Francisco Sanches - o \"elo perdido\" entre os descobrimentos e a ciência moderna

Share Embed


Descrição do Produto

CENTRO DE HISTORIA DA CULTURA

ONESIMO TEOTONIO ALMEIDA

FRANCISCO SANCHES-O «ELO PERDIDO»

ENTRE OS DESCOBRIMENTOS E A CIENCIA MODERNA

Usboa 2000-2001

FRANCISCO SANCHES - 0 "ELO PERDIDO"

ENTRE OS DESCOBRIMENTOS E A ClENCIA MODERNA

Onesimo Teotonio Almeida Brown University

Hi anos que venho dedicando algum tempo a uma revisita~ao mais ou menos sistematica da questao da ciencia em Portugal nas suas duas vertentes fundamentais: 0 seu apogeu no perfodo dos descobrimentos e 0 seu declfnio que acompanhou a decadencia do paiS como potencia marftima e nao s6. Tenho referido amiudadas vezes as dificuldades em manter 0 debate sobre estas questees a urn nivel tanto quanta possivel factual. Poucas areas da cultura portuguesa estarao Hio fortemente politizadas como esta, dadas as ramifica~ees implicadas neste no gordio do nos so passado culturaL Aqui, prosseguirei na linha encetada evitando descambar para terrenos ideol6gicos continuando a cingir-me tanto quanto posslvel ao que julgo permitirem-me os dados documentais. No passado aludi mais do que uma vez a dificuldade de manter urn dia­ logo em duas frentes: a portuguesa, dividida entre urn segmento que emban­ deira em arco com 0 empreendimento dos descobrimentos e os novos mun­ dos ao mundo por eles dados, e uma outra, hipercrftica, que aguerridamente se Ihe opee, nomcadamente no que de impacto os descobrimentos possam ter tide no domlnio do pensamento. A outra grande frente e a estrangeira, sobretudo a anglo-americana, em geral distrafda e confrangedoramente desconhecedora de dados basicos que qualquer dos flancos da frente por­ tuguesa considcra incliscutfveis. A grande excep~ao foi 0 historiador da ciencia R. Hooykaas, holandes mas que publicou em lfngua inglesa, conti­ nuada agora por UtH seu discipulo, H. Floris Cohen. No campo portugues, a nossa excep~ao foi LUIS de Albuquerque. Aqui, situar-me-ei na peugada destes historiadores da ciencia apontan­ do razees que me parecem colmatar sensivelmente 0 hiato entre os descobri­ mentos e 0 seu impacto na instaura~ao da nova ciencia. Francisco Sanches parece-me pila.am. fundamental nessa ponte. La chegaremos. Num debate tido um dia com um publico de historiadores americanos sobre a importancia do conceito de experiencia nos descobrimentos por­ tugueses como substituidora da autoridade dos c1assicos, entao criterio ulti­ mo de verdade, 0 argumento final e prevalecedor foi mais ou menos assim expresso: 221

CULTURA

Perante a evidencia aduzida de passagens como essas de Duarte Pa­ checo Pereira e sobretudo de Garcia de Orta e D. J oao de Castro, sera diffcil negar-se que a importancia primordial da experiencia foi recuperada no perfodo dos descobrimentos bastante antes do que habitualmente se costuma indicar para essa mudan9a fundamental. Mas que importa isso do ponto de vista hist6rico se nao pas sou de acontecimento isolado sem qualquer reper­ cussao visivel na evolu9aO do pens amen to medieval europeu para 0 mo­ demo? Custa-me deixar passar esta oportunidade de sublinhar 0 facto de ser curioso como profissionais de uma disciplina que instaurou os factos como pedra de toque de quaJquer ediffcio ou constru9ao generalizante se com­ portem como os praticantes das demais profiss5es defendendo a visao rece­ bid a contra a mudan9a quando se trata de alterar concep90es ha muito crista­ lizadas. Julgava que bastaria a antecipa9aO de uma data para urn historiador se apressar ao menos a corrigir os compendios e encic10pedias anunciando contente a descoberta de uma prioridade. Entra en tao Francisco Sanches. Esta praticamente tudo dito sobre 0 fil6sofo nascido em Braga ou em Tuy' (evitareiaqui 0 debate por ele nao interessar minimamente aquestao que nos ocupa) e muito antes de Richard Popkin 0 "descobrir" e incorporar na narrativa anglo-americana do cepticism02 (Popkin afirma que Quod Nihil Sci­ tur se Ie quase como urn texto de filosofia analitica do seculo XX3) Entre os

I Elaine Limbrik escreve sobre a suposta ascendencia crista-nova de Sanches: "In view of these his­ torical and religious circumstances, many scholars have inclined to the opinion that Francis Sanch­ es was a 'New Christian'. Yet there are no contemporary references to Sanches as a 'New Christ­ ian'. But, then, neithcr do Montaigne's contemporaries refer to his Jewish heritage through his mother, Antoinette de Loupes, a rich descendant of Portuguese Jews, the Lopez family. (... ) Sanch­ es himself went to great pains to assure his readers of his orthodox Catholic beliefs and habitually ended his philosophical and medical trreatises, written during his tenure at the staunchly Catholic University of Toulouse, with the traditional prayer 'Laus Dco Virginiquc Mariae"'. (Francisco Sanchcs,That Nothing Is Known. Cambridge University Press, 1988, pp. 6-7). 1 Richard H. Popkin, The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza (Berkeley: University of California Press, 1979). Entre as pouqulssimas referencias a Sanches na historia da filosofia anglo­ -americana conta-se John Owen, The Skeptics of the French Renaissance (London and New York, 1893), pp. 617-646. Ha poucos anos Qllod Nihil SCi/III', a obra-prima de Sanches, foi final mente traduzida para Ingles por Douglas F. S. Thompson, com um longo c rico cstudo introdutorio de Elainc Limbrik: Francisco Sanches, That Nothing Is Known. Edited by Elaine Limbrick and Dou­ glas F. S. Thomson. Introductory notes and bibliography by Elaine Limbrick. Latin text established, annotated, and translated by Douglas F. S. Thomson (Cambridge: Cambridge University Prcss, 1988). 3 P.41.

222

FRANCISCO SANCHES - 0 ELO "PERDIDO"

ENTRE OS DESCOBRIMENTOS E A CIENCIA MODERNA

autores portugueses que se ocuparam da obra de Francisco Sanches seria injusto nao mencionar Altur Moreira de Sa, que lhe dedicou urn estudo em dois volumes, Francisco Sanches, fil6sofo e matematico4 • Lucio Craveiro da Silva e autor de uma preciosa slntese, escritaja em 1951, sobre a dupla ati­ tude de Sanches em relaqao ao conhecimento. Por urn lado, a duvida perante o saber recebido, sobretudo da escolastica decadente; por outro, a atitude de confianqa face ao futuro da ciencia e do seu novo metodo. 5 Nada, porem, como urn contacto directo com 0 texto para nos darmos conta de como 0 cepticismo de Francisco Sanches nao e pirrico. Lucio Craveiro da Silva sin­ tetizou muito bern essa diferenqa: De facto Francisco Sanches nao se poe a duvidar, como os cepticos, da existencia do eu, dos outros homens, do mundo, nem afirma a omnfmo­ da incapacidade da mente hurnana para alcan9ar a verdade. A duvida nao atinge a ordem da existencia; nunca duvida da existencia do adversario ou do CU, mas sim da ciencia do adversario e do eu. 6

A sua e uma posiqao moderna de recusa de reconhecimento da im­ portancia do papel fulcral da experiencia e do jufzo no estabelecimento da verdade e das consequentes dificuldades de se conseguirem verdades ultimas ou definitivas por nos falecerem criterios infaHveis para tal: Porque nao hei-de duvidar sc nao posso perceber e conhecer a natureza das coisas? Desta e que deve ser a verdadeira ciencia. E faci!, realmente, ver 0 magnete; mas 0 que vern a ser ele? porque atrai 0 ferro? Isto e que queria saber, se saber pudessemos.'

Sanches tern mesmo a convicqao de estar a propor caminhos novos. Crente, ele sabe que s6 Deus, criador do mundo, conhece 0 que criou. Aos seres humanos resta-Ihes olhar para essa natureza com atenqao, experimen­ ta-Ia e usar a razao para discerni-la tanto quanta posslve!. Nominalista, descontente com as verdades deduzidas do silogismo aristotelico, rejeita-as por elas nao nos deixarem chegar ao que interessa: a natureza. Escreve Sanches:

4 Lisboa, 1947.

, "Francisco Sanches, filasofo", incluido na eolectiinca Ensaios de Filosojia e Cuitura Portuguesa,

de Lucio Cravciro da Silva (Braga: Faeuldade de Filosofia, 1994), pp. 57-76. Seguern-sc-Ihe dois

oulros cnsaios complcmcntares: "Francisco Sanches nas corrcntes do pensamento rcnascentino"

(p.77-89) e "Aclualidade de Francisco Sanches, Fil6sofo" (pp. 91-97).

, Op. cit.,. p. 59.

7 In LCS, p. 59-60. Uso a tradu9ao portuguesa de Lucio Craveiro da Silva, op. cit.

223

CULTURA

Voltei-me enta~ para mim proprio; e pondo tudo em duvida, como se ate enta~ nada se tivesse dito, comecei a examinar as proprias coisas: e esse 0 verdadeiro meio de saber.s

Que soa a Descartes e a sua duvida met6dica, nao serei eu 0 primeiro a aponta-Io. Descartes, tern tambem ja sido dito, conhecia Quod Nihil Scitur e, embora escrevendo anos depois 0 seu Discurso do Metoda, foi muito mais contido e cuidadoso ao fazer a sua crftica ao saber escoIastico e ao aris­ totelismo em particular. A liga9ao entre Sanches e a modernidade esta pois estabelecida. Na melhor tradi9ao oxfordiana de Roger Bacon, Robert Gros­ seteste e WiiIliam of Ockam, Francisco Sanches e uma ponte entre eles e Locke e Hume. Nao sera exagero dizer-se que Sanches e urn dos pais fun­ dadores da nova mentalidade perante a natureza, da ciencia nova. Quod Nihil Scitur e urn libelo contra 0 anquilosamento do saber tradicional no beco sem safda da autoridade e do conhecimento a base de universais de onde se deduziam inutilidades indemonstraveis. Sanches chega mesmo a afirmar a impossibilidade de se chegar a possuir certezas porque 0 nosso conhecimen­ to da verdade esta em continuo fluxo. OU9amos Sanches: se tirarmos as coisas que existem em nos, ou originam em nos, entao de toda a especie de entendimento (cognitio) 0 de maior confianc;a e o que ocorre por meio dos sentidos, eo de menos confian
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.