Fotografia Estereoscópica do Séc. XIX: As experiências de efeito de espectáculo nas origens da fotografia e do cinema.

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AVANCA | CINEMA 2015

Fotografia Estereoscópica do Séc. XIX: As experiências de efeito de espectáculo nas origens da fotografia e do cinema. Filipe Costa Luz MovLab - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Rodrigo Peixoto ECATI - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

Abstract

Cinema das atracções e estereoscopia

Stereoscopic photography was one of the most widespread and industrialized forms of photography in the 2nd half of the nineteenth century, and has been the subject of increasing intrest in fields of study such as Archeology of Media, Communication Sciences, and Visual Culture. In it we find the origins of a notion of spectacle of which cinema, video games, and animation, have been the recipients in the XXI century. This article deals with the founding of a spectacular effect as a property of the act of seeing, and analyzes the problems arising from the remediation of this same effect, when performing the change from analogue to digital, necessary for the creation of a digital archive of stereoscopic photography.

Para os objetivos deste trabalho, parece-nos essencial a relação estabelecida com o cinema de atrações por Leon Gurevich (Gurevich, 2013: 83). Partilhamos a visão deste autor de que a estereoscopia não será um medium autónomo, mas uma técnica aplicada a diversos media ao longo da história. Pode definir-se como uma “técnica” que tem como principal característica uma espetacularização do ato de ver, transformando esta ação num acontecimento por si só que introduz novas formas de acesso e portabilidade da espetacularização enquanto ato passivo da visão. A relação que a estereoscopia mantém com o mundo dos media visuais parece ser de catalisação do espetáculo, de aumento da imersão da experiência e de introdução de um novo espaço. Embora a descoberta da estereoscopia por Charles Wheatstone não ter sido coincidente com a invenção da fotografia, nem a ter implicado no seu nascimento, acabou por apropriar a fotografia, utilizando-a como principal processo de representação. A criação em 1851 de um dos primeiros visores estereoscópicos com aplicação fotográfica, fabricado por Louis Jules Dubosq, era apresentado à Rainha Victoria na Crystal Palace World Fair Exhibition de Londres. Esta união precoce levou a que a natural espetacularização da estereoscopia e a natureza técnica da fotografia criassem um conjunto de novas formas de fazer e ver. Aliando-se na produção de imagens que fossem espetaculares a nível estereoscópico (com a influência da estereoscopia nos temas e composições fotográficas escolhidas) e fotográfico (com a procura das imagens que pudessem aumentar o nível de fruição do espetáculo estereoscópico), verifica-se a produção de imagens orientadas para o efeito de atracção, ou como indica Gurevich, “Awe inspiring” (Gurevich, 2013: 83-84). Esta união seminal entre as duas terá levado á confusão estabelecida na caracterização da fotografia estereoscópica como um medium autónomo, e não como uma técnica aplicada. Mas toda a ligação entre a estereoscopia e qualquer media visual acarreta o mesmo movimento que a sua ligação à fotografia acarretou: a imagem é criada em favor do aumento dos efeitos estereoscópicos, da espetacularização e da imersão do espetador. «The stereoscope is one major cultural site on which this breach between tangibility and visuality is singular evident» (Crary, 1992: 19) Crary faz uma interessante associação do estereoscópio aos dispositivos ópticos (que estão associados aos primórdios da animação), como mecanismos de entretenimento de massas mas que derivaram dos estudos da visão e seus fenómenos

Keywords:Stereoscopic photography, Awe effect, Remediation, Archive.

Introdução A ascensão da estereoscopia na 2ª metade do século XIX, tendo sida difundida com enorme expressão no mercado (estimando-se que na viragem do século dezenas de milhões de cartões estereoscópicos fossem vendidos anualmente), acabou por entrar em esquecimento no segundo quartel do século XX. Assistiu-se a uma quase anulação na história de disciplinas como a fotografia, ou o cinema, mas que nas últimas décadas a estereoscopia ganhou novo fôlego e tem sido objeto de estudo amplamente discutido em ciências da comunicação ou arqueologia dos media. Não pretendemos nos envolver nas discussões sobre as razões do seu declínio ou criar culpados para o mesmo, seja o aparato necessário para a visualização, a subjetividade da imagem estéreo (Jonathan Crary, 1992: 14) ou a sua utilização por industrias moralmente condenáveis como a pornografia (AA.VV, 2013: 183). Neste trabalho abordamos a fundação de um efeito espetacular enquanto orientador do ato de ver e analisamos os problemas que surgem da remediação desse mesmo efeito na passagem do analógico para o digital. Verificámos que este processo de conversão de imagem necessária para a criação e disseminação de arquivos digitais de fotografia estereoscópica não é linear, na medida em que a projecção digital de cartões estereoscópicos apresentam várias dificuldades para uma adequada consistência na reprodução do efeito de relevo.

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Capítulo II – Cinema – Cinema

ópticos. Como objectos capazes de confrontar a experiência visual e baseados em estudos científicos, segundo Crary atentam à noção de realismo por promoverem a ilusão do mundo real em teorias da visão (Crary, 1992: 8). O estereoscópico nasce num período que se analisa o “depois da imagem” (afterimage) em estudos sobre a visão binocular e que antecede a própria fotografia. Não pretendemos afastar do tema aqui proposto, mas é de facto pertinente notar que os primeiros dispositivos ópticos para estudos do fenómeno da persistência retiniana da visão, nomeadamente o fenaquitiscópio ou taumatrópio, são contemporâneos do trabalho de Charles Wheatstone e estão muito associados ao “espectáculo da animação”. Desde as primeiras animações desenhadas de Winsor McCay, às figuras vivas desenhadas em quadros de ardósia de James Stuart Blackton que sucederam aos espectáculos Lightning Sketches ou aos truques mágicos de George Méliès ,que a animação é orientada para a produção de “awe effect” com fortes ligações à experimentação técnica tão características também na imagem estereoscópica. Com o surgimento do cinema de David W. Griffith e com o desaparecimento da estereoscopia da equação da espetacularização do ato de ver, o que resistiu terá sido: por um lado a natureza das imagens captadas, que terá originado o cinema de atrações; por outro lado a técnica de manipulação das imagens estereoscópicas dando origem ao mundo dos efeitos visuais aplicados ao cinema, nomeadamente os efeitos de George Mélies, aos Glass shots de Norman O. Dawn, as duplas exposições de Edwin S. Porter, ou as criaturas fantásticas de Willis O’Brien e de Ray Harryhausen. A fotografia estereoscópica, ao ser uma das primeiras formas de espetáculo visual produzido e consumido em massa, está na origem de uma noção de espetáculo que hoje utilizamos aplicada à generalidade dos media visuais. Ou seja, aos media que implicam um grau de imersão considerável, como o cinema, a animação ou os videojogos. E não será por acaso que os cartões estéreo se podem qualificar como media cinemáticos, na medida em que “while they were not moving images, they can be thought of as proto-cinematic special effects” (Gurevich, 2013: 399). O motivo dos cartões estéreos foi dominado comercialmente por uma tendência de representação do espectacular. Imagens de monumentos ou eventos extraordinários, de poderosas industrias ou grandes máquinas, revelam uma tendência narrativa muito aproximada aos motivos retratados no início do cinema. Gurevitch & Ross reforçam esta ideia através do exemplo de L’Arrivé d’un traine en gare de La Ciotat (1895) com vários exemplos de cartões estéreos que procuraram criar o mesmo “efeito de colisão” do comboio com o espectador (Gurevitch & Ross, 2013: 85-86). É um facto também de que a estereoscopia introduziu novas técnicas de manipulação de imagem que procuraram aumentar a sua natural espetacu-laridade (hold-to-light and french tissue view stereocards1), promovendo a criação de ambientes fantásticos

(o inferno), de alterações visuais nas imagens (surgimento de cores) e de recriação do ambiente da própria imagem (ilusão noturna). Quase todas estas técnicas podem ser encontradas em máquinas ópticas mais antigas (como o megalitoscópio, ou os teatros de miniaturas), mas a sua adaptação à imagem fotográfica enquanto território de espetacularização terá surgido aqui. Esta adaptação não será um pormenor: a necessidade de pensar a realidade de modo a que esta seja capturada pela máquina, para posteriormente poder ser manipulada, inaugura a técnica de efeitos visuais tal como ela é entendida hoje na sua aplicação ao cinema ou à animação. E no entanto a estereoscopia está praticamente ausente da bibliografia principal (se não de toda) da história dos efeitos visuais2.

Figura 1 – The first train to cross ... bridge June 5th 1897, Wrightsville (1897) .

Figura 2 – President Roosevelt’s western tour - the presidential train in the Rockies (1903).

Parece que esta remediação da espetacularização apagou os seus progenitores. No entanto, até a nível cronológico, são óbvias as ligações entre as “Diableries” (1860-1900 1900), com o cinema de Georges Mélies (cuja carreira se iniciou em 1896 com “Un petit diable”) ou com as técnicas actuais de manipulação digital de imagem fílmica e fotográfica.

Efeito espectacular da estereoscopia A estereoscopia é uma constante na indústria de entretenimento, tendo sido uma área de criação de muitos pioneiros do cinema, fotografia ou animação (Allison et.al., 2013: 150). Thomas Edison patenteou em 1891 o cinetescópio que de imediato deu origem a salões onde os espectadores pagavam 25 cêntimos de dólar para visionar pequenas acções capturadas em cerca de 15 metros de película. Esta orientação 29

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“exibicionista” de efeitos espectáculos, a que Tom Gunning indica como cinema de atracções cedo se orientou mais pela empatia no dispositivo e menos para o conteúdo narrativo. Veja-se o caso dos Hale’s Tour, onde a simulação de uma viagem de comboio era conseguida através dum complexo aparato3. Apesar de Gunning se referir aos exemplos de pré-cinema (Gunning, 2006: 382), o espectáculo, a emoção ou a experiência visual do efeito tridimensional, é ainda hoje explorado no cinema para a ligação emocional do espectador ao conteúdo estereoscópico. Veja-se como Alfred Hitchcock explorou o 3D na cena do crime em Dial M for Murder (1954) ou como em Caroline (Henry Selick, 2009) o efeito é reforçado sempre que a personagem Caroline habita o universo paralelo da acção. Actualmente os argumentos são mais adequados à integração do espaço 3D na sala de cinema e do mesmo modo que se utiliza a cor ou o som para criar um determinado efeito sobre o espectador, verifica-se uma maior preocupação da relação do relevo criado pela imagem com a narrativa. Não nos interessa discutir a relevância artística dos filmes estereoscópicos (S3D), contudo sabemos que a estereoscopia tem um papel muito importante na história do cinema, nomeadamente na sua componente comercial. O cinema vende conteúdos e tecnologia, o que justifica seguramente a “moda” dos filmes 3D flutue ao longo dos anos4. De igual modo, é também natural que os géneros mais explorados sejam o horror, aventura, ficção científica, efeitos visuais ou pornografia, ou seja, todos os filmes que oferecem provavelmente mais espectáculo e menos argumento. Este efeito de espectáculo em relevo tem a orientação muito clara de se apresentar directamente para a audiência. Do mesmo modo que referíamos anteriormente os lightning sketches, no qual os desenhadores realizavam uma performance fisicamente muito ligada com a plateia5, verifica-se não só que o cinema de animação tem origem na performance, como a estereoscopia se relaciona intimamente entre a imagem que é projectada do ecrã para a audiência. Após o pré-cinema, os filmes em estereoscopia surgiram em diferentes momentos, criando historicamente uma sucessão de altos e baixos6. Mas história da estereoscopia é mais do que uma sucessão de booms nos quais os aspectos comerciais forçaram uma orientação pobre para a narrativa esteroscópica. Em pleno momento de aparente desinteresse pelo cinema S3D, assiste-se igualmente ao renascer dos head mounted displays para a indústria de jogos (nomeadamente através da dinâmica em volta do modelo Oculus Rift ou de óculos de realidade aumentada) e a exploração criativa da estereoscopia para fins artísticos. Veja-se com os festivais de cinema ou de animação têm apresentado filmes de estereoscopia, com particular enfâse para a versão digital das experiências de Norman McLaren de meados de 1950. Now Is The Time (to put your glasses on) (Norman McLaren, 1951) e Around Is Around (Gretta Ekman, 1951) que foram recuperados 30

em 2014 para o Edimburgh International Film Festival tendo o festival Monstra 2015 os exibido em conjunto com uma selecção de animações estereoscópicos do National Film Board of Canada, como Come Closer (Hy Hirsh, 1952). O S3D não adiciona ao espectador de cinema muito mais informação de que um filme 2D. Não se trata-se de uma gramática totalmente nova, mas existem algumas diferenças estéticas no modo como camadas de informação visual se distribuem em profundidade para fora do ecrã. Alguns conteúdos, como The Adventures of Tin Tin (Steven Spielberg, 2011) ou Pina (Wim Wenders, 2011) procuram uma estética mais natural e não de relevo exagerado. Nestes exemplos, a presença do 3D é realçada em sintonia com a cor, o som ou enquadramento e não se apresenta unicamente orientada para a amplificação da tela de cinema para um universo quase holográfico. Segundo Ron Burnett, o 3D aproxima o movimento do espectador enquanto no cinema 2D verifica-se uma dimensão mais distante na qual a câmara movese espacial, física e temporalmente de acordo com a natureza das lentes e da luz (Burnett, 2013: 207). Tal como nós, Burnett não pretende fazer maiores distinções cinematográficas entre o cinema 2D ou 3D, contudo procura justificar nos conceitos de “closeness” e “approximation” as diferenças para os movimentos de câmara mais distantes ou aproximados ao espectador e, por conseguinte, para toda uma narrativa visual de formas que reforça uma maior presença de espaço-movimento. Ora (Phillip Baylaucq, 2011) é um exemplo próximo de Pina, na medida em que se trata de uma peça coreografada, porém é uma experiência sensorialmente mais forte devido à plasticidade das imagens representadas. Danças capturadas por câmaras de vídeo vigilância capazes de capturar o calor dos corpos, produzem um efeito cinemático espectacular gerado pela “textura em calor” dos bailarinos, pela transformação do espaço manipulado por reflexos ou pela integração dos movimentos da dança e da câmara em profundidade (3D)7. Será segundo esta orientação estética para qual o S3D poderá artisticamente evoluir, ou seja, afastar-se de uma tradição comercial da produção de um “efeito uau” para uma exploração criativa de camadas de informação que se orientam espacialmente em profundidade.

Figura 3 – Ora (Phillip Baylaucq, 2011).

Capítulo II – Cinema – Cinema

Figura 4 – Ora (Phillip Baylaucq, 2011).

Caso contrário, parece-nos que a estereoscopia será muito pertinente para simuladores em partes temáticos, efeitos performativos como concertos de música dos Kraftwerk, por exemplo, ou para os tradicionais géneros cinematográficos que requerem maiores “atracções”. O actual desinteresse em filmes S3D não se limita à falta de espectativa das audiências no valor adicional de um conteúdo estereoscópico. Todo o processo de produção de imagem é mais complexo e, por conseguinte, mais dispendioso. Sabemos que os investimentos em BlockBusters, como a saga Hobbit (2012-14) de Peter Jackson são muito elevados, mas garantem o retorno do investimento. Actualmente os produtos mainstream têm muita dificuldade em recuperar os gastos de produção em filmes S3D. Apenas alternativas como Pina ou Ora parecem vingar como produções S3D, visto que até o mercado de televisão já abandonou o interesse na estereoscopia, apesar do investimento financeiro e técnico realizado para os Jogos Olímpicos de Londres. No ponto seguinte iremos tentar demonstrar que a manipulação necessária à conversão digital de cartões estereoscópicos envolve um complexo processo de pós-produção que é de certa forma exemplificativo dos custos adicionais do trabalho para filmes S3D.

Remediação: estereoscópico

o

arquivo

digital

As preocupações com o arquivo fotográfico e a sua natural digitalização são um campo de investigação por si só. A materialidade das fotografias ou o acesso à informação contida na relação com esta mesma materialidade, tem vindo a revelar-se crucial para estudos no campo da Antropologia Visual. O que é definido como a biografia cultural das imagens fotográficas ganha importância e torna-se essencial para a compreensão do sentido fotográfico de uma imagem enquanto objeto sociocultural (Edwards, 2005: 10). Embora o conteúdo visual de uma imagem fotográfica aparente ser a sua manifestação mais premente, é inegável que o acesso à informação material do objeto permite clarificar, confirmando ou negando, o seu conteúdo visual, criando um contexto social e cultural para a imagem. Esta materialidade da imagem elucida em relação á sua vida na época em que foi realizada, permite estabelecer uma relação com a forma como ela foi vista pelos seus contemporâneos, compreender a sua finalidade.

Toda esta informação está muitas vezes separada do acesso digital a uma imagem. Estas questões, obviamente cruciais para a Antropologia Visual, são também preponderantes na Arqueologia dos Media. O acesso visual a diferentes processos de impressão fotográfica (Albumina, Platina, Brometo, etc.), o aparato visual que dá forma à apresentação de uma imagem fotográfica (estojos de daguerreótipos, cartes de visite, postal ilustrado, etc.), a informação contida em textos e a forma como estes textos se inserem no objeto fotográfico, ou a informação de seleção deixada pelo seu autor (reenquadramentos) ou de catalogação (marcas de cor que estabelecem hierarquias), têm que ser questões essenciais para um investigador num campo que se define com a palavra Arqueologia (ainda que num sentido alargado). No caso da estereoscopia todas estas questões surgem potenciadas pela natureza do processo de acesso à imagem (duas imagens semelhantes mas não iguais, que geram uma terceira imagem tridimensional, a que nenhuma corresponde, e que não possui uma existência física mas é formada por um processo fisiológico natural da visão humana), pelo seu repositório físico, (o cartão ou a placa de vidro, geralmente alvo de outros adornos e comentários escritos) e pelo aparato específico necessário para a visualização em estéreo em toda a sua espetacularidade (os visores Holmes, Brewster ou Verascope). Tudo isto, parece negar a possibilidade de existência de um verdadeiro arquivo digital de fotografia estereoscópica, ou pelo menos de um que possibilite uma experiência justa em relação ao objeto original. Com o aparecimento das televisões 3D a preços mais acessíveis e de utilização relativamente fácil abrem-se novas possibilidades para o arquivo digital estereoscópico. Reconhecemos o enorme incremento de facilidade de consulta e acesso que os arquivos digitais oferecem. Podemos advogar que a experiência não é a mesma e que nada substitui o acesso direto aos originais, mas ainda assim estes arquivos constituemse como uma ferramenta essencial em determinadas fases de investigação. A experiência na digitalização e projecção das imagens estereoscópicas em suporte digital efectuado no âmbito do projecto FCT Stereo Visual Culture (PTDC/IVC-COM/5223/2012) forneceu dados técnicos muito relevantes que consideramos essenciais, na passagem das imagens da sua existência analógica para o ambiente digital 3D que serão abordados numa fase mais avançada deste trabalho. Para além da óbvia necessidade de acesso ao cartão ou vidro original, de forma a que se compreenda a sua realidade sociocultural (se faz parte de uma coleção comercial, se se trata de uma fotografia privada, entre outros), tornou-se muito importante poder aceder ao negativo original, de modo a compreender as opções de reenquadramento ou de catalogação. As imagens selecionadas para visualização em ecrã foram fotografadas utilizando uma câmara DSLR Canon 5D8, reproduzindo uma iluminação homogénea na frente, ou nas costas quando necessário, sendo posteriormente alvo de pós-produção simples de calibração ou alinhamento na maioria dos casos (figuras 5 e 6). 31

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Figuras 5 – Captação digital de pares esteroscópicos (cartão Diableries n.47 da série A, 1860).

avanços tecnológicos, as imagens capturadas em 3D requerem serviços de pós-produção para se garantir efeitos de relevo (naturais ou mais exagerados). Na nossa análise aos pares estereoscópicos das mais variadas colecções, é facto que grande parte das fotografias não apresentam vestígios de manipulação (reenquadramento) e, por conseguinte, surgem frequentemente elementos capturados apenas numa das imagens esquerda ou direita. Ora, o que a prática de pós-produção e extensa bibliografia nos indica é que este é um erro a evitar, principalmente quando se trabalha em imagem digital (Baumgartner, 2014: 1617). Na figura 7 podemos observar que a North Wing do Crystal Palace apenas surge na imagem do lado esq. De igual modo, verifica-se um acentuado desacerto na altura de ambas as lentes. A imagem do lado direito surge num ângulo mais picado, sendo visível maior área do chão em relação à câmara do lado esquerdo. Quando observadas as imagens num visor analógico, estes erros tendem a ser disfarçados devido à maior exposição do espectador à imagem e, principalmente, à possibilidade do espectador poder afinar o efeito que assiste através de manipulação manual, seja a distância das imagens às lentes do visor, seja a escolha de um ponto de luz diferente para a retroiluminação.

Figura 6 – Captação digital de pares esteroscópicos com retro iluminação (cartão Diableries n.47 da série A, 1860).

Nos cartões estereoscópicos, a intrusão das imperfeições na superfície das imagens (riscos, manchas) ou diferenças de luminosidade entre o lado esquerdo e direito não é aparentemente inibidor da produção do efeito da 3ª imagem (relevo). No entanto, ecrã de televisão observou-se a situação inversa: grande aumento de influência das imperfeições na visualização da imagem 3D; maior influência das alterações de luminosidade entre a imagem esquerda e direita; flickering causado na sobreposição entre as imagens do lado esquerdo e direito. Deste modo, verificou-se a necessidade de ajustar a por não serem raros os casos em que imagens que são visualizadas sem dificuldades num visor Holmes, oferecem por sua vez grandes desafios à visão, dificultando a experiência do 3D. As áreas das imagens representadas em estereoscopia (figura do lado esquerdo e direito) que não são sobrepostas, devido a elementos ausentes ou desalinhados de uma imagem para a outra não resultam num efeito 3D em projecção digital. Significa que a digitalização de um cartão estereoscópico pode ser efectuada normalmente por um scanner ou por fotografia, contudo quando projectadas em estereoscopia digitalmente é frequente o resultado ser mais pobre ou de todo impossível de reprodução de efeito de relevo. Desde 2004, quando a imagem estereoscópica foi reintroduzida no cinema no período de renaiscance 3D que grande parte da indústria de equipamento cinematográfico tentou aperfeiçoar a qualidade da projecção 3D. Apesar dos relevantes 32

Figura 7 – Par estereoscópico da colecção do Arquivo Municipal de Lisboa - Fotográfico (cota: AML-AMLSBBUF-001760).

O modo íntimo como se observa uma imagem em 3D num visor holmes não é o mesmo de uma imagem numa 3DTV9. Quando pretendemos analisar as imagens por meios digitais, é necessário um conjunto de procedimentos de pós-produção 3D que garanta que os pares de imagem formem o “3DFrame” (Baumgartner, 2014: 17). Ou seja, o lado esquerdo e direito tem de apresentar os mesmos elementos capturados e estarem devidamente calibrados (alinhamento, cor, redução de ruído, entre outros). Na figura 8 podemos verificar a área selecionada no trabalho de pós-produção para que o efeito estereoscópico possa ser devidamente visualizado num 3DTV.

Figura 8 – Reenquadramento a efectuar para conversão digital.

Capítulo II – Cinema – Cinema

Para além desta pós-produção de imagem necessária à projecção em formato digital de pares estereoscópicos deste período, a luminosidade e degradação visível nas fotografias requerem um cuidado adequado. Para melhor exemplificação, detalhamos o trabalho de pós-produção efectuado na imagem “Barcelona” de Arthur Benarus (figura 9). Podem-se verificar várias marcações circulares, que indicam a presença de ruído na imagem original e que é naturalmente captado no processo de digitalização. No momento da projecção desta imagem por sistema digital, o ruído torna-se demasiado presente, desviando a atenção do espectador para manchas que ganham uma dimensão tridimensional e cintilam sobre a imagem. O processo adequado para a correcção do erro passa por trabalho de manipulação fotográfica de modo a eliminar o ruído através de processos de reconstrução (cloning e healing).

rapidamente nos apercebemos que o touro e o cavalo seriam o centro da convergência, contudo a forte mancha visual criada pela luminosidade, nitidez e dimensão do chapéu, desviam a atenção do observador. Assim sendo, optámos por desfocar ligeiramente esta figura de primeiro plano e escurecer um pouco a sua tonalidade.

Figura 11 – Indicações sobre o ponto de convergência escolhido em pós-produção para optimização do efeito 3D em suporte digital.

Figura 9 – Marcações de imperfeições presentes no cartão estereoscópico (cota: PT-AMLSB-BUF-000035).

Figura 10 – Pormenor ampliado da imagem anterior.

Nesta imagem surge um erro curioso e que no caso de uma reprodução digital em estereoscopia obriga também a uma importante manipulação, mas que retira alguma autenticidade à imagem. Trata-se da diferença de luminosidade entre a imagem do lado esquerdo com a do lado direito. Na figura 9 é visível a disparidade entre a tonalidade do chapéu (indicado com setas na figura) e que promove uma inadequada variação de luminosidade entre as duas imagens quando projectadas digitalmente. Após niveladas as cores, o chapéu permaneceu como um problema pelo facto de que o efeito tridimensional da imagem não ser fácil de atingir devido à enorme presença de relevo que ocupa. Para que o espectador navegue naturalmente sobe esta imagem, é importante que o destaque seja dado ao centro de convergência (parallax zero) e que o efeito 3D possa ser naturalmente criado a partir desse ponto. Ao sobrepormos as duas imagens,

Em todo este processo surgiu uma dificuldade na reprodução digital das imagens estereoscópicas em suporte de vidro (para verascope) que se prende pelo facto de muitas vezes não se poder auferir com precisão se os vidros foram digitalizados na correcta posição, sem inversão do lado esquerdo com o direito. Encontrámos referências sobre a preocupação em não inverter a imagem do lado esquerdo com o direito em publicações da época que descrevem em detalhe o processo de reprodução (AA.VV,.1900: 100). O facto das provas autochromes serem impressas nas costas do vidro, obtendo-se um positivo directo (AA. VV., 1909: 20), detectámos nas colecções analisadas no âmbito do projecto que algumas imagens foram digitalizadas de modo inverso o que provocou a troca do lado esquerdo com o direito e, por conseguinte, que os objectos de fundo sejam visualizados em primeiro plano e vice-versa. Nestes casos, tivemos de inverter ambos os lados com efeitos de espelho (escala em x igual -1), para que o efeito de relevo pudesse ser reproduzido do modo previsto.

Conclusões Verificámos as interessantes relações na projecção de efeitos de espectáculo (awe effect) que se podem estabelecer entre o cinema, a animação e a estereoscopia, tanto em suportes fílmicos como fotográficos. Antecedentes históricos que criaram um cinema de atracções, são partilhados pela fotografia estereoscópica como pode ser exemplificado pelos diferentes motivos que procuram retratar narrativas de modo tridimensional num claro objecto de intermediação conteúdo-espectador mais aproximada do que a projectada no cinema. Verificámos também que o trabalho de digitalização e pós-produção dos cartões e vidros estereoscópicos no âmbito do projecto SVC, podemos facilmente concluir que o efeito de relevo em suporte digital obriga à manipulação das imagens originais, o que 33

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é controverso em termos de reprodução fidedigna de imagens de arquivo museológico, contudo podemos certificar que o resultado do “efeito 3D” e Awe effect é muito fiel e enriquecedor.

Notas Finais 1 Adolf Block (B.K.) foi o principal produtor de cartões de transparência (Ray Zone, 2007, p.20), conhecidos como french tissue), tendo as diableries contribuído fortemente para o efeito de espectacularização da imagem estereoscópica através dos motivos macabros, efeito 3D e efeito de retroiluminação. 2 Apenas em publicações técnicas de pós-produção se encontram algumas referências a estereoscopia (Steve Wright, 2010 e Lee Lanier, 2010), enquanto enciclopédias de efeitos visuais fazem muito pouco destaque a esta área. Veja-se como Richard Rickitt apenas refere-se ao cinema em estereoscopia entre as pg 354-375, apesar do importante destaque dado na contra-capa com imagens de audiências com óculos passivos. 3 Num período contemporâneo dos famosos Nickelodeons, George C. Hale criou estas viagens em parques temáticos, onde espectadores poderiam embarcar numa carruagem que abanava, com som de viagem de comboio, projecção de imagem com paisagens em movimento, controlo de bilhetes efectuado através de um “revisor”, entre outros). (Gomes Mattos, 2006: 21). 4 Uma das razões apontadas para a recente reintrodução da estereoscopia no cinema, o chamado período renaissance 3D (2005-2010) foi o facto de a venda de bilhetes dos filmes S3D a um preço superior, ter sido negociado para justificar que as salas de cinema pudessem fazer o upgrade dos projectores de película para digital (Elsaesser, 2014: 220). Os “novos” filmes digitais a três dimensões foram apresentados pela indústria como uma maneira de combater a pirataria e de trazer de novo os espectadores às salas de cinema. 5 Cf. Malcolm Cook, The Performative Origins of Animation, 2013 (online). 6 Existem algumas experiências pontuais de alguns entusiastas de estereoscopia que não foram associadas a nenhuma dos períodos academicamente definidos estão organizadas pelo (1) The Novelty Period (1838 to 1952); (2) Golden Era - An era of Convergence (1950-55) no qual Bwana Devil (Arch Oboler, 1952) surge como o marco principal; (3) Revival Era (1960-1983), destacando-se Eyes of Hell (Julian Roffman, 1960); (4) Rebirth of 3D - The Imersive Era (19842003) com destaque para We Are Born of Stars (Roman Kroitor, 1985) por ser um dos fundadores do IMAX e adepto do cinema vérité e por último, (5) Renaiscance - Digital 3-D Cinema (20042010) devendo-se salientar Ghost of Abyss (James Cameron, 2003) e The Polar Express (robert zemeckis, 2004). 7 Cf. https://www.youtube.com/watch?v=u42xzn_KuuQ (último acesso a 15 de Abril de 2015). 8 Utilizou-se uma lente macro Canon (100mm), um Kit de iluminação Kaiser 1000w com 3 Caixas de Luz e sistemas de suporte Manfrotto. 9 Para ajustar valores de paralaxe não é normalmente um processo simples. Nos monitores testados (LG e Samsung) é necessário aceder a vários menus de configuração o que torna a interacção muito pouco friendly.

Agradecimentos À FCT pelo apoio prestado ao projecto Stereo Visual Culture (PTDC/IVC-COM/5223/2012) e aos colegas da respectiva equipa de investigação.

Bibliografia AA.VV.2013. The Oxford Encyclopedia of American Cultural and Intellectual History, in Joan Shelley Rubin e 34

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