Fotos Rasgadas

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Imagine você, meu leitor, aquela pessoa cujo sofrimento foi tamanho que ela quereria [ou quer] rasgar suas fotos de infância, todas as suas fotos, porque sente que "ali e então" [e, às vezes, ainda 'aqui e agora'] "não foi vista, de fato". "Nunca teria sido vista, de fato" Presunção de tal criatura? Não. De fato, ela estava ali sozinha, e seu meio mal sabia de si [medos, agruras, solidão]. No meu ensaio, O Olho Que Nos Olha Nos Olhos, conto a respeito de uma crise de pânico de certa paciente, onde a foto funcionou como "gatilho" para a crise [na verdade, o gatilho foi certa foto somada a outros fatores, que estão lá, na postagem; capítulo terceiro do Olho: "Tempo Fechado para o Ferido Narcísico"]. A pessoa em questão não rasgou suas fotos, mas conheço pessoas que rasgaram. E isso não significava "vontade de apagar o passado". Não. Trata-se de coisa mais complexa.

Se a pessoa está na foto, ela se olha e sabe que "só a si se tinha", porque os outros ao lado nada sabiam dela. Isso ocorre com transexuais, por exemplo. Mas com muitos outros que sofreram montantes inquantificáveis e inqualificáveis de abusos e negligências [muitas vezes, ambos: alternadamente e em contextos diversos]: morais, emocionais, físicos. Repito: abusos e negligências. Ênfase para o conectivo "e".

Assim, para tais pessoas, rasgar a foto não seria um ato de traição para com o ocorrido, mas de "verdade" para com as ocorrências todas, uma vez que "lá e então [nos contextos das tais fotos de infância, emblemas dos tais fatos infantis] estavam sozinhas e anônimas", naquilo que mais lhes importava: em aspectos essenciais de si mesmas. Estavam sós. O ato de rasgar implicaria em "assumir para si" [num gesto dirigido também ao outro, portanto "dizendo aos companheiros da foto"] que estavam sós.

Sempre falo e reitero a dor ligada à identidade, a dor de não ser visto em aspectos nevrálgicos que nos definem, desde lá atrás: as agressões vividas na escola, os medos religiosos impronunciáveis, os pesadelos inomináveis, o terror do ambiente familiar "disfuncional" [sic; esta palavra é mansa demais para o contexto], o estar num corpo que lhe parece errado ou desconexo [se pensou nas intempéries e cisões pisque-soma tratadas por Winnicott, siga por aí, que é um bom caminho de exploração]. No caso de haver uma biografia com este perfil trágico [sim, a palavra é esta: faça um roteiro de filme e tente definir o personagem de outra maneira que não "trágico", e verás que o adjetivo "dramático" falseará o enredo], deve-se entender o fulcro da problemática: a cura do grande ferido passa por dois vetores bastante nítidos: 1) Sua história precisa caber dentro dele [em si mesmo e no seu corpo], ele não pode sentir que "sua história é maior do que ele"; 2) os elementos suprimidos [os impensáveis, bem como os "pré-pensamentos", tais quais os ideogramas de Bion] precisam ser trazidos para a tira biográfica e "caberem nela". Resumidamente: o sujeito tem de sentir que o que viveu não o sobrepuja nem o sobrepõe; não o afoga, nem o torna um Náufrago. E mais: que o não dito encontra seu lugar na sua tira biográfica, seja ele o Inefável, o Impensável, o pré-pensado, o não-assumido, o segredo ou interdito familiar, seja o que for. Às vezes, isso é incluso e cabe ao sujeito como "halo", perfume, faro [no caso dos Inefáveis], como religiosidade sincera e exorcismo dos terrores mais arraigados; outras vezes, como um novo corpo que se apresenta mais fiel ao que sempre se sentiu de si [no caso dos transexuais]; outras, ainda, na possibilidade de se saber inteiro e "com o tamanho que lhe cabe", de fato, sem idealizações [deificações] e/ou demonizações [eis a cura de Narciso!], apesar das fotos já não existirem mais.





Marcelo Novaes


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