Fundamentalismo neoliberal e \'apartheid\' cultural
Descrição do Produto
Mário Vieira de Carvalho Fundamentalismo neoliberal e apartheid cultural (publicado in Seara Nova, n.º 1727, Primavera de 2014) Em 2007, a Europa ainda tinha uma estratégia e um projeto comum, que reconhecia nomeadamente a importância das políticas públicas em várias áreas – incluindo a da cultura. Ao juntar-se à maioria esmagadora dos povos do mundo na Convenção da UNESCO de 2005 sobre a defesa da proteção e promoção da diversidade cultural e do diálogo intercultural, a Europa, ao mesmo tempo que dava um importante contributo para a elaboração de princípios e valores consensualmente assumidos pela comunidade internacional, reconhecia-os do mesmo passo como vitais para os povos europeus e para a própria construção de uma identidade europeia também baseada precisamente na proteção e promoção intrafronteiras da diversidade e do diálogo interculturais. A partir de 2008, porém, o projeto europeu esvaziou-se completamente. Aos Estadosmembros passou a caber apenas o papel de executores e joguetes dos interesses dos “mercados”. As políticas públicas em áreas como as da cultura, da ciência ou da educação – necessárias, em doses reforçadas, nos países que, como Portugal, tinham sido vítimas de bloqueios históricos – deixaram de ser uma prioridade solidariamente assumida no quadro europeu. Especialmente em Portugal, as consequências têm sido desastrosas, agravadas que são pelo fundamentalismo neoliberal que inspira todos os atos do governo. A demonização do investimento público e o curso acelerado do programa de desmantelamento do Estado não só interromperam mas também fizeram reverter o processo de aproximação aos indicadores médios de desenvolvimento europeus. Em cerca de três anos, destruímos o que nos levou talvez uns vinte (ou mais) a alcançar. A ideia de que o país tem de empobrecer, para “competir” com os países mais pobres do mundo – condenada até por magnates como George Soros (que já falam duma espécie de centrifugação dos países do sul da Europa para o terceiromundismo) e denunciada como “obscena” pelo filósofo Jürgen Habermas, mas alegre e pateticamente assumida como doutrina oficial do “regime” – não afeta apenas o padrão de vida material do portugueses. Afeta também drasticamente o seu desenvolvimento humano e compromete até a sobrevivência do país como nação livre e independente, portadora duma forte identidade cultural, com uma história quase milenar e uma língua das mais faladas no mundo. A “bolha” da monocultura A incapacidade de entender a cultura como um potencial riquíssimo de desenvolvimento tem, desde logo, a sua origem no isolamento social, na “bolha” – expressão de Zygmunt Bauman – em que vivem os “gestores” e os seus instrumentos de “gestão”: um círculo fechado sobre si próprio que “gere” globalmente a rede de interesses financeiros, tráfico
1
de influências, exploração de recursos naturais, mobilidade de pessoas e capitais. Esse pequeno círculo que hoje domina o mundo rege-se por um fundamentalismo só comparável ao dos fanatismos religiosos. Não reconhece à sua volta senão os “marcadores” abstratos em que se baseia a sua crença. Neste sentido, ele mesmo é, tal como os fundamentalismos religiosos, um fenómeno cultural e trava, tal como aqueles, uma batalha cultural pela imposição dos seus “valores” a todas as outras visões e vivências possíveis do mundo e da vida. É por isso que tanto se insiste no discurso de que “não há alternativa”. Assim, por um lado, a Europa subscreveu a Convenção da UNESCO de 2005, que consagra a liberdade de criação individual e coletiva contra a ameaça de hegemonização ou de novas formas de colonização culturais pelos países ou grupos economicamente mais poderosos. E subscreveu-a com base em princípios que visam simultaneamente isolar a intolerância religiosa e o seu ímpeto destrutivo do património cultural do outro. Por outro lado, porém, qual cavalo de Tróia, a monocultura entrou agora na Europa portas adentro, não por via da temida extensão universal das leis da livre concorrência aos bens e serviços culturais, mas sim administrativamente: através da usurpação dos governos e outras instâncias de decisão por essa “bolha” global para quem os “mercados” são a medida de todas as coisas. Na verdade, como qualquer variante de fanatismo teológico, a monocultura que se instalou nos centros de decisão faz da intolerância radical para com todas as outras culturas, incluindo diferentes culturas científicas o seu programa e a sua própria condição de existência. Não se pode deixar de reconhecer nessa monocultura instalada, tentacular, que se apoderou da comissão europeia, dos governos, dos instrumentos de decisão financeira, dos parlamentos, dos partidos do chamado “arco da governação”, da comunicação social e da esfera pública (insidiosamente “refeudalizada”, como nunca antes, sob o verniz já muito estaladiço do “pluralismo”), exatamente os mesmos traços que Terry Eagleton, num dos seus textos mais recentes, atribuiu a ambas as forças antagónicas que começaram a digladiar-se no dealbar do século XXI: o fundamentalismo islâmico, de um lado; o neoconservadorismo da Administração Bush, do outro. Intolerância cultural em vez de controvérsia política A tese de Eagleton é que, em ambos os casos, a cultura é utilizada como fundamento da aniquilação do outro. É-lhes comum o serem movimentos “prontos a matar” para impor os seus valores “culturais”. Assim, enquanto a vitória dos aliados sobre o III Reich teria sido uma vitória da “civilização” sobre a “cultura”, já o neoconservadorismo da Administração Bush e o fundamentalismo islâmico, ao deslocarem o confronto “político” para o confronto “cultural”, seriam o espelho um do outro. Isto ajuda-nos a compreender a guerra que a Administração Bush desencadeou contra a Convenção da UNESCO, sendo acompanhada apenas por Israel no seu voto contra. A privatização integral da economia (uma crença inerente à cultura dos neo-conservadores e aos interesses que eles defendem) deparava-se-lhe como a receita mais óbvia para assegurar a hegemonia cultural: através da hegemonia económica.
2
Simplesmente, essa é também a receita que acabou por vingar na própria Europa através das políticas de austeridade e da liquidação do setor público da economia. Mais: se o processo de privatização da economia a que se chama eufemisticamente “ajustamento” ou “reestruturação” ainda vai a meio, muito mais rápido e profundo tem sido o da privatização do Estado. A degradação deste à condição de Estado-mercadoria, dependente da especulação na bolsa, tornou-se, aliás, a consequência mais visível desse processo de privatização, que começou com a transferência do modelo gestionário importado do mundo empresarial para a Administração Pública, transferência acelerada e intensificada em Portugal nos últimos três anos. É o new public management, que se estende vorazmente a todos os domínios da vida, como tem sido posto em evidência pelo sociólogo francês Luc Boltanski: introduz o princípio da livre concorrência não só entre o setor público e o privado, mas também entre entidades públicas que operam no mesmo setor bem como entre os próprios indivíduos que nelas trabalham. Neste regime, que começou a ganhar terreno nas últimas décadas do século XX, a crítica não é suprimida ou sufocada, como o seria nos regimes autoritários –, e por isso o modelo “gestionário” parece compatível com o exercício democrático. Aí reside, porém, o seu carácter particularmente insidioso, pois, como Boltanski ainda recentemente reiterou no seu discurso de aceitação do Prémio Petrarca, o modelo “gestionário”, ao mesmo tempo que admite a crítica, torna-a simplesmente inoperante: “Tudo se passa como se a crítica perdesse qualquer hipótese de intervir na realidade”. Isto é, diz-se e repete-se até à exaustão que não há alternativas credíveis, a não ser aquelas que nos são apresentadas como “fatalidade”. É assim, através desta nova forma de “violência simbólica” (como diria Bourdieu) que se faz e se impõe a “construção social da realidade”. Em suma, a controvérsia política em torno de interesses e posições ideológicas divergentes, como parte integrante dum estádio de maturidade cívica e/ou civilizacional em que os interlocutores se escutam uns aos outros e se respeitam como cidadãos no agir comunicacional (no “uso público da razão”), cedeu lugar à intolerância cultural. Este é um regime da exclusão do outro que não carece de instrumentos “políticos” convencionais como o lápis azul das “comissões de censura” ou leis de exceção suspendendo as liberdades e garantias. Para assegurar a “sincronização” ou Gleichschaltung, basta-lhe agora a degradação das condições de vida que exclui do exercício da cidadania setores cada vez maiores da população. E basta-lhe o coro das “vozes do dono”, em postos-chave da economia, dos mass media e do Estado, que descredibiliza, ridiculariza, marginaliza ou ignora a contestação. Uma linha de discriminação dir-se-ia racista – ou tão radicalmente intolerante como a dos racismos – divide as sociedades. Passámos a viver numa espécie de apartheid: o círculo autorreferencial da elite “iluminada” do pensamento único – isto é, a “bolha” dos capatazes ao serviço dos 0,1% mais ricos do mundo – e o resto: a “populaça” subjugada e desprezível, o “Outro inferior”, onde cabem todos aqueles, até prémios Nobel, que ousem discordar da ordem estabelecida. É essa nova forma de racismo que explica a arrogância com que se atacam os mais elementares direitos sociais e constitucionais, incluindo o
3
direito à vida e à integridade física (a “economia mata!”), e que explica ao mesmo tempo a “naturalidade” com que a opinião pública é persuadida a aceitar esses ataques como uma espécie de merecida punição. Por uma cultura da emancipação Há que reunir, pois, todas as forças possíveis para resistir a um tal “absolutismo” – como lhe chama Boltanski – e superá-lo, começando logo por desmascarar a ideologia que está por detrás do discurso legitimador dos chamados “economistas neoclássicos”, que insistem em impor-nos as suas crenças económicas (e os interesses que elas servem) como “leis da natureza”. Urge devolver à esfera pública a eficácia do poder da crítica, da problematização do real, numa palavra, da política. Urge contrapor à monocultura da dominação (assente num único “valor”: o dos “mercados”) a cultura da emancipação – aquela em que se reconhecem as grandes conquistas civilizacionais: a cultura que emana dos valores do mundo vivido e que se inscreve plural e dialogicamente na semântica da interação de povos, comunidades, “minorias” e pessoas. As medidas que vêm sendo tomadas pelo governo português são, porém, ainda mais fundamentalistas do que as de muitos outros governos neoliberais europeus. Começa logo pelos ataques desferidos à escola pública e à ciência, marcados manifestamente pelo sectarismo do “modelo gestionário”, como se infere da subordinação imediatista de ambas às alegadas “necessidades das empresas” ou como decorre ainda da tentativa de cilindrar as ciências sociais e humanidades (evidente nos últimos concursos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e agora também na decisão da nova direção da Fundação Luso-Americana de “descontinuar” os apoios a esses ramos científicos no âmbito do intercâmbio com universidades norte-americanas). Assinale-se também o ataque generalizado e indiscriminado às Fundações enquanto instrumentos de envolvimento da sociedade civil em projetos não raro de grande valor estratégico em diferentes áreas. As já débeis redes culturais do País foram profundamente afetadas por estas e outras medidas ditas de austeridade e pela recessão económica induzida, a que se somaram novos cortes no orçamento para a cultura, agora gerido por um Secretário de Estado com o estatuto de mero director-geral. Se existe uma “política cultural” do governo, então ela tem como objetivo número um a liquidação de qualquer política cultural, isto é, a entrega dos bens e serviços culturais ao livre jogo das leis do mercado. Com efeito, este governo não se reconhece na Convenção da UNESCO. É-lhe completamente estranho o espírito que a informa: o princípio de que a promoção das expressões culturais através de políticas públicas é um fator, não só de enriquecimento espiritual, mas também de enriquecimento material das comunidades; o princípio de que o orçamento de Estado para a cultura não é, neste duplo sentido, um ónus, mas sim um investimento reprodutivo que tem enormes repercussões estruturais na própria prosperidade económica do país.
4
Isso é comprovado, de resto, pelos estudos que têm vindo a ser publicados sobre a relação entre o PIB de diferentes países e o peso que neles assumem as chamadas “atividades culturais e criativas”. Injetar dinheiro na cultura através do orçamento de Estado é também uma forma de injetar dinheiro na economia: - promovendo setores de atividade com enorme “valor acrescentado”; - apoiando projetos com incidência no combate à desertificação do interior a à correção de assimetrias regionais; - incentivando a especificidade de pólos locais e o seu potencial transnacional; criando condições para a exportação em larga escala da nossa criação cultural em todas as áreas (sem esquecer o papel complementar que, para além dos seus projetos autónomos, o audiovisual pode e deve asumir na captação, documentação, promoção e divulgação de todas as outras atividades culturais e artísticas e de conteúdos em língua portuguesa); - intensificando a cooperação e o intercâmbio no espaço europeu, mas apostando sobretudo num movimento contra-hegemónico das culturas lusófonas e iberoamericanas através de parcerias e redes no quadro da CPLP e da OEIA; - gerando, enfim, desta maneira, uma dinâmica de emprego artístico e cultural que fixe em Portugal e atraia para Portugal as vagas de jovens talentos, altamente preparados, formados anualmente nas universidades e noutros estabelecimentos de ensino superior ou profissional especializado (o que contribuirá também para o combate ao desemprego em muitas outras atividades com que a cultura direta ou indiretamente se relaciona, desde a hotelaria e o turismo até às novas tecnologias, transportes e comunicações). Um país que assim desperte, através de políticas públicas com visão estratégica, da vil tristeza a que querem condená-lo para sempre (pois não se pense que algo restará de aproveitável após mais vinte ou trinta anos de austeridade), não será um país que tenha razões para temer o envelhecimento da sua população e uma crise demográfica, ou a ameaça de bancarrota, ou o fim do Estado social. Pelo contrário: colherá os frutos dessa dinâmica de vida. Basta de Viva la muerte! – começando na dos pensionistas e acabando na do País –, apelo fascista agora repetido em nome dos “credores” e dos “mercados”: como se o extermínio das “bocas inúteis” (Himmler) fosse hoje de novo retomado como “solução final”... Seara Nova, Abril de 2014
5
6
Lihat lebih banyak...
Comentários