Fronteiras Urbanas. Ensaios sobre a humanização do espaço

July 26, 2017 | Autor: Mônica Mesquita | Categoria: Political Philosophy, Urban Studies, Ethnomathematics, Critical Ethnography, Communitarian Education
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Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço

Fronteiras Urbanas Ensaios sobre a humanização do espaço

Ubiratan D'Ambrosio * José Pedro Martins Barata * Mônica Mesquita * Alexandre Pais Ana Paula Caetano * João Crisóstomo Afonso * Daniel Miranda * Francisco Silva Isabel Freire * Lia Laporta * Nuno Vieira * Renan Laporta * Sílvia Franco

Organização

Mônica Mesquita

Revisão

Sílvia Franco

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Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço

Primeira Publicação: 2014-07-04 Direitos autorais © Projeto Fronteiras Urbanas Investigação científica totalmente financiada pela Fundação para a Ciências e a Tecnologia FCT, no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas (PTDC/CPE-CED/119695/2010) Os direitos dos autores são firmados. Todos os direitos reservados. Sem limites do direito dos autores reservado acima, nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou introduzida em um sistema de recuperação ou transmitida, em qualquer forma ou qualquer meio (eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou othervise), sem a prévia permissão por escrito do proprietário dos direitos autorais. Mesquita, M. ORG. (2014). Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço. Anonymage: Viseu. ISBN :978-989-8753-04-5 Editor: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa

Capa: Ilustração de Daniel, 9 anos Contra capa: Ilustração de João Moreira Fotografias: Renan Laporta Ilustrações: João Moreira e crianças das Terras da Costa de Caparica, Portugal Produtora: ANONYMAGE

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Para Teresa Ambrósio com amor

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FRONTEIRAS URBANAS Ensaios sobre a humanização do espaço Capítulo - 01 Ubiratan D’Ambrosio À GUISA DE PREFÁCIO ....................................................................................................... - 7 Capítulo 02 – Mônica Mesquita FRONTEIRAS URBANAS – SOBRE A HUMANIZAÇÃO DO ESPAÇO .......................... - 19 Capítulo 03 – Alexandre Pais OS DESAFIOS DA ETNOMATEÁTICA.............................................................................. - 33 Capítulo 04 – Ana Paula Caetano e João Crisóstomo Afonso TRANS-INTER-MULTI CULTURALIDADE – A POESIA COMO LUGAR DE MEDIAÇÃO . - 45 Capítulo 05 - Daniel Miranda DESABAFO SOBRE A POBREZA....................................................................................... - 69 Capítulo 06 – Francisco Silva COSTA FRONTEIRA ............................................................................................................ - 73 Capítulo 07 – Isabel Freire DA ETNOGRAFIA À ETNOGRAFIA CRÍTICA ................................................................ - 81 Capítulo 08 – José Pedro Roque Gameiro Martins Barata EM TORNO DO CONCEITO DE ESPAÇO URBANO ........................................................ - 88 Capítulo 09 – Lia Laporta DIREITOS DE ACESSO E O ACESSO AOS DIREITOS .................................................. - 101 Capítulo 10 – Nuno Vieira TEMPORALIDADES URBANAS ...................................................................................... - 111 Capítulo 11 – Renan Laporta A OUTRA COSTA............................................................................................................... - 121 Capítulo 12 – Sílvia Franco DIÁLOGO ENQUANTO CATEGORIA POLÍTICA .......................................................... - 127 POSFÁCIO ........................................................................................................................... - 133 -

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Ilustração de João Moreira

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À GUISA DE PREFÁCIO Ubiratan D’Ambrosio

Os problemas do mundo atual são enormes. Destaco nossa incapacidade de atingir um estado de paz nas suas quatro dimensões (paz individual, paz social, paz ambiental e paz militar) e de viver em harmonia com outros e com a natureza. A desnutrição, apesar dos enormes avanços da tecnologia agrícola e alimentícia, causa a morte, por fome, de um número inadmissível de pessoas, principalmente crianças, enquanto a nutrição errada, especialmente em países desenvolvidos, tornou os hábitos alimentares insalubres, acarretando aumento de obesidade, em nível epidêmico. O uso indevido de drogas (tanto prescritas quanto ilegais), tem sido uma das grandes causas de destruição de indivíduos e famílias. O número de crianças necessitando acompanhamento psiquiátrico tem crescido assustadoramente. Contraditoriamente, os avanços da tecnologia, que poderiam favorecer o conhecimento e o respeito a outras realidades, têm causado uma evidente perda de cultura, chegando a levar à destruição ambiental, e a uma intolerável exposição à violência, sugerindo indulgência à agressividade. Uma das principais causas de todas essas distorções no mundo chamado civilizado é o fato que muitas pessoas buscam a falsa sensação de realização pessoal e de felicidade na aquisição de bens materiais e de recursos financeiros mirabolantes. Essa é a principal causa da consolidação de um capitalismo perverso e da corrupção galopante. Entender e explicar como a humanidade chegou a essa situação de legítima preocupação com o futuro da civilização deve ser o maior objetivo da História Geral. Acredito ser esse o único caminho para propor alternativas para o modelo atual de organização social, financeira e ambiental. É inegável que a civilização moderna está ameaçada. Não se trata de um discurso catastrofista. Há um perigo evidente de extermínio da civilização. Como diz Martin Rees, num impactante Editorial recente da prestigiosa revista Science (March 08, 2013), As principais ameaças à existência sustentável da humanidade agora vêm de pessoas, não da natureza. Choques ecológicos que degradam irreversivelmente a Biosfera podem ser desencadeados pelas exigências de um crescimento insustentável da população do mundo. A rápida disseminação de pandemias pode causar estragos nas megacidades do mundo em desenvolvimento. E as tensões políticas serão provavelmente decorrentes da escassez de recursos, agravados pelas alterações climáticas. Igualmente preocupantes são as ameaças imponderáveis resultantes das poderosas novas cyber - bio- e nanotecnologias, pois estamos entrando em uma era na qual alguns indivíduos poderiam, por meio de erro ou terror, provocar uma ruptura social irreversível.

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No foco do modelo civilizatório atual está a evolução urbana. Vou discutir, neste capítulo introdutório, a concepção e o planejamento de centros urbanos como importantes fontes da História Geral da Humanidade. Essas reflexões se relacionam diretamente com a história da matemática, das ciências e da tecnologia, de fato com a teoria geral do conhecimento. A urbanização reflete a organização de espaço e de tempo, particularmente a sacralização de espaço e tempo. Como todas as espécies animais, as espécies homo buscam sobrevivência, o que se dá aqui e agora. Mas, diferentemente das demais espécies, as espécies homo adquirem vontade e transcendem a sobrevivência, além do sensível, do aqui e agora. A transcendência torna-se característica da espécie humana e leva os humanos a se aventurarem no pensamento abstrato e a refletirem sobre as origens, criando mitos da criação e de agentes sobrenaturais, e sobre perspectivas de futuro. Criam-se cultos e rituais. O gregarismo, próprio a todas as espécies animais, facilitou o agrupamento de indivíduos das espécies homo em territórios que oferecem algum tipo de proteção, principalmente cavernas, em geral reunindo-se em torno de uma fogueira. O convívio nesses grupos dá origem ao reconhecimento de liderança e a uma hierarquização, bem como ao desenvolvimento de instrumentos mais sofisticados e ferramentas mais precisas e à distribuição de tarefas, cabendo aos homens prover alimentos e proteger seu território e às mulheres cuidar da gestão do dia-a-dia, principalmente dos filhos. Esses agrupamentos e a ocupação de territórios com a finalidade de proteção e de compartilhamento de instrumentos e de tarefas podem ter criado uma necessidade de uma forma mais complexa de comunicação, organizando grunhidos em sons, os fonemas, e em palavras, as morfemas. Surge assim a linguagem. A localização em territórios protegidos possibilitou superar as habilidades de caçadores e coletores com a descoberta da pecuária, da agricultura e da domesticação de animais. Surgem instrumentos e ferramentas mais sofisticadas, características do neolítico, bem como técnicas e equipamentos para armazenamento de excedentes da produção, que são os silos e também os potes e vasos de cerâmica, que encontram outras utilidades, inclusive de decoração. É a emergência da arte. Evoluindo de coletores e caçadores a agricultores e criadores, foi necessário conceituar espaço associado à produção e criação, o que leva a uma primeira concepção de posse, seja de território ou de animais, bem como conceituar tempo associado aos ciclos de reprodução dos animais e de plantio e colheita, dando origem a formas primitivas de sazonalidade e de calendário. Os conceitos de espaço e de tempo prenunciam a agrimensura e a astronomia. Excedentes de produção pecuária e agrícola passaram a ser trocados entre comunidades e aldeias. Iniciando-se assim as primeiras atividades comerciais, com a prática do escambo. As comunidades e aldeias começaram a se associar com vistas à utilização dos recursos naturais e a troca de produção. Essas associações, que compartilhavam, com algumas variações, linguagem e mitos, eram em geral situadas nas margens férteis de grandes rios e lagos e dão origem às primeiras cidades. As cidades eram homogêneas sobre os mitos de criação, perspectivas de futuro e cultos aos agentes sobrenaturais e sobre estilos de divisão social do trabalho e de centralização política. Na -8-



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Antiguidade histórica, principalmente após a invenção da escrita, as cidades passaram a ser submetidas à hegemonia de um poder central, caracterizando o que chamamos Impérios, o que perdurou até o século XIX, quando surgiram agrupamentos políticos autônomos, ocupando território com limites definidos e cujos membros estão subordinados a leis, a uma constituição e a um governo executivo. Esses territórios constituem os países e as limitações territoriais são as fronteiras. Nos dias atuais, os centros urbanos são o modelo de ocupação de espaço. Mais da metade da população mundial vive em centros urbanos, cidades e vilas, que são enormes e revelam uma dualidade qualitativa preocupante. Há uma verdadeira fronteira urbana entre setores que oferecem grandes oportunidades e outros com privações inaceitáveis. Lamentavelmente, nem sempre a concepção e o planejamento de centros urbanos resultam nos objetivos principais da vida urbana, particularmente na qualidade de vida, sintetizada em assegurar trabalho e renda dignos, e proporcionar níveis compatíveis de educação, saúde, habitação, mobilidade e segurança, cultura e acesso a espaços de convivência social, preservação dos espaços públicos e dos recursos naturais. Como resultado de uma urbanização não planejada e de crescimento demográfico imprevisível, uma parte da população vive nas ruas ou em habitações e condições precárias, às margens dos centros urbanos. São ocupações de espaço, nos quais os habitantes, muitas vezes de uma mesma etnia ou de outro grupo minoritário, vivem em condições de extrema opressão, desespero ou privação, muitas vezes insuportáveis. Esses espaços carecem de serviços básicos, como saneamento, abastecimento de água potável, eletricidade, policiamento, corpo de bombeiros. As residências desse tipo de assentamento urbano variam de barracos mal construídos a edifícios deteriorados, e a falta de infra-estrutura em geral e de regularização fundiária tornam essas ocupações precárias. A ocupação desses espaços é, geralmente, resultado de influência coercitiva de leis, regras, costumes ou de circunstâncias econômicas ou sociais. O PROJETO FRONTEIRAS URBANAS, focaliza a realidade de um espaço ocupado por trabalhadores de diversas habilidades, localizado na cidade de Costa de Caparica, do Conselho de Almada, perto de Lisboa, situada próxima da foz do Rio Tejo. Com pouco mais de 10 km² de área e cerca de 15.000 habitantes, a cidade passa por uma rápida urbanização, tornando-se um dos atrativos turísticos da região metropolitana de Lisboa. Em consequência, identificamos dois casos flagrantes de violações de direitos humanos, retirando condições de trabalho de uma comunidade tradicional, impedindo suas atividades pesqueiras, e a falta de condições mínimas para sobrevivência digna da comunidade de cerca de 400 pessoas do Bairro das Terras da Costa, um assentamento não formalmente legalizado, instalada há quatro gerações, na maioria de imigrantes africanos, muitos com cidadania portuguesa. Os adultos do bairro em geral vão a Lisboa para empregos precários, como domésticas e trabalhadores braçais, e os menores não encontram escolaridade adequada acessível. O mais grave é não haver água encanada nem condições sanitárias no bairro. É inevitável que entre a comunidade do Bairro das Terras da Costa e a comunidade piscatória haja tensões crescentes. Uma das ações mais intensas do Projeto Fronteiras Urbanas é minimizar as violações de direitos humanos básicos dessas comunidades. Algumas

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dessas ações são a criação de uma associação de pesca local, o estabelecimento de uma Comissão de Bairro e um planejamento participativo na idealização de um espaço comunitário. O Projeto Fronteiras Urbanas tem como um de seus principais objetivos a elaboração de um embasamento teórico sobre o qual são fundamentadas as ações nessa região que, com as devidas modificações, servirá para ações em outras regiões nas quais há semelhantes violações de direitos humanos básicos. Neste livro são apresentadas várias pesquisas que servem de base para esse referencial teórico. Como se infere da síntese feita acima, é fundamental no Projeto Fronteiras Urbanas a identificação de lideranças comunitárias e sua preparação para propor medidas que permitam o convívio harmonioso de comunidades com tradições, história e perspectivas sociais diferentes. Essas lideranças comunitárias terão, necessariamente, de propor estratégias para lidar com o a organização do espaço urbano, com questões financeiras e outras inúmeras situações problemáticas e do cotidiano. Não é exagero afirmar que todas essas questões dependem de um conhecimento matemático focalizando o contexto geográfico, ambiental, social e político, Não se trata de matemática acadêmica, geralmente distanciada da realidade em que vive uma população e dos problemas do seu cotidiano, mas sim de uma matemática contextualizada, resultado da elaboração de habilidade e técnicas para observar, comparar, classificar e ordenar, quantificar, medir, explicar, generalizar, inferir. Isso nos leva a introduzir o Programa Etnomatemática, cujo objetivo central é abordar o interesse da comunidade e da sua população heterogênea, estimulando e respeitando as diferenças entre seus indivíduos.

O PROGRAMA ETNOMATEMÁTICA E UMA PROPOSTA DE CURRÍCULO. As etnomatemáticas são estratégias do povo para sobreviver (lidar com o cotidiano) e para transcender (explicar fatos, fenômenos e mistérios e criar opções para o futuro), característica da espécie humana. O Programa Etnomatemática é a teorização dessas estratégias. Há inúmeras etnomatemáticas, praticadas de forma diferente, por grupos culturalmente identificados (profissionais, trabalhadores, jogadores, crianças brincando, grupos étnicos confraternizando). É uma forma de conhecimento explicado em linguagem comum, sem formalismo próprio, e transmitido por uma pedagogia similar a do ensino mestre→aprendiz, típica do artesanato. O que é transmitido é aceito e absorvido, pois funciona na situação específica, satisfazendo as pulsões de sobreviver e de transcender. Como são várias etnomatemáticas, todas devem ser respeitadas como servindo a um determinado grupo. A prática da etnomatemática depende, portanto, de uma ética ampla, cujas características são o RESPEITO pelo diferente, a SOLIDARIEDADE com o diferente e a COOPERAÇÃO com o diferente. Todos visam um objetivo comum e são essenciais para a continuidade da espécie. Por isso, chamo essa ética de ÉTICA PRIMORDIAL. A etnomatemática depende de reconhecer comportamento e conhecimento com uma visão transdisciplinar, transcultural e holística. Comportamento e conhecimento são desenvolvidos pela

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espécie humana como estratégias para satisfazer as pulsões de sobrevivência e transcendência, conforme conceituadas acima e sintetizadas a seguir. Sobreviver é a satisfação das necessidades materiais para se manter vivo e dar continuidade à espécie, o que deve ser realizado aqui e agora (comum a todas as espécies), e transcender é ir além das necessidades materiais e da própria sobrevivência do indivíduo e da espécie, refletindo sobre onde (além do aqui) e sobre quando (além do agora, o antes e o depois). O Programa Etnomatemática é praticado questionando quais fatores influenciam a educação e propondo uma nova conceituação de currículo. Mas o que é currículo? Defino currículo como o conjunto de estratégias para se atingir as metas maiores da educação. Tradicionalmente, os currículos são organizados tendo como componentes solidários os objetivos, os conteúdos e os métodos. Minha proposta é adotar outra estratégia, organizar a prática educacional em duas vertentes: ● uma vertente formativa, que mais se aproxima do ensinar, no sentido tradicional; ● uma vertente informativa, que reconhece que rádio, cinema, televisão, a mídia em geral, bem como os meios digitais, são responsáveis pela difusão atualizada da informação. A vertente formativa é a essência de um novo conceito de currículo, baseado não na transmissão de conteúdos disciplinares programados, mas no fornecimento, aos alunos, de competências para acessar, socializar e ampliar o conhecimento. Quais são essas competências? Trata-se de dar aos alunos instrumentos que os habilitem para lidar com todos os momentos de suas atividades materiais e intelectuais: ● INSTRUMENTOS COMUNICATIVOS: capacidade de processar criticamente informação escrita e falada, o que inclui leitura, escritura, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet [LITERACIA]. ● INSTRUMENTOS ANALÍTICOS: capacidade de interpretar e analisar criticamente sinais e códigos, de propor e utilizar modelos e simulações na vida cotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real [MATERACIA]. ● INSTRUMENTOS MATERIAIS: capacidade de usar e combinar criticamente instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas [TECNORACIA]. Literacia + Materacia + Tecnoracia, naturalmente interligados, constituem o novo conceito de currículo, que eu chamo trivium para os dias de hoje.1 Ao fornecer ao aluno os instrumentos

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Ubiratan D’Ambrosio: Literacy, Matheracy, and Technoracy: A Trivium for Today, Mathematics Thinking and Learning, 1(2), 1999, pp.131-153. - 11 -



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comunicativos, analíticos e materiais, o professor estará capacitando o aluno para a utilização crítica, graças aos instrumentos analíticos, os recursos tecnológicos disponíveis. Sabemos como esses instrumentos, hoje acessíveis a preços irrisórios, são utilizados inadequadamente. A utilização de objetos de natureza tecnológica e a combinação e seleção desses instrumentos devem ser permanentemente avaliadas, o que exige uma capacitação para análise crítica. Desenvolver essa capacitação é um objetivo da materacia. Ao reconhecer que ninguém é só, que todos estão em permanente convívio, torna-se absolutamente necessário comunicar ideias, informações, algumas dessas informações de caráter quantitativo (quantidade→ números→aritmética para objetos, e dimensões→medidas→geometria para extensões), outras de caráter descritivo e explicativo (linguagem→discurso). Esses são objetivos da literacia. O que é a vertente informativa? É inegável que, na educação atual, a informação é tratada inadequadamente e de forma obsoleta. A prática educativa é baseada em disciplinas estanques e isoladas umas das outras, apresentadas de forma descritiva, com a finalidade primeira de transmitir informações aos alunos. É o que chamo o ensino catequético. O aluno ouve, decora e repete o que lhe foi ensinado. Não exerce crítica, simplesmente repete. O conceitual, as motivações, o alcance e as limitações das disciplinas não fazem parte desse modelo de ensino catequético. Exemplifico com algumas disciplinas. As ciências, inclusive a matemática, são apresentadas como teorias e práticas terminadas, finais, que devem ser memorizadas e repetidas pelos alunos. A história é uma sucessão de fatos que constam de livros, muitas vezes antigos, que são ultrapassados, mas são apresentados com caráter de verdade sobre o passado. A geografia física é um nomear de acidentes geográficos naturais, tais como rios, lagos, montanhas e costas, que são especificidades do relevo terrestre resultantes da formação de solos continentais e costeiros. A geografia humana é um estudo cartográfico dos países, elencando e nomeando acidentes geográficos, e descrevendo, num estilo cartorial, as cidades principais, suas populações e dimensões territoriais. Na maioria das vezes, são informações desatualizadas. Nos últimos anos, toda essa informação, tem mudado em ritmo acelerado. Os livros não conseguem acompanhar essas mudanças e são, em geral, obsoletos. Toda essa informação, muito dinâmica na sua mudança, está disponível em sítios da internet, que são atualizados quase que diariamente. Também são acessíveis enciclopédias dinâmicas, tanto as mais tradicionais, como a Encyclopedia Britannica, agora digitalizada, quanto aquelas que propõem novos conceitos, como por exemplo as do sistema wiki, principalmente a Wikipédia. São igualmente muito importantes os inúmeros sítios, blogs e mecanismos de busca, muito simples e rápidos, como o Google, o Yahoo e outros similares. A vertente informativa deve estimular e utilizar amplamente os recursos dinâmicos de transmitir informações atualizadas. Em outros tempos era importante instruir alunos sobre como utilizar catálogos das bibliotecas e entender a Classificação Decimal de Dewey, hoje eles devem ser orientados sobre como utilizar a internet e os mecanismos de busca. Esse é um dos objetivos do trivium para os dias de hoje. Em resumo, está fadada a desaparecer a prática educativa como uma apresentação descritiva de teorias, de técnicas e de habilidades, pois é isoladora, é individualista e desestimula interação e cooperação. Não corresponde à dinâmica que caracteriza a sociedade moderna. Uma nova educação exige a participação ativa de todos na análise crítica do cotidiano, na interação na busca de conhecimento e na tomada de decisões, em todos os setores. Essas são características do Projeto

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Fronteiras Urbanas e, portanto, a prática educativa no projeto deve ser da nova educação, cuja estratégia é o trivium para os dias de hoje, organizado nas vertentes formativa e informativa. O NOVO PROFESSOR Qual o perfil de um professor atuando nesse conceito de uma nova educação? O professor atual é preparado para apresentar e cobrar dos alunos um elenco de conteúdos que, muitas vezes, pouco terá a ver com o trabalho do professor quando ingressar numa sala de aula. Há uma preocupação excessiva em passar conteúdos que não se justificam, a não ser por sua presença nos textos clássicos, alguns datados de até 300 anos atrás. A matemática está passando por profundas transformações, tanto pela presença de uma tecnologia avançada, que não existia em outros tempos, quanto pela importância e urgência de questões novas. O professor deve, necessariamente, ser preparado para participar dessas transformações e para se aventurar no novo, e não apenas para repetir o velho, muitas vezes inútil e desinteressante. O novo professor deve ensinar o conteúdo destacando aspectos conceituais, sem se preocupar com mecanização das técnicas das operações. Deve dedicar tempo para ser um comentarista crítico e um animador cultural. Exemplifico o que quero dizer com aspecto conceitual analisando a atuação de um professor de Matemática. Ao ensinar operações aritméticas, deve deixar bem claro que as operações representam o caráter puramente mecânico da aritmética. Para isso, deve mostrar o grande avanço que representou, no desenvolvimento da Europa, a introdução e a divulgação das técnicas matemáticas dos árabes por Leonardo Fibonacci, no século XIII. Os algarismos indo-arábicos para escrever qualquer número e a correspondente “máquina medieval” para efetuar operações, mediante uma tabuada, representam um dos passos mais importantes na história da civilização moderna. Leonardo aprendeu esses métodos quando trabalhou no norte da África como mercador. Esse era o método que foi ensinado pelo matemático muçulmano al-Karizmi, no século IX. Mas na Europa já havia grande progresso nas centenas de anos que precederam a aritmética posicional, com a utilização de sistemas locais. Isso é notado na agricultura, nas construções, aparecendo monumentais catedrais e castelos, no desenvolvimento das cidades, e no surgimento de uma economia de mercado florescente e na utilização impressionante de recursos hidráulicos, tais como construção de canais e de barragens. Tudo feito, necessariamente, com recursos quantitativos, operações e conceitos numéricos, mas não com sistema posicional introduzido por Leonardo Fibonacci no século XIII. Sintetizando essas observações: a quantificação e a numeração são muito importantes, mas não apenas utilizando as “máquinas medievais” de calcular (tabuada e as quatro operações) do sistema decimal. O importante é o conceitual. As máquinas são instrumentos e são substituídas à medida que surgem outras mais eficientes. Assim, hoje são mais eficientes as máquinas digitais. Discutir temas como esse mostra a necessidade de se introduzir a História da Matemática nos currículos de formação de professores. O professor comentarista crítico e animador cultural deve ir além do que foi exemplificado acima. Falo em objetivos maiores da educação, que são o estímulo à criatividade e a tomada de consciência de cidadania. Isso leva o comentarista crítico e o animador cultural a agir a partir de - 13 -



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experiências do cotidiano; e o cotidiano tem que ter um papel fundamental na formação do professor. O cotidiano é extremamente importante. O que se vê, ouve, observa ou imagina, no cotidiano do presente e do passado, ambos igualmente importantes, deve ser sintetizado. O cotidiano geralmente aparece nos livros, jornais, revistas, particularmente na televisão. Um grande objetivo da educação é elaborar, criticamente, sobre o cotidiano. A preparação do professor para a nova educação implica viver o novo na sua formação. Com certeza, o professor será capaz de adotar essa postura no encontro com os indivíduos da comunidade e juntos analisarem o cotidiano. A escola é um espaço público frequentado por alunos com diferentes experiências do cotidiano. Mais do que meramente um espaço de ensino-aprendizagem, é um espaço de socialização. No caso de crianças é a sua primeira oportunidade de encontrar o outro diferente e de desenvolver uma dinâmica de convívio com o diferente. É função do professor estimular aspectos emocionais da personalidade do aluno e mostrar a essencialidade da atitude de respeito, de solidariedade e de cooperação com o outro para um convívio produtivo. A formação do professor deve incluir a oportunidade de socialização de experiências e também espaço para a geração de novos conhecimentos. É um espaço em que as experiências devem ser multiplicadas. A formação de professores no modelo tradicional de educação não oferece espaço para reflexões maiores. Se os futuros professores não se ativarem em reflexões mais ousadas de crítica ao sistema vigente, ficando à espera de decisões emanadas do poder central, nada mudará. É reconhecido e explicável que as decisões oficiais mudem muito pouco no processo educacional. A história mostra que, na melhor das hipóteses, essas decisões dão pouco espaço para inovações. Não haverá reformas significativas se os professores não estiverem sensibilizados e agirem para a mudança. É fundamental que os professores não se intimidem por incertezas e erros, a que estão sujeitas as inovações em todo sistema complexo, como é a educação. Lamentavelmente, as escolas são conservadoras e estão contribuindo pouco para a preparação dos jovens para a sociedade em mudanças tão rápidas. Na verdade, bilhões têm sido desperdiçados para nenhum resultado. A nova educação deve ter horizontes mais amplos. Particularmente, a escola deve ser repensada. Muita aprendizagem ocorre fora da escola e, como consequência disso, o professor não pode ver sua missão apenas como responsável pelo ensino de conteúdos disciplinares. O professor deve ter um novo perfil, não um mero repetidor e cobrador de resultados, mas um estimulador de criatividade e um despertador de consciência, um comentarista crítico e companheiro dos alunos na procura do novo. Os professores agindo no Projeto Fronteiras Urbanas têm esse perfil. O professor deve estimular a crítica sobre ● o que se viu, se ouviu e se observou, ● o que se leu e o que se imaginou,

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e simular tomadas de decisões. A materacia é o instrumento básico na tomada de decisões. O perfil da nova educação e do novo professor não privilegia os conteúdos das disciplinas. Os conteúdos (saberes) devem ser resultado das práticas (fazeres). O que melhor se adapta a essas novas práticas pedagógicas é o MÉTODO DE PROJETOS.2 O Método de Projetos só pode ter sucesso como um esforço cooperativo entre os participantes, normalmente com diferentes saberes e habilidades. Isso exige que todos se respeitem e que haja solidariedade, no sentido de um ir de encontro ao outro se esse tiver alguma dificuldade. O mote do Método de Projetos deve ser o refrão popularizado por Alexandre Dumas na novela Os Três Moqueteiros: “um por todos e todos por um”. A Etnomatemática é praticada, por excelência, com o método de projetos. Portanto, a Etnomatemática está subordinada à ÉTICA PRIMORDIAL de respeito, solidariedade e cooperação. PRECEDENTES A ESSAS PROPOSTAS. Temos alguns precedentes de estudos sobre situações sociais em que o objetivo é entender a realidade, como preliminar para tentar modificá-la. Um exemplo notável é a tese de doutoramento de Mônica Maria Borges Mesquita, liderança do Projeto Fronteiras Urbanas, intitulada Children, Space, and the Urban Street: An Ethnomathematics Posture, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2008. Nessa tese, cuja pesquisa foi na cidade de São Paulo, Brasil, encontramos as bases conceituais do Projeto Fronteiras Urbanas. O estudo focaliza a realidade de uma parte da população que vive nas ruas, principalmente crianças, consequência de centros urbanos que não são concebidos, planejados e executados com critérios humanitários. A tese foi recentemente publicada como um livro.3 Nesse estudo o conceito de fronteira se apresenta diluído, no sentido de não haver delimitação entre a comunidade marginalizada e a população da cidade, diferentemente do que se passa quando se analisa a situação de um bairro, objeto do Projeto Fronteiras Urbanas. No mesmo conceito de fronteira diluída é a pesquisa de Joselita Macedo sobre moradores de praças na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Famílias têm como lar um espaço marginal em uma praça pública.4 Outro exemplo foi o Projeto Jarí, dando origem a uma urbanização não planejada da cidade Laranjal do Jarí, às margens do Rio Jarí, no estado do Amapá, Brasil. A cidade é resultado de um projeto de colonização do bilionário Daniel Ludwig (1897-1992), que em 1967, decidiu construir

2 Paulo Roberto de Oliveira: Currículos de matemática: do programa ao projeto, Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Janeiro 2005. 3 Mônica Mesquita, Sal Restivo and Ubiratan D’Ambrosio: Asphalt Children and City Streets. A Life, a City, and a Case Study of History, Culture, and Ethnomathematics in São Paulo, Roterdam: Sense Publishers, 2011. 4 Joselita Nena Macedo Filha: Dança com Lobos. a rua dos meninos e meninas de rua, Editora Lauro de Freitas, Salvador, BA, 2010.

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o que seria a maior fábrica de papel do mundo, na Floresta Amazônica, com uma área de cerca de 15.000 km². Os trabalhadores foram alojados em barracos construídos sobre palafitas nas margens do Rio Jari. Assim nasceu a cidade de Laranjal do Jarí, hoje com cerca de 50.000 habitantes. Essa comunidade urbana foi tema de pesquisa de Sonia M. Clareto, para seu doutorado em Educação Matemática, na UNESP/Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, em Rio Claro. A realidade, como mostra a autora, deve ser parte integrante dos estudos, reflexões e análise dos estudantes da comunidade. Um exercício etnomatemático importante para essa análise é pedir aos alunos para descreverem, cartograficamente, seu espaço urbano. A realidade dessas comunidades é impregnada de violência em muitos sentidos.5 UM CONCEITO AMPLO DE VIOLÊNCIA. Vejo a violência como um comportamento que causa dano físico ou moral a outra pessoa, a seres vivos e a objetos, materiais ou mentais. O dano físico ou moral se manifesta no encontro entre nações e grupos, na sociedade em geral e nas famílias, nas escolas, no trabalho, nos espaços de lazer e de comunhão, na rotina do cotidiano. A violência tem como consequência o ato de matar, física e moralmente, e como resultado o fanatismo, nas suas várias roupagens. O CENTER FOR GLOBAL NONKILLING http://www.nonkilling.org/node propõe medidas para combater a violência. Oferece ideias sobre como ensinar e praticar as várias disciplinas com o objetivo de não-matar. Um dos exemplos de trabalho produzido no Centro é uma reflexão sobre o papel da matemática no desenvolvimento de armas letais e de uma economia perversa e propõe uma matemática que não mata.6 O dano físico é resultado de um comportamento que emprega força ou instrumentos, geralmente armamentos, que causam destruição material e lesões corporais, às vezes irreversíveis. Essa é uma forma de interromper a vida, isto é, de matar. O conceito de matar não se aplica apenas à interrupção de vida. Retirando a vontade, a auto-estima, a dignidade e a criatividade de indivíduos, de comunidades, de grupos étnicos, raciais ou religiosos, temos algo equivalente a matar. A intimidação, a exclusão ou mesmo a anulação de indivíduos e de grupos, também é uma forma de matar. O dano moral é resultado de um comportamento empregando comunicação, particularmente linguagem e gestos, na forma de patrulhamento ideológico, muito comum nos ambientes gremiais, e da prática de bullying (≈ agressão verbal ou física, assédio, intimidação, manipulação, coação), de pressões e avaliações por pares e mesmo de certo tipo de humor, uma forma sutil de bullying.



5 Sonia Maria Clareto: Terceiras Margens: Um Estudo Etnomatemático de Espacialidade em Laranjal do Jari, AP, Tese de Doutoramento, UNESP, Rio Claro, 2003. 6 http://en.wikiversity.org/wiki/Nonkilling_Mathematics

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Retirar a auto-estima, a dignidade, a vontade, a criatividade de indivíduos, de comunidades, de grupos resulta na aceitação de uma condição de conformismo e até de submissão total. Com isso, indivíduos, comunidades e grupos deixam de ser livres, sendo apenas capazes de obedecer ordens e instruções, sem exercer qualquer juízo crítico. É o que chamo fanatismo. É muito grave e fazem parte da história da humanidade não só a violência individual, mas também a violência institucional (isto é, grupos organizados de indivíduos que exercem violência sob a cobertura “oficial” e “legal”), levando ao abuso ambiental, ao abuso social, eliminando indivíduos e grupos de indivíduos (como associações gremiais, grupos comportamentais, étnicos, raciais e religiosos) e até comunidades e nações. A prática da violência, seja indivídual ou institucionalizada, conduz a abusos e injustiça social, submetendo indivíduos, famílias e comunidades a condições insuportáveis de vida, levando a comportamentos psicopáticos, recurso a drogas e suicídio, e até à guerra, causando a destruição de vidas, de patrimônio e mesmo chegando ao genocídio no sentido amplo. Não menos grave é a degradação ambiental que inevitavelmente resulta de tal situação. Eliminar a violência no sentido amplo é atingir o estado de paz nas suas quatro dimensões (paz individual, paz social, paz ambiental e paz militar) e viver em harmonia com outros e com a natureza, o que chamo PAZ TOTAL. A história nos ensina que a matemática, que tanto serviu para matar, é a melhor estratégia para se atingir a PAZ TOTAL. Mas não apenas a matemática praticada na academia, mas também a matemática humanizada, praticada pelo povo, mesmo que não apreendida nas escolas, que são as etnomatemáticas, cuja quintessência é a ÉTICA PRIMORDIAL, de respeito, solidariedade e cooperação. Minha proposta é que se pratique uma educação que não mata para possibilitar a existência sustentável da humanidade, que está ameaçada. Essas práticas e as mudanças devem começar em grupos e comunidades de pequeno porte e podem causar um efeito viral. Um exemplo dessa prática é o Projeto Fronteiras Urbanas.

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Ilustração de Edson, 11 anos

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FRONTEIRAS URBANAS – SOBRE A HUMANIZAÇÃO DO ESPAÇO Mônica Mesquita

Vivendo conscientemente as fronteiras urbanas... assim começa a jornada em busca não somente de estar mas também de ser nas fronteiras urbanas. A historicidade é crucial para entendermos o ponto-chave desta coletânea de experiências apresentadas neste livro. Na verdade, esta obra é mais um exercício de uma trupe de investigadores tentando dialogar em outros registos. Ser e estar nas fronteiras urbanas é o que buscamos na partilha desta obra e, neste sentido, a entrada da mesma dar-se-á pela narrativa do cerne da questão central vivida neste coletivo: a emergência de se humanizar os espaços urbanos fronteiriços. Atualmente não encontramos muitos estudos imbuídos de um discurso humanizado sobre o conceito fronteira, e muito menos sobre a questão de se sentir fronteiriço. O filósofo francês Etienne Balibar tem desenvolvido, numa ótica europeia, um trabalho exaustivo, e na minha opinião – excelente, em torno deste conceito. Na obra Politics and the Other Scene, Balibar discute profundamente o que é fronteira, levantando a complexidade desta definição que se prende diretamente com uma atribuição espacial e temporal. Balibar faz uma arguição mostrando o quão absurdo seria a tentativa de constituir uma definição do conceito fronteira, afinal esta premissa levaria à definição de um território e, consequentemente, a um caminho cíclico, dado a diversidade entre os diferentes territórios. Como ele mesmo afirma, a própria noção de fronteira tem uma história, a qual não é a mesma em todos os lugares, em todos os instantes, nem mesmo em todos os níveis. Não sei se pelo facto de ter nascido e sido criada no centro da cidade de São Paulo, comecei a desenvolver meus olhos de educadora e minha postura fronteiriça numa megalópole multicultural. Tal começo se deu durante a segunda metade do século 20 – inserida numa família de professores com vida política ativa e numa época de pleno declínio do regime ditatorial às custas de uma forte luta de classe. Sempre entendi que estes factos imprimiram em mim uma visão crítica-afetiva sobre os espaços políticos e as fronteiras à cidadania, à cidadania e sua relação com a urbanidade, bem como a urbanidade e sua relação com os espaços individuais e coletivos, incluindo a natureza mundo físico que nos rodeia. Durante os últimos 10 anos tenho defendido a ideia dos não-espaços urbanos enquanto estes territórios fronteiriços nos quais os encontros acontecem sem interação, tornando o que se vê invisível. Tal invisibilidade é latente para uma atuação direta, porém riquíssima em atuações ditas politicamente corretas em nome de uma tal justiça que, na verdade, é marcada pelo assistencialismo e, mais genericamente, pelo engodo de uma ordem económica local zelando a hegemonia global do sistema neoliberal vigente nos centros urbanos mundiais. A nossa história responde às nossas escolhas – meu processo de aprendizagem, os ambientes multiculturais por mim vividos, bem como os olhos que escolheram os caminhos da investigação e que percebem o conceito de espaço como uma importante ferramenta de construção social urbana, podem ser considerados fortes premissas das minhas escolhas. No entanto, estes olhos são

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emergentes a declarar que me tenho sentido como uma investigadora fronteiriça durante a minha vida académica. Sendo uma eterna aprendiza, que tem estado sempre atenta aos processos educativos nas ruas, no quotidiano, tenho vindo a desenvolver uma vasta experiência na diversidade e complexidade das formas inseridas nos processos da urbanidade latente em mim e ao meu redor – num processo dialógico, o que me levou a procurar ferramentas interdisciplinares para sobreviver. A própria sistematização da aprendizagem em torno da Educação, tendo como base principal a minha visão de mundo assente na educação não-formal, trouxe-me mais perto do educador Paulo Freire - durante um curso opcional de pedagogia inserido no curso de graduação em Matemática; do educador, historiador, filósofo e matemático Ubiratan D'Ambrosio - durante meu curso de mestrado em Educação Matemática; do sociólogo e filósofo Sal Restivo - durante meu doutorado, reconhecido formalmente em Ciências da Educação, mas na verdade vivenciado na Sociologia da Matemática e na Etnomatemática; e, mais recentemente, do filósofo político Etiene Balibar - como atual pós-doutoranda de filosofia política com foco na Educação Comunitária e suas relações com os conceitos de Cultura, Amor e Política em espaços urbanos. Como uma base ontológica, este caminho evidenciou-me o quanto a Educação "é reconhecida pelo que ela tem", e não pelo que ela é - uma importante ferramenta política, inteiramente relacionada com os processos socioeconómicos, e intrinsecamente ligada com o significado cultural e afetivo que fundamentam a maneira como as sociedades trabalham em sí. Um ponto relevante desta minha postura tem sido, indubitavelmente, fundada no processo experienciado em meu doutoramento, onde desenvolvi um estudo sobre criança em situação de rua e os conceitos de espaço e urbanidade. Neste processo trabalhei com dados de quase dez anos da minha vida (em contato direto dois grupos de crianças em situação de rua de São Paulo - Brasil) num dos centros do capitalismo - a Europa, no caso Portugal. Foi um profundo exercício de autoconhecimento e de conhecimento do espaço que existe ao redor do mundo. A miséria e a pobreza extrema também estão neste centro. É deste centro que, por dois anos, dez etnógrafos críticos, com diferentes formações académicas, desenvolveram um projeto de investigação com duas comunidades situadas na Costa de Caparica – uma cidade costeira localizada na margem sul do rio Tejo, de frente para a capital Lisboa, chamado projeto Fronteiras Urbanas 7 , o qual teve o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e foi desenvolvido no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. O projeto Fronteiras Urbanas surgiu como uma desculpa para um grupo de pessoas atuarem juntas de uma forma "legal" num processo de desenvolvimento humano local. Este grupo era constituído por académicos, pescadores e moradores de um assentamento ilegal e estavam reunidos na luta contra a política local, a qual revelava uma ordem assente no medo e no prazer sádico via o burocrático. Este exercício científico nasce do encontro prévio estabelecido num projeto do Programa Escolhas - D.A.R. à Costa – Tr@nsFormArte, desenvolvido na Costa de Caparica e por mim coordenado durante o ano de 2009, ano em que se dá tal encontro. Com o término do D.A.R.



7 PTDC/CPE-CED/119695/2010 https://www.fct.pt/apoios/projectos/consulta/vglobal_projecto.phtml.pt?idProjecto=119695&idElemConcurs o=4231

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à Costa, educadores, pescadores e membros do assentamento ilegal, bem como de grupos profissionais que eram voluntários neste projeto local, resolvem continuar unidos e constituem o Movimento Fronteiras Urbanas em prol de soluções para o desenvolvimento humano local com dignidade. Inserido neste movimento, surge, após três anos, um caminho via a ciência: o caminho do projeto Fronteiras Urbanas. As três tarefas científicas propostas pelo projeto Fronteiras Urbanas (Alfabetização Crítica, Cartografia Múltipla, e Histórias de Vida) foram desenvolvidas pelos membros das três comunidades, e não são nada mais do que "as portas científicas" para reclamar: a água no assentamento ilegal; o direito à voz em decisões políticas locais para a comunidade de pescadores; e o direito de exercer uma educação emancipatória num universo educacional moldado pela estrutura formal, obsoleta, egocêntrica e cíclica sem nuances nos seus níveis de transformação. Nosso contexto foi desenvolvido sob a perspectiva filosófica transdisciplinar e transcultural proposta por Ubiratan D'Ambrosio. Em sua abordagem, conhecimento e educação são restauradas para o seu objectivo essencial de lidar com o problema universal que a humanidade enfrenta hoje, como sobreviver enquanto uma espécie, uma cultura, e um planeta com dignidade. Nossa vida diária (experiências, discussões, e o ato de repensar nas nossas imagens e ações etnográficas) nos fez querer entender mais, e profundamente, a nossa situacionalidade8, os nossos corpos conscientes em movimento intrinsecamente ligados com a nossa posição - posição de referência9, bem como as nossas relações de sobrevivência10, para conhecer e reconhecer o estado do mundo, percebendo as ações globais que atuam nos fatos locais - trabalhando com a dialética de Hegel do universal e particular. Nesse sentido, envolvemo-nos com um outro lado da educação com base em sua singularidade, pluralidade e diferença, fundado nos encontros de diversidade, e não baseado em discursos de maestria. No entanto, é importante ressaltar que esse discurso de maestria é argumentado no nosso processo dialógico, já que, como uma turba da sociedade local, somos parte dela, mesmo que invisíveis. A hegemonia global do sistema neoliberal nos dá a possibilidade de mudar a nossa postura, de fazer escolhas, mas com a condição de que estas escolhas não perturbem seriamente o equilíbrio da ideologia dominante - que mantém os atos de diferentes posturas "no mesmo saco"; escolha como escravidão. O conceito de escolha está relacionada com o conceito de liberdade e pode ser assumida como uma posição cega "racionalizada". De acordo com o filósofo contemporâneo Slavoj Žižek, em sua obra On Belief, estamos vivendo numa era de "fuga da liberdade" e num momento emergente no qual se faz repensar a oposição de liberdade "formal" e "real" (no sentido de Lenin), que pode levar a algumas perguntas sobre as necessidades e desejos - a ferida da

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Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra. Mesquita, M.; Restivo, S.; and D’Ambrosio, U. (2011). Asphalt Children and City Streets – A Life, a City, and a Case Study of History, Culture, and Ethnomathematics in São Paulo. Rotterdam: Sense Publishers. 10 D’Ambrosio, U. (2013). A broader sense of teaching mathematics for social justice. / Um sentido mais amplo de ensino da matemática para a justiça social. Plenary Conference on the I Congreso de Educación Matemática de América Central y El Caribe in República Dominicana on 6-8 Noviembre. Available online at http://www.centroedumatematica.com/memorias-icemacyc/Conferencia_plenaria,_D'Ambrosio.pdf. Accessed 14th January 2014. 9

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realidade, como expressa tão bem Slavoj Žižek em The parallax view, ou, ainda, sobre as decisões "livres". Numa postura radical centro-me, aqui, nas escolhas coletivas perturbadoras que convidam os atores sociais do projeto (todos nós) a repensar, criticamente, as relações entre os seus (nossos) desejos, necessidades e obrigações, contextualizando-as em nossas redes socioeconómicas estabelecimento de um terreno comum. A reflexão sobre a última ameaça vem de dentro, como Slavoj Žižek aponta em Welcome to the Desert of the Real, que a partir de nossa própria frouxidão e fraqueza moral, a perda de valores claros e compromissos firmes, do espírito de dedicação e sacrifício tem sido exercida de forma profunda, caminhando a partir da postura de vitimização de um sujeito coletivo. Central para o humanismo é a aceitação do ser humano como um sujeito coletivo autónomo. Neste contexto, ser livre é ser consciente sobre a nossa clausura e, em seguida, criar estratégias coletivas para viver com dignidade. Não defino aqui o conceito de fronteira, bem como este não é assim trabalhado em nenhum dos capítulos seguintes integrados nesta obra. Apenas partilhamos nossa história concordando com Etienne Balibar quando discute que as fronteiras são projetadas não apenas para dar aos indivíduos de diferentes classes sociais diferentes experiências da lei, da administração civil, da política e dos direitos elementares, tais como a liberdade de circulação e a liberdade de empresa, mas ativamente para diferenciar entre indivíduos em termos de classe social. Fronteira, aqui entendida, vivida e sentida, é vista como um substrato material da nossa sociedade urbana contemporânea e é trabalhada enquanto um fenómeno económico. É importante a quebra da visão elitista sobre o conceito fronteira, apontada por Balibar, de um excedente de direito – em particular, um mundo correto a circular sem obstáculos. Da mesma forma, é importante questionar a visão do pobre, também apontada por Balibar, na qual este conceito não só é um obstáculo que é muito difícil de superar, mas é um lugar no qual a pessoa pobre, materialmente falando, vai repetidamente contra, passando e repassando através da fronteira como e quando é expulsa ou tem permissão para se juntar a sua família, de modo que esta torna-se, no final, um lugar onde a pessoa reside. Chamo, aqui, atenção às bases materiais deste fenómeno, bem como suas relações de poder e ética. No encontro das nossas fronteiras urbanas existiam, acima de tudo, gente – seres humanos claramente marginalizados em suas sociedades. Éramos, e somos, uma comunidade constituída por investigadores, pescadores e moradores de um assentamento ilegal num movimento simbiótico pela justiça social cravada pela justiça espacial, como muito bem discutida por Filipa Ramalhete, uma das investigadoras do projecto Fronteiras Urbanas. A comunidade Académica, aqui apresentada, é caracterizada pela multiplicidade dos seus suportes teóricos e pelo desejo de atuar, em suas diferentes disciplinas, à transformação, à emancipação e à civilidade. É nestas três bases, políticas para o filósofo Etienne Balibar em Politics and the Other Scene, e entendida neste movimento enquanto bases educacionais, que dá-se a força de criação de um programa de atuação cívica coletiva via um projeto científico. A lacuna existente no espaço académico em respostas integradas com as sociedades em geral era um sentimento que unia todos nós – membros do Movimento Fronteiras Urbanas. Mergulhados na multidisciplinaridade, num ambiente interdisciplinar, constituiu-se no projeto Fronteiras Urbanas um movimento transdisciplinar, no - 22 -



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qual as três bases eleitas foram o grande sustentáculo para transpor-se às diferenças previamente impostas nas bases dos nossos conhecimentos, bem como no engaiolamento11 de nossas posições profissionais, em detrimento da dignidade e potencialidade humana, existente em nossas fronteiras, em nossos encontros, em nossa realidade local (individual e coletiva). A comunidade do Bairro, formada pelos moradores do assentamento ilegal, é uma favela estabelecida há quatro gerações numa RAN (Rede Agrícola Nacional) – que atualmente, após o assentamento, também é uma REN (Rede Ecológica Nacional). Esta favela reúne imigrantes (Cabo-verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Costa do Marfim e Ucrânia) e portugueses, dentre eles, um grupo da etnia cigana. Seus membros ocupam um pedaço de terra rural na Costa de Caparica. Os muitos problemas vividos por esta comunidade incluem: condições precárias de moradia, a falta de água encanada potável, um sistema de esgoto inadequada e a falta de eletricidade. Além disso, há um alto índice de analfabetismo, mas não obstante essas privações da comunidade demonstraram habilidades locais extraordinários e conhecimentos desenvolvidos a partir de uma necessidade de sobreviver em condições tão difíceis. Como um resultado do nosso encontro fronteiriço foi possível: • estabelecer uma escola comunitária, agora a funcionar numa base semanal, envolvendo membros da comunidade que trabalham em conjunto com diferentes grupos de pessoas (professores, educadores, biólogos, artistas, arquitetos, arqueólogos e outros), organizada em torno do curriculum trivium e num ambiente transdisciplinar; • construir uma cozinha comunitária – num projeto que nasce da presença do projeto Fronteiras Urbanas no local, via um workshop da Universidade Autónoma de Lisboa – parceira oficial deste projeto. Espaço com carácter multifuncional para atividades comunitárias; • unir os membros da comunidade em torno de um conjunto de objetivos comuns e para aumentar os níveis de participação dos seus membros no debate político através da constituição de uma comissão multiétnica local. Esta comissão - Comissão de Moradores das Terras da Costa, representa, hoje em dia, a comunidade do Bairro quando se relaciona com as autoridades locais e as instituições políticas; • permitir que os membros da comunidade participem de encontros académicos e na produção de investigação científica – como esta, na qual encontramos no capítulo Desabafo sobre a Pobreza a voz de um morador desta comunidade; • para habilitar as novas gerações locais a ganhar a auto-estima necessária para carregar a posse da herança cultural que tem sido sistematicamente corroída devido a restrições sociais, culturais, económicas e políticas. A comunidade Piscatória também está localizada na Costa de Caparica, sendo esta sua fundadora. Esta comunidade teve suas origens nas populações migrantes, provenientes de outros centros de pesca do norte e do sul português - Ílhavo e Olhão, respetivamente. Desde o século XVIII, esses

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D’Ambrosio, U. (2008). O Programa Etnomatemático: Uma síntese. In Acta Scientiae : revista do Centro de Ciências Naturais e Exatas / Universidade Luterana do Brasil, v.10, n.1, Canoas: ED. ULBRA - 23 -



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migrantes ocuparam uma área de praia desabitada fazendo o máximo proveito das condições geográficas favoráveis usando, inicialmente, uma arte de pesca tradicional chamado Arte Xávega. Devido às suas origens e formas distintas de vida, a comunidade Piscatória foi marginalizada pela população local e geraram desconfiança por parte das autoridades. São alguns aspectos desta história que serve, de alguma forma, para explicar as adversidades que a comunidade Piscatória tem sofrido para nunca ter sido integrada no desenvolvimento e na promoção desta cidade pelas entidades locais. Além disso, quando, após as primeiras décadas do século XX, a Costa de Caparica foi categorizada como uma zona turística, a comunidade Piscatória foi empurrada ainda mais ao sul e deslocada das áreas de pesca mais rentáveis – frente urbana. O envolvimento direto da comunidade piscatória, durante o projeto Fronteiras Urbanas, resultou no desenvolvimento de um diálogo entre os seus membros e as autoridades da administração pública local, regional e nacional, o que contribuiu para a resolução de algumas das questões em jogo. Através deste projeto, certas dinâmicas foram geradas que contribuíram para: a) o surgimento de uma associação ligada aos interesses sócio-políticos-económico dos pescadores - Associação Ala-Ala, b) nova legislação que autoriza a pesca na frente urbana da Costa de Caparica, fora o período de verão. Viver nossas fronteiras urbanas significou investigar a dinâmica das três comunidades dentro do espaço local: individual e colectivo, fazendo com que o projeto Fronteiras Urbanas incindisse sobre o papel da educação no quotidiano das pessoas que formam essas três comunidades. Em geral, a educação está alinhada com a escolaridade obrigatória, tornando difícil pensar sobre isso em outros termos do que a escolarização formal. No entanto, neste projeto fomos além da generalizada escolaridade, de modo a considerar a educação como um processo que permeia todas as dimensões da atividade humana. Aqui, a educação foi conceituada sobre as bases da mudança e da acomodação urbana, onde através de mudanças e acomodações – fronteiras urbanas, incluindo aquelas que circunscrevem comunidades marginalizadas e desprivilegiadas, pode e deve ser o cerne da transformação, da autonomia e da civilidade. Ao mesmo tempo, a educação (especialmente nas suas formas obrigatórias) foi entendida como um pré-requisito para a inclusão, mas buscando sempre a consciência de que, ao mesmo tempo, ela poderia ser um caminho para a exclusão - é ao mesmo tempo um poderoso instrumento de doutrinação, como a história da colonização prova, e uma oportunidade para a emancipação. Como tal, a educação foi o campo privilegiado no qual foram estudados os desafios vividos pelas comunidades com uma história de exclusão local – em suas individualidades e em seu colectivo. Nossa conceção de educação tem sido baseada na obra de Paulo Freire, que enraíza a sua prática na construção de uma consciência política capaz de lutar contra a cultura do silêncio12. Embora Freire nos tenha deixado com um conjunto de textos extremamente significativos, sua principal influência educacional foi criada através da práxis de trabalhar com e dentro de comunidades pobres do interior do Brasil. Essa práxis fundamenta-se com base numa abordagem dialógica para a participação, a qual não foi organizada em torno de currículos disciplinares fixos, mas sim em torno de respeito e solidariedade entre todas as pessoas envolvidas no processo educacional – ele não envolvia pessoas que atuavam para o outro, mas sim pessoas que atuavam com o outro – e mais ainda, entre elas. Este trabalho comunitário situa a atividade educacional nas experiências

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Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra. - 24 -



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vividas dos participantes, suas necessidades e ambições. Além disso, a práxis freireana também inclui a consciência crítica - conscientização. Tornar-se crítico implica uma perceção de que as condições carentes vividas por comunidades locais emergem do contexto social e político mais amplo, sob uma gerência económica, e onde, através da educação, os indivíduos são tanto o produto, quanto os produtores de tais sistemas. A conceção primária freiriana, por nós adotada, permitiu constatar que a educação não é apenas concebida como um campo de estudo ou uma atividade específica mas sim como uma práxis de viver em solidariedade. Oss resultado científicos apontados pelo projeto Fronteiras Urbanas são provas deste facto. Este projeto destacou-se, permitindo que os membros das comunidades fossem envolvidos ativamente na construção, no desenvolvimento e na difusão das diferentes tarefas desenvolvidas nesta ação. Este processo educacional é baseado em desafios e tem uma abordagem transdisciplinar para o conhecimento dos termos explorados por Ubiratan D'Ambrosio, em seu Programa Etnomatemático. No projeto Fronteiras Urbanas implementámos uma abordagem educativa utilizando o curriculum trivium desenvolvido por D’Ambrosio. Este currículo organiza a educação em torno de três instrumentos: a literacia (instrumentos comunicativos), materacia (instrumentos analíticos), e tecnoracia (instrumentos materiais). Avançamos ao perceber que a teoria D’Ambrosiana usa a palavra etnomatemática para destacar a natureza transdisciplinar de uma educação comunitária. Em vez de compartimentar o conhecimento em caixas disciplinares, como é sempre muito bem destacado por D’Ambrosio, uma postura etnomatemática13 trabalha com a ideia de que existem diferentes técnicas, habilidades ou competências, arte, estilo (ticas) para compreender, explicar, conhecer, lidar com (matema) diferentes dimensões naturais, culturais e socioeconómicos da realidade (etnia). O curriculum trivium teve um papel importante no projeto Fronteiras Urbanas pois: a) fez visível e viável o conhecimento produzido pelas comunidades locais; b) permitiu a construção de um currículo global que mantém a diversidade cultural das comunidades locais; c) criou ferramentas de comunicação através do qual todos os participantes tiveram a possibilidade de discutir algumas das tensões que circulam em torno de unidade e diversidade. Como tal, ofereceu um quadro muito diferente do que ocorre na parte curricular em contextos escolares, na educação formal. Este processo de co-construção - educação comunitária - garante que as tarefas científicas emerjam das necessidades vividas pelas comunidades locais. Um fator crucial para este facto foi ter membros das comunidades locais a trabalhar no projeto. Como tal, este não foi um projeto topdown, onde um grupo de académicos impõe a sua própria agenda de investigação sobre os membros da comunidade, mas um verdadeiro projeto de bottom-up, onde as vozes das comunidades locais e participantes encontram o outro. Na própria preparação do projeto Fronteiras Urbanas, e como parte do processo contínuo de educação comunitária que ocorreu entre os participantes e as comunidades locais, discutimos o nosso papel como parte da diversidade cultural que representamos e do espaço urbano em que estamos geograficamente incluídos. Um processo



13 D’Ambrosio, U. (2013). A broader sense of teaching mathematics for social justice. / Um sentido mais amplo de ensino da matemática para a justiça social. Plenary Conference on the I Congreso de Educación Matemática de América Central y El Caribe in República Dominicana on 6-8 Noviembre. Available online at http://www.centroedumatematica.com/memorias-icemacyc/Conferencia_plenaria,_D'Ambrosio.pdf. Accessed 14th January 2014.

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de valorização do conhecimento local foi colocado em movimento através das práticas educativas das comunidades locais. Todo este processo estava centrado na organização local e gestão local de situações interativas e diferenciadas de aprendizagem. As pessoas envolvidas neste projeto começaram por esclarecer os processos educativos desenvolvidos no interior das comunidades locais, as necessidades locais definidas pelos seus membros, bem como o reconhecimento do "simbólico" das comunidades à sociedade mais ampla. São essas sementes que permitiram o desenvolvimento de uma educação comunitária entre os participantes e as comunidades locais. Neste movimento, um crescimento mútuo de investigadores com menos experiência em investigação nesta área do conhecimento, reforça a coerência da dinâmica de encontros culturais propostos. Novos investigadores, cada um em seu novo papel, tecem uma rede de perspetivas, intenções, necessidades, ações e produções que vão fortalecer o carácter interventivo de cada participante (membros das comunidades locais/membros da comunidade académica) na sua respetiva comunidade, o reconhecimento da nossa igualdade legal e o entendimento de processos educacionais ocultos noutras formas de investigação. É normal ouvirmos Ubiratan D’Ambrosio, enquanto educador, dizer que o movimento do ser humano em busca do conhecimento fez com que as nossas análises e práticas científicas fossem reducionistas, fragmentadas em disciplinas, compartimentalizadas em saberes e fazeres, desenvolvendo, assim, as especializações. Para ele, este movimento reducionista propõe soluções que não atingem a meta essencial de um enfoque integrado. Neste sentido, D’Ambrósio tem vindo a propor, insistentemente nas suas obras, uma reorientação das ciências e da tecnologia, fundamentada numa integração dos vários conhecimentos, transcendendo as culturas e as disciplinas, a partir de uma perspetiva transdisciplinar. Neste sentido, o projeto Fronteiras Urbanas promoveu no seu cerne etnográfico o encontro de saberes e fazeres, não só localizados no seio da academia mas também vivenciado no conhecimento dos membros de ambas comunidades. Neste projeto foram reconhecidos conhecimentos de dimensão racional, como as ciências e a tecnologia, e também de dimensão sensorial, intuitiva, emocional e mística. A postura etnomatemática permitiu, cientificamente, que tivéssemos tal flexibilidade; na verdade, esta postura exige que tenhamos uma visão holística sobre os saberes e fazeres. Neste projeto, essas dimensões revelaram-se nas chamadas humanidades, artes e tradições, o que inclui a religião e a espiritualidade no sentido amplo. Com o surgimento das mecânicas quântica e relativista a perceção da realidade determinista e de sua linearidade foi transformada e o surgimento de teorias geral dos sistemas, do caos e da complexidade altera a visão do ser humano, fazendo que tomemos consciência da importância do outro no reconhecimento do seu próprio eu. Neste sentido, fundamentei a nossa etnografia crítica na teoria lacaniana, discutida por Slavoj Žižek, para transformarmos o ato da investigação num ato popular, onde o terreno comum da academia passa a ser os problemas mundanos. Esta escolha trouxe-nos à reflexão conceitos como sustentabilidade e natureza, de maneira a discutirmos nossa co-responsabilização, nossa posição de “objeto de estudo”, bem como nossa integridade (corpo, mente e cosmos) enquanto investigadores do projeto Fronteiras Urbanas. Ter

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passado por este processo dialógico fez-nos crescer, ainda mais, em nosso comportamento subordinado à ética maior de respeito, solidariedade e cooperação, defendidas por D’Ambrósio14.

Centrada na educação comunitária, apresento o conceito de espaço como fator crucial de integração (ou se preferirem, inclusão) – tendo ele próprio a postura de lembrar ao ser humano a atual emergência para estar com o outro, com a natureza, e para repensar a alegada supremacia da espécie humana face às outras formas de vida. Tal conceito é trabalhado pelo projeto Fronteiras Urbanas como uma conceção do corpo matemático que é, entre outros, um produtor ativo de corpos que reagem dentro das relações de produção e deve ser visto como uma parte da cultura humana, que reivindica o ponto de vista onde o corpo matemático não é uma parte de algum tipo de reino transcendental platónico. O ser humano pára de se sentir estranho no mundo em que vive quando reconhece que a atitude científica no mundo não é mera contemplação mas movimento de construção social. Como tenho defendido junto com meu mestre e amigo Sal Restivo, os olhos da ciência devem estar no entendimento de como as interações dos seres humanos estão envolvidos na constituição e reconstituição do mundo. A matéria-prima da ciência é o ambiente ecológico onde práticas sociais e culturais o transformam, na sua composição, pelas forças produtivas e as relações de produção. Tenho vindo a constatar que as forças produtivas e as relações de produção inseridas nas comunidades mantêm-se em consonância com o espaço posicional e relacional do corpo. É no espaço concreto do encontro, onde a mente e os afetos se corporificam pelo ato da palavra dialogada e agida, que as transformações internas e externas, individuais e coletivas, acontecem. Trata-se de uma ética da relação e do diálogo, onde a identificação e a desidentificação são processos que favorecem a emancipação dos vários que se reconhecem no encontro. Trata-se, pois,

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D’Ambrosio, U. (2008). O Programa Etnomatemático: Uma síntese. In Acta Scientiae : revista do Centro de Ciências Naturais e Exatas / Universidade Luterana do Brasil, v.10, n.1, Canoas: ED. ULBRA. - 27 -



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de uma ética do reconhecimento de si no outro e do outro em si mas, também por isso, de desconstrução e reconstrução do eu. Como disse muito bem Ana Viana, em sua obra Casa Acordada, “há uma dor mas Vêm/a vida chama-os mas decidem/no seu tempo estar/sorriso e abraço suspendendo o grito/que transformam em palavra/ e que aprendem a levar vertical/aos lugares de ser escutada” Sendo assim, tenho defendido que o poder da corporificação e a ética de identificação são como produções do corpo, e as relações de poder e ética como relações de produções. Na obra Les Formes élémentaires de la vie religieuse : le système totémique en Australie, Émile Durkheim aproxima-se do espaço como uma categoria de conhecimento, uma representação coletiva, uma coisa social. De acordo com Durkheim, falar sobre esta categoria é para falar sobre as relações que o espaço expressa, de forma implícita, através da consciência individual. Neste contexto representar o espaço é, essencialmente, ordenar o heterogéneo, ou seja, produzir, espacialmente falando, sentido. Por si só o espaço não tem nem direita nem esquerda, nem alto nem baixo, nem o norte nem o sul. Todas estas distinções são construções sociais com diferentes valores afetivos. Como todas as pessoas de uma cultura representam o espaço da mesma forma, é evidente que estes valores afetivos e suas distinções - o que eles dependem - são igualmente comuns, pois eles têm origens sociais. Desta forma, meus estudos têm confirmado que o espaço não é dissociável da sociedade que nele habita, e avançado para o conhecimento de que o espaço também não é dissociável do poder da corporificação e nem da ética de identificação existentes nesta sociedade. Pelo contrário, o espaço é a construção de uma base material sobre a qual a sociedade produz a sua própria história. Entretanto, na obra Living in the end Times, Žižek discute que o ser humano não pode ser reduzido em codificações simbólicas de "alteridade", que oferecem oportunidades de autorrealização, mas que são reais vizinhos inevitáveis e cuja própria particularidade confronta o indivíduo com as demandas universais e obrigações que não podem ser ignoradas. A ideia de "alteridade" é central para análises antropo-sócio-económicas de como as identidades espaciais são construídas. Este pressuposto deve-se ao fato da representação dos diferentes grupos dentro de qualquer sociedade ser controlada por grupos que têm uma maior potência política que, em nossos tempos podemos afirmar que são grupos que têm uma maior potência económica. A fim de entender a noção do Outro (como Lacan o define), colocámos um holofote crítico sobre as estratégias pelas quais as identidades socioculturais são construídas A voz de Žižek tem chamado o foco humano, localizando as origens da vida social em capacidades e potencialidades humanas, que é capaz de desenvolver através da construção social, a interação com os outros de qualquer espécie. Žižek, na obra Um Mapa da Ideologia, trabalha com a ideia de seres humanos que estão IN (seres humanos incluídos na sociedade legalmente regulada de bemestar e os direitos humanos), e que estão OUT (do sem-teto de nossas cidades urbanas entre as quais as comunidades das fronteiras urbanas do projeto). É necessário acrescentar que estar IN é ter visibilidade intelectual e material nas formas neoliberais de vida e na hegemonia dos atuais espaços urbanos. Estar OUT é não ter visibilidade intelectual e material; estar fora é ser invisível nos mais profundos sentidos humanos.

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Olhando para essa relação espacial entre IN e OUT, reflito que a população urbana local não reconhece as relações sociais entre os grupos marginalizados e não marginalizados revelados nos estudos etnográficos que tenho desenvolvido. Para o grupo não-marginalizado, o outro - grupo marginalizado - tornou-se invisível, mesmo que eles tenham direitos ou necessidades urgentes como cidadãos. Ser invisível é estar no espaço marginal da grande sociedade, é sobreviver sem ser incluído diretamente nas relações éticas e de poder da grande sociedade, desenvolvendo relações invisíveis de ética, e consequentemente, de poder. Durante a Era Industrial, os grupos marginais urbanos eram geralmente localizados na periferia da cidade ou controlados, colocando-os metafórica e literalmente em cadeias (em presídios, hospitais psiquiátricos e reformatórios). Segundo meus estudos, a presença contínua e crescente destes grupos culturais em áreas centrais urbanas afeta diretamente as relações sociais da grande sociedade, não gerando uma simbiose mútua, mas a seleção natural capitalista; os grupos culturais marginais passaram por um processo de eliminação fundada na sua incapacidade de se adaptar à vida nas áreas centrais urbanas. No passo seguinte, tornaram-se invisíveis. O movimento dos grupos culturais marginais na área central urbana surgiu como uma resposta topológica ao movimento de conurbação durante a Era Industrial. Este movimento desenvolveu o não-espaço, ou seja, espaço físico não identificado ou identificável, organizado em torno de entropia e anomia, por mim discutido noutros escritos. É aqui que encontramos um espaço para um certo tipo de conjunto invisível das relações sociais. No não-espaço urbano, as relações sociais acontecem num processo de osmose capital natural. No entanto, o medo do outro invisível tornase a consequência de uma parede nos olhos de um visível. Uma parede de angústia constituída, entre outras coisas, pelo entupimento dos corpos nos espaços urbanos, pela manipulação do aparecimento de uma constante ameaça colocada pelo outro invisível - parede que está em desenvolvimento e alimentando os limites urbanos. O universal singular – reconhecido como invisível nos estudos que tenho conduzido, é um grupo que, embora sem qualquer instalação fixa no edifício social (ou, na melhor das hipóteses, ocupando um lugar subordinado), não só pede para ser ouvido em pé de igualdade com o poder dominante mas, indo além, se apresenta como a encarnação imediata da sociedade como tal, em sua universalidade, contra os interesses de poder particulares da burguesia local – indo ao encontro com a teoria trazida por Žižek no seu capítulo Four Discourses, Four Subjects, da sua obra Cogito and the Unconsciousness. O corpo é controlado como uma estratégia de poder para ocupar e delimitar espaços e, ao mesmo tempo, é manipulado como uma estratégia de ética global para manter os espaços elitistas. Este exercício é vivenciado diariamente por qualquer pessoa que resolva estar ao lado de um dos membros das comunidades envolvidas neste estudo. Entendo, nos processos etnográficos vividos, que a relação entre o poder e o corpo está no processo de submissão agradável onde dever se torna prazer - o ato de corporificação. A relação entre ética e corpo está relacionada com o politicamente correto onde o prazer se torna dever - o ato de identificação.

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As inter-relações entre o poder, a ética e o corpo estão relacionados com o processo de controlar e manipular, é intrínseca ao pensamento lógico, que é uma representação coletiva. Corporificação e identificação combinam-se para tomar posse traiçoeira sobre o corpo, uma espera que se baseia simultaneamente sobre a produção de conhecimento. Ambos os conceitos se manifestam nas relações de conhecimento (matemático - conhecimento espacial) que condicionam o surgimento do ser humano, concentrando-se sobre o corpo. O corpo passa por esse processo com a intenção de se tornar, ele próprio, capaz de participar da atividade económica em que os termos são de sujeição ininterrupta e em detrimento de seu potencial pelo apelo e revolta. Já Michel Focault, na sua obra Surveiller et punir: Naissance de la Prison, discute que se forma uma política de coerções, as quais estão trabalhando sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, seus gestos, seu comportamento, fazendo com que o corpo humano entre numa maquinaria disciplinar de poder que o procura, o desarticula e o reprograma, fabricando, assim, corpos dóceis. O corpo aqui é frágil. Aparece alvejado e produzido pelo sistema hegemónico e, em seguida, tornase incompreensível fora de suas significações culturais; forças sociais, afetivas e históricas construídas diretamente da realidade corpórea do corpo. Num dos meus estudos, chamo a atenção para os não-espaços que são criados pela sociedade para o mulato, da qual nasceu uma equação: mulato + não- espaço = malandro. Esta equação pode ser revisitada por todos os membros das comunidades envolvidas nos meus estudos etnográficos, nomeadamente, a criança de rua, o mebengokrê, o panará, o tapayuna, o pataxó, o pataxó hã-hã-hãe, o tupinambá, o cigano, o pescador, o português do bairro, o imigrante na Costa de Caparica (cabo-verdiano, angolano, guineense, brasileiro, etc.). No entanto, é importante ressaltar que a corporificação e a identificação, discutidas aqui, não são redutíveis à repressão. Corporificação e identificação não estão apenas negativamente ligadas às forças produtivas e às relações de produção. Se os mecanismos de poder e ética (global) fossem exercidos apenas de forma negativa estes seriam muito frágeis. Se eles são fortes é porque a corporificação e a identificação produzem efeitos positivos ao nível do desejo, da obrigação e do saber. A partir de um desejo, uma obrigação e um saber sobre o corpo apareceu um conhecimento fisiológico, o orgânico. Para compreender que a sujeição envolvida nas relações entre o conhecimento, a corporificação, a identificação e o corpo não está centrada sobre o paradigma da obediência, mas sim dispersa através do corpo social, observei a constituição do corpo em determinados espaços, as relações de controlo e de manipulação que ocorrem dentro do processo de constituição, as interações do corpo - 30 -



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no espaço, bem como os efeitos concretos que essas interações produzem em determinados espaços. Sendo assim, para compreender esse processo de observação foi necessário perfilar a importância de deslocar o foco às fronteiras da zona, às extremidades do corpo social, às instituições locais, indo da lei às regras locais a fim de observar as técnicas de intervenção dos mecanismos de poder e ética global nas produções, e para observar os efeitos materiais que são produzidos sobre os corpos. Num movimento de ruptura com a marginalização material e simbólica, os mecanismos de poder, de controlo legal e ético sobre os corpos são quebrados pela criatividade e valores diferentes vindos dos outros invisíveis. O ato, ou práticas de resistência como Žižek clama na sua obra The Indivisible Remainder, torna-se político, reiterando noutro registo e como uma condensação metafórica da reestruturação global de todo o espaço. De acordo com Žižek, na sua obra Welcoming to the Desert of the Real, a possibilidade de atos que perturbem a ordem sóciosimbólica, que provoque as ruturas do real, podem romper o impasse do tédio, da falta de entusiasmo e iniciativa, da pós-política. No ato, em outras palavras, podemos encontrar esperança para algo mais. E, então, reflito com Ana Viana que “os momentos não se somam/quando o coração se expande em cada/mesmo que entre eles nos doa/a ausência// um fio de luz atravessaos/insuflando de riso o seguinte/ e sedimentando dentro uma presença”. A colaboração íntima promovida pelos estudos que conduzi, especialmente pelo projeto Fronteiras Urbanas, tem contribuído para a sobreposição deste cenário através do nosso comprometimento em torno dos mesmos desejos - o desejo de saber, do reconhecimento, da validação, tornando compatíveis os nossos conhecimentos, os desejos de estarmos nas fronteiras, a troca de energia visando capacitar nossas comunidades. Trata-se, pois, de uma ética da colaboração e da resistência, pela qual há um comprometimento em continuarmos o encontro e de rompermos a barreira entre o visível e o invisível.

o centro é o fogo que alimentamos em cada encontro e que permanece vivo porque sempre alguém lhe responde (Ana Viana – A Casa Acordada)

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Ilustração de João Moreira

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OS DESAFIOS DA ETNOMATEMÁTICA Alexandre Pais Neste capítulo discuto alguns aspectos problemáticos de um dos alicerces fundamentais do projecto Fronteiras Urbanas: a etnomatemática. Argumentarei que certas pressuposições da pesquisa em etnomatemática, ao nível epistomológico, pedagógico e político, carecem de uma sustentação teórica forte que permita a este campo de pesquisa situar-se na sua relação com o conhecimento local e com a escola regular. Como consequência, a investigação em etnomatemática é facilmente domesticada acabando reproduzindo na prática aquilo que explicitamente critica. INTRODUÇÃO Numa das primeiras vezes que visitei o Bairro, a Mônica, inclusiva e desafiadora como sempre, prontamente me sentou numa das mesas do bar do Durval onde dois moradores jogavam um jogo típico de Cabo Verde, o Uril. Fê-lo por eu ser na altura um professor de matemática, alguém, portanto, apto para interpretar matematicamente o jogo, numa perspectiva etnomatemática. Ali fiquei observando o jogo a ser jogado. Ao início, tentando satisfazer a demanda, ainda tentei "ver" no jogo alguma matemática. E, de facto, com paciência e alguma ficção, pode-se perceber matematicamente o que aquelas duas pessoas estavam a fazer. Mas isso não me ajudou muito a entender o jogo. Na altura de jogar, tampouco a matemática me ajudou a alcançar uma estratégia vencedora. Prova disso foi o meu adversário que, nunca tendo estado numa aula de matemática na vida, brincou como quis comigo (deixando-me até ganhar em algumas ocasiões, não sei se por piedade se para me convencer a jogar mais um). Senti haver algo de artificial no exercício de tentar "ver" matemática numa prática que nem está estruturada matematicamente nem necessita de matemática para ser dominada com perícia. Um ano mais tarde, e depois de algumas idas ao Bairro, surgiu a oportunidade de ensinar matemática à Lizi (Elisângela Almeida). Ela tinha estudado matemática antes, e além de gostar, mostrava dominar conceitos importantes. Lizi queria estudar matemática não para perceber melhor as contas que fazia diariamente no bar onde trabalha e de que é dona, nem para preparar melhor suas receitas de cozinha Cabo Verdianas. Lizi queria aprender matemática para entrar na universidade. Ela não estava interessada em perceber matematicamente o que sempre fez sem matemática toda a sua vida, mas sim em aprender a matemática académica que ela, não só gostava, como precisava para um futuro na universidade. Estes dois episódios evidenciam duas maneiras distintas de lidar com a matemática, e com o papel que a matemática pode ter na vida das pessoas do Bairro, e, de modo mais geral, das pessoas que não sofreram a intensidade da matemática escolar. Noutros lugares, tenho defendido a importância de criticamente repensar o papel da etnomatemática, a nível educacional, filosófico e político, de modo a que não se torne uma disciplina nem dogmática nem religiosa. Neste texto reflicto sobre uma série de contradições e críticas nomeadamente ao nível das suas implicações educacionais. Embora eu concorde com Ubiratan D’Ambrosio na afirmação de que a investigação em educação - 33 -



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matemática pode fornecer uma compreensão mais profunda da história e filosofia da matemática, contesto a ideia de que as implicações pedagógicas da etnomatemática são óbvias. Essa contestação assenta, em primeiro lugar, na crítica à ideia de que a matemática “está em todo o lado”, com base na filosofia contemporânea. Em segundo lugar, na ideia de que as pessoas transferem conhecimento de e para a escola. E em terceiro lugar, no modo ideológico como o “outro” é construído na investigação em etnomatemática. Em jeito de conclusão, enaltecerei o papel económico da escola como pano de fundo para percebermos a etnomatemática não como uma força transformadora, mas como o que Paulo Freire chamou de “transformações superficiais”15 as quais, longe de combaterem o status quo, contribuem para a sua fortificação.

A INVESTIGAÇÃO EM ETNOMATEMÁTICA Durante a modernidade, a matemática assumiu-se como exemplo de neutralidade, universalidade e verdade científica, além de instrumento privilegiado para ler o mundo físico e social. Esta matemática, desenvolvida na academia por matemáticos, e disseminada nas escolas por professores, é frequentemente encarada, tanto no discurso científico como no discurso público, como sendo à prova humana, transcendendo culturas, válida independentemente dos lugares e usos que dela se fazem. A matemática assim construída tem sido determinante não só em termos científicos – fornecendo o necessário rigor para a solidificação de outras ciências – como também em termos sociais – estando por detrás de muitos dos avanços tecnológicos e governamentais que caracterizam as sociedades actuais. Esta posição de certeza que a matemática ocupa no imaginário social oferece resistências a uma compreensão cultural da matemática como uma construção humana, e a uma interpretação sociológica do modo como a matemática e, em particular, a matemática escolar, está envolvida em processos que extravasam em muito a benevolência que normalmente se associa a esta ciência. Um dos momentos que marcam o início de uma postura crítica em relação, por um lado, à alegada aculturalidade da matemática e, por outro lado, à sua intrínseca benfeitoria, é o programa de etnomatemática. O prefixo “etno” desloca a matemática dos lugares onde tem sido erigida e glorificada (a universidade e a escola) e espalha-a pelo mundo das pessoas, nas suas diversas culturas e actividades mundanas. A etnomatemática contamina a matemática de factor humano; não um ser humano abstracto, mas um ser humano situado num tempo e num espaço que requere diferentes conhecimentos e diferentes práticas. Ao mesmo tempo, a etnomatemática surge como uma crítica sem precedentes ao modo como o conhecimento matemático, e a hegemonia que o alimenta, tem servido ao longo da modernidade como um suporte para práticas de dominação e colonização. O trabalho de investigadores como Ubiratan D’Ambrosio, Arthur Powell, Marylin Frankenstein, Alan Bishop, Gelsa Knijnik, Mariana Ferreira, entre outros, tem mostrado que a matemática, longe de ser o estandarte de uma sociedade universal baseada num conhecimento neutro e verdadeiro, é uma maneira muito particular de entender o tempo e o espaço, de classificar e ordenar o mundo, e de compreender as relações sociais e políticas.

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Freire, P. (1998). Cultural action for freedom. Harvard Educational Review, 8(4), p. 508. - 34 -



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Vista desta forma, a etnomatemática apresenta-se não tanto como uma matemática étnica, que suplementaria a matemática académica, mas como uma crítica ao conhecimento que é valorizado como sendo conhecimento matemático. Mais do que a pesquisa do conhecimento matemático de povos culturalmente distintos, ou do conhecimento usado por pessoas em suas actividades diárias, a pesquisa em etnomatemática é importante pela crítica epistemológica que faz da matemática académica. A importância do programa de pesquisa em etnomatemática não está somente relacionada com o estudo e a valorização de “outras” matemáticas, mas também com a crítica que a etnomatemática faz da própria matemática, através de uma análise social, histórica, política e económica de como a matemática acabou sendo o que é hoje. No entanto, a investigação em etnomatemática nos últimos quinze anos tem-se focado primordialmente no estudo de “culturas locais” e em matemáticas “não-escolares”. A premissa que justifica este tipo de investigação pode ser enunciada da seguinte forma: antes de entrarem na escola os alunos possuem algum tipo de conhecimento protomatemático; este conhecimento deve ser tido em consideração pelo professor na organização do processo de ensino e aprendizagem da matemática escolar; desta forma garante-se que as diferenças culturais são valorizadas, abrindose o espaço para uma aprendizagem mais eficiente (visto os estudantes não começarem do nada mas de suas próprias experiências). Nesta perspectiva, a etnomatemática torna-se numa das muitas “ferramentas didácticas” disponíveis para ensinar matemática. Isto é, a etnomatemática deixa de ser uma reflexão crítica sobre as raízes sociopolíticas da matemática académica, para passar a ser um instrumento de aprendizagem. Esta domesticação da etnomatemática é problemática se tivermos em consideração o potencial emancipatório que o programa de etnomatemática comporta relativamente à matemática escolar.

ONDE ESTÁ A MATEMÁTICA? Apesar de divergirem em vários aspectos, existe uma dimensão na qual ambos matemáticos e etnomatemáticos estão de acordo: a matemática está em todo o lado. Apesar de serem matemáticas diferentes – a dos matemáticos é a matemática das abstracções formais que lhes permite modelar cada centímetro de realidade, enquanto que para os etnomatemáticos é a matemática das práticas culturais – existe a ideia de que não só a realidade pode ser descrita em termos matemáticos, como qualquer prática humana envolve de alguma maneira, mais ou menos rudimentar, conhecimento matemático. Para um etnomatemático a matemática é universal não porque é a mesma em todos os diferentes universos culturais, mas porque cada pessoa, quer reconheça ou não, usa e explora matemática na sua vida diária. O acto de posicionar a matemática na realidade, quer seja a realidade física quer seja a realidade das pessoas em suas actividades, leva a que uma das tarefas da investigação em etnomatemática consista no reconhecimento16 ou descongelamento17 dessa matemática de forma a que possa ser



16 Adam, S., Alangui, W., & Barton, B. (2003). A comment on: Rowlands and Carson “Where would formal, academic mathematics stand in a curriculum informed by Ethnomathematics? A critical review”. Educational Studies in Mathematics, 52, 327–335. 17 Gerdes, P. (1995). Ethnomathematics and education in Africa. Stockholm: Institute of International Education, University of Stockholm.0

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usada em termos educacionais. É como se um aluno, antes de entrar para a escola, já esteja a usar matemática; na escola ele apenas reconhece o que fazia como sendo matemática. O mesmo se passa com os estudos em etnomatemática de povos culturalmente distintos. Com vista à sua emancipação, povos indígenas, por exemplo, ganhariam ao reconhecer como sendo matemática aquilo que sempre fizeram toda as suas vidas, sem qualquer referência à matemática. Ambos os casos pressupõem a ideia de que a matemática sempre esteve lá, mesmo que as pessoas que lá estavam não a tenham reconhecido. Porém, uma outra maneira de perceber a prática etnomatemática de reconhecimento é dizer que a matemática não está na realidade, mas sim no olhar do etnomatemático. Uma situação necessita do olhar treinado do etnomatemático para que seja identificada como sendo matemática. Nesta perspectiva, a matemática não está na realidade mas sim no olhar. É o próprio acto de reconhecimento que a posteriori cria a ilusão de que a matemática sempre esteve lá. Contra a ideia de que nossas palavras, textos, linguagem ou discursos descrevem uma certa realidade, filósofos como Jacques Lacan, Jacques Derrida ou Slavoj Žižek argumentam que ao invés de descrever a realidade, nossas palavras constituem a realidade como tal. Isto é o que em filosofia contemporânea se chama o poder performativo da palavra: a realidade é algo que se constitui a partir de uma posição subjectiva. Quando dizemos que o mundo está escrito em linguagem matemática não estamos afirmando nenhuma verdade ontológica sobre o mundo ou sobre a matemática, mas é por meio desta declaração que o mundo se torna escrito em linguagem matemática. A verdade de uma afirmação não depende do seu conteúdo, mas sim do próprio acto de enunciação. O acto de reconhecer matemática na realidade é performativo. Alunos, povos indígenas ou grupos profissionais, não reconhecem como sendo matemática algo que eles sempre fizeram (como os meus companheiros do jogo do Uril). Ao invés, eles percebem como sendo matemática o que sempre fizeram a partir do momento em que alguém – o etnomatemático – descreve como sendo matemática o que eles estão fazendo. Era esse o papel que era esperado de mim relativamente ao jogo. Este deslocamento, da realidade para o olhar, tem implicações no modo como a etnomatemática se percebe como uma força emancipatória. Aparentemente, o reconhecer como sendo matemática o que certas pessoas fazem resulta numa valorização dessas práticas. Tal reconhecimento possibilita que essas pessoas sejam valorizadas na medida em que também elas, e não só os matemáticos, usam e exploram algo tão inacessível como a matemática. Contudo, tal como refere o linguista Wilmar D’Angelis (2000), tal reconhecimento carrega um preconceito: o de que as práticas mundanas dessas pessoas só são valorizadas porque são reconhecidas como sendo matemática. Em última instância, o que este discurso emancipatório carrega é a ideia de que uma certa prática – a construção de casas numa comunidade indígena, um jogo tradicional ou o ofício de carpinteiro – é valiosa na medida em que envolve matemática. É a matemática que certifica a riqueza do que essas pessoas estão a fazer (e não a prática em si). Várias questões emergem desde deslocamento: Porque necessitamos de caracterizar uma prática como sendo matemática para que esta seja valorizada? Porque uma prática não é valorizada por aquilo que é: carpintaria, construção de casas, jogos? Não estaremos implicitamente a dizer que certas práticas são meritórias de serem estudadas apenas porque nós vemos matemática nelas? Porque é que essas práticas não merecem ser estudadas como aquilo que são? Porque é que é - 36 -



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necessário o olhar treinado do etnomatemático para valorizar o que certas pessoas sempre fizeram toda a sua vida? Estas questões raramente são colocadas pelos etnomatemáticos. A matemática está em todo o lado a partir do momento em que nós, pessoas treinadas em matemática, a colocamos lá. Não há nada na realidade que possa, em si, ser chamado de matemática. É o próprio acto de declarar que a matemática está em todo o lado que cria a ideia de que a matemática está de facto em todo o lado. Mas ela apenas está no nosso olhar. E é uma questão de higiene social ser cuidadoso quando impomos nosso olhar sobre outros.

ETNOMATEMÁTICA COMO ENTRADA E PRATO PRINCIPAL A investigação em educação matemática assume que um ensino de qualidade possibilita aos alunos se tornarem participantes activos num mundo altamente matematizado. Por outro lado, a investigação em etnomatemática assume que os alunos já possuem algum tipo de conhecimento matemático antes de entrarem na escola, conhecimento esse que deve ser usado como ponto de partida para a aprendizagem da matemática escolar. Em resumo, é assumido que as pessoas transferem conhecimento da e para a escola. Contudo, esta suposição de linearidade no modo como as pessoas transferem conhecimento tem sido questionada por recentes pesquisas sobre os aspectos sociais e culturais do conhecimento e da aprendizagem. A investigação desenvolvida por Jean Lave por um lado, ou as recentes aplicações da teoria da actividade em educação matemática, por outro, têm mostrado que todo o conhecimento é situado nos contextos onde é usado, quer esses sejam uma escola, um local de trabalho ou uma tribo indígena. O significado de uma prática e o conhecimento nela envolvido estão profundamente enraizados na comunidade de prática onde são exercitados e desenvolvidos. Não há nada que nos garanta uma transferência de conhecimento de uma prática para outra sem que haja um certo grau de “desentendimento”. A matemática escolar, apesar de poder explorar situações “reais”, será sempre um conhecimento escolar, aprendido num determinado lugar chamado “escola”, onde os estudantes não estão necessariamente preocupados em aprender. Estas pesquisas – geralmente denominadas de socioculturais – enfatizam e mostram o caractér situado de toda a aprendizagem.18 Elas mostram que as pessoas não transferem o que aprenderam na escola para situações extra escolares. Ao invés, as pessoas aprendem in situ o que necessitam para o desempenho de uma determinada actividade, quer se trate de uma actividade mundana ou uma actividade profissional. Por outro lado, quando trazemos o conhecimento local para a escola, quer se trate de algum tipo de conhecimento “prático” ou de um conhecimento “étnico”, o que acontece é uma descontextualização das condições que justificam a emergência e o uso desse conhecimento. Se o conhecimento e a aprendizagem não são processos puramente cognitivos acontecendo na cabeça



18 Também no âmbito da filosofia da matemática existem pesquisas que apontam no mesmo sentido. Ver por o trabalho de Gottschalk (2004) e Ernest (2007).

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de indivíduos, mas sim práticas socialmente situadas, profundamente enraizadas no contexto, então a ideia de ligar conhecimento local e escolar tem que ser problematizada. Quando investigadores em etnomatemática se deslocam para tribos indígenas com o intuito de pesquisar como essas pessoas usam matemática, por exemplo, na construção de casas, e em seguida trazem esse conhecimento para a escola – quer se trate de uma escola regular ou de uma escola indígena – de modo a usá-lo na aprendizagem da matemática escolar, algo já está irremediavelmente perdido. A construção de casas numa tribo indígena é uma actividade comunitária, que envolve rituais e conhecimentos só identificados como sendo matemáticos por pessoas de fora da comunidade. Quando esse conhecimento é trazido para a escola para ensinar, por exemplo, a relação entre os lados de um triângulo rectângulo, os alunos estão num contexto completamente diferente e somente de maneira forçada e artificial se pode dizer que o conhecimento prévio sobre construção de casas vai ser útil para os alunos aprenderem o teorema de Pitágoras na escola. Se, por outro lado, se optar por incorporar esse conhecimento no currículo escolar tal como ele é – i.e., como construção de casas tal como é feita pela comunidade – acabamos permitindo aos alunos a aprendizagem de conhecimentos e competências que só lhes serão úteis no contexto da comunidade, a qual tem outros mecanismos educativos de transmissão desses conhecimentos que nada têm a ver com escola. D’Angelis19 defende a ideia de que uma escola indígena deve se preocupar em ensinar não o que sempre foi ensinado dentro da comunidade com seus próprios métodos, mas sim o que as populações indígenas querem: a matemática e a língua do branco. De acordo com D’Angelis, o conteúdo das disciplinas escolares não deve interferir com as particulares e específicas formas de educação de uma certa comunidade (quer se trate de uma vila indígena ou uma comunidade profissional). Isto é, a escola não deve colonizar espaços que pertencem a outras formas de cultura, por meio de uma escolarização de conteúdos que são específicos de um ambiente não escolar. Deste ponto de vista, não há nada de intrinsecamente benéfico em trazer conhecimento local para a escola. Por um lado, temos a posição defendida pela maioria dos etnomatemáticos de que o conhecimento etnomatemático pode ajudar os estudantes na aprendizagem da matemática escolar, por meio de sua incorporação no currículo. Por outro lado, temos investigadores que criticam esta inserção de conhecimento local no currículo. Seu argumento é o de que a escola deve ser o lugar para aprender a matemática académica, devendo deixar-se a aprendizagem de outros conhecimentos no seio das comunidades onde eles emergem e são usados. Esta discussão está presente no seio da etnomatemática. Enquanto alguns etnomatemáticos defendem a importância de estabelecer uma ponte entre o conhecimento local e o conhecimento escolar, outros contestam esta ligação ou o modo como ela tem sido estabelecida. Por exemplo, Gelsa Knijnik argumenta que não se trata de estabelecer conexões entre a matemática escolar e a matemática tal como é usada por determinados grupos, com o propósito de alcançar uma mais eficiente aprendizagem da matemática escolar. Outros investigadores têm feito notar a maneira usualmente folclórica como ideias etnomatemáticas aparecem nos currículos. Estas são usadas como entradas para o prato principal que é a matemática formal:

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D’Angelis, W. (2000). Contra a ditadura da escola: Educação indígena e interculturalidade. Cadernos Cedes, 49, 18–25. - 38 -



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Esta distância tem sido frequentemente mantida quando, nos currículos, ao resgatar saberes de grupos subordinados, os tratamos como algo exótico, como um souvenir ou simplesmente como “ponto de partida” para o conhecimento matemático. Neste sentido, o resgate de saberes populares torna-se uma armadilha que acaba por produzir e reforçar, ainda mais, as desigualdades sociais.20

Contudo, tomar a etnomatemática como prato principal também é problemático. Se tivermos em consideração que parte da função da escola é preparar os alunos para uma sociedade onde o que vale é o conhecimento matemático académico, na medida em que é este que possibilita o acesso a estudos superiores e a profissões privilegiadas, devemos perguntar-nos sobre qual o lugar na escola actual para o conhecimento etnomatemático? Decorre do que eu tenho vindo a explorar que as implicações educacionais da etnomatemática acabam facilmente sendo cooptadas por uma escola que está acima de tudo preocupada com a uniformização do conhecimento. Neste sentido, tal como já foi analisado por Ole Skovsmose e Renuka Vithal no contexto Sul-Africano, privilegiar o conhecimento etnomatemático numa escola formal pode ser um factor de exclusão social21. Mas o problema não reside somente na etnomatemática, mas também na própria escola. Alexandra Monteiro coloca uma questão que deveria servir de orientação para todos os estudos em etnomatemática com aspirações educacionais: “é possível desenvolver um trabalho na perspectiva da Etnomatemática no atual modelo escolar?” 22 . Segundo esta investigadora, uma educação baseada em ideias etnomatemáticas requere uma profunda transformação no modo como a escola está actualmente organizada.

A CONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA DO OUTRO Há mais de uma década atrás, quando estava começando meu trabalho como professor de matemática numa escola da periferia de Lisboa, experimentei um episódio curioso que ilustra o que o filósofo Sloveno Slavoj Žižek apelida de desubstancialização do Outro. Uma das minhas alunas, chamemos-lhe Y, necessitava de um par de óculos. Infelizmente, seus pais não tinham posses que fossem além da satisfação das necessidades básicas de sobrevivência numa cidade: casa, comida e higiene. Com o intuito de resolver esta situação, um grupo de professores juntouse e colectou dinheiro para que a Y pudesse comprar os óculos de que necessitava. O dinheiro foi entregue à Y que em vez de comprar os óculos, comprou um telemóvel, tal como aqueles que suas colegas tão orgulhosamente exibiam diariamente. A reacção dos professores foi a esperada. Surpresos pela falta de responsabilidade de Y, prontamente manifestaram sua indignação. Como é que uma rapariga como a Y, pobre, com grande necessidade de óculos para poder participar nas aulas e estudar, usa o dinheiro colectado pelos professores com toda a boa vontade, para comprar

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Duarte, C. (2004). Implicações curriculares a partir de um olhar sobre o “mundo da construção civil”. In G. Knijnik, F. Wanderer, & C. Oliveira (Eds.), Etnomatemática: Currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: Edunisc. 21 Skovsmose, O., & Vithal, R. (1997). The end of innocence: A critique of ‘ethnomathematics’. Educational Studies in Mathematics, 34, 131–158. 22 Monteiro, A. (2004). A etnomatemática em cenários de escolarização: Alguns elementos de reflexão. In G. Knijnik, F. Wanderer, & C. Oliveira (Eds.), Etnomatemática: Currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: Edunisc.

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um objecto tão supérfluo? Ela ficou marcada como uma pessoa ingrata, não merecedora da gratidão dos professores. Este episódio ilustra como o Outro resulta do nosso olhar. Nós estamos dispostos a aceitar o Outro (o pobre, o indígena) na medida em que é o Outro que queremos ver. Nós amamos o alheio, o exótico precisamente porque ele é pobre, oprimido, indefeso, necessitando protecção. O problema começa no momento em que esse Outro se aproxima demasiado de nós, quando começamos a sentir sua sufocante proximidade – neste momento, quando o Outro se expõe demasiado, o amor pode subitamente se transformar em ódio. Foi precisamente isto que aconteceu na reacção dos professores à compra da Y. O seu amor por ela transformou-se em ódio no momento em que eles se aperceberam de que a Y não era diferente deles: ela também queria consumir todas as coisas supérfluas de que todos nós gozamos. A Y não é diferente das suas colegas, nem de seus professores. E é essa semelhança – não a diferença – que assusta na proximidade com o Outro. O que nos choca quando encontramos o Outro real não são suas propriedades estranhas, mas a nossa própria decrépita realidade. No Outro nós vemos a nossa própria decadência, e isso assusta.

A mesma lógica está em jogo em muitos estudos em etnomatemática. Quando apregoamos que se deve “dar voz” ao oprimido (alunos pobres, alunos étnicos, minorias, etc.) corremos o risco de, por detrás da aparência de uma vontade legítima de valorizar as vozes oprimidas, terminar estipulando como essa voz deve ser. O Outro é posicionado na nossa ordem simbólica, construído como alguém inocente, necessitado, oprimido, visto como uma vítima da nossa sociedade consumista e racista. O Outro tem voz na medida em que é uma voz oprimida, uma vez que pede por ajuda, a voz que esperamos ouvir. Quando o estudante pobre admite que apenas quer ser rico, ou que o estudante “étnico” demonstra só querer aprender a matemática hegemónica do branco, nós sentimos-nos decepcionados porque nesse momento encontramos o Outro real, encontramonos a nós mesmos. É como se houvesse um desejo subliminar de manter alguém no estatuto de vítima de forma a que possamos gozar em nós próprios o desejo de ajudar. Tal como refere Žižek “a pessoa santa usa o sofrimento dos outros para satisfazer sua pulsão narcisista de ajudar aqueles em dificuldades”23. Este espírito “santo”, em tudo similar ao da caridade e filantropia, endossa por completo o espírito do capitalismo. Permite às pessoas aliviar suas consciências, ao mesmo tempo que assegura que nenhuma transformação fundamental nas escolas ou na organização económica da sociedade possa ocorrer.

ETNOMATEMÁTICA E OS LIMITES DA CULTURA Isto leva-nos a reflectir sobre os limites da cultura quando pensamos numa mudança radical no modo como a escola está organizada. O mundo actual é caracterizado por uma grande diversidade de espectros sociais, culturais e políticos. A cultura e sociedade europeia, por exemplo, é muito diferente da norte-americana, como se nota claramente em campos como a literatura, cinema ou filosofia. Isto para não falar nas diferenças provavelmente ainda maiores relativamente às culturas

23

Žižek, S. (1997). The plague of fantasies. London: Verso, p. 256. - 40 -



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africanas ou asiáticas. Também em termos políticos, temos hoje no mundo os mais diversos sistemas governamentais: o modelo anglo-saxónico neoliberal, a social-democracia na Europa, o comunismo capitalista na China, estados religiosos em países árabes, etc. Contudo, quando falamos de economia a diversidade desaparece. Podemos dizer que temos hoje no mundo uma grande diversidade de modelos económicos? Não, o modelo global de economia presente em toda a multiplicidade de formações sociais e culturais assenta no capitalismo.24 Mesmo o comunismo, quer nos estejamos a referir ao comunismo de estado como na China ou aos dispersos partidos de índole comunista que ainda subsistem em democracia, desenvolve sua actividade dentro do modelo capitalista de economia. O capitalismo veste diferentes roupagens e segue seu caminho independente das diferentes políticas (monarquia, socialismo, fundamentalismo religioso, ditaduras, neo-liberalismo, etc.). O que é comum em todas estas formações políticas é que, apesar das diferentes roupagens, as relações humanas seguem sendo baseadas no capital. Aqui reside o que podemos chamar de Real25 do mundo actual: a economia capitalista é o núcleo permanente que se mantém apesar de toda a multiplicidade cultural, social e política que caracteriza o mundo actual. No que diz respeito à educação, não há dúvida de que as escolas são diferentes, e que tanto professores e estudantes vivem uma diferente multiplicidade de problemas. Cada escola, professor e estudante comportam constelações únicas de experiências de vida. Contudo, deveremos indagar sobre o que se mantém imutável em todas estas diferentes realidades? Apesar das escolas serem diferentes, o que nelas se mantém igual? Qual é o Real das escolas? Como tenho vindo a desenvolver na minha pesquisa, o Real das escolas é o sistema mundial de avaliação que segue seu caminho, indiferente a inovações didácticas, curriculares ou mesmo culturais, perpetradas de igual forma por pesquisadores, governantes e professores. O que se mantém igual em todas as escolas é o facto de que a cada professor é pedido que materialize numa nota, num crédito, o trabalho do estudante. Essa nota, como todos sabemos, tem sérias implicações futuras na vida de cada estudante, e faz com que a escola desempenhe um papel económico determinante na sociedade actual. A escola é uma instituição aberta no que diz respeito a inovações didácticas e pedagógicas, desde que, no final de cada ano, a cada estudante seja atribuída uma marca que o situa no universo económico do crédito escolar. Neste sentido, os limites da mudança educacional são os limites da cultura. A partir do momento em que alguém sugere uma mudança no papel económico das escolas, as coisas ficam “impossíveis”: quem se atreve a sugerir hoje em dia que os professores devam parar de classificar estudantes?



24 Nem todas as sociedade estão no mesmo nível de desenvolvimento capitalista e, obviamente, algumas ainda se regem por sistemas económicos pré-modernos. Contudo, com a transformação do capital numa força global e multinacional, a única maneira de entrar no “mercado” é por intermédio de uma economia capitalista. Por exemplo, podemos dizer que muitas das tribos amazónicas não vivem uma economia capitalista. Contudo, quando as trocas com o “mundo exterior” se tornam necessárias (e elas são crescentemente necessárias pois o processo de neocolonização provocado pela expansão capitalista obriga essas pessoas a procurarem por produtos que não podem ser produzidos na comunidade), elas ficam automaticamente involucradas no processo de produção capitalista. A escolha é entre aceitar o modo capitalista de produção ou definhar. 25 Aqui estou-me a basear na noção Lacaniana do Real, como aquilo que permanece o mesmo nos mais diferentes universos simbólicos. Žižek tem vindo a desenvolver esta e outras noções da psicanálise Lacaniana numa análise sociopolítica do mundo actual.

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Como o papel económico das escolas não pode mudar, os pesquisadores tendem a se concentrar no que Paulo Freire chama de “transformações superficiais”. Muitas dessas transformações são feitas sobre a alçada de áreas de pesquisa como a etnomatemática. O sistema satisfaz a demanda social que apela à valorização de outras culturas, através da inserção de conhecimentos matemáticos locais no currículo, enquanto assegura que tal “inserção” não mudará em nada as condições fundamentais do sistema. Tal como tem vindo a ser explorado por Žižek em diversas situações da sociedade contemporânea, o sistema capitalista necessita de constantemente promover reformas e inovações de forma a dissimular a crua realidade de que as mudanças fundamentais – tal como uma mudança no sistema de crédito escolar – não estão disponíveis. Sem dúvida que nós – gente alimentada, lavada e cheirosa – vivemos num mundo onde o leque de escolhas é numeroso, em praticamente todas as dimensões da vida. No que diz respeito à educação e à etnomatemática, existe já uma considerável variedade de conhecimento e propostas didácticas destinadas a estabelecer uma educação multicultural. De facto, se tomarmos os diversos trabalhos presentes num site como o Ethnomathematics Digital Library (um programa com o objectivo de desenvolver recursos para o ensino e aprendizagem da matemática), podemos sem dificuldade elaborar um currículo de matemática completo baseado na exploração de usos e conhecimentos locais. Na África do Sul, por exemplo, existe toda uma indústria didáctica desenvolvida a partir de conhecimentos indígenas, o Indigenous Knowledge System, do qual a etnomatemática é um dos componentes. O poder do capitalismo em produzir variedade está bem presente nas aplicações educacionais da etnomatemática. Aqui reside o perigo e a incerteza de trazer ideias poderosas, como a crítica seminal feita pela etnomatemática ao conhecimento matemático institucionalizado, para um contexto escolar. O que ao nível das intenções expressas e “oficiais” não apresenta problemas – praticamente ninguém contestaria a importância da diversidade cultural – quando actualizado numa prática concreta (no nosso caso, a prática escolar) facilmente encontra uma série de obstáculos que terminam pervertendo os intuitos iniciais. Desta forma, um campo que poderia parecer potencialmente emancipatório, tal como a etnomatemática, acaba sendo transformado – domesticado – no que Žižek apelida de uma “transgressão inerente”26, isto é, uma transformação que não só é de antemão prevista mas também promovida – relembremos que muitos currículos de matemática um pouco por todo o mundo já contemplam a possibilidade de trazer culturas e conhecimento local para a sala de aula – pelo mesmo sistema que tenta transformar. Ao se colocar a matemática como “uma arma na luta” 27 para um mundo melhor, ou como um caminho privilegiado para a Paz28, acaba reforçando ainda mais a “fé” na ideia de que uma melhor educação matemática é a solução para problemas que, pela sua própria natureza, são económicos e políticos. Em vez de se posicionarem como parte do problema, os pesquisadores acabam criando uma ideologia cujo propósito é precisamente negar a função económica das escolas. Se o propósito

26

Žižek, S. (1997). The plague of fantasies. London: Verso. Gutstein, R. (2012). Mathematics as a weapon in the struggle. In O. Skovsmose & B. Greer (Eds.), Opening the cage: Critique and politics of mathematics education. Rotterdam: Sense Publishers. 28 D’Ambrosio, U. (2007). Peace, social justice and ethnomathematics. The Montana Mathematics Enthusiast, Monograph, 1, 25–34. 27

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maior da educação são os ideais da paz, democracia, justiça social e equidade, então a via do conhecimento matemático, na qual hoje investimos tanto, é um beco sem saída. Há que encontrar outros caminhos que posicionem os problemas que estudantes vivem nas escolas ao nível não do conhecimento, mas da economia política. Esse é e será, no futuro, um dos grandes desafios do Fronteiras Urbanas Europeu.

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Ilustração de Mónica, 10 anos



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TRANS-INTER-MULTI CULTURALIDADE A POESIA COMO LUGAR DE MEDIAÇÃO Ana Paula Caetano e João Crisóstomo Afonso Introdução Partindo da problematização dos conceitos de transculturalidade, interculturalidade e multiculturalidade será feita, neste capítulo, uma reflexão em torno do lugar mediador que a poesia ocupou no projeto Fronteiras Urbanas. A poesia como produto cultural e como ato simbólico constituiu-se como oportunidade de experiência significativa, de escuta, diálogo, recriação, co-produção e confluência intersubjetiva. Através de tertúlias e sessões de poesia no seio das comunidades, em fóruns, comemorações e workshops, através de visitas e exposições de cultura e através de processos de trabalho mais intimistas, com pequenos grupos ou mesmo individualmente, a poesia foi lugar e recurso de mediação. Nos encontros em torno da leitura, da escrita, da tradução, da interpretação e da criação poética geraram-se dinâmicas que moveram sensibilidades, afetos, sentidos com os quais foi possível viajar ao interior de si próprio e do outro, no reconhecimento e fortalecimento da singularidade, da diversidade, da interdependência e da universalidade que nos atravessa. Trata-se da criação de momentos, unidades espaço-temporais potencialmente favorecedoras de inclusão e envolvimento num fluxo de consciência e ação, emocionalmente entusiasmantes pelo sentimento de unidade que criam e pelo movimento criativo e colectivo que geram. Um fluxo onde todas as realidades confluem, num campo unificado de consciência. Organizamos o capítulo em três partes, para além desta introdução. Numa primeira discutimos os conceitos de transculturalidade, interculturalidade e multiculturalidade. Num segundo ponto, apresentamos o projeto Fronteiras Urbanas e o modo como a poesia foi aí utilizada, refletindo sobre as questões culturais. Por fim, fazemos uma síntese e reflexão final, voltando aos conceitos centrais e problematizando-os. 1. A poesia como processo multi(inter)transcultural 1.1.Conceitos de transculturalidade, interculturalidade e multiculturalidade Baseamos o nosso conceito de transculturalidade naquilo a que Panikkar (1998)29 chama uma visão cosmoteândrica da realidade, nem monista nem dualista mas trinitária, segundo a qual há

29

Panikkar, R. (1998). La Trinidad. Una experiencia humana primordial. Madrid: Ediciones Siruela.



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uma radical inter-relação entre todas as coisas apesar das separações artificiais que as nossas mentes tendem a realizar quando perdem a paciência e a humildade necessárias para considerar as conexões constitutivas de tudo o que é (…) a unidade fundamental da realidade não deveria ficar obscurecida pela diversidade (p.26).

Nesta visão vislumbra-se uma síntese dialógica e harmoniosa entre três dimensões constitutivas: “da realidade (o divino, o humano e o cósmico), do homem (corpo, alma e espírito) e do mundo (espaço, tempo, matéria)” (p.89) e entre as tensões da vida: “entre o corpo e a alma, o espírito e a matéria, o masculino e o feminino, a acção e a contemplação, o sagrado e o profano, o vertical e o horizontal” (p.91). Tensões que confluem na síntese do terceiro, que as integra e as transcende. Ser no Outro – sendo o eu, o tu e o ele; sendo o nós, o vós e os eles. Em Ensaio (1940), Fernando Ortiz apresenta-nos este termo – transculturalismo. Este termo aparece definido como “ver a si no outro”, apesar de muitas vezes ser também entendido como algo que se estende através de todas as culturas ou ainda trabalhado como sendo a reinvenção de uma nova cultura comum (Mesquita, 2014, p.28)30

Não se trata de um trans que está para além e fora, trata-se de um trans que atravessa e nos envolve. Trata-se de um movimento no tempo, dinâmico, inacabado de ser em e de se tornar. Ao mesmo tempo imanência e hologramaticidade, pois o todo já é em nós, e transcendência, pois o que é dentro se manifesta e expande, pela via da relação e do que se produz. Uma visão tripartida da realidade cultural e da relação entre as culturas leva-nos a equacionar o conceito de transculturalidade como uma relação interna, uma interconexão invisível que assenta numa universalidade que é divina, humana e cósmica em simultâneo. a inserção só pode se dar através de um relacionamento de respeito, solidariedade e cooperação com o outro, consequentemente com a sociedade, com a natureza e com o planeta, todos e tudo integrados na realidade cósmica. Esse é o despertar da consciência na aquisição do conhecimento. A grande transformação pela qual passa a humanidade é o encontro do conhecimento e da consciência. (D’Ambrosio, 2011, pp.10-11)31.

O conceito de multiculturalidade, por seu lado, leva-nos a reconhecer a diferença, a fronteira, a exterioridade da cultura do Outro. A cultura como um mundo próprio, com as suas regras, os seus rituais, os seus valores. A multiculturalidade como a coexistência e aceitação da nossa cultura e do outro. O conceito de interculturalidade remete para o movimento da comunicação e da interpenetração. A interculturalidade é o caminho da integração do que é separado e eventualmente fragmentado,



30 Mesquita, M. (2014). Fronteiras Urbanas. A dinâmica de encontros culturais na educação comunitária. Relatório de Progresso 2012-2013. Lisboa: Instituto de Educação/FCT . 31 D’Ambrósio, U. (2011). Transdisciplinaridade como uma resposta à sustentabilidade. Terceiro Incluído, 1 (1), pp.1–13.

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para a construção de um mundo cada vez mais interdependente e implicado, através do diálogo e da relação. Isto porque a interculturalidade faz a ponte, a travessia e o encontro. Em simultâneo reconhece o múltiplo, facilita o encontro que o vai transformar e radica na unidade que torna possível tudo o mais (Freire, Caetano & Mesquita, 2014)32.

Trata-se, pois, de uma perspetiva ampla de interculturalidade, entendida como um processo de transformação social que abrange processos transculturais, onde a dimensão cultural se dilui no todo comum, e processos multiculturais onde ela se evidencia, sem que em nenhum caso se anule. As identidades, singularidades, individualidades a nível pessoal, interpessoal, grupal e social são reconhecidas e valorizadas, não para manter as distâncias mas para que sejam matéria-prima de um aprofundamento relacional onde todos têm oportunidade de se reconstruir mutuamente e de onde saem enriquecidos enquanto seres humanos. (Vassalo & Caetano, no prelo)33

1.1.

A poesia como lugar de mediação

Entendemos neste capítulo que a poesia é lugar de mediação, entendida esta como nó de intercomunicação (Boqué Torremorell, 2008, p.7134) que favorece a aprendizagem, a reflexão e a conscientização, constituindo-se como oportunidade de confluência e coesão. Confluência enquanto “ação de fluir em conjunto” (Muldoon, 1998, p. 190 35 ), em que a “pessoa que experimenta a confluência é capaz de deixar-se fluir, ao mesmo tempo que mantém uma identidade única” (idem). Na figura 1 mapeamos um modelo de como conceptualizamos a poesia, simultaneamente como processo e recurso de comunicação e reflexão e como experiência significativa para aqueles que se ocupam da sua partilha e produção individual e coletiva. Figura 1 – Poesia como lugar de mediação

32

Freire, I., Caetano, A. P. & Mesquita, M. (2014). Curriculum Trivium, dialogue interculturel et

citoyenneté. Une ethnographie critique d'un projet d'éducation communautaire. Cultures, éducation, identité : recompositions socioculturelles, transculturalité et interculturalité. Artois Presse Université, Collection Education et formation. (no prelo). 33

Vassalo, S. & Caetano, A.P. (2014).. O papel do diretor de turma na gestão curricular de experiências de educação intercultural na turma do 6ºB. Atas do XXI Colóquio da AFIRSE. Educação, economia e território. Lisboa: AFIRSE. (no prelo)

34

Boqué Torremorell, M.C. (2008). Cultura de mediacão e mudança social. Porto: Porto Editora.

35

Muldoon, B. (1998). El corazón del conflito. Barcelona: Paidós - 47 -



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A poesia acontece e acontece-nos, nos espaços organizados e dinâmicos de relação, onde comunicamos, nos reconhecemos, nos sentimos fazer parte e nos comprometemos uns com os outros. Através dela descobrimos o que é em nós e ainda não se tinha revelado, construímos o novo que só pode ser no encontro, aprofundamos as nossas identidades pessoais, grupais e culturais, abrimo-nos à liberdade de rompermos as fronteiras. A poesia como transgressão e resistência, habitando as margens e nas margens encontrando as pontes que nos fazem fluir da periferia ao centro, que é aquele onde cada um se encontra com todos os outros. 2.

A poesia no projeto Fronteiras Urbanas

Partindo dos conceitos atrás enunciados iremos fazer uma análise dos processos investigativos e educativos onde a poesia teve um lugar relevante. O quadro 1 sintetiza o conjunto dos momentos, lugares e atividades em que a poesia foi utilizada como processo de mediação ao serviço da multi, inter e transculturalidade.

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Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço Quadro 1 – A poesia e os processos multi/inter/transculturais

CAMPO

EXEMPLO

MULTICULTURAL

INTERCULTURAL

TRANSCULTURAL

Escutar o outro e emitir para o outro

Deixar-se alimentar pelo outro e alimentar o outro

Incorporar em nós o outro (holo)

Apresentação a outros, em tertúlias, de poemas escritos individualmente

Escrita individual usando expressões utilizadas nos encontros

Escrita de textos novos a partir de experiências no âmbito do FU

Alfabetização crítica - - Trabalho individualizado com Rita Tavares

Tradução de letras do batuko

Partir de textos de focus group para recriar poesia

Criar poemas novos em conjunto

Alfabetização na escola – trabalho com pequeno grupo

Expressão – ler poesia; pensar a escrita e seus códigos

Escola do Bairro – oficina de expressões

Leitura expressiva de poemas de Salazar Sampaio, Ana Viana, Guilherme Brito

Escrita individual NOS ESPAÇOS DAS COMUNIDADES FU

(Ana Viana, Guilherme Brito, João Crisóstomo)

INTRA-INDIVIDUAL INTERPESSOAL INTRA COMUNITÁRIO INTERCOMUNITÁRIO

Semana Aprender

Recriar poemas: a partir de outros poemas

Escrita de poema coletivo Criação e pequenos diálogos poéticos e de poemas coletivos

Expressão – tertúlia lusofonia – leitura de poemas

Encontro anual e reuniões bimensais

Leitura te textos poéticos que espelham notas de campo e recriam vozes dos encontros comunitários – processo de investigação

Jornal Fronteiras Urbanas

Organização e escrita de textos/ poemas /textos/entrevistas

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Dialogar a partir de poemas: morte/amor

Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço Fórum FU

Tertúlia

Trienal de arquitetura

Leitura de Cartas de Terra nenhuma

Círculo de mulheres – ler e dialogar a partir de poemas/pinturas/…

NOS ESPAÇOS EXTERIORES

Livro FU

Dia mundial do livro – Galveias

Apresentar/escre-ver artigos sobre poesia

Publicar livro com artigos e produções que incluem poesia dita e elaborada no projeto Escutar poetas

Interpretar poemas

Criar novos poemas

Interpretar os textos

Interpretar para além do cultural

Copiar textos Ler poemas Gulbenkian

Ler e copiar textos colocados na exposição

Exposição de Clarice Lispector

Entendemos que a poesia é lugar onde o multi, inter e transcultural se encontram e mesclam, em processos complexos que dificilmente se enquadram num só. No entanto, consideramos que um esforço de diferenciação conceptual pode apoiar a compreensão dos fenómenos em estudo. Deste modo tendemos a interpretar como multiculturais os processos onde a poesia é apenas objeto de leitura, nos quais domina a escuta do outro e emissão para o outro de textos que foram produzidos noutros contextos alheios ao projeto e que são trazidos para as comunidades como forma de promover o contato entre sensibilidades individuais e culturais distintas. Os processos interculturais são aqueles em que se parte das vozes ditas e das experiências vividas no âmbito do projeto e que são recriadas poeticamente ou em que há um trabalho de interpretação que é uma apropriação nova e reflexiva do que outros disseram e escreveram. Trata-se de se deixar alimentar pelas vozes dos outros, devolvendo-as de modo próprio para que outros se alimentem das nossas vozes. Por fim, os processos transculturais são na sua maioria processos de construção coletiva, onde incorporamos em nós o outro e juntos fazemos emergir algo de novo, que extravasa a individualidade ou a culturalidade e nos faz sentir, viver e aprofundar a nossa humanidade comum. De seguida passamos à apresentação de experiências vividas no decorrer do projeto Fronteiras Urbanas e onde a poesia, os textos poéticos e outras expressões se encontraram para o desenvolvimento de processos de educação comunitária e para o desenvolvimento da investigação. 2.1.

A poesia como lugar de mediação entre a investigação e a educação comunitária

Em primeiro lugar importa acentuar como a poesia pode ser, e foi, processo de investigação e de mediação entre esta e a educação comunitária. Envolvendo-nos numa abordagem de etnografia - 50 -



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crítica assumimos a poesia também como um processo de transformação, propondo a expansão das fronteiras do que se entende por ciência e do que se entende por educação comunitária. A poesia como confluência, ação de fluir no entre. Assinalamos, de seguida, quatro formas principais onde a poesia teve um papel relevante – na reconstrução de significados, usando expressões produzidas pelos membros das comunidades; no aprofundamento da problemática; na elaboração de notas de campo com um cunho marcadamente descritivo e narrativo; na elaboração de notas reflexivas e preparatórias de outras etapas da investigação-formação. 2.1.1.

A poesia na reconstrução de significados - Reenquadrando as palavras ecoadas num encontro entre as três comunidades (21-4-2012)

Investigar os sentidos através da poesia, criar um poema novo articulando frases daqueles que se encontram, estreitando o inter e produzindo o trans. A investigadora-poeta (Ana Viana poeta, Ana Paula Caetano investigadora, numa só pessoa) orquestrando vozes e encontrando sentidos novos ao fazê-lo. Devolvendo-os depois às comunidades, em reuniões bimensais e anuais na plataforma moodle. Dou a minha presença estou disponível tenho total confiança sou pobre mas um homem muito feliz onde está um em dificuldades está logo outro vozes que ecoam no cimento das paredes reverberando e aquecendo o peito sorrisos tímidos dentro delas a encantar-nos a possibilidade de os sonhos serem mais e sermos nós neles O problema é estar dividido em dois em três… nós e eles fronteiras O problema é a separação a solução é a unidade Como fazer para mostrar que a ligação é já e subterrânea? como aprofundar a confiança de que seja possível não ser só invisível? como adensar a rede que começa a ser à superfície? ser e estar com escutar e dizer de nós aprendermos todos uns com os outros respirarmos o mesmo ar oferecermos a cada um que connosco se cruza a nossa mão - 51 -



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extensão do coração e da voz O amor sim presença a atravessar-nos para além de Presente estamos aqui

2.1.2.

Reflexão sobre a problemática subjacente ao projeto

Num momento de elaboração de um documentário sobre o projeto e com base na necessidade de um texto inaugural a ser lido em voz off, escreveu-se um pequeno texto em prosa poética que depois foi lido e comentado em reunião anual conjunta, com membros das três comunidades e que ficou disponível na plataforma do projeto. A poesia surge aqui como processo reflexivo, espelho que nos interpela e nos convida ao aprofundamento e à crítica social, como se pode ler de seguida: Aqui, no meio, uma

fronteira. A separar sentidos. Ordem a regular o nosso trânsito. Regras

partilhadas que não questionamos. A facilitar-nos o quotidiano. A regular-nos o movimento. A impor-nos trilhos.

Nós no meio, tantas vezes apeados, um dia questionamo-nos. Porquê este frenesim de ir para algum lado? Que vidas se escondem nessas outras fronteiras que são estas paredes de betão? Porque temos também de ir para algum lado, impedidos de ficar aqui, na fronteira? Porquê este impulso de atravessá-la? Porquê este medo de não conseguir sair? Por onde passar com o menor risco para as nossas vidas? Como chegar a alguém, quando todos estão separados - dentro de automóveis, prédios, estradas, a nossa própria roupa, a pele… Precisamos delas, as fronteiras. Para nos distinguirmos uns dos outros. Para nos preservarmos, identidades. Para interagirmos a partir do ponto onde o outro é fora. Um jogo para nos experimentarmos. Para nos conhecermos. Para nos aprofundarmos. Para de algum modo, e paradoxalmente, nos expandirmos. E entretanto, sem quase nos darmos conta, erguemos

muros

cada vez mais altos, fechamo-nos em

condomínios que nos desprotegem dentro. Deixamos de fora todos aqueles que não percebem os nossos códigos. Separámo-nos e perdemos o sentido da harmonia.

O que nos

salva? Como acordar deste sonambulismo onde estamos mergulhados? Qual o sentido?

Quem somos? O que queremos ser? Um a um acordando… Escolher parar aqui no meio e

acordar. Escolher buscar os outros para com eles nos encontrarmos.

Escolher atravessar fronteiras e encontrá-los fechados dentro das suas. Escolher ser com eles abrindo trilhos novos. Para os percorrermos juntos. Para que nos levem onde nunca fomos. Para que as paredes visíveis e invisíveis se afastem, alarguem o espaço dentro e se tornem mais transparentes , deixando

sentir-nos

através. Para que, cada vez mais, mais se encontrem. Para chegarmos ao ponto onde já somos ligados.

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Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço Sem o medo do outro, diferente de nós. Com a

confiança

de podermos ser juntos, muito mais.

Deixando que a vibração do amor se estenda. Vivendo a realidade do sonho no qual este nos repete: “só o

AMOR é Real! Só o AMOR é Real! Só o AMOR é Real!” 2.1.3.

A poesia como processo investigativo na elaboração de notas de campo – mediando os discursos

Seguem-se alguns excertos de notas de campo onde o discurso poético apoia a descrição e reflexão sobre os processos comunitários e de mediação desenvolvidos. Trata-se de uma abordagem etnográfica crítica onde os discursos da ciência e da poesia se interpenetram, quebrando as barreiras que dominam as regras do jogo de ambos os códigos. Participação na primeira sessão para arranque de grupo de batuque (26 de Maio 2012) Um olhar, um sorriso, um desconforto, uma gargalhada, um gracejo. Uma mão estendendo a tangerina e outra recebendo-a. Lentamente, aproximando-nos. Uma pergunta sobre quem somos, nenhuma pergunta, um olhar que observa, perscruta, interroga. Artefactos estranhos, desajustados, mas que começam a entrar como possíveis. Curiosidade, aprovação, aceitação. Os corpos dançando, a correção do movimento, o riso, depois o desacerto, não ser mais à vontade. O que pensam? O que sentem? Sentirmo-nos mutuamente estranhos. Línguas distintas, ficar à margem, sem ser por mal, é assim mesmo, não nos sabemos. Mostrarmos interesse, mesmo assim. Observarmos os ritmos, entrarmos neles e ao mesmo tempo percebermos que nos escapam. Corpos que se tocam, lágrimas escondidas, olhares tristes. Invertidos depois em risos e danças e sons. Mimetizando outros. Batucando. Espontaneamente batucando. Espontaneamente cantando. Lentamente soltando memórias que os corpos guardam. A voz a soltar-se, as letras a suceder-se. As danças, os corpos, o tempo espraiando-se. Preguiçando à espera. Ganhando de tempos a tempos euforias, picos de energia até a exaustão os afrouxar. E voltando de novo, depois. Como vagas. Por debaixo uma suspensão, à espera de algo que organize as energias soltas. Um outro corpo, uma outra voz, de fora e dentro, duas em uníssono, uma esperança de algo que se projete no tempo. Quem virá e quando, em que circunstâncias, a mostrar um dia, e a promessa de que ele será em breve. Um toque leve, sem nada de preciso. Mas tão só suficiente. Os corpos agora prosseguem, as vozes ondulam, os braços e as mãos ganham força de vida, entre o céu e a terra, uma alegria. É tempo de partir deixando a semente germinar.

A propósito do encontro com os líderes das comunidades (28-2-2012) As vozes estão vivas. Nelas a energia da emoção, do amor e do medo. Nelas o corpo da dor. Nelas a visão de que a unidade é o caminho. Por detrás delas as histórias: das conquistas quando se juntam as vozes, da destruição quando os poderes são em desequilíbrio, das incompreensões quando as costas se voltam contra. Por dentro delas a vontade de ir, desta vez, com mais cuidado. Para que não se desfaça o que for feito, para que se sustente o poder de continuar, apesar da

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Fronteiras Urbanas - Ensaios sobre a humanização do espaço

adversidade, para que a autoridade das próprias vozes não seja vilipendiada. É preciso fortalecer por dentro. Mas também é preciso abrir o todo a outros todos. Círculos concêntricos que se estendem. Círculos que se cruzam com outros centros e se expandem. Unidade que se sustenta num universo plástico, numa inteligência maior que o atravessa. É preciso abrir-nos, com confiança, a esse movimento que já começou e que só depende de nós que continue.

2.1.4.

A poesia como reflexão sobre a mediação e sobre a investigação: pensar a ação, as pessoas, os contextos, a mediação

Além de notas de campo descritivas, elaboraram-se notas de reflexão sobre os processos educativos e investigativos. A investigadora-poeta, consciencializando o que é dentro de si, a reação do corpo, o seu sentir, questiona o que é no outro e a partir daí reconsidera o ato que poderá ser transformador, organizando os movimentos que ainda são em semente e invertendo aqueles que a todos centrifugam: Workshop fotografia/documentário, no bairro (2 de Maio 2012) Porque é que chego aos encontros e me perco esquecendo os sentidos que me levam lá? Tantos diálogos que ficam por fazer! Tantas conversas dependuradas! Tantos caminhos incompletos. Haverá um dia em que se encontram? A dispersão à procura do foco. Movimentos soltos. Fragmentos. Encontros fugazes. Sinto em mim o movimento do encontro a puxar-me para dentro. E o movimento da fuga, a distrair-me. Meu e de todos nós, este deslaçamento. Centrifugo, esperando o milagre do movimento se inverter, um dia, quando já formos suficientes os que dentro poderão criar a estrutura. Precisamos chegar lá. A uma organização onde possamos ser, mantendo-nos em movimento. Daquele que nos devassa de fora, daquele que se destrói por dentro. Afinando um outro, onde somos juntos e em harmonia. Um movimento ao mesmo tempo centrípeto e centrífugo que nos expande e mantém com. Já não fragmentos soltos. Partes de um mesmo todo. Aproximando-nos daquilo que já é subterrâneo e invisível.

Sobre a reunião bimensal de Fevereiro (11-2-2012) Palavras com significado a nascer do desejo e da experiência. Frases que trazemos como sementes e que brotam de um lugar em nós onde somos em verdade. Palavras a combinar-se e a chocar-se à procura do diálogo. Vozes diversas que se escutam justapostas. Tensões de visões divergentes a abrir o campo de possibilidades, para as integrar. Procurar as pontes que ligam o que é mais fundo nelas e as amplia, comungando-as. Arquiteturas a nascer do caos aparente. Canais como estradas dentro e fora das comunidades. Por onde as vozes passam. Por onde elas se podem encontrar. Em marcha. Revendo a rota em cada (des)encontro, na emergência de movimentos novos. Mas também nascidos na consciência de movimentos antigos e no seu entrelaçamento com visões de futuros alternativos. O futuro é aqui, na ação que a torna presente. O passado é aqui, na compreensão que o torna presente. O presente é aqui, neste corpo a corpo das vozes nossas.

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3.

Utilização da poesia na alfabetização crítica

Um outro processo onde o texto poético foi simultaneamente usado na elaboração de notas de campo, mas tendo por conteúdo a própria utilização da poesia na educação comunitária ocorreu no âmbito da alfabetização crítica. Passamos de seguida à apresentação de algumas das experiências aí vividas. 3.1.

Uma introdução à poesia (29 de Agosto 2012)

Num primeiro momento de abordagem à poesia juntamo-nos num pequeno grupo de seis mulheres, em torno de um livro de Ana Viana – Sinal breve, cujos capítulos têm por título sinais de pontuação e se iniciam com poemas que refletem sobre o sentido desses mesmos sinais. As notas de campo são um texto com uma dimensão poética que dão conta de como a investigadora viveu a experiência, mas espelhando as trocas do que disseram juntas: A poesia como um dizer de nós, intimo e invisível ao olhar. Muito, condensado em pouco. Música com palavras e com histórias dentro. A levar-nos leitores ao fundo de nós mesmos e a partilhar com o outro a nossa humanidade. Sinal breve, sinais de pontuação, o que nos dizem e como surgem na frase – travessão a abrir diálogos que se lêem para que se perceba; exclamação para dizer do espanto e sobretudo da indignação; interrogação para ir à procura de respostas Dizer do amor, no qual nos superamos. E da morte que nos liberta. Foi assim que fiquei a saber que acreditam ser a morte um caminho para um mundo melhor, do outro lado, onde a alma é mais feliz. E do qual regressamos depois, esquecidos para que seja possível recomeçar. Foi assim que partilhei a história e o poema sobre a morte de minha mãe. Foi assim que refletimos sobre a importância de nos libertarmos do passado que nos pesa, depois de digerirmos e aprendermos com ele. Foi assim que a poesia se nos abriu como intimidade e encantamento. Mediando os nossos mundos. Internos e externos.

Este é um exemplo de como se parte da poesia para uma experiência transcultural onde a humanidade comum se comunica, onde as especificidades culturais se enunciam, onde a individualidade se abre à intimidade de um encontro no feminino.

3.2.

Escrita de novos poemas, a pares – caminhos de inter/transculturalidade (2 – 2013)

Ainda no âmbito da alfabetização crítica e do trabalho individualizado entre a investigadora da comunidade académica (Ana Paula Caetano) e uma das habitantes do bairro, cabo-verdiana – Rita Tavares – desenvolvemos um trabalho no bairro, de escrita de poesia a partir de entrevistas de

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focus group feitas previamente com dois grupos de mulheres que frequentavam a escola de alfabetização crítica e numa das quais a Rita tinha participado. Inspirada numa apresentação do projeto 10X10 da Gulbenkian, propus à Rita escolhermos palavras do focus group e categorizá-las em caixinhas, a partir das quais construiríamos novas frases, agora com um sentido poético. Frases recorrentes ou frases intensas que poderiam inspirar o sonho. A poesia como um olhar novo que encontra novos significados recombinando as palavras e formando-se com elas e com o silêncio entre elas. Construímos, assim, o quadro 2: Quadro 2: Palavras retiradas dos focus group Coisas/ Pessoas

Ação/verbos

Tempo/lugar

Acontecimento

Qualidades/ Quantidade

Eu

Gosto

Na hora

Batuko

Muito

A gente

Se fosse

Em cima do meu caixão

Minha morte

Bonito

Tu

Pode pôr

Hoje

As coisas

Vontade

Nós

Brinca

Um cantinho

Junto

Grande

Mulheres

Não dá

Espaço

Tradição

Maluca

Velhote

Cantar

Praça

Poesia

Linda

Mãe

Vou

Nossa terra

Criança

Tem que fazer

Deus



A minha escolar

Precisamos Sentar Descansar Quer Ficar Ler

A partir deste quadro elaborámos um pequeno poema, com frases recombinadas, a ser mostrado depois no grupo que, no momento, estava envolvido na escola de alfabetização: A gente gosta batuko junto Mulheres precisam espaço vontade Enquanto Deus descansa

Este é mais um exemplo em que a poesia surge para o desenvolvimento da alfabetização, desta feita desconstruindo discursos previamente elaborados em processos mais formais de investigação - 56 -



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e que, mais uma vez, valoriza e reconhece os sentidos produzidos coletivamente por pequenos grupos de mulheres implicadas na escola. Trata-se de produzir novos textos, reconstruindo-os em novas significações singulares, sem perder marcas culturais fortes e o sentido de coesão interna – o nós, o batuku, a vontade das mulheres, a existência como um processo ativo de envolvimento com os outros e com a vida, ao mesmo tempo que em ligação com o sagrado. A elaboração do poema a pares, com as palavras de outros e mantendo a alma do povo que com elas se manifesta constitui um processo de diálogo intercultural muito estimulante para ambas as partes e que se estende quando é partilhado com outros. Dia mundial da poesia (21-3-2013) O trabalho individualizado com a Rita Tavares, prosseguindo a alfabetização crítica, levou-nos a um encontro no dia mundial da poesia, em Lisboa, com ida ao Palácio Galveias. Foi de novo um despertar para a poesia e para o sonho ao qual ela nos transporta. Primeiro o apelo, para desdobrar em frases o começo proposto pela organização do evento: A poesia é…; o poeta... Frases que seriam expostas um mês inteiro, para o público que circula naquele espaço de cultura, biblioteca, exposições. Uma tarefa que nos propusemos completar ao longo da nossa estadia, estimuladas pelas várias experiências que aí viveríamos. Assim começámos por recolher as pequenas tiras que invocam marcadores de livros e que usaríamos para inscrever as nossas inspirações finais. Depois refletimos em conjunto, na sala de estudo onde outros liam os livros disponíveis ou documentos seus. Palavras soltas em caixinhas simples, de nomear coisas, verbos, qualidades e pessoas. Para a categoria coisa, um conjunto de perguntas e respostas: Se a poesia fosse elemento o que seria? - Água, responde a Rita. E se fosse um objeto desta sala – uma janela, ou uma porta. Se fosse flor – rosa. Verbos ser e amar. Qualidades de beleza, expressivo. Inspirámo-nos na leitura pelos próprios poetas, que entretanto entraram na sala declamando com intensidade e expressividade a sua poesia, acrescentámos as palavras música e arrepio à coluna de coisa; descer, expirar, engolir, à categoria de ação. E na mesa junto à qual nos sentámos, colhemos uma frase de Saramago para os nossos cadernos iguais, com nossas lapiseiras iguais: A amnésia é má para as pessoas e também para as sociedades. Temos que saber quem somos para viver com a consciência de estar vivos. Sigamos perguntando e procurando (In José Saramago nas suas palavras).

Mas a sessão continuou pelos jardins, onde uma pequena feira de livros usados nos convidava à leitura, abrindo livros ao acaso, lendo poemas uma para a outra, retirando excertos e nomes de autores e livros, a pensar na nossa tertúlia: Eugénio de Andrade; poesia e Prosa, Limiar; António Nobre, Só; Casimiro de Brito, O amor, a morte e outros vícios (P15: desenhar um rosto o teu rosto/Com palavras que vestem a casa/De silêncio); Daniel Filipe, A invenção do amor (é preciso encontrar o casal fugitivo/ que inventou o amor com carácter de urgência).

Por fim as frases compostas, que escrevemos em duplicado para ficarmos com uma recordação para levar para casa: - 57 -



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A poesia é um arrepio de silêncio correndo-nos líquida O poeta é porta de urgência no silêncio da cidade

A poesia como uma entrada transdisciplinar e transcultural, unindo-nos para além das diferenças e expressando-nos a urgência da transformação da própria cidade. Um caminho de cidadania crítica que assim prossegue, no anonimato dos passos acertados e no companheirismo dos afetos. A criação a dois tecendo laços que se aprofundam. Tradução de canções de batuku, do Kriolo para língua portuguesa (23-5-2013) No âmbito do trabalho de alfabetização, uma das atividades que se pode considerar predominantemente multicultural, foi o da tradução de letras de canções de batuku, com a própria autora (Rita Tavares) e uma das investigadoras (Ana Paula Caetano), escrevendo-as em Kriolo e em português. Fomos escrevendo, revendo a escrita, conversando sobre o sentido das canções, para fazer a tradução, fazendo ensaios de reescrita para afinar os sentidos em ambas as línguas (o que implicou um encontro e diálogo que se pode assumir como uma aproximação intercultural). Decidimos que depois iríamos pedir a ajuda a uma amiga cabo-verdiana, do bairro, para rever a tradução e a própria escrita em kriolo. O resultado deste trabalho é apresentado no quadro 3. Quadro 3 – tradução de letras de canções de batuku Kriolo

Português

Anôs, grupo di tocaderas da Costa da Caparica. Nu tem força y coragi ki ê pa nu djôbi si nu ta bei pa frente. Batuku ê nôs força y nôs alma, ê nôs herança, ê tradiçón di nôs terra.

Anôs (todos nós) é um grupo de batucadeiras da Costa da Caparica. Temos força. Temos coragem. Que o nosso batuque vai para a frente. Batuque é a nossa força, é a nossa alma, é a nossa herança, é tradição da nossa terra.

Minina preta n’ gosta di bô, n’ gosta di bô, pa tudu tempu di nha vida.

Menina preta eu gosto muito de ti, eu gosto muito de ti, para todo o sempre na minha vida.

Mininus nhôs corri di amigu nhôs fugi di amigo pamodi gosi amigo ka tem más.

Todos nós podemos correr de amigo e fugir de amigo porque agora não há amigo.

Ô minina pa tróka di inveja y kubiça y pêga nobu bu mata. Ô minina a bô ê malatriza.

Tu menina por causa de inveja e cobiça apanhas uma pessoa nova e a matas Oh menina tu és mesmo muito má.

Este processo é uma afirmação de uma tradição fortemente enraizada na cultura cabo-verdiana – o batuku - e constituiu, para as pessoas envolvidas, um reconhecimento mútuo, do valor de ambas as culturas, através da tradução em ambas as línguas – kriolo e português. Por outro lado, representa a expressão de um coletivo específico – o grupo de batucadeiras de Costa da Caparica - 58 -



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– que assim se apresenta (na primeira canção). Representa, ainda, noutras letras, a expressão de emoções, sentimentos, preocupações, experiências interpessoais e individuais vividas ou observadas pela sua autora. 4. 4.1.

A poesia como mediação entre grupos, comunidades, culturas Tertúlias de Lusofonia – nas comunidades e no Fórum Fronteiras Urbanas

Alguns encontros de poesia, onde a multiculturalidade foi central, permitiram a leitura conjunta de múltiplos poemas escolhidos previamente, e onde estavam representados diferentes autores do espaço da lusofonia, com destaque para Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné Bissau. Textos de autores como Paula Tavares, Viriato Cruz, José Craveirinha, Marcelino dos Santos, Francisco José Tenreiro, Vinicius de Moraes, Manuel Ferreira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, António Gedeão, Maria Teresa Horta, Álvaro de Campos, Mário Dionísio, Florbela Espanca, entre tantos outros, estavam disponíveis e foram lidos por todos os presentes, de todas as gerações e comunidades, participantes no projeto e amigos convidados. Individualmente e a pares escolheram-se poemas dos livros disponíveis, acolheram-se mundos que falavam de mundos que nos eram estranhos e familiares, onde o riso, o choro e o grito se sucediam dispondo todos a uma partilha. A poesia está na luta dos homens, está nos olhos abertos para amanhã Mário Dionísio Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. (…) Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio. António Gedeão

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Não posso Não é possível Digam-lhe que é totalmente impossível Agora não pode ser É impossível Não posso. Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro. Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo. Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso reconquistar a vida Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso (…). Vinicius de Moraes A vida – sabemos – vai mal A morte – coitada – nada tem a oferecer-nos de novo Por isso faz um poema josé faz um poema suzana faz um poema tomé faz um poema ana (…) José Vicente Lopes Na vida seria preciso aderir à ideia de juntos construirmos tudo: amor primeiro porque sem ele nada vale a pena, consciência depois porque é preciso olhar para as coisas e os outros e os acontecimentos e ver tudo isso à transparência, o mundo a seguir já que nele reside o desafio. João Crisóstomo

Cartas a Terra nenhuma – multi/interculturalidade As cartas que se escrevem à espera de resposta, apelos de cidadania a uma mudança que se quer justa, vozes que se registam para afirmar direitos negados e retirados, interlocuções para aprofundar relações à distância e que não tiveram resposta. Novas oportunidades para serem escutadas, para ganharem novos leitores, para estimularem reflexões e novos diálogos. Estes foram os propósitos de uma sessão organizada no âmbito da Trienal de Arquitetura e onde o Projeto Fronteiras Urbanas participou, dinamizando uma semana de trabalho, envolvendo-se em apresentações pelos seus membros, sessões de debate, de batuku, de leituras. Nesta sessão, designada de Cartas a Terra Nenhuma, foram lidas cartas de elementos das três comunidades envolvidas no projeto – do Bairro das Terras da Costa, da comunidade piscatória e da comunidade - 60 -



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académica. A poesia teve aqui também a sua presença, através da leitura de textos que constituíram cartas enviadas sem resposta. Veja-se o exemplo de alguns excertos de cartas de João Crisóstomo, um dos educadores que colaborou no projeto, lidas nessa sessão: Tenho pensado em lhe telefonar. Tenho pensado em lhe escrever. Tenho pensado, sobretudo, em lhe pedir que me ajude a ir deste lado do rio ao encontro do seu. Como é que isto se faz? Esta não é (ainda) a carta que te escreverei. Essa terá de amadurecer cá dentro, e não amadureceu. Esta é apenas a forma de regressar a ti. De te falar de mim (de te pedir que me fales de ti) e de partilhar. Que vou eu partilhar não sei. Não escolhas amiga. Deixa a vida tratar disso. Mas dá atenção aos sinais. E se tens de escolher, escolhe apenas dentro de ti. Escolhe o caminho do amor e deixa o amor acontecer. Até que deus queira. Ou tu. É tanta a distância cá dentro que olhando para trás nem a costa do mar mais remoto consigo ver, quanto mais aqueles que um dia amei.

Mais uma vez o prefixo multi, para compreender esta coexistência de múltiplas linguagens – umas mais prosaicas, outras mais poéticas – que veiculam os mundos objetivos e subjetivos dos seus autores, em todos os casos à procura do outro, do diálogo, do encontro onde as vozes podem ser transformadoras desses mesmos mundos objetivos e intersubjetivos. Um multi que se faz inter quando se abre o espaço do diálogo e as subjetividades se encontram. 5.

A poesia e o teatro num processo transdisciplinar

Organizou-se uma escola do bairro, escola voluntária onde membros de todas as comunidades e outros que a elas se juntaram, vindos dos múltiplos encontros que se foram multiplicando ao longo do projeto, se reúnem para aprender uns com os outros, partilhando os seus saberes. Neste âmbito criou-se um espaço onde a poesia e o teatro se abraçaram para dinamizar oficinas de expressões, onde várias gerações se juntavam. Daremos conta brevemente de como estas oficinas foram dinamizadas e como constituíram espaços inter e transculturais, onde a leitura foi dando lugar à recriação e produção coletiva de novos poemas. 5.1.

Leituras coletivas

Leituras soltas de poemas de um livro de Ana Viana – intitulado Femininos Singulares - e de poemas de Guilherme Brito, seguidas da escolha de estrofes, levam-nos a levantar e ir ter com outro, no círculo, lendo-lhe os poemas e instalando-se no seu lugar enquanto este se levanta para ir ter com outro lendo-lhe a estrofe escolhida, até todos se terem levantado. Para no fim, em roda, recriar um novo poema com leituras dessas estrofes que depois ficam a ecoar em espiral ao centro, todos ao mesmo tempo lendo as suas frases favoritas. De seguida apresentamos um poema de Guilherme Brito, habitante da comunidade Bairro, onde se pode perceber um forte cariz de crítica social e política:

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Porque não se conhecem Olá! Ecoa no vazio Uma saudação despida de conteúdo, Quando se encontram. Vivem na mesma cidade, Na mesma rua, no mesmo prédio E quantas vezes na mesma casa. Olá! Olham-se mas não se vêm, Falam-se mas não se conhecem. Exalam um “Olá”, Como a chaminé que solta um rolo de funo, O qual já por si sai tão pouco coeso, Que se dissipa mal atinge o exterior. Estudam na mesma escola, Fazem parte da mesma turma Passam juntos os tempos livres; Encontram-se no elevador Mas, olham-se e não se conhecem E então apenas dizem “olá”. São estranhos que vivem solitários lado a lado. Trocam Prendas… Porque não são capazes de oferecerem AMOR, Têm medo De se olharem nos olhos, De se sondarem em profundidade, De porem a descoberto As suas fraquezas As suas potencialidades. Por isso, Quando se cruzam na rua, Dizem simplesmente: - “Olá!”. Vive cada um Egoisticamente no seu mundo, Desejando dominar o universo do outro. Vivem ombro a ombro Uma vida voltada para o EU, Por isso não se conhecem, E dizem uns aos outros Simplesmente: - “Olá!” Quando ao passarem pela avenida Tropeçam uns nos outros! É assim o nosso mundo!

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5.2.

Leitura expressiva de poemas, preparatória para a criação de um poema coletivo oral

Ler pequenos poemas, de Jaime Salazar Sampaio, simples e profundos ao mesmo tempo. Ir ao centro da roda e lê-los a pares:

A poesia é tão fácil como a chuva. Só o não sabe quem usa gabardina. Há sempre um erro novo à nossa espera. Seja ele um cubo ou uma esfera, há que recebê-lo com alegria. É um erro novo. Está à nossa espera. Naquele tempo os deuses ainda viviam – num daqueles sinistros lares da terceira idade. Os animais, é claro, falavam ainda correntemente. E as plantas, as pedras, os penedos, os penhascos, os minérios e os minerais, cantavam em coro a sua canção. Ainda! - as pessoas é que já tinham começado a não existir, buzinando, coléricas, nos engarrafamentos. Pois bem. Também nós tivemos um dia de amor. Lá fora chovia e os autocarros… era um dia de Inverno. Sempre foram curtos os dias de Inverno As pessoas que sabem tudo, nem sabem o que perdem da beleza deste mundo. Os dias pingam da torneira do tempo. Quando o nível das águas beijar os meus lábios, logicamente deixarei de cantar. Até lá: Lá-la-ri-lo-lé (desculpem se desafinei Agora que estás longe e dissemos, sem lágrimas, as últimas palavras, lembro-me de ti: como éramos felizes quando éramos infelizes nos braços um do outro.

Depois da leitura expressiva de um novo poema, de Ana Viana, em círculo, cada um lendo uma estrofe, passou-se ao ziguezaguear do encontro, em diálogos simultâneos, dois a dois, a que se iam sucedendo novos diálogos e em que o mote eram as questões que o poema ia colocando: Quem és tu? Sou …. E tu, quem és tu? Sou … E tu, quem és tu? Sou… Tens a certeza? Quem serias sem essa certeza? Seria …

Finalmente, em roda, cada um dizendo uma frase à qual juntava um movimento: EU sou… e que todos em coro mimavam a seguir: Eu sou… Nós somos… (eu sou um rio que corre para o mar; eu sou um rio que corre para a nascente; eu sou uma borboleta; eu sou um arco íris…), formando assim um longo poema coletivo que não acabava no fim de cada roda, pois o entusiasmo levavanos a todos de novo a dizer de si e a dizer de nós, juntos e de alguma forma espelhos uns dos outros.

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Escrita de um poema coletivo Numa sessão em que estavam presentes 5 adultos e 4 crianças fizemos um trabalho onde a poesia e o teatro se juntaram de novo para a elaboração coletiva, oral e escrita. Escolhemos, como inspiração inicial, um poema que remetia para a ideia de um amor universal, sem fronteiras, o que está associado ao conceito de transculturalidade, objeto deste capítulo. O poema, de Ana Viana, abreviado: Podes ser tu ou tu ou tu o grande amor da minha vida és tu agora és tu o grande amor da minha vida e eu não quero perder os teus olhos onde me vejo infinito amor da minha vida (…) e todos olhávamos o infinito olhando nos olhos do seu grande amor sendo corpo mergulhado num outro formando uma cadeia naquela manhã nós sentimos que aquela cadeia era o infinito

Depois de uma leitura coletiva do poema em que, de forma expressiva interagimos uns com os outros, passámos ao desenho de palavras e expressões que nos pareciam particularmente relevantes e, de seguida, construímos com essas frases recombinações em novas organizações poéticas. Por fim, passámos à elaboração de um poema totalmente novo, inspirados no mote do amor universal, para o qual remetia o poema inicial. Em conjunto fomos dizendo e registando tudo o que íamos dizendo, tendo o resultado sido reorganizado no seguinte quadro a três vozes: para dar? não sei… a minha mãe é - 64 -



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o grande amor da minha vida este amigo de quatro patas olho para a terra e sinto que não é possível viver sem vida que o mesmo é dizer viver sem amor é preciso viver sempre com amigos não sei … vou ver este abrigo mas qual abrigo? este aquele onde passa o vento um sonho qual sonho? um sonho lindo realizado? Ou inventado? feio ou bonito? grande ou pequeno? este amigo parece que é infinito não quero dizer nada tenho medo de agir sem pensar mas como assim? sem ter medo de errar? por exemplo porque será? veia filosófica quê? veio ao de cima é melhor não dizeres nada escreve tudo não há segredos entre amigos será? eu penso, não digo é porque não quero - 65 -



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será que o amor é real? deve ser, que é? ou é uma vida de encanto? já se está a mostrar claro, uma poeta será que está a fazer bem ou será que só está a se encantar? como as estrelas? o nosso poema é muito grande quanto mais grande melhor é mesmo? fica mais giro de certeza!!!

Como vemos no poema construído coletivamente, há uma polifonia de vozes que ao interagirem entre si se questionam, comentam mutuamente, complementam, criticam e celebram. O prazer de fluir com o outro num processo coletivo/conetivo, o perceber que todos são incluídos, mesmo aqueles que afirmam nada querer dizer, o ver as suas palavras inscritas no texto. O lê-las no fim, obra conjunta. O diálogo para além do cultural, a nossa humanidade a fazer-se com o outro, no encontro das nossas subjetividades. Reflexão final – a poesia como espaço de mediação na etnografia crítica A poesia é um espaço de mediação, um espaço entre. Entre a investigação e a educação, pois estabelece um vai-e-vem, abrindo-nos um caminho do distanciamento reflexivo pelo qual interrogamos e repensamos ambas as práticas, ao mesmo tempo que nos impele ao seu uso no decurso dos processos educativos. A poesia como um processo onde se rompem fronteiras entre a linguagem popular e a linguagem científica, voltando às primeiras, desconstruindo-as com os próprios, categorizando-as e identificando as que entendem como mais relevantes para depois voltar a reconstruir novos textos, agora poéticos. A poesia como forma crítica de transpor os tabus do que é o discurso científico, usada na elaboração de notas de campo, na análise do discurso das entrevistas, com os próprios, na reflexão sobre os processos educativos e sobre a própria investigação, na divulgação do projeto. A poesia como processo dialógico, que se traduz em novas linguagens, que congrega à sua volta múltiplas leituras e releituras conjuntas.

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A poesia, ainda, como ensaio de liberdade, imaginação e criatividade, consciencializando-nos criticamente dos limites que nos impomos e nos impõem, capacitando-nos para sermos além, favorecendo a emergência de novas, mais amplas e implicadas formas de organização. A poesia como construção coletiva, que parte das nossas individualidades e especificidades culturais e se transforma, integrando-as ao mesmo tempo que as reflete criticamente e as transcende, num lugar de mediação que é simultaneamente um lugar multi, inter e transcultural. Estamos conscientes, o entanto, de que é possível e desejável ir ainda mais longe, continuando a multiplicar formas e momentos de encontro e aprofundando o sentido crítico e a reflexão transformadora que a poesia pode transportar. Trata-se, assim, de caminhos onde a poesia é lugar de construção identitária e relacional, de diferenciação e de pertença aos mundos pessoais, interpessoais, socioculturais em presença, presença essa direta ou indiretamente corporificada pela palavra. A poesia é lugar, também, de visitação e projeção, de travessia e de expansão de fronteiras, colocando diferentes mundos mais perto, os mundos que a poesia transporta, os mundos onde ela se deixa escutar e agir, os mundos terceiros que ela ajuda a construir. Trata-se, enfim, de pensar e agir a poesia em profunda relação com a vida, pois nesta a multiplicidade e comunicação, a interdependência e conexão, a inclusão e implicação são aspetos de uma realidade complexa que já é, em distintos planos, mas que pela poesia se podem tornar para nós, e nos podem tornar a nós, mais conscientes, mais comprometidos e mais conectados.

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Ilustração de João Moreira

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DESABAFO SOBRE A POBREZA Daniel Miranda Ser pobre é caminhar olhando as mesmas pisadas, as mesmas marcas, sempre buscando algo que se possa achar caminhando num dia de chuva e frio, onde somente vês terra escura, lama e poças… um caminho feio. De cabeça baixa, vês na terra a cor dos teus olhos sem luz, um caminho que não te leva a lado nenhum. Este caminho de terra e lama sem iluminação em céu cinzento manifesta que sou sujo e sem flores, sem passeios ou relva, sem admiração… Neste trajeto pobre, eu sou a lama que nem para barro serve, a não ser apenas para ser evitada. Não sou uma doença, apenas um peregrino que anda de terra em terra, porque não tenho outro lugar onde possa ir à vontade, onde quer que vá ou queira ir, dependo de ti. Há quem olhe para o pobre como alguém sem ambição ou alguém que não foi inteligente para vencer na vida. Mas quem é quem para avaliar e julgar as muitas rasteiras da vida e as suas injustiças, trapaceiras e solicitudes? Esta avaliação é desprezível, arrogante e pouco sensata na compreensão dos factos. Ninguém é intocável seja pobre ou seja rico. Lá porque os lugares são feios não significa que as pessoas sejam pobres sem amanhã e sem destino, sem atitude… Ser pobre não significa viver amedrontado, ainda que lhe falte prestígio, sucesso, honra e, até mesmo, a nossa vaidade. Cada um tem o seu próprio caminho com o coração que tem. E o pobre tem o seu próprio caminho, com mais liberdade do que se pensa. Na pobreza há defeitos assim como muitas virtudes. Como tudo na vida há um lado rude da história, o pranto da tristeza e da solidão. Sofres porque tens dor, dor nos teus segredos e na tua mágoa. As lembranças perseguem o que fomos, o que somos, tivemos ou temos… Agora não posso fazer nada? Não tenho nada? E perguntas como essas estão encerradas na minha alma, ao abandono, ao relento do meu viver. A falta de amor esmoreceme e fecho-me na minha guerra. Grito na minha rotina por essa atenção, grito para encarar e ser forte na minha expectativa, se assim não for vou morrer. Alguma coisa me vai matar antes do tempo, as consequências vão-me matar. Conheci um homem que morava por detrás da minha casa, numa casa de pobreza, sem condições nenhumas. Vivia só, apesar dos vizinhos e amigos. Um dia adoecendo, (o que já era frequente) foi muito mal para o hospital, entre a vida e a morte. Após o internamento, mandaram-no para casa para recuperar. Na verdade, mandaram-no para a sua pobreza e dias depois faleceu. Triste muito triste… A pobreza está na sensibilidade dos direitos humanos. Este foi o drama de um de muitos que conheci. Nem sempre fazemos tudo o que está ao nosso alcance. Podemos não ter tudo mas podemos ter respeito. Estas causas são as emergências da vida que podem bater à porta de quem, por sofrimento, se esquece de si e se entrega, já sem forças, ao tudo o que pensam, fazem ou dizem… Há que saber lidar com o que temos e ser um vencedor, a humilhação por vezes é como um fogo que também nos prepara para a sabedoria da vida. A riqueza do pobre está na sua força interior, está naquilo que na aparência não se vê ainda que a aparência seja algo relativo. O importante é ser feliz e é

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aqui que, para mim, se define a riqueza e a pobreza, a felicidade, a liberdade e a saúde. A prova é que há muita gente que tem tudo para ser feliz e não o é. Certo dia, cruzei-me, ocasionalmente, com um rapaz conhecido, numa avenida da cidade, agarrando-se e arrastando-se pelo muro sem poder praticamente andar. Encontrava-se num estado lamentável, completamente perdido, e já andava assim há meses, desorientado, frustrado e dececionado. A verdade é que mesmo sendo de boas famílias socialmente e até de posses económicas, revela-se na pobreza e por vezes até anda a pedir dinheiro, isto é pobreza. Está ali alguém com recursos para se erguer e está a desperdiçar-se, destruindo as suas possibilidades. Num outro sentido, quase em simultâneo, no outro lado da fronteira ao caminho do bairro, encontrei um vizinho que vinha na minha direção. Tinha uns sapatos velhos, um de cada tipo, sem meias, com umas calças de pano castanhas e velhas, camisa e casaco velho de aspeto franzino e humilde, vive sozinho numa casa pequena. Sempre que o vejo sorri e diz: “Então rapaz, tudo bem?” de uma forma rítmica. Nunca me pediu nada, está sempre firme e nunca o vi agarrado a um muro. Julgar estas pessoas pela aparência é a maior exploração que podemos fazer à sua imagem. E por falar em imagem, que pose há em modelos e atrizes, gente famosa e rica a fotografarem como se fossem estrelas, realçando-se no meio obscuro da pobreza? Isto é mesmo chocante, uma estratégia de marketing que procura lucrar e sobressair à conta da dificuldade dos outros. O pobre é vítima da sua exposição e do seu oportunismo. Prefiro ficar com a imagem das crianças quando brincam lá no bairro, que apesar de tudo são livres, despreocupadas e desinibidas. Percorrem o bairro como se fosse o seu quintal, entrando e saindo da casa uns dos outros. Misturam-se com os adultos nas suas brincadeiras de colo em colo, sentem-se protegidas por toda a gente as conhecer e vão aprendendo a crescer, a ver a realidade que nos envolve e que por vezes nos constrange. Sentem-se amadas e felizes não dependendo do lugar. Quando as vejo a pintar desenhos com o João Moreira, vejo-as a aprender a ver as cores da sua vida, a pintar os quadros da sua felicidade… Temos que deixar de ver defeitos na pobreza, pois há virtudes também. O importante é refletirmos sobre ambas as coisas, tanto de um lado como do outro. Há pobres que na sua pobreza escondem grandes fortunas. Uma vizinha, mulher do campo, cuida dos seus animais como se fossem pérolas valiosas e da sua horta como se fosse uma rua de ouro. A sua alegria está na hospitalidade com que nos recebe. É uma pessoa organizada e não gasta nas coisas que quer, mas sim no que precisa. É por estes princípios que rege a sua vida, mantendo-se firme e fiel a si própria. Sentado no meu beliche de madeira dei por mim completamente isolado de tudo e de todos, escondido do porvir do medo da insegurança do desconhecido, parecia uma criança inofensiva, não sabendo como me defender da nova situação, de um novo estilo de vida num novo ambiente à minha volta, não sabendo como o enfrentar. Estava a mudar de casa juntamente com a família, resolvi vir na frente para me ir adaptando num ir e vir enquanto não mudássemos todos definitivamente. Pensei que fosse uma simples casa alugada para passarmos uns tempos e depois ir para algo melhor, mas não, a situação foi inesperada para mim.

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Uma casa ou barraca, como queiram entender, de madeira castanha (mais de aspeto velho do que novo) e as paredes eram forradas com papelão por causa do frio. As chapas de zinco, que faziam de telhado, davam-me a sensação de que o mundo me estava a cair em cima. A falta de eletricidade, de água canalizada e de um bom banho, era inadmissível. O chão de terra batida sem dúvida que era um trajeto diferente. Mas, com “coraji fitchadu” (expressão “pronto para tudo” em criolo), precisava de ser guerreiro, realista e começar a dar valor a pequenas coisas que normalmente não dava. A luz da vela que iluminava a casa, iluminava-me a esperança e ensinava-me a sentir a beleza que estava para além da minha compreensão. Aprendi que para seguirmos em frente há que olhar para o nosso meio de uma forma natural e com amor. Esta mudança aconteceu quando fomos despejados de casa, casa onde vivi quinze anos com um quarto só para mim, uma grande sala de estar e jantar, duas casa de banho, cozinha e tudo o resto, muito cómodo. Gostava imenso de ver o arco-íris e a chuva da janela do segundo andar. Apesar de morarmos num prédio, passávamos muitas necessidades, nos últimos tempos já nem água e luz pagávamos… apenas com uma pensão mínima de reforma, como era possível mantermo-nos? Apesar do conforto da habitação, sentíamo-nos pobres. E na vida é necessário, por força das circunstâncias, saber perder umas coisas e ganhar outras. A casa era pequena tanto de comprimento como de largura. Meu avô sempre a ouvir rádio, meu irmão a entrar e a sair, minha avó sempre a catar água… era apertadinho mas estávamos juntos com um grande à vontade, ninguém olhou para trás com lamentos. A comparação do antes com o depois é muito grande. Adquiri muita coisa que me acompanhará para o resto da vida, e esses tesouros escondidos guardo-os com muito carinho. Descobri que por detrás das nuvens passageiras de um inverno rigoroso, há um sol que ilumina e traz outras alegrias, a Primavera que faz nascer outras oportunidades contigo próprio, para com os teus e para com os outros. A necessidade também te desafia a decidir o que queres ser… E o que pensava que ia ser um abrigo temporário tornou-se o meu lar até hoje. Os meus avós com o passar do tempo começaram a adoecer frequentemente e os internamentos nos hospitais eram constantes. Foi quando percebi que, aqui nestas condições, já não era possível continuarem. Estavam muito debilitados para recuperarem nestas condições e nem Câmara Municipal nem instituições ou assistentes sociais nos ajudaram. Esta fase foi das piores fases da minha vida. Ver, ouvir os seus gemidos e nem sequer ter uma porta de quarto para os resguardar, era frustrante. Se fosse rico… apesar de na altura estar a trabalhar, mas ainda sofria mais por não os poder observar mais constantemente. Faleceram no mesmo ano, numa ida ao hospital, carregando um sentimento de despejo por não poderem suportar as despesas. A nossa barraquinha foi a nossa única alternativa para não irmos para baixo de uma ponte. Do fundo do coração eu os louvo por nunca terem tido vergonha e pelas humilhações que passaram para nos darem um lanche ou um pequeno-almoço. Para mim, não me deixaram casas, carros, jóias, contas recheadas, um café ou empresas. Para mim, eles são os meus heróis e os heróis não precisam disso. A riqueza só é real quando é riqueza de valores. A riqueza só é riqueza quando a depositamos na riqueza que há nos outros. - 71 -



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Ilustração de João Moreira

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COSTA FRONTEIRA Francisco Silva

Origem Entre a foz do Tejo e o promontório do Espichel, o Atlântico desenha uma enseada bordejada por arribas antigas e areias brancas. Atrás das arribas estendem-se planícies que esbarram na serra da Arrábida e depois dela o Sado e outra vez o Oceano. A península, de Setúbal, talhada entre dois rios que correm para o mar transpondo a fronteira da outra península, a Ibérica. E depois mais água e mais terra até de onde o Sol vem, a Costa é o seu destino, quando lá chega mergulha atrás da linha onde termina o Céu. O passado, o presente e o futuro da Costa de Caparica dependeu, depende e dependerá do Oceano Atlântico, que vai definindo o seu desenho a traço de areal, que se vai afastando ou aproximando da Rocha, nome que os pescadores deram à Arriba Fóssil. Em tempos que não se podem precisar, por falta de evidências geológicas, esta arriba foi viva quando as ondas vinham quebrar na sua base, separando a terra do mar e desenhando outro traçado da linha de costa e fronteira. A imprevisibilidade do comportamento do Oceano, as tempestades, as marés vivas, faziam da faixa de areia litoral, representada na cartografia pelo menos desde o século XVI, um território alagadiço e pantanoso coberto por dunas móveis e juncais. Nenhuma razão justificava o povoamento deste lugar inóspito e insalubre. A Costa, como se designava toda a frente atlântica do concelho de Almada, não era mais do que simplesmente a costa, o limite, a fronteira, o lugar onde o continente termina e o Oceano se estende até à linha do horizonte. O cimo da Rocha onde os frades Capuchos se haviam instalado em 1558 no seu convento edificado em lugar ermo e afastado das povoações, definia desde então a fronteira do espaço humanizado no concelho de Almada. O Tejo vindo de Espanha atravessa Portugal cumprindo o curso de maior extensão dos rios da Península Ibérica e tem a sua foz a norte da Costa. As areias que arrasta foram, ao longo de milhões de anos, alimentando estas praias, depositadas pelas correntes marítimas que correm para sul trazendo a água salobra e alimento que atrai as diversas espécies de peixe que durante as várias épocas do ano procuram o estuário do grande rio, onde se alimentam, desovam, crescem e se reproduzem. Povoamento Foi então o mar e a abundância de peixe de várias qualidades, mas principalmente a sardinha, que trouxeram à Costa quem aqui procurou mitigar a miséria que no norte e no sul do país marcava o quotidiano das comunidades piscatórias, cujo produto da tão árdua faina não encontrava mercado que valesse o esforço e o risco. Vieram de Ílhavo, mas também de Olhão, primeiro só para a “safra da sardinha” durante alguns meses de Verão. Até que vieram e não voltaram, à semelhança dos conterrâneos que ficaram pelas águas do Tejo habitando os próprios barcos avieiros. Os - 73 -



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pescadores de Ílhavo construíram nas areias da Costa as suas barracas com paredes de madeira e telhados feitos de estorno colhido no cimo das dunas. Consigo trouxeram também os grandes barcos de mar chamados Saveiros e as Artes de pesca conhecidas como Xávegas. Encontraram na praia o seu lugar sem que ninguém os impedisse, pois ninguém lá habitava nem nada lá se produzia além de sezões, as febres palúdicas transmitidas pelos mosquitos que abundavam nos juncais e charcos de águas estagnadas, que lentamente iam consumindo as forças e diminuindo os anos de vida de quem não partia. Na verdade, também ninguém lá ia: as estradas ainda não tinham chegado e o peixe seguia pela praia até à Trafaria e daí para Lisboa, ou tinha de subir a Rocha à cabeça das peixeiras que o traziam às povoações da Caparica e à vila de Almada. Atribui-se a data de 1770 à fixação nas praias da Costa das primeiras famílias de pescadores conduzidos na nova morada pelos mestres de redes José Rapaz, natural de Ílhavo e José Gonçalves Bexiga de Olhão. Assinalando a intenção de não regressar às terras de origem após a Safra, construíram com tábuas a primeira Igreja e dedicaram-na a Nossa Senhora da Conceição. Acentuando contudo as suas diferentes origens, os ílhavos instalaram-se a norte enquanto os algarvios construíram as suas barracas a sul. Entre os dois aglomerados encontrava-se o local onde as dunas atingiam a maior elevação sobre o imenso areal, a que chamaram o “Alto”. Desse local os pescadores iam “ver o mar” e decidir os lanços. Quando os alcatrazes caíam mergulhando no mar era sinal de peixe na costa, quando as ondas do mar transpunham a praia e lhes vinham lamber os pés descalços era sinal de fome na barraca. Na fronteira que dividia os habitantes da Costa da restante população do concelho de Almada separada pela arriba, traçava-se uma outra que partindo do “Alto” perpendicularmente à praia separava os ílhavos dos Algarvios: a “Rua”, dos Pescadores. Ambas as comunidades partilhavam Contudo o afastamento das autoridades, da administração e da sociedade do concelho de Almada. Para colmatar as necessidades mais básicas como obter água potável ou um espaço onde sepultar os seus mortos, as comunidades piscatórias fundadoras da Costa de Caparica criaram o “cofre do quinhão das companhas” para o qual cada companha contribuía com um quinhão (quantia em dinheiro) proporcionalmente retirado do produto da venda do pescado. A partir desse “fundo” foi custeada a construção do “Poço da Vila em 1879” e do Cemitério no ano seguinte. A Pesca Da praia e do mar chegava o único sustento das populações da Costa, dada a total impossibilidade de qualquer prática agrícola nas estéreis areias e a especialização dos habitantes na prática da pesca. Embora existissem outras artes de pesca, a Arte Xávega que pescava desde o S. João (24 de Junho) até finais de Outubro sempre que o mar o permitia, era responsável por trazer na faina muitos homens e mulheres divididos em companhas, termo que na Arte Xávega designa as pessoas, as redes e o próprio barco. Em cada companha imperavam os laços de parentesco e de origem, sendo cada uma conhecida pelo nome do barco com que pescavam. Estavam subordinados a uma hierarquia rigorosa em que cada um dos membros ocupava um lugar específico em função das tarefas que desempenhava na faina da pesca. A companha era uma espécie de família alargada,

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formando um grupo coeso em permanente competição com as outras companhas, rivalizando no sucesso dos lanços, através da quantidade e qualidade do peixe trazido à praia em cada lanço. Não é possível descrever aqui a dureza do trabalho quando a pesca se realizava sem recurso a quaisquer meios mecânicos e todo o esforço no mar e em terra era realizado por músculos humanos. Contudo, enquanto tentativa de aproximação faremos uma descrição resumida e necessariamente incompleta da composição da companha e dos principais momentos que pontuavam cada lanço da Arte Xávega. A Arte Xávega é uma arte de cerco envolvente de puxar para terra. É praticada com o apoio de uma embarcação, que deixando em terra uma ponta de cabo, transporta e vai largando no mar as cordas e a rede descrevendo um arco em frente da praia e regressando a terra trazendo a outra ponta de cabo. Na praia as cordas eram aladas em simultâneo, puxando em paralelo ambos os braços da rede, que no centro traz o saco para onde o peixe vai nadando à medida que a rede se aproxima da praia. Foi a Arte Xávega que trouxe para a Praia das Pescarias da Costa as primeiras comunidades piscatórias. À abundância de peixe juntavam-se as condições naturais de uma praia de areia, aberta, nem obstáculos naturais, essenciais para varar os barcos e alar (puxar) à mão sobre a areia molhada e dura as redes que deslizam sobre fundos sem rochas. Porém eram necessários muitos braços, pelo que as companhas podiam ter mais de quarenta almas entre homens, mulheres e crianças. A principal divisão da companha distinguia os que embarcavam e os que ficavam na praia. Na tripulação do barco, constituída exclusivamente por homens, mandava o Arrais, a quem cabia dirigir toda a manobra no mar conduzindo a embarcação para o local onde “dar o lanço”, incentivando e marcando o ritmo dos remadores, que nos antigos barcos da Costa, os Meia-lua, podiam variar em número sempre par entre dez e seis homens, um por cada remo. À popa junto ao Arrais ia o Espadilheiro, manobrando o remo da espadinha que servia de leme à embarcação. O Homem Pau da Corda, geralmente um rapaz, segurava um pau que guiava a corda, cuja ponta ficara na praia e à medida que o barco avançava se ia desenrolando do interior do barco. Ao Calador cabia a tarefa de largar a rede no local indicado pelo Arrais. A companha de terra, que por sua vez podia ser composta por homens e mulheres mas também crianças, era dirigida pelo Arrais de Terra. Este comandava na praia o alar da rede à mão pelos dois grupos que puxavam as cordas em simultâneo trazendo a rede que ia cercando o peixe. No início da alagem afastados, os dois grupos iam-se aproximando seguindo as indicações do Arrais à medida que a rede se aproximava da praia, fechando os braços da rede e encaminhando o peixe para o saco. Cada grupo de aladores fazia uma fila puxando a corda, caminhando para trás e de frente para o mar, inclinado para trás as costas onde cruzavam um “cinto”, do qual pendia uma corda com uma bóia na ponta e que servia para enrolar e prender o cabo que puxava a rede. Quando chegava ao fim da fila um rapaz (geralmente uma criança) colhia a corda. O que estava em último lugar largava o cabo e voltava a tomar o primeiro lugar, segurando novamente o cabo da rede e puxando outra vez. Quando finalmente, após um demorado vai e vem chegava à praia, o saco da rede era aberto e o peixe escolhido e dividido em lotes, sendo a venda por leilão feita na própria praia. Entretanto as cordas e as redes eram arrumadas dentro do barco preparando-se assim a repetição do lanço que se iniciava quando a companha de terra e do mar empurravam o barco contra as ondas, repetindo - 75 -



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os gestos e esperanças de um melhor quinhão. O esforço de alar a rede era realizado caminhando sobre a areia, pelo que só era possível enquanto a praia tinha uma extensão de areia molhada e suficientemente dura para que fosse possível fazer força com os pés, o que limitava a possibilidade de pescar ao período compreendido entre a meia baixa-mar e a meia praia-mar e a um máximo de três lanços por jornada. O produto da venda de cada lanço era dividido em partes iguais, recebendo cada membro da Companha diferente número de partes conforme a posição que ocupava na hierarquia da companha. Tentando descrever como se pescava com a Arte Xávega procurou-se demonstrar que, diferentemente de outros métodos de pesca tradicional, este é um processo que envolve bastante gente tornando mais relevante a sua dimensão social, construindo identidade e rivalidades que caraterizam a comunidade piscatória da Costa de Caparica. Essa identidade, em parte associada à rudeza das gentes que vivem do mar, contribuiu para a marginalização destas populações pela sociedade e pelas autoridades almadenses ao longo de séculos. Um dos estigmas que marcou a comunidade piscatória da Costa relacionava-se com a necessidade de dispor de muitos braços para pescar, sendo que para além das tarefas já descritas era também necessário varar as embarcações (trazê-las para a areia fora do alcance do mar), transportar as cordas impermeabilizadas com alcatrão e as redes molhadas, tudo isto à força de sangue. A dureza do trabalho, mas principalmente por se tratar de uma povoação isolada e limítrofe ao concelho de Almada, fazia da Costa um local procurado por quem fugia à justiça ou ao remorso e aí encontrava algum parco sustento em troca de muito esforço e poucas perguntas. Por se abrigarem nas barracas onde as companhas guardavam as redes e outros aprestos, estes “pescadores” eram conhecidos por Barraqueiros, dos quais se conheciam as alcunhas mas raramente os apelidos, contribuindo para criar a má fama da Costa de Caparica que até aos primeiros anos do século XX tinha a imagem como um local de frequência pouco recomendável ou até mesmo perigoso. Essa imagem, como iremos observar, irá alterar-se com a criação de outras fronteiras. Transformação As condições morfológicas que ditaram o isolamento face ao restante território do concelho de Almada, que permitiram o povoamento da Costa de Caparica, começam a transformar-se a partir dos finais do século XIX. Com o Liberalismo surge alguma preocupação junto da opinião pública com as condições de miséria vividas à distância de pouco mais de duas léguas da capital. Em 1884, graças ao empenhamento de deputado Jaime Costa Pinto, é construído o primeiro bairro com casas em alvenaria destinadas a alojar as famílias de pescadores cujas barracas arderam na sequência de um dos vários incêndios que assolaram as barracas da Costa. Data também desse período o início da drenagem dos pântanos e a florestação da faixa de areia entre a Trafaria e a Costa, processo que contribuiu para criar condições favoráveis ao arroteamento dos terrenos entre a base da arriba e o cordão dunar, possibilitando a exploração agrícola de solos até então estéreis e conferindo a este território um valor fundiário que até então era nulo. A par da valorização económica dos terrenos observa-se em paralelo o desenvolvimento da Trafaria. O que tinha sido uma simples aldeia piscatória transforma-se em estância balnear. A moda da praia e a descoberta dos benefícios medicinais dos banhos de mar fizeram da Trafaria um - 76 -



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lugar de eleição para a burguesia Lisboeta, que à distância da travessia fluvial encontrava na margem sul um lugar de excelência para exibir as novas toiletes e gozar os prazeres do ócio e da evasão. É interessante observar como o hábito de fazer férias como contraponto ao trabalho está relacionado com a ascensão das elites de origem na burguesia, na medida em que para as elites aristocráticas tradicionais essa distinção carecia de sentido, por ser de todo reprovável que um aristocrata desenvolvesse qualquer atividade profissional. Podemos considerar que, de alguma forma, as transformações que se vão operar a partir da segunda década do século XX na Costa de Caparica resultam da “industrialização” do lazer enquanto produto de consumo generalizado, o que irá dar origem à indústria turística. Com a transformação dos pântanos e juncais em terrenos agrícolas uma nova estrada foi rasgada, ligando a Trafaria à Costa e abrindo a um número cada vez maior de “banhistas” a possibilidade de trocar a praia fluvial da Trafaria pelas águas refrescantes do Oceano Atlântico. Contudo, as “estadias com alojamento” estavam limitadas às poucas e exíguas habitações que as famílias de pescadores da Costa “arrendavam” aos lisboetas durante o Verão, auferindo assim de um rendimento adicional. A transfiguração da aldeia piscatória começa a operar-se a partir de 1921 com a criação da “Comissão de Iniciativa e Turismo da Praia da Costa de Caparica”, a qual obtém em 1925 a classificação da Costa de Caparica como Estância Turística Balnear. Na mesma linha, em 1936 a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) inaugura na Mata de Santo António, que havia sido plantada quatro décadas atrás para fixar o areal, a Colónia de Férias "Um Lugar ao Sol". A partir de então a Costa de Caparica vai ganhar um protagonismo único no concelho de Almada, envolvendo arquitetos e urbanistas de renome que projetam estâncias de férias com hotéis, hipódromos e casinos, das quais se destaca o projeto futurista de Cassiano Branco, datado da década de trinta. Projetos que nunca passaram de ideias e papel, mas que terão alimentado os sonhos de investidores imobiliários que, a partir de 1944, vão adquirir em asta pública os terrenos baldios da Costa que entretanto a Câmara Municipal de Almada alienara ao abrigo da lei dos baldios promulgados em 1940. Surge então o primeiro bairro de moradias, situado a norte da Rua dos Pescadores. Consequentemente, a especulação sobre os terrenos onde originalmente se instalaram os pescadores Ilhavenses e o Bairro Costa Pinto obriga muitas famílias de pescadores a deslocaremse para sul da Rua dos Pescadores, que continua a ser fronteira, mas separando agora os “pescadores” dos “banhistas”. A comunidade piscatória continua maioritariamente a habitar em barracas até à década de cinquenta do século XX, quando se inicia a primeira das três fases de construção do Bairro dos Pescadores da Costa da Caparica, obra pública realizada no âmbito da política corporativa do Estado Novo. Nesse mesmo contexto sociopolítico havia sido inaugurada na Costa, em 1937, a Junta Central da Casa dos Pescadores, obtendo-se assim uma base de apoio ideológico junto da comunidade piscatória local, para a qual foram asseguradas condições de assistência social e médica através da referida Junta, cujas instalações construídas de raiz incluíam, entre outros - 77 -



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serviços, creche e maternidade. Paralelamente, imagens de pescadores e dos barcos Meia-lua ilustram as campanhas de promoção turística da Costa, acentuando o carácter pitoresco da comunidade piscatória em contraste com a população cosmopolita, que em número cada vez maior habita sazonalmente a Costa. Isto reflete-se evidentemente no crescimento urbano que, graças à especulação imobiliária, vai aumentando exponencialmente em área e volumetria aproximandose perigosamente da linha de costa, num processo que se prolonga até finais do século XX. Entretanto, o tecido social da Costa de Caparica continuava em transformação, com a inauguração em 1966 da ponte sobre o Tejo e a abertura da Via Rápida que fazia a ligação rodoviária direta Lisboa – Costa da Caparica. Quebra-se em definitivo o isolamento e ao fim de duas ou três gerações, muitos “banhistas” ficaram depois do Verão terminar. Esta nova comunidade residente, com origens na classe média-alta, que havia adquirido na Costa as casas de praia e segundas habitações, construiu uma identidade social própria, diferenciada da comunidade piscatória mas igualmente separada da população residente no restante território do concelho de Almada, maioritariamente mais desfavorecida. Conclusão Procurando proteger os investimentos urbanísticos avultados já realizados e a realizar, das inundações que esporadicamente o mar provocava ao longo da então criada frente urbana da Costa de Caparica, construiu-se nos anos setenta do século passado sobre a duna primária um paredão com esporões. Todavia, o objetivo de conter a força das ondas não foi alcançado, em vez disso a areia existente foi sendo levada pelo mar sem possibilidade de reposição natural em virtude da destruição do cordão dunar. Apesar disso as intervenções do Programa Polis iniciadas em 2003 na Costa de Caparica concentraram-se no reforço da fronteira que o mar insiste em não respeitar. Ainda assim, a praia é o principal “produto turístico” que a Costa tem para oferecer a quem busca momentos de evasão e lazer junto ao Atlântico e nesse sentido os planos de urbanização e desenvolvimento projetados e executados na Costa de Caparica têm privilegiado o crescimento urbano e o comércio direcionado aos visitantes sazonais. Têm sido em grande medida ignorados os anseios e necessidades da comunidade piscatória que está na origem do povoamento da Costa de Caparica e que tão bem conhece a praia e o mar. Conhecimento feito de experiência: olhando para a Rocha identificaram pormenores e acidentes que no mar serviam de referência para largar a rede, Rocha Alta, Pinheirinho, Rego, por exemplo. Olhando para o mar aprenderam a ultrapassar as fronteiras das ondas adaptando os grandes e pesados Saveiros ao mar da Costa, inventando o Meia-lua, mais pequeno, desenhado para deslizar na areia e “encaixar-se” no recovo das ondas, mas ainda assim demasiado difícil de manobrar e exigindo o esforço de vários remadores. Segundo as indicações dos mestres e arrais foram sendo construídos barcos mais pequenos, porém mais estáveis, versáteis para outras pescas que não a Xávega e possíveis de motorizar. Enfrentando a escassez de braços dispostos ao esforço de alar a rede, partiu do engenho dos mestres da Xávega a adaptação de aladores mecânicos a tratores para puxar as redes que, seguindo os preceitos antigos foram também adaptadas à nova forma de alar.

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Na Costa de Caparica, elevada à categoria de cidade em 2004, a pesca tradicional em geral e a Arte Xávega em particular, pois esteve na sua génese, continuam a alimentar muitos pescadores e suas famílias, e a abastecer muitos mais consumidores dentro e fora das fronteiras nacionais. Para outros, com a falta emprego, a Xávega é uma safa, sem esquecer os “barraqueiros” que continuam a habitar os alvéolos das companhas. Apesar de se pescar com menos esforço físico, os riscos são vários e o trabalho é duro no mar e em terra. As fronteiras existem: umas físicas, outras legais e outras mentais. A Costa de Caparica é a última fronteira, depois dela só o Oceano serve de passagem para qualquer outro lugar. É a derradeira terra e o imenso mar que inexoravelmente marca o limite e a fronteira. A fronteira é também lugar de evasão, é também lugar de refúgio. Assim foram e assim são as praias da Costa. Lugar habitado por quem se esconde, por quem foge, por quem se encontra. E quem lá chega e quem lá fica e quem lá vai, vai em busca da fronteira, à procura do fim do mundo.

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Ilustração de Gonçalo, 6 anos

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DA ETNOGRAFIA À ETNOGRAFIA CRÍTICA: MOVIMENTOS EMANCIPATÓRIOS NA CONSTRUÇÃO DE COMUNIDADES Isabel Freire Uma visão crítica da investigação e da educação Transformação, emancipação, participação e comunidade são alguns dos conceitos estruturantes do projeto Fronteiras Urbanas. Levá-los à prática foi um desafio constante, quer para os coletivos que nele participaram quer para cada participante individualmente. Na minha já longa experiência como investigadora tenho desenvolvido investigação orientada segundo diferentes paradigmas e procuro fazê-lo sempre com o máximo rigor, sabendo que a sua tradução na prática investigativa se concretiza de modos diversos consoante nos colocamos num ou noutro paradigma. Se no paradigma hipotético-dedutivo, o rigor se espelha nos procedimentos de construção de instrumentos e nos processos de investigação, suportados por padrões clássicos de validade e fiabilidade, já no paradigma interpretativo ou construtivista, o rigor coloca-se na capacidade do investigador ser fiel ao pensamento dos sujeitos que participam na investigação, introduzindo-se o conceito de confiabilidade, associada ao valor da intersubjetividade36. Há assim uma mudança na conceção da realidade social e dos sujeitos que nela participam, que se projeta na ontologia e na epistemologia destes paradigmas (Denzin & Lincoln, 2003)37. No quadro do paradigma positivista a realidade social é exterior aos sujeitos e, por isso, objetiva, descritível e previsível, e isso exige uma postura distanciada e neutra do investigador. Já no quadro do paradigma interpretativo ou fenomenológico os fenómenos sociais são vistos como resultados de um sistema complexo de interações dos sujeitos entre si e com o mundo. Para os compreender, o investigador precisa de apreender as perspetivas dos sujeitos que neles participam e os significados que lhes atribuem, e o investigador e o investigado passam a situar-se no mesmo território. A orientação segundo o paradigma sociocrítico introduz a questão da utilidade da investigação no centro da mesma, não negligenciando a necessidade de conhecer e interpretar a realidade. O objetivo aqui é a transformação dessa realidade, com a participação ativa dos sujeitos, visando a sua transformação e emancipação. Não negligenciando que toda a investigação exige uma postura ética, o enquadramento no paradigma sociocrítico leva mais além essa exigência, pois requer uma rigorosa postura ética e política que visa favorecer as mudanças sociais, alterar as relações de poder, através de processos contínuos de co-participação. É neste campo ético e político que se colocam, ao investigador, os principais desafios, dilemas e exigências, especialmente quando trabalha com populações marginalizadas, discriminadas e tornadas invisíveis. O rigor ético é uma

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Guba, E. & Lincoln, Y. (1994). Competing paradigms in qualitative research. In N.K. Denzin & Y.

Lincoln (eds.), Handbook of qualitative research (105-117). Thousand Oaks, Sage Publications. 37

Denzin, N. K. & Lincoln, Y. S. (2003). Handbook of Qualitative Research. Toasand Oaks: Sage

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questão central. Qualquer desvio pode comprometer todo o processo e redundar no acentuar das situações de desfavorecimento daqueles que são mais vulneráveis, muitas vezes desprovidos dos direitos básicos e vivendo situações degradantes. Esta postura epistemológica, eticamente comprometida com o bem comum, foi aquela em que todo o processo de conceção e desenvolvimento do projeto Fronteiras Urbanas se alicerçou. Efetivamente no projeto Fronteiras Urbanas a palavra “crítico” congrega muitas das opções que fomos tomando neste processo intimamente vivido e partilhado pelas três comunidades participantes (comunidade do Bairro, comunidade piscatória e comunidade académica) ao longo de dois anos. No campo teórico-político-epistemológico apoiamo-nos na teoria crítica de Habermas (1999)38. Teoria que remete para uma visão das relações humanas e da ética, em que a comunicação está no âmago da construção de um universalismo que se funda na intercompreensão e no diálogo (Russ & Leguil, 2012)39. No campo pedagógico, o pensamento e o método de alfabetização crítica de Paulo Freire (1980)40 e o conceito de curriculum trivium de D’Ambrósio (2009)41 foram dois faróis na busca do caminho da conscientização de todos os participantes, desde os membros das comunidades locais aos da académica, num percurso em que todos fomos educadores e educandos (Freire, Caetano & Mesquita, no prelo) 42. No campo metodológico, a etnografia crítica é a ferramenta que liga a teoria crítica, a investigação empírica e a participação política, constituindo-se ela própria como uma estratégia e um meio para empoderar, conscientizar e projetar a voz dos membros das comunidades. Sendo a etnografia o método integrador, não se privilegiaram métodos ou técnicas específicos, a preocupação central foi a de projetar a voz dos membros das comunidades locais, conferindo-lhes estatuto de colaboradores e de co-autores dos processos e dos resultados da própria investigação, incluindo o texto final. Da etnografia tradicional à etnografia crítica A etnografia interessa-se pelo local, pelo específico, pela natureza de um determinado fenómeno cultural. O investigador formula um determinado problema de investigação sobre algum aspeto da cultura que pretende estudar, seleciona determinado contexto de investigação, desenvolve contactos para aceder ao campo de estudo e define os procedimentos de recolha e análise de dados,

38

Habermas, J. (1999). La inclusión del otro. Estudios de teoría política. Barcelona: Paidós.

39

Russ, J. & Leguil, C. (2012-4ième ed.). La pensée éhtique contemporaine. Paris: PUF.

40

Freire, P. (1980 - 10ª ed). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

41

D’Ambrosio, U. (2009). Transdisciplinaridade. São Paulo: Ed. Palas Athena.

42

Freire, I., Caetano, A. P. & Mesquita, M. (no prelo). Curriculum Trivium, dialogue interculturel et citoyenneté. Une ethnographie critique d'un projet d'éducation communautaire. In Olivier Meinier (org.).Cultures, éducation, identité : recompositions socioculturelles, transculturalité et interculturalité. Artois Presse Université, Collection Education et formation.

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que implementa num processo interativo entre estas duas dimensões do processo investigativo. Através do processo de investigação, o etnógrafo visa a compreensão do fenómeno, num vaivém permanente entre a estranheza e a familiarização com o mesmo, entre a implicação e o distanciamento. Observa o fenómeno cultural que pretende estudar a partir da perspetiva do outsider que pretende tornar familiar o que lhe é estranho, daí a sua implicação como sujeito social que participa na vida de um determinado grupo ou comunidade, captando assim a perspetiva daqueles que aí vivem quotidianamente (insiders). O cruzamento das diferentes perspetivas e a teorização exige um distanciamento epistemológico. A investigação etnográfica clássica valoriza o sujeito epistémico como construtor do conhecimento, participando em processos de partilha e de negociação de significados confinados a uma determinada historicidade. A técnica privilegiada para desenvolver estes processos é a observação participante, que inclui o uso de notas de campo, de entrevistas informais e formais ou a recolha de artefactos. Trata-se, assim, de uma abordagem investigativa cujo objetivo principal é a compreensão de uma determinada realidade social e cultural, mantendo-a intacta. Em contraposição à visão positivista de verdade (como representação ou reflexo do mundo, um mundo exterior aos sujeitos), as abordagens qualitativas, mormente as etnográficas, trazem um outro conceito de verdade - uma verdade intersubjetiva (como construção reflexiva dos sujeitos participantes nos fenómenos sociais e culturais), não pondo em causa a busca de uma correspondência entre o objeto estudado e a teoria que se constrói (Denzin & Lincoln, 2003)43. A transposição da teoria crítica e do pensamento complexo para o campo da investigação empírica, nomeadamente em educação, conduz à passagem de uma tentativa de interpretação da realidade social e cultural, para uma outra cuja intenção é a de transformação dessa mesma realidade. Na teoria crítica e na linha de investigação dos estudos culturais, autores como Habermas, Adorno, Marcuse ou mais recentemente MacLaren, Kincheloe ou Paulo Freire retomam a leitura ideológica das sociedades capitalistas de Karl Marx (ver Amado, 201344), que sublinha a existência de grupos sociais e culturais privilegiados que oprimem os outros grupos culturais, perpetuando um processo de hegemonia, que decorre da internalização da opressão por parte dos oprimidos (Gall, Gall & Borg, 200745). A aceitação tácita dos padrões preexistentes de desigualdade cultural por parte dos novos membros de uma cultura gera processos de reprodução da opressão, que sustentam essa hegemonia. Daí a importância da educação na desconstrução desta realidade. Questionamento e desconstrução são palavras-chave de uma educação anti-opressiva e também da investigação que deve, ela própria, ser promotora dessa educação. Investigação politicamente comprometida nas mudanças sociais que é necessário e urgente fazer. O conhecimento deve usar-se para desmascarar as ideologias de opressão e de dominação que se vivem, através de uma práxis na qual investigadores e atores do terreno estão comprometidos colaborativamente. Uma práxis que

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Denzin, N. K. & Lincoln, Y. S. (2003). Handbook of Qualitative Research. Toasand Oaks: Sage Publications.

44

Amado, J. (2013). Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Imprensa da Universidade

de Coimbra. 45

Gall, M. D., Gall, J. P. & Borg, W. R. (2007-8th ed.). Educational Research. An Introduction. Boston:

Pearson International Edition. - 83 -



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corresponde a uma ação conjunta sobre a realidade social e cultural que é simultaneamente transformadora dessa realidade e do que pensamos sobre ela. Seguindo esta linha de ação e investigação, no projeto Fronteiras Urbanas apoiamo-nos metodologicamente na abordagem da etnografia crítica (Gérin-Lajoie, 200946; Thomas, 199347), que utiliza os procedimentos e técnicas da etnografia clássica visando, contudo, envolver os membros das comunidades em processos de mudança intencionais, para os quais a etnografia concorre proporcionando informação e visão crítica. As análises e interpretações, apoiam-se nas múltiplas notas de campo, fotografias, videogravações, artefactos e documentos produzidos ao longo de todo o processo e também entrevistas de focus group realizadas com mulheres participantes na escola de alfabetização crítica da comunidade Bairro, entrevista de aprofundamento à investigadora responsável pelo projeto, biografias e narrativas de líderes e outros membros das comunidades. (Re)construindo comunidades – educação e emancipação O conceito de comunidade, assente na partilha de significados, torna-se cada vez mais relevante para a compreensão e desenvolvimento das sociedades humanas e, consequentemente, ele deve ser central na educação atual. Pertencer a uma comunidade gera sentimentos de proteção e segurança, permite resgatar a dimensão coletiva do ser humano e restituir a dignidade individual e coletiva muitas vezes perdida (Silva, 200148). Por isso, a educação comunitária é uma questão crucial em todas as sociedades humanas e com maior ênfase nos territórios de exclusão social, como é o caso das comunidades locais que integraram o projeto. “A ideia de comunidade contempla esse movimento expressivo da pessoa que se reconhece como ser-com-os-outros.” (Sousa, 2010, p.20 49 ). Como diz a autora, trabalhar no sentido do desenvolvimento das comunidades, com as comunidades, significa elevar a sociedade ao plano ético, como uma comunidade de homens livres cuja relação intersubjetiva seja regida pelo direito de cada um ter a sua dignidade pessoal reconhecida e de participar na construção do consenso em torno do bem comum. Entendemos aqui a experiência comunitária como a tradução de um processo de reconhecimento coletivo, que se expressa através das múltiplas formas de comunicação e de expressão de intersubjetividades entre seres humanos que se acolhem reciprocamente, num movimento de construção da pessoa humana através da dialética identidade-alteridade. Experiência que se revela num movimento que entrelaça individualidades e coletividades e que se desloca do Eu-Outro para

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Gérin-Lajoie, D. (2009). A aplicação da Etnografia Crítica nas Relações de Poder, Revista Lusófona de

Educação, 14, 13-27. 47

Thomas, J. (1993). Doing Critical Ethnography. California: Sage Pub. Co.

48

Silva, R. B. (2001). Educação Comunitária: Além do Estado e do Mercado?, Cadernos de Pesquisa, nº 112,

março, 85-97. 49

Sousa, M. C. (2010). O conceito de Comunidade segundo Lima Vaz. Theoria-Revista Electrônica de

Filosofia. Edição 05, 17-33. - 84 -



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o Eu-Nós, ou seja, de processos de sociabilidade para a convivência comum. A palavra é o principal mediador deste processo de construção das comunidades através do diálogo e da participação. Palavra que se mistura com múltiplas outras formas de comunicação (gestos, expressões preformativas, expressões artísticas plásticas, etc) que dão corpo a esse processo de reconhecimento do outro e de encontro do eu com o nós. Através da criação da escola de alfabetização crítica e de outros fóruns educativos pretendemos promover uma educação situacional, crítica e libertadora, orientada para a formação de sujeitos com consciência crítica e sentido de cidadania. Educação comunitária que é geradora de interculturalidade. Neste quadro educativo, os processos de participação cidadã facilitam a construção de uma identidade comum fundamental sem se renunciar à legítima diversidade. Nesta busca de superação dos contrários, a favor de uma sociedade intercultural, comungamos o pensamento de Gimenez Romero (2010)50 quando sublinha a necessidade de incorporar na ação educativa a ideia de que «as pessoas, independentemente da sua identidade e pertença cultural próprias, têm muito em comum, em matéria de direitos fundamentais, desenvolvimento económico, inserção laboral digna, bem-estar social, qualidade de vida, vida local, necessidade de participação, etc» (p. 80). Este quadro de convergência favorece a ênfase numa identidade cívica (que fomenta a coesão), que não se opõe à identidade cultural. Pelo contrário, complementam-se na construção de uma sociedade de unidade na diversidade, consolidada a partir do potencial educativo que têm os contextos de convivência. Prosseguimos assim uma abordagem multidimensional e multirreferencial da educação, na qual todos fomos educadores e educandos. Foi neste contexto que se articularam os processos educativos promovidos de forma sistemática e intencional na escola de alfabetização com vista ao desenvolvimento da literacia crítica, com os processos de investigação participada que se desenvolveram por exemplo no âmbito da cartografia múltipla, ou os processos de participação e ação política que conduziu à eleição da comissão de moradores e mais tarde à construção da Cozinha Comunitária (ainda em curso). A educação constituiu um elemento catalisador dos processos políticos e emancipatórios, culturais e interculturais das comunidades que prosseguem até hoje, com todas as vicissitudes e até mesmo contradições próprias de processos com a complexidade que lhe é inerente. Algumas reflexões sobre os processos de mediação comunitária A mediação foi a dimensão do projeto em que mais me foquei. Partimos de uma conceção ampla de mediação, que está para além do conceito de mediação de conflitos, embora o integre, ou seja, entendemos a mediação como um espaço de encontro e de promoção de dinâmicas de participação cidadã em que as pessoas que vivem em situação de exclusão e de flagrante injustiça social são coletivamente construtoras das soluções para os seus problemas (Freire & Caetano, 2014 51 ;

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Giménez Romero, C. (2010). Interculturalidade e Mediação. Lisboa: ACIDI, IP.

51

Freire, I. & Caetano, A. P. (2014). Mediação em contexto comunitário. Etnografia crítica de um caso. La

Trama - Revista interdisciplinaria de mediación y resolución de conflictos, 1-12. - 85 -



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Gimenez, 201052 ). Assim, a mediação foi interpretada e posta em prática segundo uma visão abrangente e transversal a todas as dinâmicas, quer no campo da alfabetização (aos mais diversos níveis; linguístico e intercultural, por exemplo), quer nas dinâmicas políticas de criação da comissão de moradores, de ligação com as autarquias ou com as autoridades locais, de ligação entre a educação informal e formal…. Não foi nossa intenção criar quaisquer dispositivos de mediação estruturados à partida. Assumimos a opção por uma mediação informal, na qual se desenvolveram complementaridades entre os mediadores locais e os mediadores académicos (Freire & Caetano, 2014), tomando sempre como sentido a promoção da comunicação, da participação e do diálogo, particularmente em situações onde aquela estava dificultada e/ou os direitos humanos estavam em causa. As dinâmicas de participação dos membros das comunidades constituíram experiências de construção de democracia interna, orientadas para a defesa dos direitos das comunidades, e verdadeiros reencontros culturais, que fortaleceram os laços entre diferentes grupos e reforçaram o sentido de comunidade. As palavras de uma moradora, ditas em Kriolo numa entrevista de focus group, são bem elucidativas: «o bairro fica mais melhorinho … o bairro estava mais nhagacido, o bairro fica muito perfeito, mais compassada .... stá nha nosso escola, tem batuko, brincadera, meu coração fica alegria fica sabe e bairro fica muito compassade, muito dreitinho, sossegadinho e fica muito contente, o bairro tava nhagacido. Antes eu fica na casa muito sozinho, triste, mas depois de escola ali, batuko tá ali meu coração tá alegre.» (Dona Aline, moradora no Bairro, membro da Escola de Alfabetização Crítica)53

A nível pessoal, foram processos de fortalecimento da autoestima e da imagem social perante o outro, nos quais a identidade individual saiu fortalecida e com maior confiança na circulação e participação em contextos sociais mais amplos e culturalmente dominantes, que se traduziu por exemplo na participação em fóruns científicos, culturais e sociais em locais fora das comunidades locais. A nível relacional, as dinâmicas contribuíram para a transformação das relações e superação de conflitos internos pontuais, vividos no grupo de alfabetização e nas relações de vizinhança, e para a aproximação e comprometimento de membros da comunidade, antes separados na luta pelos seus interesses particulares, que se agregaram na busca do bem comum. A nível coletivo, geraram-se dinâmicas de participação com vista à pacificação e à criação e reforço de sentimentos de segurança e de confiança, num processo que evoluiu para dinâmicas de interculturalidade e uma visão cada vez mais transcultural das relações humanas. Observou-se uma maior aproximação entre as duas comunidades locais, e entre estas e a comunidade mais

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Giménez Romero, C. (2010). Interculturalidade e Mediação. Lisboa: ACIDI, IP.

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Tradução em português : “o bairro agora está muito melhor do que antes, porque antes o bairro era desorganizado e agora está perfeito, está mais completo, com sintonia... com as aulas de alfabetizaçao, batuque e as brincadeiras, os nossos corações ficam cheios de alegria e no bairro ficou tudo em sintonia, sossegadinho e mais alegre. Antes o bairro era muito sem graça, desorganizado... antes eu ficava em casa sozinha e triste, mas desde que comecei as aulas de alfabetização e o batuque o coração enche-se de alegria..” - 86 -



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alargada em que se implantam. Estes processos vieram dar visibilidade às comunidades locais do projeto, particularmente através da sua participação em fóruns locais e das reivindicações que levaram junto das autarquias, levantando a voz em defesa dos seus direitos como cidadãos, através dos líderes das duas comunidades. Considerações finais O percurso de investigação e de ação crítica foi alimentado por uma vontade comum de derrubar as fronteiras que separam os seres humanos, fronteiras que tornam os mais fracos invisíveis e também, por isso, sujeitos a situações degradantes de ausência dos direitos mais básicos de sobrevivência (como o direito à água, numa das comunidade locais, ou o direito ao sustento através da pesca, na outra), ou o direito a viver em paz, sem violência de qualquer espécie. A educação e a investigação têm um contributo inestimável a dar no combate aos fatalismos que destroem a esperança de cada homem e de cada mulher, que destroem a esperança de gerações e gerações (particularmente das mais jovens), que destroem a esperança da humanidade. A investigação, concebida como um processo dialético em que educadores, educandos e investigadores contribuem para a teorização sustentada numa ligação estreita à prática, pode ser revitalizadora da esperança e fundamento da construção de novas políticas e práticas locais e globais. O projeto Fronteiras Urbanas visou colocar em diálogo estreito a comunidade académica e as comunidades locais, pondo a ciência ao serviço do desenvolvimento local e da construção da cidadania com populações politicamente excluídas, assumindo com elas um compromisso ético e político.

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Ilustração de João Moreira

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EM TORNO DO CONCEITO DE ESPAÇO URBANO José Pedro Martins Barata Assumindo que há ainda muito trabalho de conceptualização a fazer neste arranque do “Fronteiras Urbanas”, venho propor ao exame da equipe um certo número de reflexões que, por razões profissionais fui tendo que produzir e que sob formas diferentes vim a utilizar em situações académicas em docências no IST, na U. Nova e na U. Católica. É apenas uma série de aspectos desenvolvidos de forma um bocado improvisada e sem nenhum daqueles preparos científicos exigíveis (citações, referências, bibliografias, etc.) que neste caso não interessam nada visto que o que é importante é pôr em jogo ideias que possam ser estimulantes e eventualmente utilizáveis. Servem para o que servirem, se servirem… A noção de “espaço urbano”, que muitas vezes usamos quase sem mesmo nos preocuparmos com interrogar o que está por trás do seu significado, esconde frequentemente uma outra despreocupação com a atenção a dar à própria e inicial noção de “espaço”. Alguma atenção que tenho dado aos aspectos dos conteúdos destas noções é o que nesta altura quero partilhar com a equipe FU, ainda que sejam pouco sistematizados e ordenados. São aspectos de diversos pontos de vista, de diversas abordagens, diversos níveis epistémicos, diversos valores e pistas para um entendimento alargado do pano de fundo sobre o qual se estabelecem as relações humanas e as estruturas sociais. Assim, deve começar-se por procurar entender de que se fala quando se fala de “espaço”, para entender melhor de que se trata quando se fala de “espaço urbano”. 1 – ESPAÇO? O QUÊ? Deixe-se aqui para outros a inquirição profunda, ontológica e lógica, acerca do que são realmente os indefiníveis Espaço e Tempo. Importa-nos mais ser capazes de abordar e operar com conceitos, com lógicas, com percepções e com relações bem mais próximas dentro do nosso horizonte concreto de vida, das nossas possibilidades de raciocínio e das capacidades de transmitir e manejar conhecimento. Adiante. O mais impressionante para quem aborda o exame da ideia de “espaço” e dos seus aspectos a inquirir é a variedade, níveis e riqueza de possibilidades de entendimento que estão cobertas pela palavra “espaço”. Vou apresentar algumas que me ocorrem, mas com uma intenção declarada desde já: mostrar que qualquer intenção de fixar definições e simplificações em torno do uso da palavra “espaço” é vã, e pior ainda, se se limitar a uma aceitação primária, suficiente e não reflectida do senso corrente. Mas é justamente pela recusa da pobreza da atitude que se afirma nada interessada em ir além do senso comum, ingénuo e suficiente para o quotidiano que convém partir para esta visita de exploração a lugares menos evidentes:

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a) - O ESPAÇO COMO SUPORTE DE METÁFORAS Reparam as pessoas que acham que a simples experiência corrente do familiar espaço euclidiano tridimensional (“o espaço é aquilo onde estão as coisas!”, “o espaço é por onde andamos”, “o espaço está lá, e pronto! Para quê perder tempo com interrogações que não levam a nada?”, etc.) que estão a usar constantemente expressões baseadas na espacialidade mas que não tem nada a ver com aquela atitude simplista? Que dizer coisas como: “ não há já espaço para outro partido na política nacional.”; “Não limites a criatividade do teu filho, dá-lhe espaço para desenvolver a sua personalidade!”, “o poeta habita os espaços infinitos da imaginação”, etc. significa que, mesmo sem explicitar, se assume que a ideia de espaço é bem mais vasta do que a visão ingénua e simplista, tomada como “natural”, implica. b) – A ESPACIALIDADE ÍNSITA NA LINGUAGEM No uso diário da nossa linguagem nem damos naturalmente conta que a linguagem, pelo menos a linguagem do grupo linguístico ao qual pertencemos, está indissoluvelmente, intrincadamente, carregada de espacialidade. E não se trata de ser possível nela abordar conceitos relacionados com o espaço, mas sim de perceber que está na estrutura da própria linguagem a presença da ideia de “espaço”. Pense-se em como seria inconcebível no nosso enquadramento relacional estabelecer uma comunicação minimamente eficaz sem recorrer à grande série de preposições gramaticais de conteúdo essencialmente espacial, e que entre nós, inevitavelmente, são de raiz greco-latina. Como estabelecer uma comunicação interpessoal viável sem recorrer a preposições tais como “epi (supra)” = em cima de, “infra (sob)” = sob; “peri (circum) = em torno de; “endo (intra) = dentro de; “para (circa) = próximo de, “para (pro) = diante de, etc. etc.? As flexões verbais e as preposições de carácter temporal (antes de, depois de, etc.) permitem a expressão da temporalidade, mas esquecemo-nos frequentemente dos vocábulos que transportam em si a noção de “espaço”. c) – O ESPAÇO PORTADOR DE SIGNIFICADOS PRÓPRIOS Os mitos de conteúdo espacial Em todas as culturas e tempos históricos, o “mito” tem a função de figurar e pôr em evidência valores, memórias e aspirações dos povos, através de narrativas fantasiadas ou adaptadas de origens mais ou menos obscuras. Interessam para nós sobretudo elementos e figuras cuja presença se encontra no fundo cultural de origem greco-latina, ainda que outras mitologias nomeadamente egípcias e asiáticas comportem pistas para o entendimento do fundo espacial. Mas da mitologia grega sobressaem duas figuras que, de entre as múltiplas figuras da narrativa, são explicitamente portadoras de significados espaciais: Hestia (ou Vesta, na versão latina), e Hermes (ou Mercúrio, na versão latina). Hestia é a deusa do lar, a guardiã do fogo, a que não sai de casa, que se mantém virgem e assegura a estabilidade da família e da própria cidade (sendo então Hestia “Koyné” a do acolhimento e abrigo dos estrangeiros). - 90 -



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Hermes é o deus tutelar dos viajantes, dos aventureiros, dos comerciantes e até dos ladrões! Significativamente, nem lhe são consagrados templos; são lhe consagrados apenas os cruzamentos dos caminhos e até, às portas da cidade tinha um campo aberto, sem limites e conservado ritualmente inculto (o campo da Boulymos ou o campo da Fome!) … Ora bem! Para os gregos, estes mitos definiam dois tipos de espaços com significados complementares: os espaços consagrados a Hestia eram considerados espaços femininos, e os espaços relacionados com Hermes eram espaços masculinos, mas atenção! eram-no ritualmente e dessa atitude ritualizada decorria o seu carácter de entendimento espacial. Aos espaços “femininos” (côncavos, circunscritos, estáveis, limitados – na casa, na cidade…) contrapunhamse os espaços abertos ilimitados, convexos. Se aos espaços “femininos” estavam associadas os significados de permanência, acolhimento e segurança, aos espaços convexos estavam associadas os significados de incerteza, perigo, viagem... Como não entender os significados destes espaços à nossa volta, ou no nosso ambiente urbano? Como não entender que, por exemplo, numa qualquer pequena vila do Alentejo ou do Algarve o largo principal onde estão as lojas, os serviços administrativos, a igreja, etc. é o espaço de Hestia Koyné, é um espaço “feminino”, e que o campo da feira às portas da vila, conservado inculto e sem limites, é o lugar da passagem temporária, da aventura e da instabilidade é o campo da Boulymos, é um espaço “masculino”, por onde perpassa Hermes – e até possivelmente os ladrões que tutela… Ignorar ou rejeitar a presença do mito nos comportamentos sociais e pessoais quer na análise dos espaços públicos quer no planeamento e na composição dos dispositivos urbanísticos leva a resultados com consequências graves mas quase sempre esquecidas. Voltarei a este tema mais adiante, na reflexão sobre o “Espaço Urbano” A percepção do significado do espaço através da dinâmica da forma Esta expressão que estou a usar aqui é conscientemente aplicada de forma bastante livre e muito discutível quanto ao seu rigor formal. Uso-a apenas para abordar dois conceitos matemáticos diferentes, ambos com formulações e rigorosas mas cujo rigor interessará a especialistas mas que para o que quero sugerir é suficientemente simplificado e acessível. Chame-se um espaço fibrado a um espaço em que se pode constituir e definir pela sua decomposição em “fibras” paralelas; para visualizar o sentido do significado “ingénuo” de espaço fibrado pense-se, por exemplo, nas fibras de uma palha ou nas da madeira ou num feixe de canas – um plano que corte uma delas, corta todas! Chame-se um espaço caótico a um espaço no qual não se pode reconhecer uma direcção intrinsecamente privilegiada. (Dizer que um espaço caótico é um espaço não de Hausdorff que admite uma topologia sobre X tal que apenas X e o conjunto vazio são tomados como abertos, pode ser uma coisa familiar a um matemático mas para o nosso entendimento “à paisana” essa definição não serve para nada…). Para transmitir a ideia de modo a que seja possível visualizar esse espaço mais vale uma apresentação figurada, tosca, realista mas suficiente - e os matemáticos - 91 -



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que me desculpem. Olhe-se para o hall de uma estação de c. de ferro ou de um aeroporto com muitas portas, muitos balcões de atendimento, muitas lojas, etc. e siga-se, por exemplo, fotograficamente, durante um certo tempo, o movimento de vários utilizadores individuais; os seus trajectos revelam que ainda que alguns sejam mais frequentes, p.exº junto às bilheteiras, podem percorrer toda a extensão daquele espaço. A arena duma praça de touros, o campo duma feira, um ringue de patinagem podem figurar espaços “caóticos”. Já um túnel, uma grande avenida, uma azinhaga entre dois muros etc. são apercebidos por quem se desloque neles com espaços “fibrados”; sente-se que há neles uma direcção privilegiada, uma orientação não impositiva mas fortemente sugerida. Não é impossível fugir voluntariamente à sua determinação sensorial; mas a sua presença é inegavelmente fortíssima. Quem atravessa conscientemente, em qualquer lado, uma avenida com intenso trânsito automóvel? Para permitir atravessar com segurança a avenida, existem dispositivos que suspendem temporariamente o carácter “fibrado” daquele espaço”: semáforos, passadeiras, passagens subterrâneas… Ora no espaço urbano ou até no espaço doméstico pode dizer-se que os espaços caóticos são tendencialmente procurados, ou mesmo vocacionados para a “permanência”, para o estar ou para o encontrar (a sala, a praça, o largo…) e os espaços fibrados são tendencialmente reconhecíveis como espaços de movimento ou de passagem (corredor, rua, canal, túnel, a galeria numa mina…). Importa reconhecer estes significados e utilizá-los, quer na composição e definição arquitectónica e urbanística do espaço quer na sua interpretação e leitura em termos psicológicos. Alguns aspectos místicos da consideração do espaço A fronteira entre o fundo espacial das místicas associadas à maior parte das religiões e as expressões de âmbito espacial nas mitologias é, para dizer pelo menos, difusa, heteróclita e flutuante. Não é oportuna aqui a exploração da presença de expressões com base espacial nas formulações de carácter místico ou esotérico na sua grande variedade de formas; basta evocar a frequência com que aparecem palavras significantes de “elevação”, “aproximação”, “hipóstase”, “infinito” e “ilimitado”, etc. para se entender tal presença, carregada de sentidos mesmo quando estes escapam à definição e racionalização. A figuração da experiência visual do espaço A perspectiva geométrica como representação do espaço está associada à evolução da matemática Renascentista, sobretudo com o seu desenvolvimento por Brunelleschi, numa visão própria da sua prática de arquitecto. Essa perspectiva tornou-se através dos séculos, por assim dizer, um “standard” dum modo prático de representar o espaço da experiência quotidiana. Nesta, a observação de que rectas paralelas (p.exº uma estrada longa e direita, ou a base horizontal dum edifício em conjunto com o seu coroamento) parecem convergir num ponto do horizonte (o “ponto de fuga”…), serviu, e serve, como meio corrente da representação do espaço p.exº na pintura, complementando a “perspectiva aérea” (a atenuação da definição dos objectos e das cores resultante da distância). A fotografia, na prática corrente e dentro de certos limites, confirma essa experiência de modo suficiente.

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Porém, uma consideração de carácter mais filosófico que puramente matemático veio a interrogar esta situação e a pôr em evidência a necessidade de encontrar uma justificação para uma aparente contradição: se a cada ponto de uma recta real no familiar espaço euclidiano, se fizer corresponder um ponto da recta perspectivada que converge num ponto do horizonte, então está-se a afirmar que o infinito (na própria definição da recta) é “finito” … A questão agitou o séc. XVII, sem solução, até que um matemático, Desargues, inventou uma geometria que abria uma porta para o fundamental avanço dum matemático napoleónico, Poncelet, que, desenvolveu uma geometria dita “projectiva”, algo estranha para a época, em que as linhas rectas passaram a ser arcos de curva indo dum ponto a outro do horizonte, dentro do plano horizontal. A geometria “projectiva” veio a estar na base da criação de outras geometrias com propriedades e métricas bem mais poderosas para a construção do conhecimento do espaço, por figuras como Riemann, Lobactchewski, Bolyai e Poincaré; as geometrias “não euclidianas”, etc. Deixe-se isso para os especialistas. Importa é perceber que o que estas geometrias “não euclidianas” vieram trazer ao nosso entendimento prático do espaço, foi a aceitação forçosa mas nem sempre bem recebida de uma realidade pouco evidente sem um esforço mental – a de que o nosso espaço tal como o apercebemos, é na realidade “hiperbólico”… Mas deixemos essa dificuldade, inclusivamente a de estudar o que se entende por “hiperbólico” neste caso, para os especialistas interessados. Observe-se um avião a jacto que sabemos que voa em linha recta, vindo de um ponto no horizonte até desaparecer noutro ponto do horizonte: do nosso ponto de vista, ele descreve um magnífico arco na abóbada celeste! E se viajarmos num navio numa rota fixa, no alto mar, ainda que tenhamos a percepção do movimento e da esteira que o navio deixa sobre as águas e virmos bóias e pequenos barcos que parecem ir ficando lá para trás, sentimos que nos mantemos no centro da circunferência do horizonte que nos é possível abarcar… Esta construção aparentemente estranha mas bem realista do espaço hiperbólico não deve ser confundida com os espaços com mais dimensões que as do espaço vulgar, euclidiano, da nossa experiência directa: não se trata aqui dos espaços teóricos multidimensionais em que se fundam os desenvolvimentos teóricos na Física, na Cosmologia e nas Topologias. A apreensão psicológica do espaço Para compreender a riqueza da noção de “espaço” e das suas variadíssimas formas é necessário ir mais longe que os aspectos objectiváveis através das suas representações tais como as que se leram mais acima. a)

O sentido “logarítmico” da distância

T. Hagerstrand, um geógrafo sueco da escola de Lund desenvolveu a ideia de que, ao construirmos o mapa mental do mundo à nossa volta fazemo-lo utilizando uma peculiar métrica na qual a distância aos pontos que nos estão fisicamente mais próximos é razoavelmente representada mas com o progressivo afastamento se vai comprimindo progressivamente, de forma logarítmica. Assim, por exemplo, se eu me representar mentalmente a distância entre o meu bairro e as Avenidas Novas, não tenho grande dificuldade em imaginar ou criar uma representação mental - 93 -



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dessa distância; se eu pensar agora na distância até Santarém, ainda que eu tenha o conhecimento que possuo da dimensão real dessa distância, ela não me aparece no mapa mental de modo proporcional; se eu me representar mentalmente a distância, pexº. a Berlim talvez não me apareça muito maior que a Madrid, e se eu pensar em Moscovo, pexº.- é apenas um pouco mais distante, algures para aquele lado; e Vladivostok não está já senão praticamente lá para o fim vago do continente asiático, não muito mais longe que Moscovo… A peculiar visão “logarítmica” do espaço tem particular interesse se se considerarem certos aspectos da imaginação das distâncias sobretudo por parte de expatriados ou migrantes, mas também são o pano de fundo da apreensão das distâncias por parte das pessoas comuns. Alunos meus, de um curso na E.S. de Comunicação Social, fizeram a seguinte experiência (sem envolver qualquer método ou preocupação científica no intuito de provar a teoria e apenas observar o “sentido” da sua consistência): durante vários dias, munidos de folhas A4, interpelaram pessoas na rua, nos cafés ou lugares de trabalho e de diferentes profissões, idades e origens, pedindo-lhes que desenhassem um mapamundo sem recorrer a quaisquer fontes de informação nem reflectirem longamente. Os resultados de algumas dezenas de respostas foram reveladores e sugestivos, mesmo valendo apenas o que valem – as pessoas representaram com bastante verosimilhança zonas próximas da sua origem ou situação geográfica, mas deformavam e misturavam as figuras representando os lugares mais distantes! Um comerciante malaio fazia uma imagem razoavelmente decente do Sueste asiático mas fundia as ilhas britânicas com o que poderia ser o Canadá; um estudante mexicano desenhou umas boas Caraíbas, mas inventou uma Itália que saía dum Mediterrâneo pela India; Um cabeleireiro inglês situou o Brasil, a Argentina e o México numa única massa vagamente a sul da América do Norte, mas separada por um mar indefinido, etc. A lição foi claramente apreendida: a concepção das distâncias não é semelhante nem sobreponível à realidade física objectivamente mensurável e cartografável, e isso deve ser tido em conta em vários aspectos da observação sociológica, e também nas intervenções de planeamento. Não parece dever ignorar-se esta condição perante situações que impliquem relações de mudança de lugar tais como as situações de emigração e imigração. Muito do que se escreve e estuda em termos mais ou menos literários ou psicológicos quanto à “saudade” ou outras formas de sentimento do afastamento do lugar familiar ou original deveria talvez ser interpretado também em termos das condições introduzidas pela distância mentalmente “construída”… b)

Os sentidos “sensoriais” do espaço

Não parece haver outra maneira de nos relacionarmos com o espaço circundante, o lado físico do “Lebensraum”, o espaço da vida quotidiana, sem ser através dos sentidos e desses não é apenas a visão que nos permite aquela relação:

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O sentimento “muscular” do espaço Não é necessária muita elaboração para assinalar o que cada um de nós sabe sem precisar de explicação: subir uma rampa íngreme ou escalar uma montanha ou andar por largos caminhos em planície dão percepções dos espaços percorridos que não correspondem aos realmente representados por modos topográficos mais ou menos rigorosos. O esforço ou o cansaço muscular permitem-nos sentir a nossa relação com o espaço circundante, as distâncias e até a configuração desse espaço: a rampa, a escada, a longa caminhada tomam sentidos independentemente da sua realidade concreta. - A acústica e a percepção do espaço e da distância O enfraquecimento dos sinais acústicos com a distância não precisa de ser evocado para ser entendido como uma “medida” imprecisa mas significativa: a voz que nos chama de longe, o ruído do veículo que se afasta pela estrada, a ressonância no interior de uma cisterna ou na nave de pedra de uma catedral medieval dão-nos imagens de espaços associadas depois a imagens visuais mas independentemente delas. A apreensão do espaço através do movimento As noções de espaço e de tempo estão intrinsecamente articuladas em qualquer consideração que se possa fazer acerca da noção de movimento. Não se tenta aqui qualquer reflexão mesmo pouco profunda acerca da relação entre estes dois «indefiníveis» numa perspectiva filosófica ou física mas sim de evocar a sua existência bem actuante no âmbito da vida quotidiana – e essa é uma associação riquíssima. Alguns exemplos mostram-no, tais como o seu uso no dia-a-dia, já sem mesmo reparar no significado das expressões que usamos: - Quando dizemos coisas como “Moro a cinco minutos do meu local de trabalho”, ou “Madrid está a três horas de Lisboa”, o que estamos a fazer é realmente a exprimir uma distância no espaço por meio de um tempo. - Quando dizemos coisas como “Já vai longe o tempo de juventude” estamos a exprimir um tempo, mas em termos de uma distância que é um conceito espacial., etc. Em termos práticos da apreensão e comunicação da noção de distância associada ao “tempo” na vivência do espaço urbano a própria expressão, no quotidiano vulgar, do que é “longe” ou do que é “perto”, sugere que se passa neles uma coisa parecida com a proposição de Hagerstrand quanto à construção mental das distâncias relativas: há uma zona próxima de nós, na qual todas as distâncias são “perto”, mas a partir da qual, gradualmente, as distâncias tendem a mostrar-se como “mais longe” até se fundirem num horizonte compacto no qual tudo o que representa é, finalmente, “longe”! Qualquer pessoa que na sua vida diária (por exemplo, nas suas compras no bairro) mas que tenha eventualmente que tratar de um assunto administrativo ou familiar nalgum ponto menos usual, perceberá a diferença, pensando em termos de tempo perdido, de incómodo e custos de transporte… Mesmo certas relações entre espaço e tempo, a tal ponto familiares que nos passam despercebidas são as do passar das horas e minutos lidas num relógio vulgar: o tempo é representado pela deslocação circular dos ponteiros no mostrador. Vemos “espaço” mas pensamos em “tempo”! E vem daí parte da dificuldade que ainda algumas pessoas encontram em “ler” o tempo, num relógio digital: sem movimento e apenas sequências instantâneas de algarismos o passar do tempo fica dissociado da sua expressão espacial… - 95 -



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Não é também difícil encontrar esta íntima articulação entre espaço e tempo na própria substância da imagética que se constitui em poesia. As expressões do afastamento e da chegada, da busca e do encontro, da fuga e da captura amorosa, da fusão e da ruptura, da ascensão e da queda raramente se descobrem fora de um domínio espácio- temporal, ou mesmo assumem-no explicitamente. Espaço e posição no espaço Mais do que outras, são as relações de “posição” que ocorrem dentro de um determinado espaço que são portadoras de significados e cujas interpretações são mais actuantes em termos de intervenção na organização da sociedade. E dentro delas, a consideração das propriedades de “conexão” e “separação” de conjuntos dentro do espaço deve ser a primeira abordagem a ter em conta. a)

- O sentido de “limite”, de “fronteira” e de “descontinuidade”

Também aqui as formulações rigorosas destes conceitos em termos de Topologia são substituídas por uma observação mais directa e espontânea. A “fronteira” separa “os que estão dum lado, dos que estão do outro lado”. Tão simples como isso! Procurar passar de um dos lados para o outro, implica sempre atravessar uma fronteira. Que essa travessia implique o reconhecimento de uma descontinuidade, natural ou construída, é coisa que se faz sempre com um maior ou menor grau de facilidade ou de aceitação. “Defender” a fronteira é uma acção tão própria dos organismos, dos grupos e das sociedades que se poderia dizer que é uma coisa natural: - Os animais com comportamentos territoriais defendem o seu território contra invasores que queiram violar os limites das suas colónias; os estados, invocando as razões mais variadas para justificar as suas acções militares, defendem as suas fronteiras para conter a ameaça que definem como invasão ou conquista; - Os indivíduos e as famílias procuram, qualquer que seja sua forma de habitar, estão atentos a que a sua vizinhança próxima não tome a forma de intrusões abusivas em relação à sua “fronteira” doméstica; - Cada indivíduo tende também a estabelecer (mesmo sem ser de forma explícita) uma certa forma de “fronteira” que marca a distância mínima que é tolerada na sua proximidade com outros; - Edwin Hall elaborou a ideia de que cada um de nós vive rodeado de uma “bolha” invisível no espaço e essa “bolha” tem uma dimensão específica e pessoal, mas que varia consoante as culturas e os hábitos e os temperamentos; uma área de investigação a que chamou a “proxémica”…Pode experimentar-se frequentemente quando certas circunstâncias levam a que haja uma grande variedade de nacionais de diversas origens num mesmo espaço de encontro, trabalho ou convívio (p. exº em congressos científicos ou profissionais), que as pessoas têm espaços “de reserva” diferentes. Se se procurar chegar perto de um inglês ou de um sueco, é natural que ele se afaste um bocado – sem sequer dar por isso!- instintivamente, ele sente essa proximidade como uma velada agressão. Mas se pelo contrário se afastar mesmo não ostensivamente, de um italiano do Sul, de um egípcio ou de um marroquino, ele procurará aproximar-se e até manifestar essa proximidade com gestos com aspecto de familiaridade – agarrar na lapela do casaco, dar o braço, etc. Não entender ou ser sensível a estas reacções tem levado a não poucas situações complicadas e aparentemente inexplicáveis nos meios diplomáticos… - 96 -



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Mas não é tão superficial como pareceria à primeira vista a consideração da importância da espacialidade nas relações sociais: urbanistas, sociólogos e políticos têm de perceber que viver em ambiente de alta densidade, isto é, com distâncias interpessoais muito pequenas, é bem diferente de viver em ambiente de baixa densidade, isto é, com distâncias interpessoais muito grandes. As pessoas que podem adaptar-se a viver em Hong-Kong não se adaptam facilmente a viver nos vastos “sprawls” do Mid-West americano… Mas aí, o “politicamente correcto” que obriga a ver nisso apenas uma manifestação de diferenças sociais e económicas, não deixa ver a componente espacial daquela condição… b)

Hierarquias e significados da posição espacial

Relações de poder, de autoridade, de prestígio ou de estatuto social têm expressões de carácter espacial, como todos temos a possibilidade de observar no dia-a-dia. No tribunal a posição elevada do juiz em relação ao réu traduz uma relação de poder instituído e respeitado; o estrado do professor em relação ao plano dos alunos nas aulas com carácter magistral; o púlpito do pregador, a tribuna do político, são correntemente montados de modo a inculcar através dum dispositivo eminentemente espacializado aqueles valores e relações, e isso bem para lá da vulgar explicação de carácter prático quanto à melhor visão, a melhor audição etc. Não só a diferenciação de nível entre o importante e o subordinado exprime a diferença de estatutos, como a interposição de uma distância dentro do mesmo nível tem o mesmo efeito de representar um certo tipo de relação social através do estabelecimento duma barreira mais do que física, definida por uma convenção; a chamada “distância de respeito” que faz parte do protocolo oficial e mesmo da etiqueta em uso em certos níveis sociais é disso um bom exemplo. c)

Significados das relações de conexão e descontinuidade

Deixando de lado qualquer definição rigorosa das noções de conexão e de continuidade, importa compreender que, mesmo num plano simplificado e intuitivo, esses conceitos têm incidência sobre os comportamentos sociais em termos espaciais. Um grupo numa dada situação espacial em que se pode cindir em sub-grupos entre os quais não há comunicação sem mesmo que essa descontinuidade se materialize numa “fronteira” denuncia naturalmente a existência de oposição de identidades, de expressão de vontade de afastamento ou de exclusão, ou eventualmente de conflito mais ou menos latente. Os comportamentos que nascem ou se exprimem pela presença de descontinuidade num grupo - e que eventualmente podem conduzir ao conflito são fáceis de observar – quer em termos de geografia política (entre países, entre etnias ou grupos religiosos, p.exº) ou à escala local (entre grupos familiares, rivalidades locais ou regionais, grandes eventos desportivos apoiados por “claques” belicosas…) ou até mesmo em reuniões efémeras (p.exº. nas movimentações das campanhas eleitorais). Quem não terá assistido a festas de casamento em que, mais ou menos ostensivamente, a família de um dos nubentes se distancia da do outro?!... Mas é sobretudo no âmbito urbano que a descontinuidade ou desconexão se tornam mais evidentes nos seus significados e nas suas consequências. A segregação social em meio urbano toma na maior parte das vezes a forma de uma descontinuidade geográfica, funcional, e visual. Os “bairros de barracas” em torno de Lisboa, as favelas e as barriadas na América do Sul, o “caniço” no Maputo, Kibera em Nairobi, são claramente identificáveis com um “dentro” e um “fora”, em termos de sentido de pertença. Noutro extremo da segregação social em termos de descontinuidade – agora voluntária e legal e não resultado das forças que impelem para a clandestinidade – começa a verificar-se em Portugal a emergência de uma forma de descontinuidade social urbana que era vulgar noutros países: os chamados “condomínios fechados”… - 97 -



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Uma percepção clara do sentido de descontinuidade pode ter-se observando o Bairro e a Caparica a partir do alto da arriba; sem uma fronteira explícita que impeça a passagem de um dos conjuntos territoriais para o outro, um afastamento ou uma oposição são claramente legíveis e carregados de significados. d)

Estruturação dos espaços urbanos – permeabilidade, acessibilidade, forma

Uma busca de entendimento das consequências da forma dos espaços construídos (domésticos ou exteriores) deu origem, por volta dos anos 80, a uma abordagem essencialmente dirigida à análise da morfologia urbana e aos seus significados. Sobretudo a escola de Cambridge (Hillier, March, Echenique…) desenvolveu o que designaram por “análise sintática”; o seu método consiste em atribuir a espaços diferenciados e às suas relações de conectividade a sua representação por “nós” e “arestas” analisáveis segundo a teoria dos grafos e extrair daí as possíveis consequências. Esta apresentação sumária da “análise sintáctica” não faz justiça à complexidade da sua elaboração, mas devo exprimir como opinião pessoal que a “análise sintática” não tem dado os frutos práticos que se esperaram da sua elaboração teórica. É, no entanto, uma interessante ferramenta para estudos de índole substancialmente académica mas fornecendo pistas para a compreensão de certos comportamentos sociais (ver p.exº a Tese de doutoramento de Teresa Heitor sobre Chelas, “A Vulnerabilidade Do Espaço Urbano”, que é uma aplicação típica e exemplar da Análise Sintática). e)

Lugar, e Sítio

A Geografia Humana incorporou certos conceitos provenientes da Sociologia e da Psicologia trabalhando sobre o que na linguagem corrente toma com frequência uma expressão equívoca, confundindo Lugar com Sítio. A elaboração desta distinção tem dado lugar a um florescimento de definições e análises, (nem todas conducentes a grande avanço do conhecimento…) Poderá exprimir-se sumariamente o essencial desta distinção dizendo que “Sítio” se refere a uma posição no espaço, e “Lugar” se refere a uma relação afectiva e cultural a um determinado sítio definido em termos espaciais. Alguns autores, como E. Relph, Marc Augé e Susanne K.Langer passaram mesmo a utilizar o termo de “Não-lugares” para designar sítios e espaços em que uma clara definição espacial não chegou a ser criada, ou se perdeu, uma relação afectiva com os seus ocupantes e um sentimento de “pertença” destes em relação àqueles sítios. Um bom exemplo de “sítios” que não são “lugares” é dado pelos espaços complicados e estéreis que são formados pelos grandes nós viários das autoestradas. Ninguém os habita, ninguém se lhes liga afectivamente, ninguém se atarda na sua contemplação mais do que o estritamente necessário para a sua identificação e orientação… Uma pequena observação de S.Langer ajudará a um entendimento da distinção através de uma forma caricaturada: Num navio de passageiros em cruzeiro no alto-mar, a posição exacta do navio tem o máximo significado para o piloto; mas é um Sítio” que não tem significado algum para os passageiros; para estes o próprio navio é o seu real “Lugar” (ainda que temporário). A importância do entendimento desta distinção para quem está ligado a qualquer forma de estudo ou de intervenção no meio urbano é evidente. 2 – ENTENDER O ESPAÇO: COMO, E PARA QUÊ? Estes apontamentos têm a intenção de apontar para a riqueza e variedade de abordagens à noção de “Espaço”; assinalar que, considerado em si mesmo e isoladamente se torna numa categoria ontológica e um indefinível, mas que não se pode passar sem o esforço de o entender quando estão em causa todos os aspectos que enquadram a vida colectiva, mostrar sobretudo que a - 98 -



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aplicação do seu estudo não pode ignorar o aspecto “complexo” e a implicação com outro universal não definido – o “tempo”. E não se trata de o fazer com um carácter e intenção apenas especulativo ou redutoramente académico: a intervenção “empenhada”, no terreno, na política, no conflito, perde eficácia e sentido se não tiver em conta o carácter complexo do conhecimento exigível e possível. Proponho aqui uma espécie de reflexão, sem grande preocupação de rigor ou de exaustão acerca de dois pontos de vista quanto à utilidade e aplicação da consideração das abordagens disciplinares acima expostas, com toda a sua variedade. a)

Compreender o espaço urbano

Tratando-se aqui fundamentalmente de uma “intenção” no sentido fenomenológico de uma coisa a que se possa chamar “espaço urbano” com todas as suas indefinições e contradições, aceitemola nesses termos e deixemos o rigor para os geógrafos que se ocupam do fenómeno da Cidade, importa: - Procurar ler nos comportamentos a presença mais ou menos oculta dos mitos espaciais e dos valores afectivos no sentimento de pertença característico do lugar nas suas expressões espaciais; - Observar e interpretar a formação de descontinuidades, conexões e oposições na textura e composição dos agregados societais na sua expressão espacial; - Interpretar as graduações de sentimento colectivo de estatuto social associáveis a características dos vários espaços da Cidade, evidenciando a exclusão, a difusão e a integração nas suas expressões espaciais. - Ler, nas formas que toma o tecido da cidade, o resultado do jogo de forças económicas e políticas na produção do espaço urbano, da sua dinâmica e das suas contradições. b)

Agir sobre o espaço urbano

Qualquer que seja o nível, a legitimidade e a eficácia da intervenção em meio urbano, importa não perder de vista que as características do espaço da intervenção definem e limitam grande parte das suas intenções, técnicas e viabilidade. Quer nas intervenções de planeamento (físico ou económico) provenientes de qualquer dos níveis da Administração pública, quer nas acções de carácter cívico e político (mais ou menos locais e representativas), quer nos estudos com carácter principalmente académico, é exigível a percepção de que elas não flutuam num espaço abstracto, teórico ou ideal, e sim bem ali, no concreto complexo e dinâmico do espaço urbano. Estes apontamentos destinam-se a mostrar o valor dos entendimentos possíveis da ideia de “espaço urbano”, mas são só um ensaio sobre a sua variedade; convém que possam ser criticados, avaliados e completados.

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Ilustração de Edmilson, 6 anos

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DIREITOS DE ACESSO E O ACESSO AOS DIREITOS Lia Laporta

Introdução As dimensões sociais, culturais, ambientais, políticas e económicas abordadas ao longo do desenvolvimento do projeto Fronteiras Urbanas (FU) convergem no vórtice dos paradigmas da sobrevivência através do acesso à água: água canalizada e água salgada. Por um lado, o direito de acesso à água e ao saneamento básico apresenta-se como condição essencial à sobrevivência humana, indispensável para garantir, numa primeira instância, um conjunto de outros direitos humanos - o direito à vida, saúde, educação, migração, trabalho e, sobretudo, dignidade. Por outro lado, o sistema de acesso à justiça e a esses mesmos direitos humanos apresenta-se como exemplo da nossa atual dificuldade em conjugar a eficácia dos direitos civis e sociais e a eficácia dos direitos políticos, ainda que a uma escala local, refletindo um sistema que, na verdade, não é nem justo nem humano. Para discutir esta problemática, e aproveitando aquilo que foi possível acompanhar, observar, e aprender ao longo do desenvolvimento do FU, focamo-nos nas comunidades que integraram este projeto: a comunidade do Bairro das Terras da Costa e a comunidade Piscatória da Costa da Caparica. Mais do que questões práticas ao nível da engenharia civil ou naval, do ordenamento do território, ou da sustentabilidade na recarga de aquíferos e na gestão dos stocks costeiros, veremos que os principais entraves à sobrevivência através do acesso à água que aqui se introduzem e discutem são de natureza sócio-política, principalmente à escala local.

Comunidade das Terras da Costa: o Bairro sem água Às portas da cidade da Costa da Caparica, ali ao pé da Arriba Fóssil, encontramos um assentamento que tem tanto de pó como de vida, circunscrito numa barreira invisível e isoladora. O Bairro das Terras da Costa, ou o “bairro clandestino ali da via rápida”, como é conhecido por muitos. Antes de mais, é importante desmistificar. O assentamento é, de facto, parcialmente clandestino. E sabemos que, num bairro clandestino, marginal à nossa realidade, encontramos atividades clandestinas e igualmente marginais. Vivem ali traficantes de droga. Mas também vivem crianças. E crianças traficantes de droga. Vivem ali mães e avós. Vivem ali pessoas esquecidas na fronteira, que receiam a integração. Vivem ali pessoas escondidas na fronteira, que recusam integrar-se. - 101 -



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Vivem ali também pessoas perdidas na fronteira, que anseiam por se sentir integradas. Pessoas que ali nasceram e pessoas que nasceram em outros lugares e que para ali foram viver e trabalhar na agricultura em troca de pouco mais que comida e um teto. E pessoas que para ali foram viver com essas que já lá estavam. O mito da generalização e dos pré-conceitos deve ser, assim, exposto e dissolvido. Os membros da comunidade do Bairro a quem nos referimos aqui são os mesmos que fizeram parte do desenvolvimento do projeto Fronteiras Urbanas. São as inúmeras crianças, jovens, adultos e idosos que participaram ativamente na construção da sua própria cidadania, da sua identidade individual e coletiva, que perspetivaram e perspetivam uma vida mais digna, uma voz mais audível e uma existência reconhecida na cidade e sociedade onde vivem, estudam e trabalham. Não pretendemos aqui discutir a questão da (i)legalidade do assentamento das Terras da Costa. No contexto do projeto FU, foi possível verificar a legalidade de duas habitações do Bairro, que lá se encontram pelo menos desde os anos 70, e que serviam de casa de apoio aos trabalhadores dos campos agrícolas que ali se encontravam. O complexo processo de expansão e crescimento demográfico do Bairro que se seguiu foi igualmente estudado no projeto, e sabemos estar perante um conjunto de casas construídas sem licenças. Ao contrário das casas, uma grande parte dos habitantes do Bairro são legalizados ou nascidos em Portugal. Convidamos o leitor a explorar os relatórios e os trabalhos científicos publicados no âmbito do FU, para uma apresentação mais detalhada e rigorosa da origem e evolução do Bairro, e da sua demografia. Aqui, interessa-nos apenas saber que no Bairro das Terras da Costa vivem pessoas. E que não têm água. O acesso à água potável e à sanitização é um direito humano fundamental reconhecido pela ONU em Julho de 201054. (...) declara que o direito a uma água potável própria e de qualidade e a instalações sanitárias é um direito do homem, indispensável para o pleno gozo do direito à vida.

O acesso à água é primordial para uma vida digna, e tanto a água como a vida são bens invioláveis com um valor irrenunciável e inderrogável. Indispensável é a pergunta que se segue: Pessoas sem água, às portas de uma capital europeia, em pleno século XXI? Até 2001, o Bairro recebia água de uma “puxada” ilegal, desviada de uma boca-de-incêndio na proximidade. À data de corte do abastecimento desse ponto, alguns moradores tentaram junto à Câmara Municipal de Almada e de outras entidades locais (como a Junta de Freguesia e a Igreja

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http://www.un.org/News/Press/docs/2010/ga10967.doc.htm - 102 -



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Paroquial da Costa da Caparica) solucionar o problema, e suprir essas e outras carências ali tão emergentes - como a falta de saneamento e de um sistema de recolha de lixo. A promessa de um realojamento em breve foi a única resposta que obtiveram, e a mesma que sempre receberam desde então. A chama da esperança reacendeu quando os rumores de um sistema de abastecimento de água num bairro clandestino vizinho se concretizaram. Em meados de 2011, o assentamento ilegal da Trafaria conhecido como “Segundo Torrão” foi legalmente abençoado com o acesso ao direito à água. Mas o Bairro das Terras da Costa continuava à espera dessa bênção política em formato de papel (quiçá de torneira?). Parece que dentro dos ilegais há sempre uns mais ilegais que outros, pelo menos aos olhos de quem manda e decide, sob o olhar atento de quem realmente decide e manda: Das Kapital. Da sinédoque à xenofobia comum, pobre (quase) não tem direito. Muito menos acesso a esse direito. Por mais controversos que sejam os processos de realojamento e as habitações sociais a que estão predestinadas estas famílias, uma coisa parece certa: até que se resolvam os entraves sóciopolíticos locais colocados a esta comunidade “I” (invisível, ilegal e indesejada), o que é feito das crianças e jovens que lá nasceram, lá vivem, lá se (re)conhecem? Luah é uma dessas crianças, com os seus 6 anos de idade. No primeiro dia em que foi à escola, Luah foi chamado juntamente com os colegas à hora do almoço. “Meninos, vamos almoçar. Toca lavar as mãos!”. Os colegas fazem filinha pirilau no lavatório. Luah sai disparado à procura de um alguidar. “Onde vais, rapaz?”. Vai buscar água à fonte, ora essa, para poder lavar as mãos! Enquanto nadamos num mar de burocracias e mergulhamos no debate sobre a natureza e a veracidade dos direitos de quem habita uma construção “I”, deixamos nascer e crescer cidadãos à margem de qualquer possibilidade de integração justa, condenados a priori pelo local de nascimento e alimentados com falsas promessas tão efémeras quanto o período de campanha eleitoral. Um modelo de governança de cima para baixo, em que as decisões tomadas são alheias à realidade de quem a elas está afeto, não pode nunca resultar numa solução sustentável a longo prazo. É comum ouvirmos histórias de famílias realojadas em habitações sociais que não se conseguem adaptar (claro, de acordo com o nosso próprio conceito de adaptação!). Não sabem funcionar numa casa, para nós, tão funcional. É que quatro paredes e um teto até podem ser casa, mas não são lar. Realojar para o estranho, para longe de quem se ama e de quem cuida dos nossos filhos (permitindo-nos assim trabalhar um, dois, três turnos) não pode ser entendida como a melhor das soluções. E varrer para debaixo do hipotético tapete de realojamento todos os problemas que

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enfrentam, ali e agora, aquelas quase 500 pessoas, devia ser entendida como a maior das negligências. Talvez num futuro utópico saberemos resolver estes problemas de uma forma eficazmente justa. Viveremos numa Europa que se governe pelo seu próprio mote – Unidade na Diversidade. Por agora, é preciso apenas ensinar ao Luah que a água, pasme-se, sai das torneiras espalhadas pela casa! É preciso educar. É preciso respeitar e integrar quem tanto respeita e anseia por se sentir integrado. É preciso chegar à Costa de Caparica sem desviar o olhar do Bairro. É preciso emancipar, caminhando na direção de um futuro assim menos utópico. Ao fim de dois anos, o exercício de emancipação e empoderamento assente na metodologia adotada no FU55 pode ser considerado satisfatoriamente frutífero. Foi possível construir e ver crescer, em conjunto e aos poucos, o autoconhecimento comunitário e a autoestima da comunidade. Foi possível mobilizar os seus membros na defesa dos seus próprios direitos e na conscientização dos seus deveres. Foi possível desenvolver um processo democrático para a eleição de uma Comissão de Bairro. Foi possível unir, ainda que por alguns instantes e não de uma forma constante, o batuko à dança Romani. Foi possível mostrar que essa união é em si a fonte de água que tanto procuravam. Foi possível quebrar, pelo menos em parte, a fronteira visivelmente invisível que isola o Bairro do resto da cidade. Enquanto se escreve este capítulo, avançam os planos para a colocação do primeiro ponto de água dentro do Bairro das Terras da Costa, sob a chancela do projeto denominado “Cozinha Comunitária”. Trata-se de um projeto idealizado por uma das mais antigas moradoras do Bairro (Vitória Mendes), facilitado pelo FU através de contactos com outros projetos locais (Casa do Vapor, Exyzt) e ateliers de arquitetura (Atelier MOB, Warehouse), os quais obtiveram financiamento externo (Fundação Calouste Gulbenkian) para o concretizar, mediando as negociações com as entidades locais (Câmara Municipal de Almada) em conjunto com os membros da recém-estabelecida Comissão de Bairro. Muito mais do que um espaço para refeições, a “Cozinha Comunitária” é o primeiro grito das vozes até então silenciadas. É um primeiro passo para o acesso ao direito de acesso à água daquela comunidade.

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Remetemos o leitor para o capítulo 02, onde se detalha o projeto Fronteiras Urbanas e a respetiva metodologia. - 104 -



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Mas ainda há muito chão a percorrer. A própria sustentabilidade da “Cozinha Comunitária”, por exemplo, está assente nos desejos e vontades dos moradores, e na forma como receberão esse mesmo projeto. Com a água que jorra do novo ponto, jorram também novas responsabilidades, novos desafios. É preciso aprender a partilhar um novo bem-comum. O movimento de mediação com as entidades locais para a construção da Cozinha deve estender-se para dentro do próprio Bairro, na aprendizagem para a manutenção da mesma, potencializando a resolução de conflitos entre as diferentes etnias e subgrupos do Bairro, para a partilha de um espaço que, afinal, é comunitário. E para que continuem a ter acesso a esse e a todos os seus direitos. Acima de tudo, é preciso continuar a desmistificar. Ciganos, traficantes de droga, contrabandistas, criminosos, malfeitores e bandidos! Recebem o subsídio de reinserção mas passeiam-se de carros topos de gama... era chegar lá com uns buldozers e mandar aquilo tudo a baixo! (...) Esses imigras não se querem integrar, querem é viver à margem da lei, querem fazer o que bem lhes apetece sem respeitar nada nem ninguém. (...) Claro, chegam cá e tiram-nos os empregos e os subsídios, e ainda querem água? (...) Esses Palops vieram para roubar e viver às custas de quem paga impostos... agora já não se pode andar tranquilo nas ruas à noite, é uma vergonha. (...) A Costa não é um sítio melhor desde que cá chegaram essas pessoas, é preciso tirá-las daqui! (Excertos de comentários feitos por utilizadores de uma rede social onde foi publicada a notícia que respeita à criação da “Cozinha Comunitária”).

Comunidade Piscatória da Costa de Caparica: os Pescadores sem mar Como grande parte das cidades costeiras em todo mundo, a Costa da Caparica tem uma forte relação histórica com a pesca e os pescadores. Foram eles que fundaram a cidade em 1770, enquanto membros de várias companhas oriundas de Ílhavo e de Olhão, ao se estabeleceram de forma permanente nas praias da Costa de Caparica que até então ocupavam sazonalmente.56 Apesar de terem direito a uma rua, uma praça, e até mesmo um bairro inteiro na cidade (com água canalizada!), são inúmeros os entraves que os pescadores da Caparica encontram no seu dia-a-dia, no acesso ao direito de exercerem dignamente a profissão que com muito orgulho (e por vezes com muito pesar) carregam. A comunidade piscatória da Costa de Caparica é constituída por um conjunto de indivíduos que têm em comum o facto de praticarem a pesca artesanal a partir de



56 Remetemos o leitor para o capítulo 06, onde se detalha a génese da cidade da Costa da Caparica e o crescimento da sua comunidade piscatória

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diversos locais à margem esquerda do estuário do Tejo (desde a Trafaria até à Fonte da Telha, abrangendo também a Cova do Vapor e restantes praias da Costa da Caparica). A pesca local realiza-se no mar e no estuário e foz do rio Tejo, em função das épocas do ano, das espécies capturadas e das artes de pesca utilizadas. Essas incluem os anzóis (conhecida como Corricão), os covos, as redes de emalhar, e o Santo Graal desta comunidade: a Arte Xávega. A Arte Xávega é entendida como um elemento identitário da comunidade piscatória na Costa e pode mesmo ser considerada como uma arte de pesca artesanal e tradicional. Ainda assim, esta é uma arte nãoseletiva, ou seja, para além das espécies que se pretendem pescar com esta arte, são capturadas quantidades significativas de pescas acessórias e rejeições. Em teoria, o acesso ao direito ao trabalho existe. A atividade de pesca na zona costeira da Costa da Caparica é permitida desde a Cova do Vapor (junto ao Rio Tejo) até à Fonte da Telha. Na prática, apenas um quinto desta área é “pescável”, devido à existência da restrição à pesca nas frentes urbanas, e aos cabos submarinos que limitam a circulação das embarcações na zona. Para além de restrições espaciais, encontramos também restrições temporais (como a proibição da pesca entre as 8 horas da manhã e as 6 horas da tarde durante os meses da época balnear - Junho a Setembro). Mais uma fez, faz-se necessário desmistificar. A regulamentação da atividade da pesca está, na sua maior parte, fundamentada numa perspetiva da gestão e da sustentabilidade dos recursos pesqueiros e abrangida por legislação nacional e internacional. Mas as quotas de pesca decididas a nível Europeu, por exemplo, são distribuídas e implementadas no país com muito pouca, ou quase nenhuma, intervenção das pequenas comunidades piscatórias – como é o caso da comunidade da Costa. Ora, se os pescadores se sentem lesados pelas leis impostas, se não compreendem de que modo foram concebidas e qual é o seu propósito maior, como poderão respeitá-las? “O pescador é o patinho feio da sociedade”, costuma dizer Mário Pedro, pescador e membro da comunidade piscatória da Costa da Caparica. Quando os direitos de utilização dos recursos comuns são estabelecidos de forma transparente e clara, procurando respeitar simultaneamente o meio ambiente e em conjunto com as pessoas que dele dependem, o respeito pela regulamentação desse direito é um processo quase natural. As comunidades piscatórias locais, dotadas de um profundo conhecimento ecológico tradicional, compreendem que devem respeitar os stocks e a capacidade de suporte dos ecossistemas, com o seu funcionamento cíclico e sensível por vezes às mais pequenas alterações. Mas a prática do imperativo categórico Kantiano encontra o seu limite de rutura quando, por um lado, não percebemos porque é que temos que cumprir com

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regras que não nos fazem sentido e quando, por outro lado, percebemos que mais ninguém as cumpre. É invariavelmente a parte fraca da equação, os pescadores locais sem voz nem poder de lobby perante os decisores, que cede. Na guerra da sustentabilidade, parece-nos ser mais importante procurar solucionar esta questão à escala local do que procurar aumentar ainda mais as restrições e as fiscalizações às atividades de pesca em todo país. A uma escala assim reduzida, é possível perceber como a falta de comunicação e interação entre os decisores e as comunidades pode resultar em soluções absurdas, do ponto de vista social, económico e ambiental. O Programa Polis da Costa da Caparica é um projeto de ordenamento do território iniciado em 2001 que visa, sobretudo, ‘desenvolver operações integradas de requalificação urbana, com uma forte componente de valorização ambiental (…) contribuindo para a revitalização das cidades e promovendo a sua multifuncionalidade’57. Na realidade, e da forma como é aqui entendido, foi um projeto que procurou maximizar a atividade turística na Costa de Caparica em detrimento de outras atividades - sobretudo a pesca. Sem apontar responsabilidades, e sem aprofundar questões relacionadas com o processo de adjudicação e regulamentação da implementação do Polis da Caparica (muito controverso do ponto de vista político e legislativo), tentaremos exemplificar com uma simples frase: o espaço destinado aos pescadores para a criação da lota da Costa de Caparica foi planeado e implementado na frente urbana - dentro da zona em que a atividade de pesca está restrita. Ao abrigo do Programa Polis, uma boa parte dos alvéolos e das cabanas originalmente construídas, e até então utilizadas, pelos pescadores ao longo das praias da Caparica teve que ser deslocada e/ou destruída. Num plano de ordenamento do território destinado aos turistas, não havia lugar para as barracas dos pescadores. Contudo, a pesca enquanto imagem de marca da cidade precisava ser preservada e, principalmente, explorada como possível atração turística. Com esse efeito, foi concebido um espaço – negociado e apresentado como uma possibilidade de substituição às cabanas e alvéolos perdidos; que seria da inteira responsabilidade da comunidade piscatória da Costa da Caparica. Um espaço que mantivesse as linhas arquitetónicas originais, que servisse de apoio à atividade de pesca e aos pescadores, que fosse também um chamariz turístico e estivesse, portanto, próximo à cidade. Tudo muito bem pensado. Esqueceram-se apenas de o colocar numa zona em que fosse permitido pescar. A atual localização da lota da Caparica obriga a um grande esforço por parte da comunidade piscatória local, traduzindo-se num gasto de energia não só humana – os tratores que transportam as redes de Arte Xávega precisam deslocar-se da zona da

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http://www.costapolis.pt/ - 107 -



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pesca até à lota, e estão proibidos de o fazer nas novas vias de acessos criadas pelo Polis. A somar a outros entraves, conseguimos perceber que o Programa Polis não é um favorito na comunidade piscatória – da mesma forma que a comunidade piscatória não foi favorita na criação do Programa Polis. “O pescador é o patinho feio da sociedade”. Como é possível que o peixe seja vendido nas grandes distribuidoras a 8€/kilo, quando foi comprado ao pescador por 26… cêntimos? Aqui, o consumidor também tem poder. Através das nossas escolhas, podemos exigir condições mais dignas aos pescadores. “O pescador é o patinho feio da sociedade”. Como é possível que não exista abertura das entidades locais para negociar a presença da pesca nas suas próprias praias, o ano todo? Aqui, o turista/banhista também tem poder. Através das nossas escolhas, podemos exigir condições mais dignas aos pescadores. Repetimos uma vez mais a premissa anterior: É preciso educar. É preciso respeitar. É preciso chegar à Costa de Caparica sem desviar o olhar dos seus pescadores (e fundadores!). É preciso emancipar. Ainda que não tão evidente como no caso da comunidade Bairro, o processo de empoderamento e emancipação da comunidade piscatória da Costa da Caparica beneficiou das intervenções do projeto FU. Nos últimos meses, com o trabalho desenvolvido pelo arqueólogo Francisco Silva junto da comunidade, concretizou-se a possibilidade de classificação da Arte Xávega como património imaterial da humanidade. Em 2013, foi estabelecida uma nova associação de pescadores locais – a Ala-Ala. Liderada por um dos mais antigos pescadores da comunidade, Lídio Galinho, esta nova associação pretende defender os direitos dos pescadores na frente urbana, bem como lutar pela preservação da Arte Xávega. Pretende levar a voz da comunidade à mesa das decisões. É uma luta que se estende e se integra na luta mais geral dos trabalhadores e do povo Português.

Mensagens finais Olhando para trás, vemos um capítulo em jeito de humilde desabafo. Quando relacionado com minorias e comunidades excluídas (e em especial em situação ilegal/irregular), o acesso ao direito e à justiça torna-se um indicador ainda mais sensível do nível de cidadania e de inclusão ou exclusão social, potenciado pelas (e ao mesmo tempo dependente das) políticas locais.

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Não acrescentamos muito de novo aos debates crescentes sobre a necessidade de modelos de governança ditos bottom-up, com participação ativa de todos os agentes envolvidos nas decisões. Parece-nos que a solução passa por solucionar “com” e não “para”. O sentimento de pertença e inclusão no processo de decisão reflete uma conscientização de deveres e direitos, num processo transparente de cidadania, onde o acesso aos direitos básicos é concedido em diálogo, e não negado em entraves. Mas que não hajam ilusões: este é um movimento de dentro para fora, de baixo para cima, e que por isso só se concretiza com iniciativas de quem está dentro, de quem está em baixo. É o exercício do empoderamento individual e coletivo, ao qual tivemos o privilégio de experienciar na Costa da Caparica. Não pretendemos um governo paternalista, que feche os olhos às ilegalidades. Não partilhamos da perspetiva utilitarista de que os fins justificam os meios. Mas na hierarquia da resolução dos conflitos sociais, principalmente à escala local, o ordenamento do território e a conservação da biodiversidade marinhas não se devia sobrepor à sobrevivência das comunidades costeiras que dependem da pesca para sobreviver. São problemáticas que só poderão ser solucionadas se abordadas em conjunto, numa perspetiva transdisciplinar, justa, e, acima de tudo, integradora. De igual modo, a regularização de um bairro clandestino e dos seus moradores deve ser acompanhada (ou precedida) por uma intervenção que garanta às comunidades já instaladas o mínimo de dignidade e respeito, na mesma perspetiva de justiça e integração. Em jeito de conclusão, a analogia que se pretende eufemicamente evidenciar neste breve capítulo remonta à biologia. No âmbito da genética, as moléculas de ADN armazenam as características que definem individualmente cada ser vivo, enquanto os fenómenos descritos na epigenética são responsáveis por modificações na expressão dessas características genéticas, independentes do ADN e face a contextos externos ao indivíduo. No âmbito dos direitos humanos, e pertinente ao direito ao acesso à água, à sanitização e ao trabalho descritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (e igualmente em outros tratados internacionais ratificados pela UE), o direito ao acesso, ad-hoc, é entendido com uma característica intrínseca a cada um de nós, seres humanos, numa definição análoga ao código genético. Já o acesso a esses diretos parece ser um fenómeno epigenético que, por definição, depende de contextos externos – aqui imperativamente dominados pelas políticas locais. Fica o desejo de que o empoderamento das comunidades locais seja, também, um fator epigenético facilitador do acesso aos direitos humanos nessas comunidades, da construção da sua cidadania, sobrepondo-se à hegemonia e negligência da sociedade onde estão geograficamente inseridas.

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Ilustração de João Moreira

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TEMPORALIDADES URBANAS Nuno Vieira Time is not just ‘out there’ as neutral chronology, but also ‘in here’ as a social construction Smollan, Sayers, & Mathen Ao longo da nossa vida deparamo-nos quotidianamente, de forma consciente ou inconsciente, com questões que se ligam ao tempo: o que é? Como o entendemos? O que com ele, e dele, fazemos? Como o gerimos? Isto porque podemos não definir um tempo único mas, pelo contrário, uma multitude de tempos que se interpenetram entre si e infiltram no nosso quotidiano. Atualmente é mais ou menos consensual que diferentes sociedades produzem qualitativamente diferentes conceções de espaço e de tempo, já que, com a mesma legitimidade das ciências ditas exatas, aparecem os conhecimentos produzidos por grupos sociais e étnicos relacionados com o tempo e com as temporalidades, que determinam as relações individuais e coletivas que são estabelecidas com o tempo, perfilando-o, assim, como um agente sujeito a juízos e critérios de racionalidade. Mas a conceção social do(s) tempo(s) não está condicionada pela perspetiva determinista, característica das ciências físicas e naturais. Enquanto para estas se pode estabelecer uma velocidade temporal contínua, o tempo pode ser comparado a uma seta com continuidade e homogeneidade apontando na direção do futuro, os tempos sociais apresentam-se de forma muito mais complexa, variando a sua rapidez de indivíduo para indivíduo, ou para um mesmo indivíduo, dependendo das circunstâncias em que se está a viver o tempo, e no tempo. Daí decorre o fato de o homem sempre ter sentido necessidade de medir a passagem do tempo a partir de mecanismos a si externos, inicialmente recorrendo ao movimento dos astros para regular os seus ritmos e os hábitos sociais. Após a regulação do tempo a partir dos astros, o homem recorreu a artefactos, como os relógios de sol, ampulhetas ou clepsidras, para marcar a sua passagem. A evolução tecnológica destes artefactos ocorreu num período temporal que não difere muito do da história da humanidade, o que equivale a dizer que a história do homem é a história do tempo vivido. Mas, há de salientar que a evolução tecnológica dos últimos 120 anos conduziu a um sincronismo entre relógios à distância com uma precisão e uma exatidão inimagináveis, mesmo para um visionário como Júlio Verne ou para um génio como Einstein. Em 100 anos passou-se de uma eficácia na sincronização entre relógios da ordem do minuto para uma ínfima fração de segundo, com implicações diretas nas sociedades atuais, pois, sem esta condição não se teriam estabelecido as interligações que atualmente se verificam nos mercados bolsistas, por exemplo, com profundas implicações na globalização das economias de mercado. À medida que se foram criando e aperfeiçoando os mecanismos de medição do tempo, foi-lhes conferido um poder cada vez mais regulador, culminando na centralidade que atualmente ocupa nas sociedades.

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A regulação temporal que as sociedades impõem ao indivíduo, com especial relevo para a vivida em centros urbanos, onde o tempo cada vez mais é um tempo de urgência, tem repercussões no quotidiano das pessoas. A partir do momento em que nasce o indivíduo é sujeito a rotinas, nos primeiros tempos marcadas por fatores biológicos, mas, desde tenra idade por regras impostas pela sociedade. Quem ainda não viu crianças, pequenas, logo pela manhã, a dormir nos transportes públicos ou nos bancos dos carros dos pais, a caminho da creche ou da casa dos cuidadores? As respostas sociais existentes, nomeadamente as educativas, mesmo para os níveis etários mais baixos, regem o seu funcionamento em função de horários impostos por princípios externos às necessidades das crianças, enquanto seres biológicos. O que se constata nos sistemas escolares das sociedades ocidentais, e especialmente as localizadas nos grandes centros urbanos, é que as crianças e os jovens, mesmo antes de assimilarem o que é o conceito de tempo, são submetidos a uma imposição de horários estruturados, pouco ou nada atenta às suas necessidades psicobiológicas. A aprendizagem das noções temporais reguladoras das sociedades é, assim, iniciada e desenvolvida mesmo antes de se compreender a forma como o tempo, na sua capacidade de sincronizar e de modelar a ação humana, obriga a acompanhar os demais. O indivíduo acaba por seguir a regra temporal sem se questionar, e sem ter a oportunidade de a questionar. Sem, tão pouco, se aperceber que está a ser condicionado nos seus ritmos pessoais e biológicos. Desta forma, a escola não está à margem deste processo de socialização, no qual a campainha dita os momentos de entrada e de saída da sala de aula, ensinando aos alunos as noções temporais que cada vez mais regulam a nossa existência. Esta forma de introduzir as crianças e os jovens num regime de horários que são ajustados aos futuros tempos laborais, torna-os reféns das regras que enformam as temporalidades das sociedades modernas, que tendem a tomar o tempo numa perspetiva económica. Facilmente nos deparamos com um discurso recorrente sobre o cálculo do custo temporal de determinado bem, no sentido de legitimar a decisão de gastar determinada verba, num raciocínio de mercantilismo linear, subjugado ao arquétipo «tempo é dinheiro» que atribui à hora um valor facial monetário: para comprar um bem de valor Y tem que se trabalhar T horas. Desta forma, está-se a atribuir à unidade temporal um determinado valor monetário, após o que todas as temporalidades do indivíduo podem ser traduzidas nesse mesmo equivalente, incluindo o tempo passado em família, a descansar ou em qualquer outra atividade. Esta mercantilização do tempo estará, assim, associada a algumas expressões linguísticas tais como, «dá-me tempo para,,,», «não vou perder tempo a...», «tenho de arranjar tempo para...», «é para ontem!», «o tempo que demora não compensa!» ilustrativas da relação de dependência que se estabelece com o tempo, seja por via da imposição sincrónica das atividades sociais, seja por imposição económica. Historicamente, a doutrinação dos hábitos sociais em função do tempo não se fez de forma inteiramente pacifica, são bem conhecidos os movimentos de revolta dos operários no período da revolução industrial contra a instalação de relógios à entrada das unidades fabris. Esta realidade, hoje tão presente na vida escolar, profissional, social, na qual o ritmo é imposto aos indivíduos sem que estes tenham consciência do que podem fazer, de quando e durante quanto tempo o podem

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fazer. Esta imposição horária existe num estado oculto, numa cultura de silêncio que perpetua a sua condição de oprimidos58. A importância que a medição e controlo dos tempos dos operários tiveram no período da Revolução Industrial, bem como a forma como as suas conceções se enraízam na sociedade e vêm esculpindo características sociais, com maior peso nas sociedades de mercado atuais e nos meios urbanos. Esta realidade foi muitíssimo bem ilustrada no filme «Tempos Modernos», de 1936, escrito, dirigido e protagonizado por Charlie Chaplin. Este filme faz uma crítica social à forma como o trabalho era valorizado à época, em detrimento da condição humana. Chaplin ilustra os efeitos que o modelo de desenvolvimento económico com matriz capitalista teve sobre as classes operárias, o tempo, a forma como era encarado, a forma como as pessoas viviam no e com o tempo, sofreu significativas transformações, sobretudo no sentido da sua desumanização, que não deixam de estar patentes nesta obra cinematográfica. O filme «Tempos Modernos» inicia-se com a imagem de um rebanho de ovelhas a deslocaremse, apressada e compactamente (imagem 1), sem que se perceba de onde, para onde e porquê, adotam tal comportamento. Apenas transparece que o movimento é ordenado, inconsciente, mimético. No meio do rebanho, surge uma única velha negra que pode simbolizar o diferente, o inadaptado que, ainda assim, segue ao ritmo das demais. Podemos elencar um determinado conjunto significativo de diferenças e particularidades de um indivíduo, todas toleradas pela sociedade, desde que não deixe de seguir o passo (do relógio) ao ritmo dos demais. Desta cena passa-se repentinamente para a imagem de uma saída do metropolitano (imagem 2), onde as pessoas demonstram um comportamento igualmente mimético: todos se deslocam apressadamente, no mesmo sentido, como se o fizessem de forma inconsciente, no respeito por uma vontade superior. Atravessam a estrada e dirigem-se apressadamente para a entrada de uma unidade fabril.

Imagem 1 – Rebanho de ovelhas deslocando-se mimeticamente (filme Tempos Modernos, 1min05s)

Enquanto o movimento apressado das ovelhas indicia que estas se deslocam num tempo delas, deslocam-se para um destino com um determinado fim, mas não estão reguladas por um marcador

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O conceito de opressão na perspetiva aqui utilizada foi proposto pelo pedagogo Paulo Freire, de quem destacamos o seu livro Pedagogia do Oprimido, Ed.s Paz e Terra, Brasil. - 113 -



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horário a elas externo, ou seja, não se sentem comandadas por um relógio. Estarão certamente, comandadas por outros desígnios. Contrariamente, a saída dos operários apressada do metropolitano mostra uma subserviência ao tempo regulado pelo relógio da fábrica. Tanto assim é que o filme prossegue com a deslocação ordenada, sempre apressada, até à sala onde se alinham os relógios de ponto, com os respetivos cartões de registo de entrada e saída.

Imagem 2 – Operários a sair do metropolitano (filme Tempos Modernos, 1min13s)

No corredor onde estão os relógios de ponto, os trabalhadores amontoam-se para marcar a entrada ao serviço no cartão de registo individual (imagem 3). Só aqui, nesta cena, se percebe a sequência de imagens. Saliente-se que porque se tratar de um filme mudo, todo o significado está entregue às imagens e à sua sequenciação, pois é através destas que a mensagens é passada. Percebe-se porque as pessoas andavam apressadas, porque todas se movimentavam quase mecânica e automática num mesmo sentido, com um mesmo propósito, os trabalhadores estavam condicionados pelo relógio da fábrica, era ele que impunha a urgência. Teria sido, então, o tempo, o agente com vontade superior que os movia.

Imagem 3 – Operários a picar o ponto (filme Tempos Modernos, 1min26s)

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O filme passa a ilustrar uma mordaz caricatura do quotidiano dos operários fabris a desempenharem as suas funções em unidades de produção em série. As pessoas acabam por assumir uma condição de autómatos, em que a rapidez de execução das tarefas é imposta pela da maquinaria, anulando toda a possível humanização da atividade laboral, esvaindo os operários de qualquer temporalidade, de caráter pessoal e/ou social. Mesmo o tempo destinado ao preenchimento das necessidades mais básicas, como comer, por exemplo, apresenta-se condicionado pela máquina, que não permite que o operário pare por necessidade individual, sob pena de colocar a linha de produção em risco. O esvaziar do tempo pessoal imposto pelo patronato, também é objeto de crítica no filme. O controlo dos tempos de pausa, para comer ou descansar, na oportunidade e na duração, são conotados com tempo de ócio, que deveria ser minimizado ou anulado em prol da produtividade. Charlie Chaplin caricatura este apoderamento do tempo pessoal e social com a tentativa de criar uma máquina destinada a alimentar o operário sem que este necessite de sair do seu posto de trabalho, mantendo a linha de produção em pleno (imagem 4). Ou, de uma forma mais linear, o operário é tomado como mais um componente da maquinaria de produção em série, que necessita de uma «manutenção» direta e regular no tempo.

Imagem 4 – Máquina para alimentar o operário na linha de produção (filme Tempos Modernos, 8min51s)

O domínio do tempo de trabalho sobre as demais temporalidades é, desta forma, levado à situação extrema de se pretender regular as funções biológicas do indivíduo, porque os ritmos biológicos, serão, porventura, os que estão mais protegidos da hegemonia do relógio sobre a ação humana. O filme desenrola-se com o protagonista, Charlie Chaplin, a perder as suas faculdades mentais e a deixar-se «engolir» pela máquina (imagem 4), enredado nas suas engrenagens.

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Imagem 5 - Operário enredado nas engrenagens das máquinas (filme Tempos Modernos 14min06s)

Uma vez retirado da máquina pelos colegas, o seu comportamento posterior resume-se à imitação das funções que exercia na fábrica. Após mais algumas peripécias, típicas dos filmes deste autor, com o protagonista a sair da fábrica e a adotar comportamentos desadequados, aos quinze minutos de filme, Chaplin volta a entrar no corredor onde estão alinhadas as máquinas de picar o ponto com os respetivos cartões, agora vazio, e marca a sua saída no cartão (imagem 6). Esta cena simboliza, o corte com a subjugação ao tempo imposto pela fábrica, que não era dele. Este gesto assinala a reconquista, o domínio das suas temporalidades, e, também, o momento a partir do qual o protagonista retoma as suas faculdades mentais.

Imagem 6 - Operário a registar no cartão a sua saída, para de seguida entrar na fábrica (filme Tempos Modernos 15min39s).

Este operário ao libertar-se do tempo de trabalho, que lhe era imposto, volta a controlar os seus tempos, o pessoal e o social. Esta libertação teve, naturalmente, como consequência, a perda do emprego, uma vez que a subjugação ao tempo é condição essencial para o desempenho de qualquer

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função na linha de produção da unidade fabril. O filme continua, agora com o protagonista dono do seu tempo e das suas ações, mas à margem das fábricas, encontrando o amor da sua vida. Será de salientar que até ao momento de saída definitiva da fábrica, o filme desenrola-se sem qualquer referência a relações humanas que não resultem da exclusiva atividades laboral. Esta inadaptação aos tempos fabris teve, no filme, a mesma consequência que se verifica nos dias de hoje: um indivíduo que não siga as regras temporais impostas é marginalizado, é considerado um inadaptado. Alguns excertos deste filme podiam ser realizados numa escola de hoje, com os alunos a dirigiremse apressadamente ao portão ou às portas das salas de aula à hora imposta pelo relógio, obedecendo aos toques da campainha, caminhando nos corredores, embrenhados nas regras dominadoras do corpo e da mente, «praticando» atividades escolares, disciplinadoras do espaço e do tempo pessoal e social. Tal como na fábrica de Tempos Modernos, o incumprimento reiterado das regras temporais conduz à exclusão do sistema, com consequências sociais análogas às do filme. Ao aceitarem integrar as regras da instituição escolar, nomeadamente no que respeita aos horários que lhes são distribuídos, os alunos assumem, sem disso terem consciência, a sua condição de oprimidos, e hospedam os valores/interesses/necessidades de uma estrutura social que atribui ao tempo um valor, como se de um bem material se tratasse. A escolarização de massas, com todos na escola, resulta na subjugação pacífica dos indivíduos, um pouco inconscientemente, à imposição de estruturas externas reguladas por relógios, anulando a sua capacidade de ter vez e voz. Os calendários e os relógios impõem que regulemos as nossas vidas de acordo com princípios de ordenação, first things first, e de mecanismos de sincronização, levando a que, em muitas áreas, seja imposto o quando, mesmo antes de ser imposto o quê ou o como. Tem-se vindo a ilustrar que a sociedade nos meios urbanos tem-se desenvolvido em torno do passo do relógio, e lhe tem conferido a capacidade de regular e controlar a atividade humana nas suas diferentes dimensões, condicionando-a e condenando-a à sincronização horária. Desta forma o relógio, para além de marcar o tempo, operou muitas e significativas mudanças no Mundo. Como se ilustrou com o Filme Tempos Modernos, no início da revolução industrial os relógios de ponto regulavam a atividade profissional e secundarizavam os tempos pessoais e sociais, mas tal não acontecia sem contestação e revolta. Tanto assim é que estes relógios eram blindados para resistirem a atos de vandalismo, contrariamente aos atuais que fazem parte do quotidiano, já não lhes é imputada responsabilidade por qualquer penalização ou sanção que o trabalhador sofra pelos seus incumprimentos. Esta subordinação ao relógio é apreendida na escola, desde tenra idade. Aqui o aluno aprende a viver em função do toque da campainha, que tem um poder educador, na medida em que tem a capacidade de uniformizar os ritmos das crianças e dos jovens; a consulta sistemática do relógio, por parte dos alunos, durante as aulas, indicia que este tempo lhes é imposto e que não o entendem como seu; o aluno que se atrasa frequentemente na realização das tarefas sugeridas pelo professor, rapidamente é inserido na categoria de alunos «lentos»; os que se atrasam sistematicamente estão num desfasamento horário relativamente ao tempo físico dos relógios, pelo que são classificados como irresponsáveis ou desinteressados; o não cumprimento «a tempo» das tarefas escolares recomendadas para fora da sala é motivo de penalização moral e social, rotulando o aluno como preguiçoso e desinteressado; em casa o olhar do aluno, ora sonolento ora - 117 -



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desinteressado, sobre os trabalhos da escola, num período do dia em que os restantes membros da família já terminaram as suas obrigações profissionais e beneficiam de um tempo de lazer, ou pessoal ou familiar, demonstra o absoluto domínio do tempo escolar sobre as outras temporalidades; os testes cronometrados evidenciam a relação perversa entre a tirania do tempo e a banalização da aprendizagem. A escola, antes de ensinar conteúdos programáticos, transmite valores temporais. Numa outra dimensão do tempo na escola, encontramos o calendário escolar, que divide o percurso dos alunos em segmentos de vária ordem: o período letivo, delimitado por interrupções letivas de verão, de Natal e de Páscoa; o ano letivo, marcado pelas férias de verão; e os quatro ciclos de ensino, primeiro, segundo, terceiro e ensino secundário. Para cada um destes segmentos é estabelecido término marcado por um momento de avaliação e, nalguns casos, uma prova de exame nacional. Estes momentos de avaliação têm a função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que a sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo. Também estão previstos «castigos» para os casos em que os resultados se afastam dos definidos como «mínimos». Este funcionamento da escola, muito característico dos sistemas de ensino ocidentais, também incute regras e valores temporais, culminando na escola a impor ritmos de vida propícios às características das sociedades marcadas pelo capitalismo. Desta forma, os jovens aprendem a viver em ciclos temporais regulares, inscritos em ciclos de maior duração. A escola, como a conhecemos, tem um currículo oculto. Nela aprendem-se hábitos e regras sociais, como é a capacidade de viver num tempo controlado pelos sincronismos. Indivíduos que não tenham aprendido estas regras sociais terão maior probabilidade de sofrer alguma forma de marginalização. Podemos dar como exemplo a comunidade piscatória da Costa da Caparica, uma localidade balnear nos arredores de Lisboa que terá sido fundada por pescadores no início do século passado. O período do ano mais propício para a pesca nesta zona do país decorre nos meses de primavera e verão, e será aqui que a atividade piscatória é mais intensa. As companhas59 têm de se fazer ao mar de madrugada, ou ao fim do dia, uma vez que por imposição legal a pesca está interdita durante o período balnear. Torna-se evidente a dificuldade de conciliar os tempos de trabalho da família, porque as companhas são maioritariamente constituídas por membros da mesma família, com os tempos impostos pela escola, com repercussões no acompanhamento das tarefas escolares dos alunos pelos respetivos encarregados de educação, pais e família. Esta dificuldade de conciliar tempos escolares com tempos de trabalho com os da família tornam-se tanto mais prementes quanto mais novos são os alunos, podendo resultar no menor sucesso educativo e num aumento da probabilidade de abandonarem precocemente os estudos. Acresce que a desadequação dos tempos de trabalho desta comunidade com o dos demais trabalhadores com que coabitam, também, tem implicações na forma como se relacionam uns com os outros. Os pescadores não têm como adequar os seus ritmos de vida aos horários de trabalho dos vizinhos que desempenham a sua atividade profissional no comércio ou na indústria nem podem reger-se pelos ciclos temporais que a escola impõe, todos regulados por relógios, com natural prejuízo para a harmonia entre as comunidades. Na comunidade piscatória, é a Natureza que continua a ditar os

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Uma companha é constituída pelo grupo de homens e mulheres que trabalham afetos a um barco de pesca, independentemente de terem tarefas de mar ou de terra. - 118 -



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tempos e os ritmos de vida. É ela que define se vão para o mar, se ficam em terra, qual a duração da jornada de trabalho, quantos lances60 seguidos são realizados. Correndo o risco de ser repetitivo, efetivamente, os jovens em idade escolar aprendem com os seus familiares estes valores temporais que, de alguma forma, conflituam com os dominantes na escola. Outra comunidade invisível na Costa da Caparica será uma comunidade que vive num bairro clandestino localizado junto às Arribas Fósseis, constituído maioritariamente por pessoas de origem africana. Aqui, para além das condições precárias de vida, sem água ou saneamento básico, encontramos nos seus ritmos e modos de vida conceções de tempo bem distintas das já aqui descritas, que a escola tão bem ensina e perpetua. Para estes, as temporalidades pessoais e sociais têm mais significado que o tempo medido pelo relógio. Daqui resulta que, no seu entender, atrasarem-se ou não cumprirem horários combinados com outros pode ser justificável. Ou seja, determinados tempos, em família, com amigos, a realizar determinadas tarefas poerá ter um valor moral superior à imposição do sincronismo com outros. Os valores morais associados ao tempo (porque as conceções de tempo são uma construção social) podem ser diferentes dos encontrados noutras comunidades. Em consequência, o cumprimento das regras temporais impostas pela comunidade escolar: horário certo de entrada e de saída, de comer, de entrega de trabalhos... pode ser relativizada por eles, alunos, pais, encarregados de educação. Quando um jovem se atrasa na escola ou alguém deixa outro à espera, não será, por eles encarado como uma falta de respeito pela instituição ou pelo outro. Apenas estarão a viver num tempo que não é de urgência, num tempo pessoal que não tem de ser forçosamente regulado pelo relógio. Como é expectável, a instituição escolar não está preparada, nem foi concebida, para atender a outras formas de temporalidades, senão as reguladas pelo relógio. Daqui resultam tensões e conflitos entre estes indivíduos, alunos e respetivas famílias, e os que trabalham na instituição escolar e são responsáveis pelo ensino dos curricula, onde o oculto tem suma importância. Esta conflitualidade pode contribuir para algum insucesso e abandono precoce dos jovens que vivem e crescem no seio desta comunidade, à semelhança do que se verifica na comunidade piscatória. Estudos de caráter antropológico mostram que diferentes culturas ou grupos culturais têm diferentes conceções do mundo, no que lhes é próprio e característico, podendo mesmo definiremse características que lhes são únicas, mesmo associadas às mais elementares necessidades de subsistência, em harmonia com o local geográfico, físico e humano onde se inserem e onde vivem. As conceções de tempo não são diferentes. Os processos de transmissão de conhecimento entre gerações, numa dada cultura, são variados e anteriores à própria escrita, e inevitavelmente à invenção da escola. Entre os processos mais frequentes está a memória oral, o ritual das gerações mais novas ouvirem histórias contadas pelos mais velhos. No presente, a hegemonia da escola na transmissão de conhecimentos, resulta, em grande parte, do domínio da memória escrita sobre a oral, mas, em termos práticos se as suas regras não são entendidas, são menosprezadas, e tende-se a caminhar para o afastamento, o isolamento e para a marginalização. As temporalidades urbanas fazem parte do currículo oculto das escolas aí implantadas, e, como nos demais currículos escolares, as aprendizagens que não atingem determinados mínimos preveem formas de penalização e tendem a marginalizar quem, por opção ou por necessidade, vive outras conceções de tempo, noutras temporalidades.



60 Na arte xávega, arte de pesca tradicional praticada na Costa da Caparica, o barco sai para o mar várias vezes seguidas. Cada uma destas saídas é denominada por lance.

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Ilustração de João Moreira

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A OUTRA COSTA Renan Laporta

Calor, verão, bolas de Berlim. Ondas, surf, vento, turismo. Peixe fresco e esplanadas. O que mais define a Costa da Caparica? Explorando realidades invisíveis numa cidade de turismo balnear. Hipnotizados pela beleza do horizonte, são poucos aqueles que desviam o seu olhar para a esquerda ao descer a reta final da IC20, que rasga a Arriba Fóssil em direção ao mar. É ali, em terras agrícolas abrangidas pela Reserva Ecológica Natural e pela Reserva Agrícola Nacional, que residem cerca de quatrocentas e setenta pessoas em condições parcialmente ilegais. Portugueses e imigrantes, em sua grande maioria oriundos de países de Língua Oficial Portuguesa, mas, acima de tudo, pessoas que lutam para sobreviver sem o direito de acesso à água. A Costa de Caparica é uma cidade costeira, situada na margem sul do rio Tejo, de frente para a capital Lisboa e geograficamente limitada pelo oceano e a face da Arriba Fóssil. É uma cidade dormitório para as pessoas que trabalham na capital e uma importante estância balnear, não só para os turistas de todo o mundo, mas também para a elite de Lisboa que mantém propriedades de luxo de veraneio e também o seu direito de voto no local. A Costa de Caparica é igualmente uma vila de pescadores. Esta cidade foi fundada por duas comunidades distintas de pescadores de Ílhavo e Olhão - localizadas no norte e no sul de Portugal, respectivamente. A Comunidade Piscatória está situada na zona costeira desta cidade – conhecida popularmente como Costa. Em contraste, a zona rural – localizada na base dos penhascos fósseis, é popularmente conhecida como Terras da Costa. Nesta zona rural foi desenvolvida uma comunidade agrícola autodesignada Comunidade das Terras da Costa. As centenas de pessoas desta comunidade habitam há mais de 30 anos um local urbano, ao lado de uma capital europeia, sem ter acesso à água e ao saneamento básico. Existem duas formas dos moradores deste lugar invisível terem água: captando água da chuva, através de sistemas de colheita caseiros, ou recolhendo água numa bica que se situa ao lado da IC20, por caminhos de terra batida, a 1km das Terras da Costa. Desde 2009, procuram uma forma mais sistemática de se estruturarem, compreendendo que apenas conseguirão qualquer melhoria das suas gritantes condições de exclusão socioeconómica constituindo um grupo representativo das suas vozes. No final de 2012, integrados no projeto Fronteiras Urbanas, começaram a delinear um processo democrático de constituição de uma Comissão de Moradores local. Em Maio de 2013, foi constituída tal comissão através de um processo eleitoral que contou com mais de 90 % dos moradores (e eleitores) locais. Porém, mesmo com uma comissão de moradores eleita, os processos de diálogo com o governo local têm sido muitas vezes morosos ou até inexistentes. A entrada de diferentes grupos de arquitetos no ano de 2012/2013 pelo projeto Fronteiras Urbanas foi uma alavanca impulsionadora no sentido de se estabelecer tal diálogo. Os moradores locais, oprimidos e silenciados em anos de existência, hoje em dia atuam em diferentes frentes de expansão - o que tem sido, de fato, o maior instrumento de diálogo com o exterior da comunidade, tanto com a sociedade local como com o resto do mundo. O património humano local começa a transmitir o seu potencial através das suas bases culturais, e lança o Batuko, o Kriolu e o Uril (música, língua e jogo cabo-verdianos), a Dança Cigana, o - 121 -



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Romani e a Culinária Multicultural local como ferramentas de libertação no sentido de expansão. É possível notar que, com este movimento, se criou uma identidade espacial local e a partir da qual se começam a ver moradores das Terras da Costa a trabalhar com os pescadores locais, ou mesmo apenas a conhecer o mar que, mesmo estando tão perto geograficamente, ainda era um espaço desconhecido para alguns moradores. O grande contraste revela-se face aos prédios (arranha-céus na perspectiva proposta) que demarcam uma linha visível de divisão entre a cidade e a comunidade. Do mesmo modo, o facto de terem acesso à TV por satélite sem terem acesso básico à água canalizada contrasta com alegria com que vivem e sobrevivem os membros da comunidade, a qual não se sente com tanta intensidade no centro urbano. Retirar o véu da invisibilidade desta comunidade, invisível aos olhos da sociedade local, é garantir a sua existência, expandir as suas potencialidades e respeitar os direitos à vida com dignidade.

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Ilustração de Anderson, 5 anos

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DIÁLOGO ENQUANTO CATEGORIA POLÍTICA Sílvia Franco

Este texto surge como uma reflexão da minha própria experiência enquanto estudante, formadora, investigadora e, principalmente, cidadã. Uma cidadã nem sempre atenta ao mundo que a rodeia, nem sempre consciente da sua responsabilidade social, mas que tem transformado a reflexão numa ferramenta fundamental para a conscientização de si própria enquanto educadora e investigadora, do mundo formativo/ educativo e das necessidades sentidas por grupos que, de uma forma ou de outra, sentem ameaçados ou negados os seus direitos enquanto cidadãos. Enquanto corpos conscientes, em relação dialética com a realidade objetiva sobre que atuam, os seres humanos estão envolvidos em um permanente processo de conscientização. O que varia, no tempo e no espaço, são os conteúdos, os métodos, os objetivos da conscientização. Sua fonte original se encontra no momento remoto que Chardin chama de “Hominização”, a partir do qual os seres humanos se fazem capazes de desvelar a realidade sobre que atuam, de conhecê-la e de saber que conhecem. (Freire, 1976; 148)61

Considero que este processo de conscientização é o fio condutor da educação e da formação dos indivíduos, promovendo a necessidade constante de investigar, descobrir, refletir e renovar modos de ação. Numa altura em que a civilização atual está imersa/envolvida num movimento de mudança global, fomentado pela crise económica e social que se tem agravado, torna-se impossível não nos questionarmos sobre a real importância das coisas, sobre o que é de facto prioritário nas nossas vidas, retomando assim questões essenciais que têm estado um pouco dissipadas por entre a azáfama do consumismo e do individualismo. A conscientização do cidadão enquanto membro ativo de uma sociedade onde tem a possibilidade de participar num movimento coletivo construtivo e de respeito e amor ao próximo passa diretamente pela formação. Uma formação abrangente, que integre conhecimentos multi e transdisciplinares emergentes da diversidade dialógica que nos cerca enquanto indivíduos que caminham através de grupos e meios distintos no percurso imprevisível da nossa vida, faz da educação/formação de crianças, jovens e adultos que se tem regido pela transmissão acrítica de conteúdos, sem espaço para o olhar dos educandos, uma das questões essenciais a rever face ao novo contexto que emerge. O olhar de que falo revela o background e o foreground (Skovsmose, 2006)62 de cada um num processo em que cada um é peça fundamental. Tomando cada ser, cada interveniente no processo educativo, também ele, como responsável pelo devir e pela construção de novas oportunidades tanto a nível pessoal como profissional. Contudo sinto este caminho como um constructo dialógico,

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Freire, P. (1976). Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Skovsmose, O. (2006). Foreground dos educandos e a política de obstáculos para aprendizagem. . In Ribeiro, J., Domite, M. & Ferreira, R. (Eds.) Etnomatemática: papel, valor e significado (pp.103-122). 2ª edição. Porto Alegre: Zouk. 62

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onde o diálogo se torna ferramenta essencial para as aprendizagens, possibilitando revisitar o background e olhar o foreground dos educandos. Enquanto educadores/investigadores não temos que considerar apenas o background dos educandos. Nós também temos que considerar as suas esperanças e aspirações. Nós temos que considerar onde eles querem ir. Significado não representa apenas o passado e o presente. Também representa o futuro. O foreground dos educandos é um recurso principal para produção de significado. (Skovsmose, 2006;113)63

Neste sentido, convido a uma reflexão sobre o papel e relevância do diálogo na sociedade em que vivemos e, especialmente, no sistema educativo que rege a forma como os estudantes que o frequentam, independentemente da sua faixa etária, olham para o seu background e para o seu foreground, a forma como se revêm na sociedade… Não será o diálogo, ou ausência dele, um instrumento de negação ou promoção da participação nas dinâmicas da sociedade, ou seja, um instrumento político? Em consciência de que a política tem sido, evidentemente, governada por interesses de uma minoria dominante, não nos podemos esquecer que a identidade nasce na relação do eu com os outros. É pelo diálogo com o mundo que nos rodeia e com os outros que o constituem que ganhamos consciência de quem somos e é pelo diálogo que podemos ganhar consciência da condição humana que a todos envolve. Tendo em mente o potencial do diálogo, olho à minha volta e busco a diversidade dialogante (Franco, 2013) 64 nas práticas educativas, sejam elas formais, informais ou não formais, na tentativa de promover a reflexão sobre o diálogo enquanto categoria política. O projeto Fronteiras Urbanas Das práticas desenvolvidas no âmbito do projeto Fronteiras Urbanas: a dinâmica de encontros culturais na educação comunitária65 surgiram questões que intensificaram a relevância de refletir sobre o diálogo no sentido acima descrito. Este projeto de investigação de caráter etnográfico crítico parte do princípio que todos os envolvidos têm o papel principal em todas as dinâmicas que dizem respeito às suas vidas, pelo que as suas vozes são essenciais nos processos de tomada de decisão. O projeto Fronteiras Urbanas adotou, em todo o seu percurso, um molde dialógico que integra membros de três comunidades distintas que têm em comum a luta pelos seus direitos básicos e para a sua voz ser escutada junto das instituições de poder. Três comunidades unidas na construção



63 Skovsmose, O. (2006). Foreground dos educandos e a política de obstáculos para aprendizagem. . In Ribeiro, J., Domite, M. & Ferreira, R. (Eds.) Etnomatemática: papel, valor e significado (pp.103-122). 2ª edição. Porto Alegre: Zouk. 64 Franco, S. (2013). A Diversidade Dialogante num Processo Educativo Indígena – Observações num curso de Etnomatemática – Dissertação de mestrado. Lisboa: Universidade de Lisboa. 65 Projeto Fronteiras Urbanas: A dinâmica do encontro cultural na Educação Comunitária, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/CPE-CED/119695/2010) e suportado pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

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do projeto, cujas tarefas foram desenhadas face às necessidades e desejos dos seus participantes, isto é, em diálogo. Deste diálogo inicial definiram-se três tarefas prioritárias: Alfabetização Crítica, Cartografia Múltipla e Histórias de Vida. Estas três tarefas tiveram o suporte da Mediação Comunitária que promoveu momentos de diálogo que surgiram sobre formas diversificadas: conversas, teatro, música, construção de um pequeno jornal, entre outras… Nos encontros entre as comunidades Piscatória, Bairro e Académica, constituintes do projeto, o “diálogo [surge] como instrumento fundante da nova praxis que terá de ser sempre reflexão e acção intersubjectivas” (Vicente, 1995; 376) 66 , seguindo as pisadas de Paulo Freire. Neste exercício constante desperta a consciência de quão essencial é o diálogo para todos podermos assumir o protagonismo das nossas vidas e, portanto, o papel decisor face aos mecanismos sociais, culturais e políticos em que estamos inseridos. Contudo, também, nos apercebemos das dificuldades que surgem na prática e as reflexões relativamente aos motivos que conduzem a tais dificuldades tornam-se cada vez mais necessárias. Comunidade Piscatória A Comunidade Piscatória, em luta pelo acesso à água enquanto fonte de subsistência, busca formas de chegar às instituições decisoras relativamente ao sector da pesca, ou seja, busca um diálogo onde os pescadores, parte ativa e responsável pelas práticas do setor, sejam ouvidos. Contudo, esse é um diálogo difícil de concretizar, uma vez que coexistem interesses diversificados para o sector e por detrás das suas práticas e, principalmente, da sua gestão institucional. Constatamos que as decisões estão institucionalizadas, longe das práticas diárias de quem labora na área, mas a comunidade não se deixa calar e organiza-se associativamente para se fazer ouvir. Comunidade Bairro A Comunidade Bairro, também, luta pelo acesso à água. Mas esta comunidade de, aproximadamente, 500 pessoas luta pela água enquanto bem essencial, uma vez que o local que habitam não possui água canalizada e a fonte mais próxima se encontra a um quilómetro de distância de caminhos em mau estado. Neste sentido, as suas reflexões têm assentado, principalmente, na tentativa de criar momentos de diálogo com as instituições locais, entre outras, com poder para ajudar a resolver esta questão. Nesse processo tentaram-se várias formas de diálogo, entre as quais cartas e reuniões que na maioria das ocasiões não tiveram resposta, explicitando uma forte necessidade de formalizar relações e situações, bem como os jogos de poder implícitos. Respondendo, sem cessar, às solicitações impostas à comunidade, elege uma comissão de moradores num diálogo democrático intracomunitário e reforça veementemente as suas solicitações.

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Vicente, J. (1995). Educação, Diálogo, Crítica e Libertação na Acção e Pensamento de Paulo Freire. Revista Filosófica de Coimbra, nº 8. Retirado de: http://www.uc.pt/fluc/dfci/publicacoes/educacao_dialogo. - 129 -



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Comunidade Académica No seio da Comunidade Académica a luta tem-se feito em prol de uma Educação Emancipatória que se desenvolva em diálogo com a Educação Comunitária, isto é, em respeito pelas vozes, necessidades e desejos das comunidades envolvidas no processo. Um caminho que conduziu ao desenvolvimento de uma escola onde todos são convidados a participar de forma voluntária e assumindo tanto o papel de educando como de educador, pois todos os saberes são valorizados de igual forma. Neste caso, o diálogo de saberes teve um período de partilha intensa que fortaleceu o valor humano de cada indivíduo bem como o potencial da partilha dialógica. Contudo, esta experiência levantou diversas reflexões face aos espaços, tempos e ritmos de cada um, valores culturais a respeitar no diálogo. Este diálogo conduziu, ainda, à consciência política de que somos cidadãos com direitos declarados que, todavia, nem sempre vemos aplicados. Face a essa realidade entendemos o poder do diálogo enquanto categoria que nos viabiliza a tomada de poder ao assumirmos a nossa responsabilidade pelo nosso destino. Educação e diálogo Na minha experiência profissional no projeto Fronteiras Urbanas, como educadora num projeto comunitário, como formadora em cursos profissionais ou num Centro Novas Oportunidades, encontrei muitos adultos e jovens procurando assumir a responsabilidade pelas suas vidas através da educação. Jovens e adultos que devido aos seus percursos se viram forçados a abandonar os estudos ou nunca tiveram oportunidade de estudar. De forma intencional e voluntária ou forçados pelos empregadores ou pelo Estado face a uma situação de desemprego, os indivíduos com que me cruzei partilharam algumas experiências de vida e da sua relação com o sistema de ensino. Alguns não estavam satisfeitos por ser forçados a participar em determinadas situações formativas, contudo, ao depararem-se com formadores e propostas de trabalho de caráter dialógico, sentiram desejo de prolongar a experiência. Outros, no entanto, queriam estudar e procuraram instituições formais que lhes permitissem concretizar esse sonho, porém as respostas recebidas promoveram os sentimentos de desmotivação e discriminação no processo a que se propunham. Encontrei grupos de jovens críticos com ambições para o futuro que não percebiam as razões que levavam o sistema de ensino e o Estado a negar-lhes oportunidades, criando obstáculos burocráticos e negando os contributos que tinham a dar. Jovens que questionavam os direitos patentes na Constituição da República, uma vez que os viam negados nas suas vidas. Jovens que refletiam sobre os direitos e deveres das autoridades, interrogando-se se têm direito de lutar contra os abusos que sofrem e veem ser realizados pelas autoridades policiais. Encontrei, também, adultos que nunca puderam frequentar a escola e que tentaram por várias vezes inscrever-se em cursos de alfabetização, vendo negada a aprendizagem por não terem bases. E como podem ganhar bases quando o sistema de ensino não lhes dá a oportunidade?

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Jovens e adultos presos nos formalismos do sistema veem negados os seus direitos bem como a possibilidade de participar dos diálogos respeitantes à sua educação e não só. Ao constranger as possibilidades de determinados indivíduos ou grupos populacionais de participar em experiências educativas, nega-se-lhes o direito de dialogar em contextos sociais, culturais, económicos… Mais uma vez, as decisões são tomadas sem ouvir os seus interesses e necessidades, as suas sugestões… Resta a consciência de que não se pode desistir de dialogar e lutar. O diálogo nas políticas individuais Se refletirmos sobre as nossas práticas de diálogo, percebemos o quão difícil é dialogar como apresentado por David Bohm (2004)67, onde o diálogo é uma corrente de sentido que flui entre todos os participantes da conversa/ da interação, permitindo o desenvolvimento de novos entendimentos. Para o autor, esses significados compartilhados assumem um papel fundamental na união de um grupo e no fortalecimento de uma sociedade. Numa ótica primária, temos tendência a encarar o diálogo como um instrumento ao serviço da política dos grupos dominantes, mas em consciência das práticas de uma política democrática que ganha impacto na sociedade pela identificação ou não identificação (Balibar, 2002) 68 dos indivíduos com os argumentos/ posição defendida, é necessário assumir a dificuldade sentida em escutar outros posicionamentos face a uma temática quando já definimos convicções num determinado sentido. A tendência é defendermos a nossa posição intensamente e, até mesmo, agressivamente, afastando tudo o que nos é apresentado. Se pensarmos que a política é também o “modo de se haver em qualquer assunto particular para se obter o que se deseja”69, podemos considerar que ao dialogarmos temos tendência a fazer um posicionamento político. Esse posicionamento suprime a capacidade de dialogar. Neste sentido, as reflexões realizadas a partir dos encontros intra e intercomunitários promovidos no âmbito do projeto Fronteiras Urbanas levaram-nos à consciência de quão importante é escutar e compartilhar ideias, ideais e significados. Para abrirmos espaço nas nossas convicções para escutar, partilhar e construir novos entendimentos é essencial estarmos conscientes de quão difícil é fazê-lo, mas principalmente acreditar que, cada um de nós, é responsável pela sua própria emancipação enquanto cidadão e, consequentemente, pela manutenção da sua liberdade e da sua autonomia política, social e cultural, bem como da liberdade e autonomia de outros. Para alcançar o protagonismo das nossas próprias vidas é emergente rever o nosso posicionamento nos diálogos em que participamos, procurando e promovendo a escuta e a partilha. Deste modo, considero essencial investir numa Educação Emancipatória que nos impulsione a ser críticos face a nós próprios e à sociedade em que estamos inseridos. Uma educação desenvolvida enquanto ferramenta essencial para a promoção do respeito, da abertura para o outro e para a diferença, de autonomia e de adaptabilidade. Uma educação assente em diálogo consciente e crítico que promova a mudança a todos os níveis dentro e fora do sistema de ensino, gerando um processo dialógico em que todos ganham e todos contribuem.

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Bohm, D. (2004). On Dialogue. London: Routledge. Balibar, É. (2002). Politcs and the Other Scene. London: Verso. 69 Dicionário da Língua Portuguesa, 6ª edição, Porto Editora, pág. 1309. 68

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Segundo Paulo Freire (2008; 90)70, a educação concretiza-se pelo diálogo enquanto verbalização conjunta do mundo e forma de atribuição de significação aos homens enquanto homens. Para o autor, “Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.” Pois é neste ciclo constante que o homem desenvolve a sua capacidade de pensar criticamente pelo diálogo e para o diálogo, promovendo a comunicação que gera educação. Ao encararmos o diálogo enquanto instrumento gerador de novos significados promotores da “emancipação” sob a forma de tomada de posse da responsabilidade de cada indivíduo na sua própria vida, promoveremos uma “transformação” individual e social que promoverá uma nova “civilidade” (Balibar, 2002; 2)71. É preciso, no entanto, que não esqueçamos o papel que cada um de nós tem na definição e atribuição de ‘rótulos’ que constituem a principal forma de identificação e não identificação, agregação e segregação de massas. Fica a pergunta: Será o diálogo uma categoria política?

70 71

Freire, P. (2008). Pedagogia do Oprimido, 47º Edição. São Paulo: Paz e Terra. Balibar, É. (2002). Politcs and the Other Scene. London: Verso. - 132 -



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POSFÁCIO José Pedro Martins Barata

O presente livro nasceu da convergência de estudos e experiências em torno duma situação social, económica, administrativa e geográfica específica definida na área metropolitana de Lisboa. O valor desses estudos e experiências excede, porém, o nível do específico e local com caráter monográfico e académico porque assenta na experiência empenhada e vivida pelos intervenientes agindo em interação com os sujeitos da observação. Mas não é também apenas um qualquer relato, uma denúncia, um incitamento, uma análise e proposta de ação o que, de algum modo já teria utilidade; trata-se sobretudo de mostrar que por trás das intervenções aparentemente mais diretas, mais simples, urgentes e utilitárias há toda uma rede de dificuldades, bloqueios, conflitos de interesses e pressões, e esses implicam a necessidade de conhecer e interpretar os seus significados e dinâmicas. Nesta publicação são oferecidas visões de ângulos diversos sobre aquela situação e aquele espaço no qual a convivência entre comunidades e entre elas e o ambiente social circundante exige um esforço constante de compreensão, que, só ele, poderá conduzir à superação de conflitos e à resolução de carências coletivas. Compreensão, em suma, sem a qual não é possível mobilizar vontades, dirigir e potenciar as reivindicações, educar para a vida em comunidade, apoiar o desenvolvimento do sentido de justiça e de solidariedade; por outras palavras, enfim, dar bases a uma real política de intervenção cívica concreta e eficaz. Não há receitas, não há truques, não há atalhos de facilidade. Não serve de nada o exercício intelectual reduzido à produção académica de saberes se não se reconhecerem como recebendo a sua valia da prática concreta, no terreno. O significado dos vários textos neste volume é assim o de deverem ser lidos como momentos de percursos em via de serem explorados, caminhos a serem apontados e saberes a serem elaborados. E continuarão a sê-lo.

J.P. Martins Barata

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