falar em “autenticidade”, e daí para um questionamento da originalidade como elemento central e norteador da música é apenas um passo. Como podemos medir a originalidade presente em uma obra? Porque canções tidas como “populares”, aqui se aproximando do conceito de folklore, são em boa parte das vezes consideradas como domínio público enquanto os “Autores” e “Artistas” fazem “Obras-de-arte” que devem ser protegidas pelo direito autoral? Como detectar o aspecto original, ou autêntico, de uma obra-de-arte híbrida? Sem o valor da originalidade não há o direito autoral como o conhecemos hoje. Como afirma Jason Toynbee: “composers use forms, themes and aesthetic assumptions inherited from earlier practice in the field. Thus, even in this heartland of aesthetic individualism, authorship is social and compositions are more like moments in a continuing cycle of production than unique and original creations”(TOYNBEE, 2004, 131). Estes questionamentos não são muito freqüentes no material em questão, que parece se concentrar mais nas mudanças em curso na organização econômica da indústria da música, principalmente nos efeitos da “pirataria”. No entanto, aqueles que utilizam o “argumento do incentivo” nos dizem que a

legislação de direitos autorais visa em última instância defender a criatividade. Não há como proteger a criatividade sem conhecê-la. Ao se concentrarem na problemática econômica, os jornais parecem de maneira não intencional denunciar o que esta em jogo quando discutimos direitos autorais. Não é a criatividade humana ou a subsistência dos artistas que está em jogo, mas sim a sustentação de uma estrutura caduca de exploração do mercado da música. Voltando para o elucidativo artigo de Toynbee: “One strong defense of copyright is that there can be no market in music without it, because there will be no incentive for music makers to create if their work can be copied witout restriction. (…) But we might ask how much protection is needed to provide the incentive. The current term of seventy years after the death of the author effectively turns copyrighted works into property of the order of the land. ‘Rent’ can be charged for its use, yet there is no cost in making it available. As a result rights-owners like record companies and publishers make good profits but its difficult to see how a significantly greater incentive to music makers is created. In fact, the reverse happens: (…) the value of back catalogue may lead to a reduction in music industry investment in new talent.” (TOYNBEE, 2004, p. 134) As matérias jornalísticas utilizadas neste trabalho foram coletadas de 2006 em diante. A indústria fonográfica já amargava maus resultados desde o final dos anos noventa. Os artigos foram coletados de maneira pouco sistemática e o critério utilizado foi: qualquer notícia que buscasse refletir sobre o atual estado de criação e produção musical fazendo referência ou menção aos direitos autorais. Como já foi colocado, existe uma ênfase no econômico, entretanto, isso não quer dizer que o jornal não apresente vozes dissonantes. Diversas vozes “falam” através do material jornalístico, executivos de grandes e pequenas gravadoras, acadêmicos, o ministro da cultura Gilberto Gil, etc. No suplemento “Eu & Fim De Semana” do jornal Valor Econômico dos dias 4 e 5 de maio de 2007, a capa dizia: “Gravadoras multinacionais afastam altos executivos no Brasil para correr atrás do prejuízo causado pela era digital”. Artur

Xexéo, em sua coluna no jornal O Globo do dia 4 de abril desse mesmo ano, com o título “Não se vendem mais discos no Brasil”, afirmou: “Se ainda havia alguma dúvida sobre a decadência da indústria fonográfica no Brasil, a reportagem publicada na capa do Segundo Caderno do último domingo sobre os discos campeões de venda em 2006 acabou com ela”. No dia 4 de abril de 2008, outra matéria do mesmo Segundo Caderno apresenta a capa com o título: “O ano ‘não’ da música”. TABELA 1 – Material Jornalístico Analisado Matéria A torto e a direito O apagão fonográfico

Publicaçã o Carta Capital Carta Capital

Uma nova ordem musical

O Globo

Quero ser legal

O Globo

Luta é contra cultura da pirataria

O Globo

O futuro é tecnobrega Um mercado complexo que fatura R$ 3 milhões

O Globo

O ano "não" da música Não se vendem mais discos no Brasil* Quem decide é o autor* Uma solução criativa* Direitos autorais: debate no olho do furacão

O Globo

O processo da música Por uma reforma da lei do direito autoral* Direito autoral: Creative Commons e indústria se unem

O Globo

Cadê o direito autoral?** Gravadoras ampliam leque de receita Dançando conforme a música

O Globo

O Globo

O Globo O Globo O Globo O Globo

O Globo O Globo

O Valor O Valor

Suplemento Plural (cultura) Plural (cultura) Megazine (adolescentes) INFO etc (informática) INFO etc (informática) INFO etc (informática) INFO etc (informática) Segundo Caderno (cultura) Segundo Caderno (cultura) Opinião Opinião Segundo Caderno (cultura) INFO etc (informática) Opinião Plantão (publicado na Internet) Logo A PÁGINA MÓVEL Tendência e Consumo EU & Fim de

Data 28/11/200 7 23/5/2007 16/10/200 7 24/9/2007 24/9/2007 9/4/2007 9/4/2007 4/4/2008 4/4/2008 28/9/2007 28/9/2007 20/10/200 7 13/11/200 6 11/11/200 7 13/4/2007 22/7/2008 27/9/2007 4/5/2007

Semana Para críticos, teoria ignora parte do capitalismo Entrevista: Chris Anderson

Folha de S.P. Folha de S.P.

Ilustrada (cultura)

5/11/2007

Ilustrada (cultura)

5/11/2007

*Editorial ** Debate com artigos de Gilberto Gil e Nei Lopes No dia 13 de novembro de 2006, o caderno INFO ETC, também do jornal O Globo, apresentava uma matéria sobre um evento na Fundação Getúlio Vargas dedicado a discutir os recentes processos judiciais movidos contra internautas no Brasil. A matéria chega a afirmar o seguinte: “entre os diversos depoimentos, uma coisa ficou bem clara no evento: a era dos intermediários no mundo da produção cultural está chegando ao fim”. Neste mesmo suplemento, no dia 24 de setembro de 2007, a chamada era: “Depois de anos reclamando da pirataria, indústria da música percebe que a saída é oferecer opções para downloads legais e começa a se mexer para mudar o cenário”. Ainda no jornal O Globo, a revista Megazine do dia 16 de outubro afirmava: “decisão do Radiohead de pedir aos fãs para decidir preço do novo disco põe indústria fonográfica em xeque”. A Carta Capital do dia 23 de maio de 2007 também possuía uma matéria destinada à indústria cultural com o subtítulo “A defesa da propriedade intelectual é ameaçada pela livre circulação de imagens e sons na Internet”. Nessa mesma revista, na edição do dia 28 de novembro do mesmo ano, a capa apresentava uma figura de um CD quebrado com o título: “O CD já era”. Outra matéria no caderno Mais da Folha de São Paulo do dia 18 de março de 2007 falava sobre Matthew Herbert, produtor que, segundo o jornal, “afirma que a música eletrônica revolucionou a idéia de autoria e diz que o sampler reescreveu história”. Em outra Folha de São Paulo, desta vez no suplemento Ilustrada, Chris Anderson, editor da Wired, dizia: “Baixar música de graça não é igual a pirataria”. Feito pode-se perceber através destes artigos em diversas publicações jornalísticas do eixo Rio-São Paulo, a imprensa está atenta a uma série de

acontecimentos relacionados à indústria da música. Acredito no poder da imprensa de estabelecer uma agenda, ou seja, “há um alto grau de correspondência entre a dose de atenção dada a determinada questão pela imprensa e o nível de importância a ela atribuído por pessoas da comunidade que estiveram expostas à mídia” (DEFLEUR e ROKEACH, 1993, p.284). O fato de um assunto estar presente de maneira freqüente na mídia colabora para que acreditemos em sua relevância. É importante observar que dificilmente existe algum assunto politicamente neutro. Assim, considero muito conveniente para a discussão o que foi dito por Bourdieu com relação ao poder simbólico: “é, como efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2005, p.7). As idéias de “pirataria”, “crise das gravadoras”, entre outras que aparecerão ao longo da análise do material disponível são sempre parte de uma “luta” ou “negociação” entre partes interessadas – consumidores, artistas, gravadoras, ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), etc. A existência desta tão propalada crise das grandes gravadoras tem servido para que a indústria fonográfica seja encarada de forma distinta pelas autoridades públicas. Há inclusive uma campanha para a isenção do ICMS aos CDS. Pareceme interessante à indústria fonográfica que o público acredite que este é um setor que passa por sérias turbulências. A revista Carta Capital apresenta um texto feito pela Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) para a Proposta de Emenda a Constituição (PEC) pedindo isenção de impostos para a produção musical brasileira: "o mercado brasileiro de música gravada está em queda livre" e "somente nos dois primeiros meses deste ano tiveram suas vendas depreciadas em 49% abaixo do mesmo período do ano passado". A “crise das gravadoras” também parece estar associada de maneira inevitável à infração dos direitos autorais. Entretanto, tanto a crise em si quanto a sua relação com a “pirataria” devem ser discutidas em maior profundidade. O próprio conceito de “pirataria” precisa ser esmiuçado. Ele serve para denominar uma prática considerada moralmente condenável, mas o que é a “pirataria” hoje?

Como práticas diversas e com causas diversas são consideradas sob o mesmo rótulo? Como aquele consumidor que troca músicas através da Internet pode ser igualado através deste termo ao “pirata” que faz da atividade de vender conteúdos ilegais seu pão de cada dia ou até mesmo sua forma de enriquecimento? Os jornais parecem tomar como dado o significado de “pirataria”. Pude perceber ao ler o material que tenho em mãos que a “crise das gravadoras” e a “pirataria” são temas centrais que percorrem todo material jornalístico sendo analisado. Abaixo apresento mais ou menos a maneira como eles são apresentados através da imprensa: 1 “Crise das gravadoras” – Praticamente todos as matérias fazem referência aos lucros minguantes das grandes gravadoras, tendência que parece estar associada de maneira quase que imediata à “pirataria”. As grandes gravadoras em conjunto com as indies parecem corresponder à totalidade da indústria musical, sendo esquecido que boa parte da vida musical nas grandes cidades brasileiras acontece dentro da informalidade e que uma quantidade gigantesca de artistas não são nem das majors nem das indies, são independentes. 2 “Pirataria” – Este termo aparece associado ao download de músicas através da Internet ou à compra de CDs e DVDs com conteúdo protegido, mas que são vendidos sem a devida autorização dos donos dos direitos autorais. Estas duas práticas são bastante distintas - apesar de que em ambos os casos ocorre a utilização não autorizada do material protegido por lei. A primeira é uma troca de informação digital através da rede mundial de computadores. Pode ocorrer, portanto, entre indivíduos muito distantes no espaço e não possui uma base estabelecida – característica da própria Internet. Já a segunda prática se configura em uma indústria que pode ganhar proporções gigantescas e estar associada a uma série de outras atividades criminosas como o tráfico de drogas e armas. As trocas ocorrem basicamente na realidade cotidiana e suas trocas se realizam de mão a mão. Começarei a análise pela discussão da relação de causalidade estabelecida entre a “crise das gravadoras” e a “pirataria”. Este fenômeno está sendo visto como o grande responsável pelos maus resultados apresentados pelas grandes

gravadoras nos últimos anos. Mas, a crise também pode estar associada à lentidão das empresas em se adaptar a uma realidade cambiante. Realçando esta possibilidade, as gravadoras podem ser consideradas em parte responsáveis pelo seu fracasso. Portanto, é discutível o quanto estas empresas não são vítimas, mas sim pouco ágeis em lidar com uma mudança radical de contexto ocorrida em parte devido a inovações tecnológicas surgidas nas últimas décadas. Segundo Marshall: “the simple relationship between increased piracy and decreased sales may not be quite so simple” (MARSHALL, 2004, p.194). Hoje, inovação parece ser a palavra mágica entre os grandes gurus dos negócios, entretanto, não é em absoluto uma idéia nova, reproduzo abaixo um parágrafo do livro Capitalism, Socialism and Democracy de Joseph Shumpeter - autor da teoria da destruição criativa - que me parece bastante adequado à discussão: “Progress entails, as we have seen, destruction of capital values in the strata with which the new commodity or method of production competes. In perfect competition the old investments must be adapted at a sacrifice or abandoned; but when there is no perfect competition and when each industrial field is controlled by a few big concerns, these can in various ways fight the threatening attack on their capital structure and try to avoid losses on their capital accounts; that is to say, they can and will fight progress itself.” (SHUMPETER, 1975,

p. 96)

Até que ponto as gravadoras não são um ramo dos negócios lutando contra novas formas de produção que desestabilizam seus antigos ativos? Ou seja, suas perdas podem refletir algo muito próprio do capitalismo, algo que já analisado por Shumpeter na década de 40 e que se torna mais claro do que nunca na atualidade – daí a reinvenção constante da roda apresentada nas grandes revistas de negócios. O que diferencia este ramo de outros que sofreram perdas com processos de “destruição criativa”, é que estas empresas se apóiam em uma estrutura legal para fortalecer a sua posição. Estrutura que também deve ser discutida – e está sendo discutida – e não considerada como algo natural e

imutável. É tentadora a idéia de que perante mudanças drásticas na forma de se trocar e fazer música, “sobrou à indústria o papel da repressão, ideológica, jurídica e tecnológica” como colocou a revista Carta Capital. No material selecionado, pouco parece se atentar para a falta de competência das empresas; a “pirataria” aparece claramente como o fator de maior importância explicativa desta crise, seja na voz de um executivo de alguma gravadora, seja através do próprio jornalista responsável pela matéria. Esta sugestão de causalidade é apresentada muito freqüentemente e de maneira muito parecida; como se já houvesse um certo consenso em torno desta relação. Portanto, focarei os raros momentos em que se dirige uma crítica a forma de atuar das grandes empresas de disco. Paulo Rosa, diretor da Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), critica a falta de lançamentos importantes no período recente. Não é exatamente uma crítica muito pesada, também não explica o fracasso apresentado pela indústria nos últimos anos da década de noventa persistindo até hoje. A falta de lançamentos é mais uma conseqüência dos esforços das grandes gravadoras para reduzir custos em uma situação já complicada. Ou seja, a crítica se destina a um período mais recente e não se relaciona com a queda de faturamento das majors. No caderno INFO etc do jornal O Globo do dia 24 de setembro de 2007, podemos sentir uma leve sugestão de demora das grandes gravadoras a se renderem ao mundo digital, ainda assim, nenhuma crítica explícita. No suplemento “Eu & Fim De Semana” do jornal Valor Econômico dos dias 4 e 5 de maio de 2007, as empresas aparecem correndo “atrás do prejuízo causado pela era digital” e “recuperando o tempo perdido na luta contra os predadores – pirataria, downloads ilegais de música e preços altos”. Ou seja, existe a sugestão de que elas tenham acordado tarde demais para lutar contra os “predadores”; estas empresas poderiam ter se articulado mais cedo para lutar contra a ameaça da qual são vítimas. Na revista Carta Capital de número 472 a questão aparece colocada de maneira sutilmente diferente: “O longo hiato até que as gravadoras mudassem de comportamento correspondente ao tempo em que os consumidores se

acostumaram a consumir (quase sempre ilegalmente) música barata (nos camelôs) ou gratuita (por downloads feitos à revelia dos direitos autorais). Agora, trava-se corrida desesperada atrás dos prejuízos, num cenário que o presidente da ABMI apelida humoradamente de “apagão aerofonográfico”. Ao invés de vítimas, as empresas perceberam tarde demais para o fato de que o “CD já era” e não se organizaram a tempo de se articular com as mudanças introduzidas pelos meios digitais. Há também aqueles que discutem a realidade deste “apagão”. Ronaldo Lemos, da Fundação Getúlio Vargas, importante propagador do Creative Commons no Brasil, diz o seguinte: “Como me disse Chris Anderson, editor da revista Wired, tem se propagado uma idéia falsa de que exista uma crise na indústria musical. Não existe. O licenciamento de fonogramas só aumenta, assim como a venda digital, de ringtones de celular e de aparelhos de MP3 e iPod. O ECAD cresce astronomicamente. A única coisa que está caindo é a venda de CDs”. Não posso me esquivar destas considerações, elas passam pelo que normalmente entendemos por “indústria fonográfica”: grandes empresas, ídolos de milhões, inesgotáveis somas de dinheiro, muito glamour e imensas vendagens. O que aparece de maneira recorrente na imprensa é que este mundo é cada vez menor, cada vez mais para poucos. Mas isto não equivale a dizer que a “indústria fonográfica” está em crise, significa sim, que o modelo vigente não funciona mais tão bem. Outras formas de organização são possíveis, a “indústria fonográfica” não se resume necessariamente a um punhado de grandes empresas. E quais são as alternativas? As indies? Selos “pequenos e sem muitos recursos” mas que “compensariam com [a] agilidade que falta às poderosas multinacionais”? Muito se discute o quanto estes selos representam uma alternativa viável ao modelo inchado das majors e o quanto eles também não sofrem com dificuldades semelhantes. Como colocado por Márcia Dias, as indies poderiam ter a função no sistema de “testar produtos, mesmo que num espaço retrito, permitindo a major realizar escolhas mais seguras no momento em que decide investir em novos nomes” (DIAS, 2000, p. 124). Ou seja, funcionariam de maneira articulada com as grandes, ainda que não tendo em mente este objetivo. Mas,

considerando a crescente migração de nomes de peso para as indies – Chico Buarque, Djavan, Gal Costa e Maria Bethânia - isto pode estar em vias de se modificar. O artigo no “Eu & Fim de Semana” coloca o quanto estas empresas ainda ocupam um pedaço pequeno do mercado quando comparadas às grandes, e diz que seu sucesso se encontra no fato de “saber o disco que estão fazendo e para quem vão vender”. Normalmente, são empresas que se focam mais em um determinado público alvo – mas, existem exceções, como é o caso da Deck disc que lança do sertanejo ao punk rock. As indies ocupam uma fatia pequena do mercado, mas nada indica que isso não possa se modificar. Uma contribuição recente de grande importância para nos auxiliar no mapeamento de novos modelos de negócio é um trabalho desenvolvido pelo projeto Modelos de Negócio Aberto – América Latina (Open Business Models – Latin America), coordenado pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em parceria com Overmundo. Eles estudam uma variedade de experiências dentro da América Latina que são consideradas como novos modelos de estruturas econômicas associadas à música, o conceito “negócio aberto” é utilizado para qualificar estas experiências. Eles enfatizam a apropriação de novas tecnologias por parte de “redes emergentes da periferia (...) a despeito de todo e qualquer incentivo advindo dos direitos de propriedade intelectual”, deflagrando “uma tensão entre a legalidade e a ilegalidade, assim como entre a formalidade e a informalidade”. Um destes novos modelos estudados é o mercado do tecnobrega. Como colocado na matéria do dia 9 de abril de 2007 do caderno INFO etc do jornal O Globo: “Oitenta e oito por cento desses artistas nunca tiveram contrato com gravadoras, mas são muito populares; 51% deles estimulam a venda dos CDs pelos camelôs, e 59% acham positiva a distribuição informal. Os vendedores de rua faturam, em média, R$ 1,74 milhão mensais com a vendagem de discos”. Acho difícil estar mais distante do modelo oligopolista das majors. Argumentemos que talvez este modelo não possa ser aplicado a todas as situações, mas a sua simples existência já indica que soluções alternativas são muito possíveis, ainda

que não muito fáceis de serem encontradas. Muito importante, porém pouco discutida, é a noção de “pirataria”. Para Chris Anderson em entrevista a Folha de São Paulo “baixar música de graça não é igual a pirataria”. Marshall acredita que houve uma expansão do que pode ser considerado “pirataria” nos últimos anos: “instead of referring to the ilegal copying of copyrighted works, the term is now being used to describe the unauthorized copying of copyrighted works” (MARSHALL, 2005, p. 200). Na discussão de Marshall o conceito de “fair use”, ou “uso justo”, é importante. Antes cópias individuais que eram consideradas um uso legítimo do material protegido, hoje passaram a ser consideradas “pirataria”, portanto, algo ilegal e moralmente condenável. O que ocorreu foi um rápido crescimento da capacidade de se realizar cópias idênticas e ilimitadas de um determinado material fonográfico, possibilidade que surgiu com a digitalização da música. No que diz respeito à realidade brasileira, o ministro da cultura Gilberto Gil nos diz o seguinte: “Nossa lei não diferencia cópia comercial de cópia privada : ao copiar um arquivo para um tocador de MP3 estamos, todos, cometendo uma ilegalidade. No Brasil, o que temos de parecido com o mecanismo legal norte-americano de ‘uso justo’ de obras protegidas é bastante limitado. Boa parte dos estudantes brasileiros comete ilegalidade ao produzir cópias de livros para sua formação educacional. O monopólio que foi concedido para o autor em relação à sua criação foi uma conquista histórica, mas teve a sua contrapartida nas cláusulas de limitações e exceções, que permitem a cópia de trechos de obras audiovisuais, de um livro, ou mesmo de uma música, sem que isso signifique uma violação do direito de autor. Essas cláusulas, no Brasil, estão entre as mais restritivas do mundo.“ O material jornalístico analisado se concentra claramente na discussão do aspecto econômico, focando-se na relação entre “pirataria” e “crise das gravadoras”. Experiências alternativas ao modelo das majors são consideradas – como as indies e o tecnobrega. Mas, apesar do reconhecimento de que há

mudanças em curso, a idéia de que o mercado musical vem sofrendo imensamente em função da “pirataria” é levada ao status de lugar comum. Discutir e tornar público o debate do que exatamente é a “pirataria” e como se organiza hoje a indústria musical é essencial. Caso contrário, corremos risco de nos guiarmos por uma concepção pejorativa e extremamente ampla de “pirataria” que apenas serve para fortalecer uma postura irrefletida de condenação quase que moral de qualquer tipo de cópia não autorizada pelo autor. Além disso, caso não nos aprofundemos em descobrir como se organiza hoje a produção musical, caímos na miopia de apenas considerarmos o estabelecido, o legal e o formal como dignos de análise, ignorando a forma fluida que a música parece tomar com o surgimento da Internet. Por último, pouco se falou de como outras culturas pensam a criação, da forma como o próprio ocidente pensa a criação e de quais valores estão subjacentes na atual legislação brasileira e internacional. No entanto, se existe algo com que todos concordam, pelo menos da boca pra fora, é na necessidade de se proteger a criatividade. Agora, como fazê-lo sem conhecêla? Contracultura e a Cultura da Internet

A história da Internet, como afirmou Castells, “põe em relevo a capacidade que têm as pessoas de transcender metas institucionais, superar barreiras burocráticas e subverter valores estabelecidos no processo de inaugurar um mundo novo. Reforça também a idéia de que a cooperação e a liberdade de informação podem ser mais propícias à inovação do que a competição e os direitos de propriedade” (CASTELLS, 2003, p. 13). Para Castells, podemos falar em uma “cultura da Internet”, e uma das características mais marcantes desta cultura – boa parte desenvolvida dentro de universidades e, portanto, muito próxima da pesquisa acadêmica – é o apreço pela liberdade de circulação da informação. Um exemplo é o software de fonte aberta, considerado por Castells “crucial no desenvolvimento da Internet”, abertura que segundo o mesmo autor é culturalmente determinada. A pirataria não deve ser considerada como uma

conseqüência apenas da tecnologia, mas também, e principalmente, de uma cultura que preza muito fortemente a livre circulação de informações. Como colocou John Perry Barlow na Declaração de Independência do Ciberespaço: “Governos do Mundo Industrial (...) vocês dizem que há problemas entre nós [do ciberespaço] que precisam resolver. Usam essa alegação como desculpa para invadir nosso recinto. (...) Seus conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto não se aplicam a nós. Eles são todos baseados em matéria, e não há matéria aqui”. A “cultura da Internet” surgiu de uma mistura de interesses e valores bastante curiosa. Concebida inicialmente para fins militares, a rede mundial de computadores foi capaz de se desenvolver até o formato como hoje a conhecemos em virtude de uma feliz decisão do Departamento de Defesa americano de criar a ARPA: “uma agência financiadora e orientadora de pesquisas dotada de considerável autonomia” (CASTELLS, 2003, pág. 22). Como nos conta Castells: “A política de flexibilidade e liberdade acadêmica da ARPA foi compensadora em termos de estratégia militar, ao mesmo tempo em que deu rédea solta à criatividade de acadêmicos americanos e lhes forneceu os recursos para transformar idéias em pesquisa e pesquisa em tecnologias viáveis” (CASTELLS, pág. 23). Assim, por ironia do destino, a tecnologia que mais se aproxima de funcionar segundo os valores libertários de liberdade de informação, apenas se tornou possível devido ao aporte de grandes investimentos de instituições estatais, entre elas o Departamento de Defesa norte-americano. Aqueles que ajudaram a construir a Internet podiam não participar ativamente de movimentos contraculturais, mas estavam “impregnados dos valores da liberdade individual, do pensamento independente e da solidariedade e cooperação com seus pares, todos eles valores que caracterizariam a cultura do campus na década de 60”(CASTELLS, 2003, pág.25). O desenvolvimento da Internet aconteceu através de memorandos “solicitação de comentário” (RFCs, “request for comments”), no qual os trabalhos sendo desenvolvidos eram apresentados a outros nós da rede que ofereciam comentários e contribuições. Esta forma de interação é muito presente na Internet até hoje, nem que seja

através da possibilidade de comentar uma notícia apresentada por um site de conteúdo jornalístico no qual você pode não modificar o conteúdo original, mas pode debater com outros leitores. A Wikipedia permite inclusive a criação de textos abertos nos quais qualquer um conectado a rede é capaz de intervir. Em suma, a Internet desenvolveu-se dentro das universidades, através do dinheiro estatal que tinha como objetivo inicial fins militares, e acabou se revelando de grande utilidade tanto para o Ministério da Defesa, quanto para a academia e para a contracultura pacifista e libertária presente nas universidades e norte-americanas nas décadas de 60 e 70. O Myspace O Myspace é uma rede social que funciona na Internet e possui atualmente um pouco mais de 115 milhões de usuários em todo mundo. Um número grande de músicos, iniciantes ou profissionais, coloca gratuitamente as suas músicas nesta rede social buscando atrair atenção para o seu trabalho. Funciona também como forma de estabelecimento de contatos profissionais entre pessoas interessadas em criar música, fotografia, cinema, poesia ou qualquer forma híbrida formada por diversas linguagens. Podemos começar a analisar o Myspace pelo nome, traduzindo do inglês para o português teríamos: “meuespaço”. E é exatamente isto o que é o Myspace, um espaço onde você pode colocar suas canções, seus vídeos favoritos, suas fotos, seus textos; no final da página outras pessoas tecem comentários sobre tudo isso. Depois que uma pessoa entra para o seu círculo de amigos você pode ou tecer comentários a respeito do seu trabalho ou trocar mensagens privadas similares a e-mails - com ela. Seus amigos e bandas favoritos podem ser colocados pelo usuário em posição de destaque, de maneira que os músicos que lhe influenciam ou aqueles com os quais você trabalha são associados à sua página principal. Qualquer pessoa que entrar para verificar a sua página, ao seguir através dos links, pode conhecer bandas de praticamente qualquer lugar do mundo. Inclusive, há um mapa que indica de quais localidades do planeta o seu Myspace já foi acessado.

Existem artistas muito diversos no Myspace, do curioso passando pelo já mais profissionalizado até chegar ao grande artista, que muitas vezes paga uma produtora para cuidar de seus “Myspaces”. A utilização de samplers e trechos de outras músicas é prática comum, músicas dos mais diversos pontos do planeta são cruzadas e transformadas, em suma, re-contextualizadas. A Internet foi criada como um trabalho em rede, e é assim que segundo Viveiros de Castro se faz a criação científica. Como colocou Castells: “a cultura da Internet enraíza-se na tradição acadêmica do exercício da ciência, da reputação por excelência acadêmica, do exame dos pares e da abertura com relação a todos os achados de pesquisa, com devido crédito aos autores de cada descoberta” (CASTELLS, 2005, p.37). O Myspace parece funcionar de maneira a contribuir para o estabelecimento desta criação artística pautada pelo trabalho em rede. Isto ocorre, por um lado pela simples disponibilidade de conteúdos diversos, por outro pela facilidade que a rede cria no estabelecimento de contatos profissionais. Outro exemplo interessante de criação através de redes é o site oficial do músico e produtor Lucas Santtana, feito com patrocínio da Petrobrás e utilizando licenças Creative Commons. Ele disponibiliza não apenas suas músicas completas, mas também os diversos instrumentos separadamente. Você pode fazer o download da bateria, baixo ou qualquer outro instrumento que preferir, trabalhá-los e reorganizá-los em uma nova faixa e mandar o resultado para o músico, que pode colocá-lo em sua página. O copiar e colar de conteúdos - o terror dos professores quando demandam trabalhos escolares de seus alunos - é extremamente facilitado através da Internet. Existe, portanto, uma imensa propensão a transgredir uma das oposições mais presentes quando se pensa na criatividade, aquela entre criação e cópia, oposição que remete diretamente ao conceito de originalidade. Como falou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, segundo esta forma de pensar “o criar e o copiar são os dois extremos de um processo, quer dizer, o criador é aquele que precisamente tira de si tudo o que precisa, e o plagiário é aquele que tira dos outros” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, 183). O autor, no entanto, defende a idéia de que “temos de criar um novo conceito de criação”, segundo ele, trabalhamos

em cima de um conceito de base cristã e romântica na qual o criador é uma “divindade no seu próprio departamento”, este como “Deus criou o mundo do nada, tirou de si mesmo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, 184). O antropólogo defende a necessidade de pensarmos a criação de uma maneira diversa, pois os modelos baseados no cristianismo e no romantismo “não dão mais conta do que está se processando nesse mundo atual (...) A criação artística está ficando cada vez mais parecida com a criação científica, que sempre foi um trabalho em rede, um trabalho em que você trabalha em cima do trabalho dos outros, que exige todo um aparato institucional complexo de produção coletiva” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, 186). Conclusão

Os jornais parecem nos informar que existe uma contradição entre a “indústria fonográfica” e o aspecto fluido que parece tomar conta da música em contexto de trocas pela Internet e proliferação de distribuidores “piratas”. A “indústria cultural” pensada inicialmente por Adorno e Horkeimer como uma cultura destinada a divulgar as virtudes do capitalismo e impor a ideologia dominante de uma elite parece ser aquela que mais sofre com a fluidez da música – ao menos quando nos voltamos para os casos do cinema e da música. O que verificamos com Funk no Rio de Janeiro ou com o Tecnobrega no Pará é uma música híbrida feita pela massa e não por uma elite. Encontramos uma influência forte de ritmos e artistas estrangeiros nestas músicas urbanas brasileiras. A hibridação torna muito difícil falarmos em valores autênticos ou em um ethos nacional, como aparece no pensamento de autores como Gilberto Freyre e Mario de Andrade. Tanto o Funk como o Tecnobrega assim como muitas outras manifestações musicais e artísticas na América Latina parecem se organizar como “negócios abertos”, experiências muitas vezes bem sucedidas ainda que bem distintas daquelas vividas pelas grandes gravadoras. Parecem ser negócios que: “apresentam como prática comum uma forma mínima de disseminação de conteúdo, dada a característica de “não-escassez” da informação.

Neste sentido, o valor de produção de tais modelos, em muitos casos, está associado com as receitas geradas por serviços ou com estratégias de agregar valor a determinado produto pelo aumento de sua popularidade.” (PROJETO DE MODELOS DE NEGÓCIO ABERTO, 2008, p. 4) Estes

exemplos

evidenciam

como

novas

formas

de

explorar

comercialmente a música são viáveis e não envolvem a necessidade de re-criar a todo custo a escassez abalada pela Internet. Esta batalha contra a “pirataria” trabalha de maneira contrária à imagem das grandes gravadoras. Neste sentido os selos parecem se sair melhor que as grandes majors, eles estabelecem uma relação mais íntima com o cliente e não possuem a imagem tão manchada. Ao processar os usuários das redes de troca peer-to-peer – em sua maioria grandes consumidores de música - as gravadoras estão simplesmente processando seus próprios clientes. Elas parecem trabalhar no sentido de denegrir sua própria marca, e isto me parece bastante grave em um mercado no qual se vende música, algo que tanto mexe com as emoções. O “argumento do incentivo” parece perder sentido com a quantidade de artistas que disponibilizam suas faixas de graça na rede. É claro que muitos deles procuram elevar sua popularidade para que possam ganhar dinheiro, talvez muitas produções nem vinguem em termos econômicos. Mas quem disse que o ser humano funciona de maneira utilitária quando faz música? A facilidade de se produzir música atualmente é tamanha que o rigor da legislação de direito autoral brasileira pode ser ineficaz e até prejudicial.

Por

exemplo, o tempo de setenta anos de vigência do direito autoral após a morte do autor - como acontece no Brasil – me parece um incentivo exagerado e mal direcionado para a criatividade, podendo facilmente gerar o efeito contrário ao dificultar

que

criadores

interajam

de

maneira

mais

aberta

com

obras

importantíssimas da sua cultura, re-contextualizado-as, divulgando-as e tornandoas atuais para outras gerações de pessoas interessadas em música. É claro que isto pode muito bem ser alcançado dentro da lei, entretanto, a atual legislação dificulta a utilização de recursos da linguagem musical mais recentes como o

sampler. Lee Marshal e Simon Frith apresentam duas projeções de futuro extremas no que diz respeito ao direito autoral: uma autoritária, na qual todas as trocas através da Internet poderiam ser rastreadas e todas as utilizações de material não autorizado

detectadas;

e

outra

anárquica,

na

qual

não

haveria

mais

reconhecimento algum do direito autoral. A primeira traria como conseqüência uma situação tão restritiva que a divulgação da cultura e possíveis manifestações artísticas – o sampler, por exemplo - seriam prejudicadas ou impossibilitadas. A segunda, um reconhecimento tão pequeno do direito do autor sobre a sua obra que teria como resultado uma produção musical diletante e pautada por pequenas estruturas. Os próprios autores reconhecem a baixa probabilidade de qualquer um destes dois cenários se desenvolverem plenamente, entretanto consideram esta tipologia útil para o entendimento do futuro da indústria fonográfica. As novas tecnologias e novas mídias possuem um papel fortíssimo no estabelecimento seja de um cenário ou de outro. De um lado temos as tecnologias DRM (digital right management), que são travas adicionadas aos arquivos de MP3 visando impossibilitar a troca gratuita através da Internet. Esta tecnologia, além de ser burlada facilmente com algum conhecimento técnico, também pode prejudicar as próprias empresas que vendem a música com esta trava. O que se argumenta é o seguinte: depois de tanta dificuldade para fazer o consumidor de música desembolsar alguns reais para a compra de uma faixa, a gravadora vai e complica a sua vida, dificultando o manejo desta faixa pelo comprador. Do outro lado, temos a o P2P (peer to peer) uma forma de troca gratuita de arquivos feita pela Internet onde os usuários podem intercambiar músicas, vídeos e fotos. A primeira tecnologia contribui para o cenário autoritário, já o P2P favorece o anárquico. Não podemos também esquecer aqueles que se encontram por trás destas tecnologias – hackers, crackers, programadores que trabalham para grandes empresas, etc. Havendo assim uma constante luta tecnológica entre uns que tentam estabelecer travas e formas de impedir o uso de conteúdo protegido por lei e aqueles que trabalham em prol de desarticular estes dispositivos. Muitas vezes as próprias tecnologias que visam controlar as ações dos internautas são

utilizadas no sentido de permitir o comportamento desviante na rede, como nos conta Castells: ”a criptografia é uma tecnologia ambígua porque, ao mesmo tempo em que pode preservar a confidencialidade, é também a base para tecnologias avançadas de identificação”. Acredito que mais relevante do que estudar as conseqüências negativas para um punhado de grandes empresas da constante troca de informações permitida pela Internet, pensar como isto pode contribuir para o estabelecimento de modelos alternativos que possam articular as trocas através de outras estratégias e formas de atuação na produção musical é de extrema urgência e importância. Além, é claro, de refletir sobre o papel da legislação dentro deste contexto.

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