Gays, Lésbicas e Travestis em Foco

June 2, 2017 | Autor: V. Melo de Mendonça | Categoria: Feminist Theory, Homosexuality, LGBT Studies
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Gays, lésbicas e travestis em foco

diálogos sobre sociabilidade e acesso à educação e saúde Organizadores

Luciana Leila Fontes Vieira Luís Felipe Rios Tacinara Nogueira de Queiroz

Gays, lésbicas e travestis em foco: apresentação Luciana Leila Fontes Vieira Luís Felipe Rios Tacinara Nogueira de Queiroz

1 • Abrindo o debate Dando sequência às publicações do Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana (LabESHU), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na série “Gênero, sexualidade e direitos humanos”, apresentamos o quinto livro, intitulado “Gays, lésbicas e travestis em foco: diálogos sobre sociabilidade e acesso à educação e saúde”. Esta obra é mais uma produção do Programa Diálogos para o Desenvolvimento Social de Suape (Diálogos Suape), contando com recursos da PetroquímicaSuape para a publicação. O Diálogos Suape consistiu em uma grande ação de pesquisa-intervenção que teve como objetivo compreender e minimizar os impactos sociais oriundos da migração de um expressivo contingente de trabalhadores para a microrregião de Suape (Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca), Região Metropolitana do Recife (RMR). Essa migração maciça foi provocada pela oferta de postos de trabalho na construção civil, em função dos incentivos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, para o incremento do Complexo Industrial e Portuário de Suape (Rios, Medrado et al 2015). Por meio de interferências psicossociais, fundadas em estratégias dialógicas de mobilização social, entre maio de 2012 e janeiro de 2015, as comunidades de Suape foram chamadas a refletir sobre um conjunto de temáticas relacionadas aos direitos e saúde sexuais e reprodutivos (Rios, Lins et al, 2015).1

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O acúmulo de reflexões acadêmicas sobre as diferentes atividades que compuseram o Programa mobilizaram a equipe para a escrita de textos sobre as experiências de cada projeto, os quais compõem um conjunto de coletâneas. Com a perspectiva de ampliar o diálogo para além dos limites territoriais de Suape e da UFPE, convidamos, para tomar lugar nas coletâneas, parceiros(as) de outros contextos, integrantes de importantes grupos de pesquisa do país. Neste livro - além de textos de autoria de participantes do LabESHU, Núcleo de Pesquisa e Estudo em Clínica Contemporânea (Nupecc), Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidade (Gema), Nucléo de Família, Gênero e Sexualidade (Fages), todos da UFPE -, temos contribuições de integrantes do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; do Núcleo de Estudos Modos de Vida, Família e Relações de Gênero (Margens) e do Grupo de Pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Àlcool e Outras Drogas da Universidade Federal de Santa Catarina; e do Núcleo de Estudos de Gênero e Diversidade Sexual da Universidade Federal de São Carlos (Sorocaba). Sublinhamos que a promoção dos direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) foi um dos eixos de trabalho do Programa, engendrando atividades em seus diferentes projetos. Outras produções, como disserta______________________________________________________________________

O programa foi composto por sete projetos cujos objetivos são apresentados abaixo: 1) Conhecer o Território: identificar as políticas, os programas e os equipamentos sociais existentes nos municípios, os indicadores sociais e as concepções da população sobre os agravos que são objetos da intervenção; 2) Ação Juvenil: instrumentalizar jovens, de 16 a 19 anos, de ambos os sexos, como lideranças capazes de atuar na produção e na disseminação de informações qualificadas nos campos dos direitos da criança e do adolescente, da saúde sexual e reprodutiva, do uso abusivo de álcool e de outras drogas, e no enfrentamento a agravos de saúde e violações de direitos; 3) Caravana da Cidadania: mobilizar as comunidades locais e instrumentalizar profissionais dos campos da saúde, da educação e da responsabilização para a promoção da saúde sexual e reprodutiva, o combate à violação dos direitos sexuais e o enfrentamento do uso abusivo do álcool e de outras drogas;4) Chá de Damas: engajar e capacitar profissionais do sexo adultos dos municípios no enfrentamento das DST/AIDS e da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes; 5) Mulheres e Educação para a Cidadania: contribuir no empoderamento de mulheres e jovens dos dois municípios, com ações formativas e informativas, para o enfrentamento à violência doméstica e sexual na microrregião de Supe; 6) Homens, gênero e práticas de saúde: sensibilizar e informar os trabalhadores das empresas terceirizadas para a promoção da saúde sexual e reprodutiva, para a prevenção da violência e do uso abusivo de álcool e de outras drogas; 7) Observatório Suape: disseminar informações e recursos desenvolvidos no âmbito do projeto Diálogos para o Desenvolvimento Social em Suape (Rios, Queiroz, Lins, Teófilo, 2015). 1

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ções e capítulos de livro, discutiram o que resultou deste eixo. Assim, o tema foi objeto de reflexão nas formações ofertadas no “Ação Juvenil” (Menezes, Adrião e Rios, 2015; Menezes, Adrião, Rios et al, 2015), engendrou materiais informativos (cf. Rios, Queiroz, Lins e Ferraz, 2015; Rios, 2015) e atividades utilizadas nos eventos comunitários do “Caravana da Cidadania” e foi o foco de uma das campanhas do projeto “Homens, Gênero e Práticas de Saúde”, que teve como público beneficiário os trabalhadores que estavam construindo a Refinaria Abreu e Lima da Petrobras (Medrado, Azevedo et al, 2015). No âmbito deste último projeto, também foi realizada uma pesquisa sobre vulnerabilidade de homens com práticas homossexuais ao HIV/ AIDS e o acesso a equipamentos sociais de saúde, em que foram entrevistados frequentadores de espaços de homossociabilidade do Cabo de Santo Agostinho (Galvão Neto, 2013). Uma síntese dessa pesquisa é apresentada no último capítulo deste livro. Além disso, dando relevo à presença de travestis no comercio sexual, o trabalho com esse público foi um dos pilares do projeto Chá de Damas (Barros, 2014; Menezes, Adrião, Cavalcanti et al, 2015), cujos resultados são aprofundados analiticamente no terceiro capítulo desta coletânea. Situadas as circunscrições institucionais que permitiram a publicação deste livro, vale tecer algumas palavras sobre a pertinência e importância do estabelecimento de reflexões e interferências psicossociais sobre a sociabilidade e a promoção de direitos da população LGBT. Na sequência, anteciparemos para leitores e leitoras que encontrarão nos sete capítulos que compõem a coletânea.

2 • Gênero, sexualidade e direitos humanos O que acontece aos corpos que embaralham ou desconstroem a linearidade naturalizada entre sexo, gênero, sexualidade e desejo? O que ocorre quando os sistemas reguladores não encontram conformidade entre o aparato anátomo-biológico e a identificação de gênero?

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Por revelarem o corpo, o sexo, o gênero, a sexualidade e o desejo em não conformidade com o que está instituído pelo modelo heteronormativo, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) são constrangidas à marginalidade e à violência. Butler (2006) afirma, contundentemente, que o maior risco para as pessoas que desafiam os sistemas reguladores é o não reconhecimento do próprio estatuto de humano. Esse aniquilamento produz uma vulnerabilidade diferenciada dos corpos e a hierarquização dos lutos: Reagir à opressão requer que entendamos que as vidas são apoiadas e mantidas diferencialmente, que há formas radicalmente diferentes de distribuição da vulnerabilidade física humana pelo mundo. Certas vidas são altamente protegidas e a violação de suas existências são suficientes para mobilizar as forças da guerra. Por outro lado, outras vidas não receberão apoio tão rápido e tempestuoso e não serão sequer qualificáveis como “lutáveis”. (Butler, 2006, p. 35)

Dito de outra forma, as condições de reconhecimento de uma subjetividade gendrada dependem da possibilidade de seu gênero ser culturalmente inteligível e de ser socialmente vivível. Pois, as subjetividades não inteligíveis tornam-se vulneráveis às diversas formas de violência e à morte que extrapolam a exclusão da norma. Sendo assim, a forma fundamental para que os sujeitos abjetos não sucumbam a esse cenário aterrorizante seria o reconhecimento do estatuto de humano e não apenas do gênero. Parece-nos evidente que a não conformidade com a norma e com o aparato anátomo-biológico é inerente aos humanos, mesmo que alguns a vivenciem de forma mais radical. Ninguém se identifica completamente numa dada categoria. Mas, por outro lado, o sujeito não controla totalmente as marcas subjetivas sendo continuamente afetado pelos significados culturais que atravessam o seu corpo e as prórprias linguagens.

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Butler (2003) realiza uma crítica contundente às oposições binárias já que é por meio dos binarismos que se nomearia e determinaria como fundante uma ideia, uma entidade ou um sujeito determinado em posição ao ‘outro’, o oposto subordinado. Assim, o termo inicial é compreendido como superior, enquanto que o outro é o seu derivado, inferior, numa palavra, abjeto. Logo, o questionamento da lógica binária seria condição sine quo non para a modificação das implicações inerentes aos significados culturais: a hierarquização, a classificação, a dominação, a exclusão e a violência. Pois, como nos alerta Foucault (1997), o binarismo reproduz uma série de pressupostos pela qual o polo inicial aparece como normal, superior, compulsório, em oposição ao polo subordinado, que aparece como doentio, antinatural, inferior e o ‘outro’. Em suma, um regime de poder/ saber que molda as ordenações dos desejos, dos corpos e das sexualidades produzindo subjetividades abjetas vulneráveis à violência. Desta forma, faz-se necessário problematizar as oposições binárias, enquanto categorias ordenadoras das práticas, dos saberes e das relações dos sujeitos, pois, norteiam, certamente, os discursos fundamentalistas e de estigmatização a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. As estratégias padronizadoras produzem sujeitos normais ou desviantes e, ao mesmo tempo, oferecem mecanismos para se proteger do medo-fascínio pelas subjetividades subversivas e restaurar uma suposta estabilidade da identidade-padrão. Portanto, podemos afirmar que a heteronormatividade revela a necessidade imperiosa de uma constante reiteração das normas sociais regulatórias com o propósito de garantir a identidade sexual e a identificação de gênero legitimada. A reviravolta no campo da hierarquia naturalizada que produz as subjetividades impensáveis pode ser buscada a partir da abertura, da desnaturalização e da dúvida como estratégias afirmativas e potentes para pensar as subjetividades. Nas preciosas palavras-afeto de Deleuze (2002, p. 72), considerar

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que “a sexualidade é uma produção de mil sexos, que são igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem e pelo devir-animal do humano: emissão de partículas”. Parafraseando o autor, as identificações de gênero também são uma produção de mil gêneros, puros devires incontroláveis.

3 • Interpelações Os(as) nossos(as) autores(as), cada qual à própria maneira, parecem se indagar e nos interpelar sobre quais estratégias deveríamos inventar para incorporarmos na comunidade humana as vivências LGBT. Seja no âmbito das universidades, seja circunscrito à educação básica e média, seja no campo da atenção à saúde, seja nos coletivos feministas e LGBT, seja na própria comunidade homossexual, a tônica presente é o chamamento para construção de um mundo possível para as múltiplas experiências de gênero e sexualidade. Organizamos o conjunto de textos em duas partes. A primeira, Contextos de sociabilidade, é composta de três textos que abordam espaços em que pessoas com práticas homossexuais transitam, refletindo sobre como constituem/assumem posições identitárias, marcadas por gênero, com desdobramentos na subjetividade, na sociabilidade e/ou na luta política. Nesse contexto de reflexões, e dando relevo às dimensões eróticas e desejantes da subjetividade, temos o primeiro capítulo desta primeira parte da coletânea, “Pintosas, boys e cafuçus: estilos corporais, erotismo e estigmatização entre homens que participam da comunidade entendida do Recife”. Nele, Luís Felipe Rios, Amanda Pereira de Albuquerque, Amanda França Pereira, Cristiano José de Oliveira Júnior, Warlley Joaquim de Santana e Clóvis Cabral de Lira Filho realizam uma análise dos estilos corporais de participantes da comunidade homossexual do Recife em Pernambuco. Os (as) autores(as) argumentam que estilos categorizados como masculinos (boy, cafuçu) e feminino (pintosa) engendram subjetividades e con-

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dutas, regulando formas de engajamento na comunidade homossexual, com base na produção de corpos eroticamente desejáveis e desejantes. Um processo que ocorre assentado no sistema de sexo-gênero, e que tende a estigmatizar os homens femininos, mesmo dentro da comunidade homossexual. O segundo capítulo “Homens que dançam: gênero, corpo, raça e travestilidade no maracatu”, de Lady Selma Ferreira Albernaz, aborda a experiência de homens que se travestem para participar de uma dança folclórica do ciclo do carnaval, o maracatu do estado de Pernambuco. A autora constata a importância de gênero para organizar os grupos, estabelecendo posições, poderes e espaços para homens e mulheres. A participação dos homens travestidos é positiva, legitimada por preceitos religiosos afro-brasileiros. Insere-se em esquemas simbólicos mais abrangentes que corroboram uma hierarquia de gênero, resultando numa classificação do feminino da casa e do feminino da rua, expressos pelas performances dos homens travestidos. Em “Mulheres em movimento: estudo da identidade, sujeito e formação política em coletivos feministas e LGBT”, terceiro capítulo desta coletânea, Viviane Melo de Mendonça analisa os discursos produzidos por mulheres participantes de coletivos feministas e LGBT da região de Sorocaba, em São Paulo. Conforme a autora, os discursos produzidos sobre identidade e sujeito da prática política pelas mulheres revelam que a identidade emerge como uma estratégia política pessoal e/ou coletiva de sobrevivência. A identidade se constitui como uma conquista, produzida nas margens dos discursos dominantes, visando à superação das estruturas de opressão. A segunda parte, Acesso à educação e saúde, é formada por quatro textos que discutem o modo como escolas, universidades e equipamentos sociais de saúde constituem situações de estigmatização e opressão, e quais estratégias têm sido ou poderiam ser utilizadas para garantir os direitos das populações LGBT.

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O quarto capítulo, de autoria de Daniela Torres Barros e Luiana Leila Fontes Vieira, abre a segunda parte do livro, iniciando o debate sobre as marcações de sexualidade e de gênero na produção de uma educação opressora e excludente. “Travestis: entre a vulnerabilidade e as estratégias de sobrevivência” busca compreender as experiências no âmbito escolar das travestis residentes no município do Cabo de Santo Agostinho, Pernmbuco. As autoras analisam dados de pesquisa que ocorreu articulada ao projeto Chá de Damas, do Diálogos Suape. Elas investigaram como se deu o acolhimento das travestis no cenário escolar, considerando os aspectos que favoreciam e desfavoreciam as permanências na educação formal. A discussão aponta para importantes aspectos estruturais que precisam ser enfrentados quando se quer garantir acesso a direitos e bem-estar social para a população trans. Também na linha de interpelar os contextos educacionais, o quinto capítulo, “A heteronormatividade na escola e os desafios para a construção de processos educativos voltados à garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes”, foi elaborado por Marivete Gesser, Leandro Castro Oltramari e Gelson Panisson. O capítulo aborda as concepções de gênero e de sexualidade de professores(as) que atuam na educação básica de uma capital do Sul do país, no intuito de avaliar o impacto de uma lei que prevê a discussão de temas como gênero e emancipação feminina nas escolas. A discussão aponta para a pertinência e necessidade de ampliação de ações de reflexão sobre gênero no contexto escolar, considerando não apenas o corpo discente. O texto aponta para a necessidade de apoiar os professores de forma continuada, uma vez que muitas vezes carecem de instrumentos conceituais para facilitar a discussão sobre temas polêmicos e cercados de tabus moralistas. Ainda no debate sobre educação e direitos sexuais, “O(s) gênero(s) da universidade: das hierarquias e das possibilidades”, tecido por Paula Sandrine e Henrique Nardi, convida-nos a interrogar sobre o espaço que as universidades propiciam para discutirmos as questões de gênero e diversidade sexual

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e sobre o acesso e permanência da população LGBT. Nesse sentido, nos impele a questionar a lógica naturalizada que reitera desigualdades e naturaliza privilégios que perpetuam violências. O sétimo e último capítulo nos desloca do contexto educacional para o campo do cuidado em saúde. Celestino Galvão Neto e Benedito Medrado, em “Sexo entre homens em Suape: informações sobre práticas sexuais, prevenção e acesso à saúde”, apresentam alguns dos resultados de pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa Diálogos Suape cujo objetivo foi investigar comportamentos, atitudes, práticas sexuais e prevenção em saúde sexual de homens que fazem sexo com homens (HSH), residentes na microrregião de Suape, Pernambuco. O texto discute a sociabilidade, as práticas sexuais e de prevenção ao HIV/Aids, e o acesso aos serviços de saúde dos entrevistados. Esperamos que os textos que compõem esta coletânea possam provocar profícuas indagações nos(as) leitores(as), mobilizando novas pesquisas e novas intervenções que colaborem para questionar os processos de estigmatização e opressão pautados na sexualidade e no gênero, e ampliar os campos socioculturais de devires de sexualidade e gênero inteligíveis, garantido a vida e o bem-estar de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

Referências BUTLER, J. P. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006. BUTLER, J. P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003. DELEUZE, G. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2002. FOUCAULT, M. História da sexualidade - Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1997.

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GALVÃO NETO, C. J. M. Comportamentos, atitudes e práticas sexuais e de prevenção em saúde de homens que fazem sexo com homens em Suape. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. MEDRADO, B.; AZEVEDO, M.; et al. Homens, Gênero e Saúde: Diálogos com os Trabalhadores das Terceirizadas. In: RIOS, L. F., LINS, M. B. et al. (Org.). Diálogos para o desenvolvimento social em contextos de grandes obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 131-149. MENEZES, J.; ADRIÃO, K. G.; RIOS, L. F. et al. Ação Juvenil: fomentando lideranças juvenis em Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca. In: RIOS, L. F., LINS, M. B., QUEIROZ, T., TEÓFILO, I. (Org.) Diálogos para o desenvolvimento social em contextos de grandes obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 53-74. MENEZES, J.; ADRIÃO, K. G.; CAVALCANTI, A. et al. Chá de Damas: intervenção psicossocial com prostitutas em contextos de grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento. In: RIOS, L. F., LINS, M. B. et al. (Org.) Diálogos para o desenvolvimento social em contextos de grandes obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 99-110. MENEZES, J.; ADRIÃO, K. G.; RIOS, L. F. (Org.) Jovens, câmera, ação: reflexões sobre os usos dos dispositivos móveis de mídia em um projeto de mobilização social. Recife: EdUFPE, 2015. RIOS, L. F. HIV e Aids: o que jovens e adultos precisam saber! Recife: EdUFPE, 2015. RIOS, L. F., LINS, M. B. et al (Org.) Diálogos para o Desenvolvimento Social em Contextos de Grandes Obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 175-193.

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RIOS, L. F.; MEDRADO, B et al. Diálogos Suape: pesquisa-intervenção-pesquisa sobre saúde e cidadania de populações afetadas pelas grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Pernambuco. In: RIOS, L.F., LINS, M. B. et al. (Org.) Diálogos para o desenvolvimento social em contextos de grandes Obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 13-35. RIOS, L. F.; QUEIROZ, T. N.; LINS, M. B.; FERRAZ, W. Observatório Suape: produzindo ondas de novas significações sobre direitos, cidadania e saúde. In: RIOS, L. F., LINS, M. B. et al. (Org.) Diálogos para o Desenvolvimento Social em Contextos de Grandes Obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 37-51. RIOS, L. F; QUEIROZ, T. N.; LINS, M. B. ; TEÓFILO, M. I. Apresentação. In: RIOS, L. F., LINS, M. B. et al. (Org.) Diálogos para o Desenvolvimento Social em Contextos de Grandes Obras: a experiência do Programa Diálogos Suape. Recife: EdUFPE, 2015, p. 7-12. BARROS, D. Experiência das travestis na escola: entre nós e estratégias de resistências. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

Capítulo 1

Pintosas, boys e cafuçus: estilos corporais, erotismo e estigmatização entre homens que participam da comunidade entendida do Recife Luís Felipe Rios Amanda Pereira de Albuquerque Amanda França Pereira Cristiano José de Oliveira Júnior Warlley Joaquim de Santana Clóvis Cabral de Lira Filho

Este capítulo analisa os agenciamentos corporais de homens que participam da dinâmica da comunidade homossexual do Recife.¹ Ao longo do texto, buscamos argumentar que estilos categorizados como boy, cafuçu e pintosa engendram as subjetividades e as condutas das pessoas, regulando formas específicas de engajamento na comunidade homossexual, em especial a formação das parcerias sexuais. Concebemos, com Brah (2006, p. 370), que a subjetividade é “o lugar do processo de dar sentido a nossas relações com o mundo – é a modalidade em que a natureza precária e contraditória do sujeito-em-processo ganha significado ou é experimentada como identidade”. Nessa perspectiva, a produção das subjetividades é um processo, a um só tempo, social e pessoal, na medida em que “(...) os investimentos psíquicos que fazemos ao assumir posições específicas de sujeito (...) são socialmente produzidos”. Compreendendo a identidade como marcada pela multiplicidade de posições oferecidas pelas categorizações sociais ao longo da existência, a autora conclui: ______________________________________________________________________

¹ Este capítulo analisa dados da pesquisa “Homofobia e processos de subjetivação na comunidade homossexual do Recife”, apoiada pelo CNPq (Processos 402235/2010-0 303056/2011-8) e “Homossexualidade masculina e vulnerabilidade ao HIV/AIDS na Região Metropolitana do Recife” apoiada pelo CNPq (Processos 405259/2012-3, 470088/2013-3 e 305136/2014-3). Também contou com apoio dos programas de bolsa de iniciação cientifica da FACEPE e da UFPE/CNPq.

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Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma multiplicidade relacional em constante mudança. Mas no curso desse fluxo, as identidades assumem padrões específicos, como num caleidoscópio, diante de conjuntos particulares de circunstâncias pessoais, sociais e históricas. De fato, a identidade pode ser entendida como o próprio processo pelo qual a multiplicidade, contradição e instabilidade da subjetividade é significada como tendo coerência, continuidade, estabilidade; como tendo um núcleo – um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um núcleo – que a qualquer momento é enunciado como o “eu” (grifos da autora). (Brah, 2006, p. 371)

Para dar ênfase às dimensões mais somáticas da subjetividade, e inspirados na linguística, utilizamos da noção de estilística corporal para nomear o resultado estético e de expressividade que emerge quando o enunciador, na apresentação de sua subjetividade, agencia (consciente ou inconscientemente) elementos corporais, como gestual, sotaque, vestuário, adereços etc., produzindo configurações que possuem efeitos de enunciações de identidade. Nessa linha, estilos podem ser compreendidos como (com)posições socialmente constituídas que se oferecem aos sujeitos, que, ao ocupá-las, produzem sentidos, emoções e sentimentos, os quais conferem valores e significados às pessoas e direcionam as interações. Desse modo, os estilos mediariam a construção dos si mesmos corporais e a apreensão desses si mesmos pelos pares. A nossa intenção neste texto é, a partir de uma análise estilística das subjetividades, contribuir para a compreensão da discriminação e opressão contra os homens com práticas homossexuais, notadamente em relação às pintosas. Queremos destacar que neste trabalho não utilizamos o termo homofobia, por considerá-lo inadequado para descrever as experiências narradas por nossos interlocutores. Em especial, no que concerne ao foco psicopatologizante que o termo oferece na explicação da origem da discriminação e opressão. Fobia é medo. O termo sugere que a opressão estaria relacionada a um medo das pessoas em relação à homossexualidade.

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Os sentimentos que premeiam as cenas de opressão e violência, narradas pelos participantes da pesquisa, em nada revelam medo do autor da violência em relação aos HSH. Elas são cenas mediadas por sentimentos variados, como aversão, nojo e, sobretudo, ódio. Preferimos, junto à Elias e Scotson (2000), assentar o fenômeno da discriminação e opressão das homossexualidades nos processos estigmatizantes da sociedade englobante, que constituem categorias e criam marcas adscritas ao corpo, produzindo hierarquias sobre quem é mais e quem é menos humano. Deste modo, tendo como base o estigma, justifica-se um conjunto de formas de violência em relação aos outsiders, por um lado, e um conjunto de privilégios e distinções para os considerados estabelecidos. O texto está organizado de modo que, em “Homossexualidade, gênero e estigmatização”, situamos o marco teórico utilizado para produzir, analisar e interpretar os resultados aqui apresentados. Na sequência, em “Narrativas e cursos de vida”, discorremos sobre o enquadre metodológico e o modo como tratamos os dados produzidos. Em “Estilísticas corporais, desejo e estigma”, discutimos os nossos resultados, organizados em três tempos: no primeiro, abordamos a construção dos estilos corporais dos boys e pintosas e os sentidos que elas produzem nas interações sociais na família e na sociedade mais ampla; no segundo tempo, abordamos as posições sexuais (penetrativo/ativo e receptivo/passivo) na interface com os estilos corporais; no terceiro tempo, discutimos o modo como a feminilidade dos homens assume um lugar estigmatizante dentro da própria comunidade homossexual, desprestigiando libidinalmente as pintosas. Nesse bojo, analisamos um segundo estilo de masculinidade, o cafuçu (homens com práticas homossexuais, pobres, não gay identificados, masculinos, rudes, penetradores), parceiro privilegiado das pintosas. Finalmente, analisamos como o sistema de sexo-gênero hegemônico se atualiza na comunidade entendida, produzindo desejos e opressões, mesmo quando há a possibilidade de parcerias entre pessoas de mesmo estilo corporal, como entre boys.

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1 • Homossexualidade, gênero e estigmatização No caso da homossexualidade, a configuração como estigma remete à ideia de que sexualidade e reprodução devem estar intrinsecamente ligadas para o bem das pessoas e das sociedades. Os estudos apontam que, embasadas nesta concepção, tanto as religiões, notadamente as cristãs (Natividade, 2006; Venturi, 2008; Rios et al, 2010), quanto as ciências (Costa, 1992 e 1995; Rios e Nascimento, 2007) ajudaram (e ainda ajudam) a sustentar este regime de destituição da humanidade de pessoas com práticas homossexuais. O cristianismo considerando a homossexualidade um pecado da carne, um impulso que afasta os humanos da santidade; a ciência estabelecendo-a como um desvio (degeneração, doença, perversão) do instinto sexual, portanto, precisando de tratamento (médico ou psicológico). Ainda que outras perspectivas científicas e religiosas ganhem, mais e mais, legitimidade para dizer a “verdade” da homossexualidade, situando-a como uma expressão natural e normal da sexualidade humana (cf. Rios e Nascimento, 2007 e Natividade, 2010), as primeiras ainda são bastante recorrentes. Perspectivas que ajudam a configurar e legitimar o estigma e a discriminação não só em instituições religiosas e nos serviços de saúde, mas também nas instituições de educação (Nardi e Quartiero, 2012), nos campos legislativo e jurídico (Uziel, 2007 e 2012; Uziel, Mello e Grossi, 2006; Correia e Rios, 2013) e na vida social mais ampla, produzindo cenas de desrespeito dos direitos humanos e situações de violência (cf. Carrara e Viana, 2003; Carrara et al, 2007). Vale dizer que buscamos nossos interlocutores por meio de redes de relação que atravessam aquilo que denominamos comunidade entendida do Recife. Preferimos o termo entendido à palavra homossexual, para caracterizar a dinâmica das comunidades homossexuais, uma vez que, como categoria nativa, entendida nomeia pessoas que conseguem integrar e participar dos circuitos comunitários² sem que haja a necessi-

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dade de assumirem identidades fixas, como gays, bichas, bofes, ursos, barbies ou outros termos nativos correlatos (Rios, 2004 e 2008). Não obstante, lembra Rios (2008), a depender de contexto, assunções de posições de sujeito, se não são condição de participação comunitária, são muito presentes nos territórios de homossociabilidade e pautam, amplamente, as interações sociais e, mais especificamente, a formação de parcerias afetivas e sexuais, constituindo eroticidades e relações de poder entre as pessoas categorizadas, grosso modo, como masculinas ou como femininas. Posições que se referem ao modo como as homossexualidades são apreendidas pelo sistema de sexo-gênero. Rubin (1993) denominou de sistema de sexo-gênero um potente aparato sociocultural que categoriza as pessoas, regulando a vida sexual e afetiva e outras dimensões dos sujeitos e da vida em sociedade, de modo a constituí-los afeitos à cultura (reprodução social) e garantir a multiplicação de indivíduos (reprodução biológica). Como sugere Butler (2010), o gênero, enquanto sistema de significação, opera performativamente. Nos atos de fala, gestos e elementos diversos advindos dos processos de identificação, são constituídos corpos generizados: inteligíveis, reguláveis e passíveis de legitimação e normatização. No entanto, por efeito da iterabilidade e citação, os atos de fala também produzem deslizamentos e descontinuidades, permitindo o surgimento de novas inteligibilidades, regulações, legitimações e normatizações (cf. também Pinto, 2013). Nesse bojo, é possível apreender regimes de produção de diferenças sociais (Brah, 2006) nos corpos-subjetividades. Retomando a discussão sobre subjetividade, identidade e estilística corporal do início deste texto, podemos dizer que nossa hipótese de trabalho é a de que, por meio de assunção de posições de sujeitos que situam/ são situadas por estilísticas ______________________________________________________________________

² Esses circuitos são formados por estabelecimentos comerciais direcionados ao publico gay (como bares, boates, cinemas e saunas), lugares públicos de sociabilidade e de busca por parceiros (pegação), e o universo online da internet, também acessada por celulares por meio de sites e aplicativos de busca por parceiros, etc..

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corporais, as subjetividades são apresentadas com certo efeito de estabilidade. Em adição, seriam esses mesmos estiloss a matéria e o produto dos processos de estigmatização (Elias e Scotson, 2000), em acordo com as regulações (Butler, 2010) de um dado regime de sexo-gênero (Rubin, 1993). No caso dos homens com práticas homossexuais, os estudos vêm mostrando que, por meio do sistema de sexo-gênero de significação da vida sexual, as partes privilegiadas de prazer corporal (pênis e ânus) e a posição dos parceiros na interação (passivo/penetrado e ativo/penetrador) são alinhadas às representações/posições mais públicas das homossexualidades (Fry, 1983, Parker, 1991 e 2002, Green, 2001, entre outros). Na comunidade entendida do Recife, essas posições são nomeadas como “a pintosa” e “o boy”, prefiguradas em estilos corporais e ditas por conformação física, gestualidades, vestuário, adereços e sotaque: as pintosas são os homens que configuram feminilidade, e os boys, masculinidade. Como buscamos mostrar ao longo desse trabalho, em determinadas circunstâncias os estilos são mais importantes para significar os atores e direcionar as interações sociais do que o fato de ter práticas homossexuais. Conforme Fry (1983), a configuração de parcerias sexuais masculinas (homens mesmo, bofes etc.) e femininas (bichas, veados, frangos) seria mais recorrentemente encontrada nas classes populares, nas quais predomina uma lógica hierárquica para pautar as interações sexuais entre homens; enquanto que, nas classes médias e mais abastadas, haveria um predomínio de uma lógica de igualdade, em que as questões de ser masculino/feminino ou ativo/passivo não teriam importância para definir a identidade sexual e de gênero das pessoas, todos seriam gays ou homossexuais. Estes dois modelos, marcados por classe, foram encontrados vigorando nas pesquisas mais recentes como a de Monteiro et. al (2010), realizada no Rio de Janeiro, e as de Antunes e Paiva (2013) e Simões, França e Macedo (2010) realizadas em São Paulo.

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Rios (2004), entretanto, sinaliza que a hierarquia pode se imiscuir dentro da própria (suposta) igualdade. Com base em pesquisa etnográfica realizada com jovens homossexuais do Rio de Janeiro, sugere que o homem feminino é recorrente objeto de discriminação e observa que quando a igualdade aparece é situando a possibilidade de parceria entre dois homens masculinos. Do mesmo modo, o casal de homens femininos continuaria tendo um “q” de initeligibilidade nas classes populares e nas classes mais abastadas. Do mesmo modo, o autor chama atenção para o fato de que, ainda que as normas ideais de gênero situem os “homens” como penetradores e masculinos e bichas como penetradas e femininas, é importante considerar os desalinhamentos entre as performances de gênero (sotaque, gestual, vestuário etc. que remetem à masculinidade e à feminilidade), as fontes de prazer corporal (ânus, pênis, boca, mamilos, dedos, língua etc) e as posições sexuais (ativo, passivo e versátil³). No processo de constituir e dar sentido a si mesmos, os indivíduos operam com estes e outros aspectos, significados e regulados pelos sistemas de gênero, como dimensões distintas, ainda que interdependentes (cf. Rios, 2008, 2012 e 2013).

2 • Narrativas de cursos de vida A pesquisa que originou os dados aqui discutidos foi baseada num enfoque etnográfico (Geertz, 1987), envolvendo a observação participante na comunidade entendida do Recife, em especial bares, boates e locais públicos do centro da cidade, e a construção de biografias sexuais por meio de entrevistas. Concebemos o produto das entrevistas como narrativas, que se organizariam para dar conta da interpelação sobre o curso de vida (Elder, 1998) sexual dos interlocutores e que se abririam como janelas para abordar os processos de subjetivação (Bruner, 1990; Hammack e Cohler, 2009). ______________________________________________________________________

² Os homens versáteis penetram e deixam-se penetrar, a depender das circunstâncias.

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Os dados aqui discutidos foram coligidos entre 2013 e 2015, quando foram realizadas 25 entrevistas biográficas. A amostra foi de conveniência, constituída por meio da rede de relações dos pesquisadores/entrevistadores, todos estudantes de graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O critério para compô-la foi o da saturação teórica – ou seja, ter elementos suficientes para realizar as discussões necessárias para responder aos objetivos da pesquisa. Para tratamento dos dados, utilizamos a análise temática (Blanchet e Gotman, 1992) para identificar categorias-chaves e apreender como se dão as articulações na significação dos eventos investigados. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFPE. Utilizamos nomes fictícios para guardar a confidencialidade e anonimato de nossos entrevistados. Para dar início ao processo analítico, a equipe se utilizou de categorias êmicas sobre os estilos homossexuais para classificar os participantes. Essa categorização foi baseada em uma pré-análise com base nas observações, conversas informais e anotações sobre as entrevistas, com foco em ter uma primeira apreensão sobre as configurações de feminilidade e masculinidade, que emergiram nos termos pintosa e boy. Assim, das 25 entrevistas analisadas, 15 entrevistados foram percebidos como pintosas (femininos) e dez foram percebidos como boys (masculinos) – ver tabela 1. Essa classificação, a partir das posições identitárias assumidas pelos sujeitos no momento das entrevistas, mostrou-se pertinente para análise, uma vez que revelou a existência de diferentes experiências, relações sociais e marcações subjetivas, sobre as quais nos debruçamos para aprofundar a análise. Para dar continuidade ao tratamento dos dados e em função de responder aos objetivos específicos do estudo, os integrantes do grupo de pesquisa, em conjunto, buscaram identificar, nos relatos dos 25 entrevistados, as categorias nativas mais recorrentes para dar significado aos fenômenos em investigação, totalizando 19 categorias. Estas orientaram

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Tabela 1: Caracterização dos entrevistados

______________________________________________________________________ 4

Atribuídos pelos pesquisadores.

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a construção de um quadro temático (colunas) das narrativas dos informantes (linhas) no qual trechos das entrevistas foram alocados. Assim, pudemos realizar uma análise sistemática, aprofundando cada categoria, buscando pelo modo como os diferentes sujeitos - considerados em suas marcações sociais – tematizam-nas, bem como identificar as recorrências e as variações. Interpretamos as categorias e temas que resultaram da análise levando em consideração que os sujeitos constroem sentidos para suas ações (Geertz, 1987). Assim, nós, analistas, construímos nosso conhecimento por meio do que eles interpretaram, e com base em nosso marco teórico. Esta perspectiva foi denominada como “dupla hermenêutica” por Giddens (1984). Destacamos que, na apresentação dos fragmentos de entrevistas que ilustram as próximas partes deste trabalho, utilizamos colchetes para sinalizar as interferências dos(as) entrevistadores(as) e parêntes para introduzir elementos que ajudem à compreensão das narrativas dos entrevistados.

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3 • Estilísticas corporais, desejo e estigma Situados os enquadres teóricos e metodológicos que permitiram a produção deste texto, passemos à discussão dos resultados, na perspectiva de compreender as conexões entre os estilos corporais pintosa, boy e cafuçu e o campo das práticas sexuais, dos desejos e dos prazeres, bem como a atualização da estigmatização às homossexualidades no interior mesmo da comunidade entendida – locus da sociabilidade e/ou da busca por parceiros afetivos e/ou sexuais dos nossos interlocutores. É importante voltar a sublinhar que os três estilos de ser homem com práticas homossexuais aqui analisados emergiram, ao longo de nosso trabalhao de campo, nos espaços de homossociabilidade e nas narrativas de nossos interlocutores. Ainda assim, é possível notar que estes não são os únicos estilos existentes na comunidade investigada: os ursos (paizões e seus filhotes), as mariconas, os michês etc. também estão lá, circulando e interagindo com as pintosas, os boys e os cafuçus.5 Destacamos, entretanto, que esses três são os mais recorrentes para posicionar os homens, muitas vezes servindo como categorias mais amplas para abarcar outros estilos, próprias a determinados contextos ou subculturas da comunidade entendida. Vale também dizer que nenhum dos nossos interlocutores se identificou, ou puderam ser identificados pela equipe, como cafuçus. Cafuçu emergiu enquanto estilo de ser homem (com práticas homossexuais) no decorrer da análise, quando refletimos sobre a produção de desejos e parcerias sexuais que os estilos de pintosa e de boy configuram. Deixamos a descrição e análise do cafuçu mais para adiante, inciando nossa apresentação dos resultados pelas categorias que servem de ponto de apoio para o posicionamento identitário de nossos interlocutores. ______________________________________________________________________

5

Sobre as estilísticas na comunidade dos ursos cf. Rios (2012) e Rios (2013); sobre os estilos de homens e mercado do sexo, cf. Viana (2010) e Souza Neto e Rios (2015).

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3.1 • Construção corporal de boys e pintosas Valter (22 anos, pintosa, negro, professor de dança), exímio entendido nas questões de quem é quem no repertório das homossexualidades, na própria descrição dos tipos que circulam no cenário em análise, sugere que tanto os boys como as pintosas são gays ou bichas. Essa categorização, ainda que revele uma disntição de gênero entre pintosas e boys, ao localizar ambos como gays ou bichas, aponta para a assunção identitária como marca de ambos os estilos de ser homem, que possuem como ponto de afinidade o fato de sentirem desejo e se relacionarem afetiva e sexualmente com outros homens. Esse elemento é importante porque será um dos utilizados para distinguir o cafuçu do boy. O cafuçu não se posiciona como gay ou homossexual. Diz Valter: Tem aquele, tem o gay que é reservado, que é o mais boy. Eles geralmente são mais fortezinhos, tentam forçar a voz. Eles têm o jeito mais... que eles querem aparentar ser heterossexuais. (...) A bicha boy, ela se veste assim: ela geralmente bota uma calça apertada, porque geralmente ela malha, é a antiga barbie. Antigamente, se dizia que ela era a bicha barbie. Mas isso já é antigo, ninguém usa mais não. (...) Eles malham, muito. Malham muito pra ficar com o corpo forte e meter medo. Não são de briga, eles só querem meter medo mesmo. Gostam de calça apertada. Eles usam roupas que geralmente o público hétero gosta. Geralmente, eles não andam com outros homossexuais que são mais pintosos ou assumidos.Eles andam com héteros ou com gays tipo eles.

Se o boy é mais reservado e quer, no olhar de Valter, apresentar-se como heterossexual, usando roupas afeitas ao público heterossexual e evitando andar com os homossexuais mais femininos, é a própria feminilidade que marcará o estilo pintosa de ser. Prossegue Valter: “Pintosa é aquele que não’tá de acordo com as normas sociais. Que é um saco isso. Feito eu, mais ou menos. Eu sou meio pintosa também. Mas eu gosto, eu me acho legal”. Ele então se empolga na descrição dos tipos de homossexuais e segue caricaturando as pintosas:

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Tem a bicha pintosa, que ele dá pinta, mas ele é mais tranquilo. Tem a bicha que é quase uma travesti, que ela é superfeminina, bota roupa de mulher, mas não é travesti. (...) A bicha mais pintosa, aí, não, ela é mais atrevida. Ela tem o cabelo de lado, ela raspa o cabelo, fica andrógina, camisa folgada, ela usa calça superapertada da mãe, ela sai de sneakers, essa bicha é perigosa.

Focando no estígma e no que dele decorre, identificamos que, no relato dos boys sobre si mesmos, a problematização da homossexualidade como algo que faz sofrer pode-se circunscrever ao âmbito dos significados socialmente compartilhados sobre os próprios desejos e práticas sexuais, ou seja, naquilo que pode ser vivido na intimidade ou, como dizem, “camuflado”, “escondido”, e, salvo exceções, revelado por eles apenas quando pertinente. Quase sempre, é só na adolescência que começam a se questionar sobre a diferença que os constitui em relação às normas de sexualidade. Não há grandes marcações corporais que permita a um “não entendido” identificá-los como homossexuais. Porque... eu, por exemplo, eu não demonstro. (…) Por exemplo, minha roupa aqui, você não diz nada! Se você me vê calado aqui, você vai me julgar o quê? Heterossexual. De primeiro ato, assim. Sem me conhecer, de boca fechada. Se eu entrar no ônibus, ninguém vai olhar troncho pra mim! Ninguém vai catucar (sussurrando) “Olha o frango!”. Ninguém vai fazer esse comentário (destaque nosso). (Daniel, 18 anos, boy, branco, estudante universitário, passivo)

Quando crianças, os homens masculinos, por se apresentarem no mundo da forma que é esperada para um menino, passam como heterossexuais. Só na juventude, quando não demonstram a heterossexualidade por meio de namoradas, é que começam a ser questionados, em especial pela família, sobre as orientações sexuais. Ainda assim, a margem de manobra, que os “armários” (Rios, 2008) oferecem para se apresentar para família, escola e trabalho, torna-se bem mais alargada por não inscreverem no corpo marcas de feminilidade.

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No caso das pintosas, o estigma e seus desdobramentos em termos de estigmatização e sofrimento psíquico vão recair principalmente no corpo em cena, algo que, conforme os nossos entrevistados, é dificil de ser “disfarçado”, em especial na infância. [E ela (a ama de leite) reagiu como, quando soube sobre?] Ah, mulher, ela reagiu de várias formas (risos). (...) É porque, desde criança, eu tenho um jeitinho, né? Por exemplo, quando eu era criancinha, eu andava com as mãozinhas muito abertinhas. Aí, minha ama de leite, que eu chamo ela de tia, mas ela é minha ama de leite, pegava minha mãozinha, fechava assim e dizia ‘ande assim, meu filho’. Ela fazia pressão na minha mão. (...) Então, eu já dava indícios que era afeminado, né? (destaque nosso). (Márcio, 28, pintosa, amarelo, estudante universitário, versátil).

Entre os homens femininos, foi notório que o uso de atributos de feminilidade se iniciava já na infância. Muitos nem sabiam se pensar de outro modo. Os gostos por indumentárias femininas fazia parte de desejos e brincadeiras: usar sapatos de salto das mães, vestir roupas das irmãs, usar maquiagem. Na verdade, eu era muito novo quando eu vim despertar isso, né? Porque (é) desde pequeno quando você já tem aquela coisinha de ter meio que um lado meio feminino. Quando eu era pequeno eu pegava, tipo, a minha fralda, amarrava na minha cabeça e dançava “É o Tchan!” Calçava os sapatos altos da minha tia, das minhas primas e tal. (Wagner, 18, pintosa, negro, cabelereiro e maquiador, passívo)

Para alguns, o gosto e o uso de roupas e adereços femininos perduram até a vida adulta. Outros afirmam que foram reprimidos e modificados na direção daquilo que se espera para um homem, para evitar reação negativa da família, amigos e da comunidade em que vivem.

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Já fica mais complicado no termo de alguém soltar gracinha, de você conseguir emprego, em tudo. (...) a maioria dos gays, a gente tem trejeitos femininos, tipo o modo de falar e tal. Alguns não. Aí, já é mais tranquilo, são mais discretos, né? Discretinhos (destaque nosso). (Wagner) Aquela coisa padrão, ‘tá ligado?! ‘Homem tem que ficar com mulher!’ Lá em casa: ‘Você é homem, você é homem!’ Eu lembro até hoje de uma cena muito tensa – eu era criança, mas eu lembro perfeitamente. ‘Tava tendo alguma coisa. Acho que foi questão de eleição e tinha muita gente na rua. ‘Tava voltando da escola, com minha mãe e minha irmã, e eu meio que me soltei da minha mãe e passei pelo meio da multidão. E eu expliquei (o desencontro) pra mainha. Fiquei procurando minha mãe: ‘Mainha, mainha! Me perdi!’ Eu passei mesmo assim: eu gesticulei na hora. Minha mãe ‘Por que você não fala feito homem?! Você passa assim, desse jeito!’, tá ligado? (destaque nosso). (Apolo, 21 anos, pintosa, versátil).

Decerto, todos os homens femininos passaram (e muitas vezes ainda passam) por experiências “corretivas”, marcadas por muita violência psicológica e física. Não obstante, os usos de atributos masculinos não garantiram a eficácia do que alguns denominam “camuflagem”, para que se passem como “discretos”. Paulo (21 anos, boy, versátil, entregador, estudante universitário) esclarece o que é um homem discreto: [Como eram teus apelidos lá (sites de bate-papo)?] Olhe, botava assim, eh, tipo “Garoto Bissexual” ou então “Discreto”. Que, aí, o pessoal geralmente tem muito preconceito com quando você fala gay, né? O pessoal já pensa que, vamos dizer, é afeminado. O pessoal já tem muito preconceito com afeminado, ‘tá ligado? Então, você coloca um apelido que é voltado para o boy que é mais machudo, sabe? Não dá pinta. Aí, você procura usar um apelido desse jeito assim, dizendo que é, insinuando que é discreto. [O discreto ou o bissexual que diz que é machudo?] O bissexual seria essa pessoa que dá a entender também que é uma pessoa discreta, né? Porque, se ele pega mulher também, ele não vai ser afeminado, né? (destaque nosso)

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Há algo que é partilhado por todos os homens femininos entrevistados: o dar pinta. Gestos e/ou atitudes não volitivas que denunciam a homossexualidade, algo dissidente do armário que contém os movimentos estilísticos do ser homem. Nas interações, mesmo sem querer, a pinta escapole e desvela aquilo que a maquiagem queria camuflar, impedindo a discrição. Mesmo as pintosas que já namoraram mulheres relatam que as respectivas namoradas já desconfiavam das sexualidades, acenadas por meio de pintas. Marcos (pintosa, 19 anos, estudante de Enfermagem, e soldado, versátil mais para passívo) comenta sobre a maquiagem que criou para esconder quem verdadeiramente é. Diz que quando usa essa maquiagem é grosso, rude. Características que acredita serem masculinas e que divergem dos trejeitos femininos que espontaneamente o compõe. Ele relata que essa maquiagem mesclou com à própria performance geral invadindo todos os âmbitos de convivência. Afirma que toda a construção teve como ponto de partida o fato do pai dizer que, “se alguns dos seus filhos fossem gays, colocaria uma bala na cabeça deles”. É importante sublinhar que essa construção corporal, por meio de agências intencionais e não intencionais de vestuário e adereços, e também de gestuais e sotaques que remetem ao masculino ou feminino, vão se fazendo ao longo da vida, de forma mais ou menos inconsciente. Um processo que se dá sobre a constante vigília e regulação da sociedade. Não obstante, o resultado, em termos de apresentação pública, nem sempre é aquele que a família, o próprio sujeito ou a sociedade mais ampla esperaria. Destacamos que foram muitas as cenas de violências descritas pelos entrevistados, boys e pintosas, que eles relacionam à feminilidade expressa por homens. Como exemplo, Amaral (26 anos, boy, branco, superior completo, comerciário, versátil) nos conta:

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Aí, um cara de São Paulo ficou a fim de mim e eu acabei me interessando, fiquei com ele. Foi a noite toda, a gente ficou e tal. (...) de manhã, aí, a gente teve que voltar andando até ali, a Conde da Boa Vista. (...) Eu não sei se era um skinhead, era um roqueiro, sei lá que danado era, que deram um murro no amigo dele! (sic) Deram um murro no amigo dele e a gente foi parar na Restauração (hospital público). (...) porque eles eram bem afetados, tanto o menino que eu fiquei quanto o amigo dele eram bem... Você olhava e dizia que eram gays! Bem espalhafatosos assim, sabe?! De roupa, camisa, tatuagem de estrela nos ombros! Que era uma febre, teve uma época que era uma febre. As bichas botavam as tatuagens de estrela nos ombros e uma camisa bem regatinha e tal. A cara toda pintada, sei lá que danado era! (...) Você olhava e dizia. Por isso que eles... foi o alvo, né? Focaram neles (sic) (destaque nosso)

3.2 • Posições sexuais, gênero e desejo Podemos até aqui notar que mensões aos estilos corporais boy e pintosa foram recorrentes nos discursos dos entrevistados para dar sentido – significando e valorando as pessoas – e guiar as interações. Ainda assim, observamos uma desarrumação do modelo ideal (boy-ativo e pintosa-passivo) nas narrativas que recolhemos. Se a feminilidade sugere passividade sexual, não é bem isso que os relatos de nossos entrevistados revelam. A construção das posições eróticas se dá de forma mais fluida do que informa as categorias de gênero. Muitas vezes, os próprios pesquisadores, também marcados subjetivamente pelas pressuposições que as categorizações de gênero engendram, se surpreenderam com os desalinhamentos: [Ah, tu é ativo, tu não é passivo não?] Não. [Ah, tu prefere sempre ser ativo?] Hurrum. [Mas, qual tua relação disso de ativo e passivo? Porque tem muito isso na comunidade gay e tal.] Eu acho que ser passivo não é só o fato de ser penetrado, sabe? Eu acho que é diferente. Eu acho que ser passivo é quando você se entrega mais, se deixa dominar. Eh, eu sou ativo em todas as maneiras. Eu domino, eu gosto de

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dominar, eu gosto de penetrar, na verdade. Não gosto de ser dominado, sabe? Eu gosto de mandar, de comandar. [Tu comanda lá a transa?] É. [Mas, tu nunca é passivo pra ele? (falando do namorado)] Eu já tentei, mas eu não gosto não (destaque nosso). (Valter, 22 anos, negro, pintosa, ativo, professor de dança)

Vale destacar que, entre nossos entrevistados, houve uma predominância da versatilidade sexual (ou seja, homens que sentem prazer sexual penetrando e/ou sendo pedetrados nas interações sexuais, a depender da situação), ainda que alguns sujeitos tenham se classificado como exclusivamente passivos ou exclusivamente ativos. Muitos alegaram que, em contextos de parcerias fixas (namoro, no geral), abriram mão da posição erótica preferida para fazer as vontades do parceiro, como relata Bacante (18 anos, pintosa, estudante de ensino médio, passivo): [Normalmente nessas tuas relações, tu é mais passivo, mais ativo? Tu tem alguma preferência?] Eu sou passiva (risos). Eu sou passiva, mas meto bala. É não. Eu sou passiva, mas eu já fui sim ativo, mas não é minha preferência, eu não gosto. [De ser ativo?] E eu não sinto a necessidade também de ser ativo. Eu prefiro muito, muito, muito mesmo ser passiva. E eu sempre sou passiva. Agora, claro que tiveram relações que alguns namorados pediram. Eles até diziam que tinham fetiche de saber como seria eu, Bacante, ativo. E, claro, como a gente ‘tá numa relação, eu não vejo problema nenhum nisso. E eu já fui, mas não é minha preferência. Eu prefiro ser sempre passivo (destaque nosso)

Dos dez boys entrevistados, oito se disseram versáteis, um se disse versátil, mas preferindo ser ativo, e um disse ser passivo. No caso das 15 pintosas, cinco se disseram versáteis, seis se disseram versáteis com preferência pela passividade sexual, uma disse que era versátil mais para ativa, uma relatou ser excluxivamente ativa e duas disseram que eram apenas passivas.

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Queremos sublinhar que, se os dados apontam para o desalinhamento entre as estilísticas corporais e as posições sexuais, e a maior parte dos nossos entrevistados está aberta às possibilidades prazerosas oferecidas pela versatilidade, o que faz os casais se unirem é menos questões de posições sexuais e mais os estilos corporais. Sobre isso, vale dizer que, no início da converssa sobre atração sexual, a maioria dos entrevistados afirmou, sejam os boys, sejam as pintosas, que, na escolha dos parceiros sexuais, não se importavam com os estilos, boy ou pintosa; não obstante, no processo de entrevista foram covocados a descrever os parceiros sexuais que já tiveram ao longo da vida. Pudemos, então, constatar que havia a predominância na escolha dos parceiros com atributos masculinos: os “discretos”. Wagner (18 anos, pintosa, negro, cabelereiro e maquiador, passivo) relatou não se incomodar com o estilo (boy ou pintosa) de um possível parceiro, no entanto, diz: “mas não pode ser mais gay que eu”. Já Antônio (38 anos, branco, pintosa, auxiliar de serviços gerais, versátil mais para ativo) afirmou não gostar de se relacionar com “homossexuais” (no sentido de pintosa) porque ele já é “homossexual”, e justifica: “Por que eu ia querer ficar com outro igual a mim?” Ao ser questionado sobre com quem ele prefere se relacionar, afirmou preferir “homens”, e explicou que os “homens” são diferentes dos “frangos6”, pois geralmente “tinham família e filhos”. Ele também afirma não gostar de ir a boates, pois lá “tá cheio de frango, de homossexual e eu não vou pra lá procurar homem, porque não tem. Só tem como eu”.

3.3 • Parcerias sexuais e erotismo: a entrada dos cafuçus nas cenas sexuais No contexto da formação das parcerias, notamos uma tendência dos homens femininos de classe popular em utilizar ______________________________________________________________________ 6

Homossexuais, com conotação de pintosas.

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do modelo hierárquico, identificado por Fry (1983), para significar as parcerias. Como sugerem os relatos de Wagner e Antônio, o casal formado por mulher e homem seria reatualizado nas figuras da bicha e do homem, com as implicações de poder que masculino e feminino engendram nas relações sociais (cf. também Rubin, 1993). Já os homens femininos de classe média tendem a utilizar do modelo gay com gay proposto por Fry (1983), para significar as parcerias, acentuando que, independentemente de estilos corporais e de posições sexuais, são dois homens se relacionando. Antônio, homem de classe popular, mesmo discordando da lógica igualitária, é sabedor dessa outra forma das parcerias se organizarem que, segundo ele, prepondera nos casais que se forma em boates. Estas, no geral, são frequentadas por pessoas identitariamente posicionadas (gays, homossexuais, frangos, pintosas ou boys). Ainda assim, os jovens boys de ambas as classes afirmam preferir se relacionar com homens também masculinos. O que sugere um desprestígio erótico em relação aos homens femininos. Se todos os nossos interlocutores afirmaram preferir homens masculinizados para se relacionar, existe um desinvestimento libidinal coletivo da figura do pintosa, em prol de um modelo ideal de homem: o masculinizado. [E como é que, pra tu ficar bem atraído mesmo, como é que tem que ser o jeito deles assim e tal?] Olha, vê só. Primeiro, não dar pinta. Não dê pinta, se der pinta fodeu! Tira a graça do negócio. Se der pinta... Que ande assim com roupas normais, não precisa andar escandaloso e tal, é normal, com roupas normais. Só que eu, por exemplo, eu adoro esse tipo que é roqueiro, mas gosta de fazer jiu-jitsu ou gosta de fazer artes marciais, ou então meio que rapper. (Amaral, 26 anos, boy, branco, curso superior concluído, comerciário, versátil)

Amaral, um boy versátil, começa seu curso sexual preferindo se relacionar com pintosas, mas, conforme narra, dada as pressões sociais de aparecer publicamente ao lado de um homem feminino, vai mudando a preferência:

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Olha, pra ser sincero, quando eu comecei a ficar com meninos, eu ficava muito com pintosas, eu pegava muito pintosas. Mas, depois de um certo tempo, eu comecei a preferir muito mais os mais machinhos. Assim, os mais que não dessem tanta pinta. Porque, uma coisa é você dar pinta quando ‘tá brincando, quando ‘tá entre amigos, outra coisa é você viver dando pinta. Viver dando pinta na rua e o povo todo te olhando, tirando sarro da cara, né? Então, eu comecei a preferir os mais machinhos, assim, porque... Sei lá, por atração, eu não sei se vai modificando o gosto (destaques nossos). (Amaral)

Mesmo tendo feito parte do cardápio sexual de Amaral, no início de sua carreira sexual, ele agora prefere homens que estejam distantes de apresentar algum sinal de feminilidade. Ressaltamos que Amaral foi um de nossos entrevistados que criticou o modo opressivo como o homem feminino é tratado. Paulo (21 anos, boy, entregador, estudante universitário) também fez a crítica: [Qual o tipo de preconceito que tu diz, assim, com os afeminados? Que é que falam, assim, quando tu escuta?] Olhe! No próprio universo gay, existe preconceito com os afeminados, né?(...) Porque, dentro da comunidade gay, os gays não afeminados dizem não curtir gays afeminados, porque eles são afeminados. (...)

No entanto, Amaral, Paulo e outros de nossos entrevistados nem percebem que eles próprios estão se inscrevendo naquilo que criticam e/ou afirmam não muito bem entender – a discriminação com os homens femininos –, na medida em que preferem se relacionar sexualmente com homens masculinos. “Ah! Eu não gosto de afeminado!”. Aí, depois tá lá dando o cu! Sei lá, tipo... [Aí, dar cu é o...] É, sabe, como se fosse... [...a característica do afeminado?!] É! E também existe um sentido pejorativo pra o cara que dá o cu também, sabe? [Como assim?] “Ah! É passivo!”. Tipo, chamar uma bicha de passiva, só passiva, é tipo um xingamento, sabe? (...) A gente brinca falando: “Ai, passiva!”, “Não sei quê, passiva!”. E é como se fosse um xingamento. Porque tem um sentido pejorativo, né? E,

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aí, tem falando também a ver com a questão do jeito afeminado de ser. Mas, o que seria dos ativos se não fossem os passivos, né, e afeminados, né? (Paulo)

De certo modo, a feminilidade - que, como mostramos, funciona como estigma que desumaniza as pintosas na família, na escola e na sociedade mais ampla, colocando-as em situações variadas de violência - também atua dentro da própria comunidade homossexual. Como disse Daniel (18 anos, boy, branco, estudante universitário, passivo): “Ah! As pintosas, coitadas, são as que mais sofrem preconceito, né? É que o preconceito é mais visível, né?” Nesse contexto opressivo, vale dizer que embora a grande maioria de nossos entrevistados seja versátil (está aberta à passividade sexual), como aponta o relato de Paulo, há uma tendência a utilizar a categoria passivo, no sentido de homem feminino e de gostar de ser penetrado, para se referir de forma negativa a alguém, mesmo que esse homem seja estilisticante boy. No universo gay, assim, esse termo de passivo é de menosprezo. Principalmente se você diz que é passivo. Se você chega numa roda de gays e diz “Eu sou passivo”, você sofre preconceito dos outros gays. Mesmo você sabendo que, nessa rodinha que você contou isso, tem outros gays passivos, só passivos. Mas eles olham pra você assim e faz “Bicha...” (sic) Tem preconceito, tem! Tem aquele medo de dizer o que eu sou. Eu não sei. Acho que tem aquela visão de que o passivo é aquela figura mais feminina, né? (Daniel)

Esta é uma forma de operar com as representações de sexualidade e gênero, que, mesmo não encontrando completa correlação com as experiências pessoais, reitera os esquemas pintosa/feminina/passiva e homem/masculino/ativo. Nesse âmbito, em que o feminino do estilo de ser é constante objeto de desvalorização erótica, vale dizer que a figura preferida das pintosas (em especial as de classe popular) é o cafuçu:

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Eu gosto de cafuçu, eu gosto de homem mesmo. De sair com homem mesmo. Vou fazer o que numa boate, que eu sei que é tudo veado igual a mim? ‘Tá entendendo como é a história? Aí, eu não gosto porque o veado é assim: se tem dois homens morando juntos, todos dois é veado porque um ajuda o outro. Um dá o dinheiro, ‘tá entendendo? O outro também dá dinheiro pra pagar o aluguel, pra pagar a luz. Já eu sou diferente. Eu dou àqueles que eu fico, né? Porque eles são homens mesmo. Aí, eu não curto nessa zona não. (Antônio, 38 anos, pintosa, auxiliar de serviços gerais, versátil mais para ativo)

Cafuçu é o homem bruto, rude, com movimentos gestuais contidos (em oposição à gesticulação dos braços e mãos das pintosas) e ativos na interação sexual. Muitas vezes, são percebidos como os que apenas fazem sexo com as pintosas em troca de dinheiro. Vejamos algumas definições desse estilo de ser homem, apresentadas de forma jocosa por dois de nossos interlocutores: [Como é o cara cafuçu?] O cara cafuçu é assim: ‘que eu rolo com porra de frango’. [Rola com o quê?] ‘E eu rolo com porra de frango’, quando ‘tá bom né, quando ‘tá bebo (bêbado) é tudo uma galinha. [Uma galinha é o que? Que pega todos os frangos?] É, pega. Botou dinheiro, minha filha, eles tão dentro. [Ah, então tu sempre paga pra eles?] É, eu dou 50 (reais). Assim, a Rodrigo eu dou 100 (reais) pra ajudar ele. Porque ele tem dois filhos, né? Pra ajudar. (Antônio) Eu sei identificar todo tipo de cafuçu. Porque, assim, tem o cafuçu até cinco estrelas. A primeira estrela, aquele cafuçu que mal escova os dentes. Tem o das duas estrelas. Três estrelas já consegue lhe levar pra uma lanchonete e pagar um cachorro quente pra você. Cinco estrelas, ele pode, ele já consegue manter uma casa, pode ter um filho. Um, apenas um. Não vai ter carro. Não vai! Vai ser proletariado, aquela coisa... [Tu dissesse que tem cafuçu também zero pra baixo? Como assim zero pra baixo?] (...) tem os positivos, que é até cinco estrelas, e tem os negativos, que é até o homem do carai. [Ah, ‘tá, o homem do carai é o máximo?] É o máximo de baixeza. Porque o homem do carai: aquele cara ignorante, não sabe ler, bruto... [Mas esse é o homem em geral, né? Não é o homem que faz sexo com homem?

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Ou é?] (...) É como se fosse uma régua: o homem pra caralho, ele nunca vai fazer sexo com homem. (...) Mas, tipo assim, porque também tem esses homens... tem o cafuçu, homem que fica com homem. Mas, eles geralmente são ativos, mas ajuda mainha na frente. (...) ele também tem que fazer dinheiro, né? Pra pagar à boyzinha que ele tá namorando. Só que tem uns que se desviam desse caminho, esquecem as meninas e só ficam com os veados. Porque, no interior, o veado é danado pra bancar (...) o cafuçu. (...) Ele cede prazer pro veadinho, passivo, que geralmente já está com a sua carreira consolidada, já é um professor do estado. Aí, gasta o salário todinho. Não tem filho, não tem mulher, né? Gasta o salário todinho (...) com os cafuçu, no caso. (Márcio, 28 anos, feminino, estudante universitário, versátil)

Considerando os discursos dos entrevistados, os cafuçus são descritos como homens pobres que fazem sexo com bichas por troca (ainda que não formalizada) financeira ou de bens. Os cafuçus se percebem como heterossexuais, ou simplesmente homens, e se utilizam do modelo hierárquico (Fry, 1983) para significar as interações com os pintosas. Relações sempre descritas como ocasionais. Nessa linha, em conversa informal com Aroldo (48 anos, boy, versátil mais para passivo, formação superior) sobre os achados dessa pesquisa, ele diz que já teve interação sexual com cafuçu. Diz que a transa, ainda que muito excitante e prazerosa, é, na avaliação dele, incompleta afetivamente. Ele diz que tem aquela fantasia de estar com “um homem de verdade”. “O cafuçu quer apenas comer o cu7 da bicha”. “Não beija, não faz carinho, apenas bota para foder 8, até gozar9. É isso que dá excitação. Esse desespero em comer o cu. Bota com força.” Na linha do não gostar, diz que “os cafuçus gozam muito rápido, não tem muito essa de mudar de posição”. Aroldo sugere que é como se eles quisessem terminar muito rapidamente a interação sexual, se “aliviar no gozo e ir embora”. ______________________________________________________________________ 7 8 9

Penetrar analmente. Denota força na interação sexual, em que o pênis entra e sai consecutivamente do ânus. Ejacular, orgasmo.

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4 • Gênero, eroticidade e estigmatização Ao longo deste trabalho, buscamos localizar os estilos boy e pintosa como uma dimensão erótica da subjetividade: modos de se sentir bem e de ter prazer com os gestos, maneirismos, sotaques, vestes, adereços e outros elementos que compõem o si mesmo corporal (Rios e Nascimento, 2007). Enquanto performativos (Butler, 2010), os estilos em análise se constituem de forma não volitiva, via processos de identificação (Hall, 2003), por meio de citações e iterabilidades, regulados pelo sistema de sexo-gênero (Rubin, 1993). Em outras palavras, os estilos são articulações inconscientes de características humanas categorizadas (e valoradas) em categorias de gênero. Um campo de produção de diferenças sociais em corpos-subjetividades (Brah, 2006) que também modela desejos e afetos, produzindo corpos sexualmente desejantes e desejáveis. Ao serem significados no sistema de sexo-gênero, os corpos, diferenciados pelos estilos, são objeto de processos de estigmatização que situam quais deles são mais ou menos humanos (Elias e Escotson, 2001). Inspirados nas hierarquias das sexualidades de Rubin (1998), podemos dizer que, na comunidade entendida, no que concerne ao desejo, produz-se uma hierarquização dos homens tendo como marcadores traços socialmente categorizados como femininos. Se, por um lado, as marcas de feminilidade que compõem o estilo pintosa produzem um desinvestimento libidinal nos corpos-subjetividades dos homens assim constituídos; por outro lado, e assim como na sociedade abrangente, é o estilo boy que confere o lugar de objeto sexual desejável aos homens. Quanto mais agenciamentos de elementos categorizados como femininos um homem realiza, menos desejável ele é. Considerando a comunidade entendida, esse arranjo de sexo-gênero produz uma tendência dos homens gays, pintosas e boys buscarem se relacionar sexualmente com homens

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masculinos (gays e não gays, identitariamente falando). Rubin (1993) sugere que o sistema de sexo-gênero produz assimetrias (na divisão do trabalho, na produção de interesses sexuais, nos modos de se expressar, nos gostos e nos prazeres) para criar necessidade de complementaridade e reciprocidades, garantindo, desse modo, a reprodução social e biológica. Ela também sugere que as relações, mesmo as afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo, tenderiam a se pautar pelo modelo em que uma parte da díade seria masculina e a outra feminina, reiterando assim a operacionalidade do sistema. De certa forma, a busca dos boys por homens masculinos quebra com a suposta reciprocidade que as representações ideais de gênero situam, em que o modelo masculino/feminino deveria organizar/ se presentificar nas parcerias sexuais. Nesse contexto de produção de seres desejáveis e desejantes, as pintosas tendem a buscar parceiros sexuais entre homens que estão nas bordas da comunidade homossexual: os cafuçus. Homens masculinos, rudes, ignorantes, pobres, de cor, não gays, que acreditam não ter as próprias identidades sexuais e de gênero ameaçadas ao se relacionar com homens femininos (bichas, frangos, veados, pintosas). Nesses casos, as relações sexuais estabelecidas são muitas vezes marcadas por trocas financeiras e de bens. Por certo, os cafuçus são homens que também estão nas bordas da masculinidade idealizada, homens marginalizados, muitas vezes pouco desejáveis no âmbito da sociedade abrangente. Nessa linha interpretativa, sugerimos que, dentro da comunidade, o sistema de sexo-gênero se torna bem mais relevante para o processo de estigmatização, em relação aos discursos de verdade sobre a homossexualidade (biomédicos, psicológicos e religiosos). Mesmo as posições/fontes de prazer corporal (ativo/passivo), tão enfatizadas como marcadores de desigualdade em outros estudos realizados em contextos e tempos históricos diferentes (Fry, 1983; Parker, 1991 e 2002; Green, 2002; Rios, 2004 e 2008; Viana, 2010; Souza Neto e Rios, 2015), aparecem como fossem relativamente despoten-

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cializadas entre os nossos informantes do Recife da década de 2010, que nos revelaram uma preponderância da versatilidade sexual. São as regulações hegemônicas de gênero que se imiscuem dentro da própria comunidade entendida, discriminando e oprimindo os homens femininos. Queremos destacar que isso se faz em um importante campo de organização da subjetividade: o si mesmo corporal, o corpo-erotizado. A pinta, como estigma que já justifica um conjunto de formas de discriminação, opressão e violência na sociedade abrangente, emerge atuando em um âmbito que envolve o prazer com o modo como se é, e o quão desejável esse corpo se mostra para os pares (outros homossexuais). Se há uma desqualificação erótica do ser homem feminino, ao ser apreciado e desejável, o estilo boy reafirma o conjunto de privilégios e distinções para os estabelecidos, os homens mesmos, reiterando o próprio sistema hegemônico de sexo-gênero.

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Capítulo 2

Homens que dançam: gênero, corpo, raça e travestilidade no maracatu Lady Selma Ferreira Albernaz

Este artigo trata de homens travestidos em uma dança folclórica do ciclo do carnaval, o maracatu do estado de Pernambuco. O maracatu também é classificada como cultura popular, tendo em vista as críticas recentes ao termo folclore. Ela é percebida como tradicional, por ser de longa duração no tempo e porque o processo histórico se desenrola mantendo ou mudando práticas e conteúdos simbólicos, negociados entre diferentes grupos sociais. O maracatu é considerado marca de identidade regional no diálogo com a nação e dentro do estado traduz pertencimento racial e de classe¹. O maracatu é um cortejo com um corpo de baile (a corte) e um conjunto percussivo (o batuque). Ele é tido como uma manifestação exclusiva de Pernambuco², classificado em dois tipos: o maracatu nação (ou baque virado) e o maracatu rural (ou baque solto ou orquestra). A distinção se baseia no ritmo, instrumentos, vestimentas, personagens e localização rural ou urbana. Aqui, atenho-me ao maracatu nação, que chamarei simplesmente maracatu, o qual também enfatiza e tem reconhecida a relação com as religiões afro-brasileiras³. A maior ______________________________________________________________________

¹ O artigo usa resultados da investigação Concepções sobre corporeidade e fertilidade femininas entre brincantes de bumba meu boi maranhense e de maracatu pernambucano (CNPq – Processo nº 402901/2008-8; Edital nº 57/2008). A equipe contou com as bolsistas de iniciação científica (Graduação em Ciências Sociais – UFPE): Patrícia Geórgia Barreto de Lima (2008/10) e Ighara de Oliveira Neves (2009/10), bem como da mestranda (PPGA-UFPE) Jailma Maria Oliveira (2009/10). A partir de abril de 2010, contei com a colaboração do Professor Jorge Freiras Branco (ISCTE/IUL). Agradeço a todos e todas, em especial ao colega Jorge Branco pelas conversas sobre artefatos e a Jailma Oliveira, sobre a atuação das rainhas e travestis. ² No estado do Ceará, também existe maracatu, considerado originário de Pernambuco. Em Recife, pouco se toca neste assunto (Cruz, 2008). ³ As religiões afro-brasileiras variam regionalmente e têm denominações distintas, em Pernambuco destacam-se o Xangô e a Jurema. A filiação religiosa do maracatu parece recente e é fonte de discórdia, tratarei de religião apenas se importante para análise.

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parte dos grupos se origina nos bairros periféricos da Região Metropolitana do Recife, compondo-se de pessoas negras e pobres, homens e mulheres. A finalidade seria celebrar a coroação do rei e da rainha e cultuar os orixás, divindades dos cultos afro-brasileiros, e/ou os antepassados negros (eguns). Pode-se delimitar as atividades dos grupos em ensaios nas sedes e nas prévias de carnaval, eventos de carnaval e a participação em festas e ofertas de oficinas. Falar um pouco sobre isso ajuda a entender a dinâmica de organização e funcionamento das apresentações. Ao mesmo tempo em que situa o trabalho de campo, realizado em Recife, Olinda e Igarassu, entre outubro de 2009 e fevereiro de 2010, quando os maracatus têm as atividades intensificadas. Os ensaios de maracatus, nas próprias sedes ou imediações, têm por principal finalidade treinar as pessoas que tocam os instrumentos de percussão para conferir afinação ao conjunto, atraindo principalmente a vizinhança. O período chamado ‘prévias de carnaval’, em quase todo país, inicia em janeiro, constituindo-se de bailes em clubes e de cortejos de rua promovidos nos fim de semana pelas agremiações carnavalescas. No Bairro do Recife (foco das festas carnavalescas da cidade na atualidade), os ensaios dos maracatus, também com o batuque, objetivam preparar para abertura do carnaval. Os encontros são concorridos porque conduzidos pelo percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, funcionando também como apresentação pública. Durante o carnaval os maracatus se destacam em três eventos principais e muito importantes na percepção dos grupos: (1) a abertura oficial do carnaval recifense, realizado na sexta-feira anterior ao sábado de Zé Pereira, com grande destaque para o maracatu, que forma um conjunto percussivo de aproximadamente 15 grupos (mais ou menos 400 pessoas), regido por Naná Vasconcelos; (2) os desfiles das agremiações, promovidos pela Prefeitura do Recife, com a noite de domingo dedicada aos grupos de maracatu, quando se elege um campeão; (3) a Noite dos Tambores Silenciosos, na segunda-feira,

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em homenagem aos antepassados negros (eguns), realizada centro histórico de Recife, desde a década de 1960. Atualmente é apoiada pela prefeitura e atrai uma multidão. No decorrer do ano, os grupos maiores e mais famosos são convidados para participar de festas e/ou oferecer oficinas de percussão e história do maracatu, com ênfase na dimensão religiosa, promovidas pelo estado ou privadas. Estes convites podem vir do Recife, de outros municípios do país e do exterior, notadamente países europeus (França e Alemanha se destacam). Centrei a observação nos ensaios e no carnaval, momentos fundamentais da sociabilidade. Ainda que os primeiros se concentrem na reunião das pessoas que integram a percussão, eles possibilitam perceber escolhas relativas aos demais integrantes. As observações foram complementadas por entrevistas com lideranças e integrantes de diferentes grupos. São estes dados que dão base às interpretações e análises que faço a seguir.

1 • Contar história: Que eu me organizando posso desorganizar4 Afirmei em trabalho anterior (Albernaz, 2011) a importância dos arranjos das relações de gênero no maracatu. Esta categoria, por meio das classificações que lhes dão sentido, estabelece posições de homens e mulheres que organizam as práticas dos grupos, desencadeando relações adequadas entre eles e elas com certas desvantagens para as últimas. As expressões corporais denotam uma ordem classificatória de gênero, não necessariamente correspondente ao sexo biológico, reforçando os significados das posições que eles e elas podem ocupar. A noção de corpo pode ser pensada como um desdobramento da análise de gênero, uma vez que estética e performance corporal são aspectos relevantes na sua constituição5. ______________________________________________________________________

Refrão da música Da Lama ao caos – Nação Zumbi (disponível em: http://letras.terra.com.br/ nacao-zumbi/77655/, acesso em 05/01/2012), canção emblemática do Movimento Mangue Beat, relacionado ao maracatu e discutida adiante. Os subtítulos seguintes são completados por outros versos da mesma música, misto de metáforas e epígrafes. 5 Este subitem toma por base exposição feita em outra publicação (Albernaz, 2011). 4

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No que se refere às modalidades de inserção dos homens no folguedo, é permitida a travestilidade, fenômeno que chama a atenção da plateia, com variações na apreciação: aplauso, incentivo, espanto, crítica. Este tipo de inserção depende da permissão das lideranças temporais e espirituais dos grupos, fazendo-se acompanhar por debates relativos à moralidade, a atitudes e a comportamentos de gênero, mais ou menos informados por regras religiosas. A participação de homens travestidos revela sentidos e efeitos das relações de gênero, no grupo, na sociedade e na comunidade. As performances corporais são fundamentais para exprimir o feminino, a elas se somam, com igual importância, as vestimentas e os adereços. Os grupos de maracatu, de uma forma geral, compõem-se de corte e batuque. À frente do cortejo, vem um porta-estandarte, homem no geral, podendo ser acompanhado por uma alegoria (escultura de símbolo divino ou natural), que representa o grupo, transportada sobre um estrado com rodinhas. A corte se estrutura em torno de uma rainha e um rei - ela é considerada uma líder espiritual, por isso mais importante do que ele. Os casais reais são protegidos por um pálio e ladeados por soldados romanos, além de pajens, que levam abanos – todos eles são homens jovens ou crianças, numa posição quase de figurante, sem suscitar grande atenção. Os lanceiros complementam esta guarda real e circulam em volta do cortejo como um todo ao longo das suas apresentações. Hierarquicamente, a segunda figura mais importante da corte é a dama do paço, comumente representada por duas mulheres, cada uma portando uma boneca (calunga) que encarna divindades religiosas, comportando os fundamentos espirituais que protegem o grupo. Na seqüência desta hierarquia, há um séquito de casais de nobres, obrigatoriamente um príncipe e uma princesa, e ainda conde, duque, marquês, podendo haver outros títulos que variam em número de um grupo a outro – quanto maior o grupo, maior é o número de títulos e de casais.

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Compõe ainda esta corte um grupo de baianas (ricas e pobres – estas também podem ser chamadas de catirinas), sem um par masculino. Na maioria dos grupos, permite-se que estes personagens sejam encarnados por homens travestidos. Em alguns maracatus, parte das baianas ricas representam divindades dos cultos afro-brasileiros, dentre as quais os homens travestidos no geral se destacam pela dança e riqueza das vestimentas. Eventualmente pode haver um caboclo (figura masculina em trajes de pena que lembram um índio), que circula por entre os personagens com uma dança característica – saltos e agachamentos acrobáticos. A sequência esquemática desse cortejo é: primeiro as baianas e, dentre elas, as damas do paço, que protegem todo o séquito. Em seguida, os casais de nobres, encerrando com o casal real. Na fotografia 1, é possível visualizar as figuras reais que sintetizam a corte do maracatu.

Fotografia 1: Rei e rainha Fonte: Pesquisa de campo (Jailma M. Oliveira, 2010)

A outra parte do maracatu, o batuque, segue a corte durante todo o cortejo ou desfile. Esse conjunto percussivo integra entre 15 e 100 pessoas - esta ampla escala de va-

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riação indica a importância e riqueza do grupo. O líder, chamado mestre, atua como um maestro orientando batuqueiros e batuqueiras. Os instrumentos são a alfaia, a caixa (ou tarol) e o gonguê, presentes em todos os grupos. Mais recentemente, dependendo do maracatu, são acrescidos a estes: o abê, o mineiro e o atabaque, isolados ou simultaneamente. A fotografia 2 fornece uma idéia do batuque, sobressaindo-se as alfaias. No conjunto, o maracatu não é um ritual que se afigure masculino ou feminino, pode ser visto como neutro do ponto de vista de gênero. Entretanto, internamente, a divisão espacial tem uma classificação de gênero que ordena as relações e distribui o poder. Numericamente, as mulheres são maioria dentro da corte. A rainha e as damas do paço são protetoras espirituais do grupo e portadoras de um poder da mesma ordem. Elas simbolizam todo este espaço classificado de feminino. São as rainhas a síntese desse poder, que pode se desdobrar para resolução de problemas do cotidiano dos integrantes dos grupos, bem como para conseguir recursos que viabilizam as apresentações. Tradicionalmente, reis e rainhas eram coroados em um ritual religioso específico, mas, no transcorrer do século XX, apenas um rei foi coroado e, desde os anos 1970, apenas elas o são6. O batuque, ainda que atualmente seja misto, no passado foi constituído apenas por homens, mas continua sua classificação como masculina e a prevalência numérica deles. A interdição à participação das mulheres tinha razões religiosas. Unicamente os homens poderiam tocar instrumentos que medeiam a comunicação com os deuses, de acordo com as religiões afro-brasileiras, o que não é diferente em Pernambuco. Mesmo que as razões para vetar as mulheres no batuque fossem religiosas, o poder masculino configura-se como da ordem ______________________________________________________________________

O ritual de coroação da rainha deve ser na Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Nem todas elas atualmente são coroadas, motivo de disputas. Ter rainha coroada implica em maior legitimidade e autoridade do grupo na definição das regras para os maracatus. Ver Oliveira (2011) e Guillen (2004). 6

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temporal, aparentemente voltado para ordenar as relações dentro do grupo, com a comunidade e com o poder público. Este poder temporal permanece, mesmo que o batuque continue expressando símbolos, relações e práticas da ordem do sagrado.

Fotografia 2: Batuque Fonte: Pesquisa de Campo (Jailma M. Oliveira, 2010)

Nas apresentações atuais, a percussão tem conseguido um grande destaque que se encarna no mestre. Ele é síntese do conjunto e garante a harmonia. O desempenho dele propicia a fama do grupo e a escolha para participar de apresentações e de oficinas. Neste tipo de evento, comparece mais freqüentemente o batuque. Em apresentações com a presença da corte, os personagens que não podem faltar são a rainha e a dama do paço, acompanhados de alguns nobres e de baianas, pelo menos idealmente. Esta configuração atual do maracatu, em que o batuque se destaca, tem relação com a história do folguedo que é importante registrar aqui. Inspirando-se em dados documentais sobre as coroações dos Reis do Congo, realizadas desde o século XVIII (Souza, 2006), intelectuais e integrantes dos grupos

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consideram que o maracatu remontaria ao período da escravidão no Brasil colonial. Estas coroações eram realizadas pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito, simultaneamente reverenciando as divindades católicas designadas protetoras dos escravos7. Neste ritual, eram eleitos os representantes para governar cada nação negra, evitando rebeliões e controlando o comportamento cotidiano. Por isso, os maracatus seriam chamados de maracatus-nação, invocando um coletivo de pertença e de obediência a uma autoridade. Nos registros dos folcloristas, o rei parecia ser o mais importante e sempre acompanhado de uma rainha. Como destaca Oliveira (2011), a presença das mulheres, ainda que não mencionada nominalmente, é entreouvida nos ecos dessa história. Não se mencionava o batuque com a mesma ênfase, a não ser para criticar o barulho dos tambores e/ou o tom repetitivo e lamentoso das melodias. Contar a história é importante para dar o selo de autenticidade e antiguidade ao grupo (medidas respectiva tradição), para enfrentar disputas por poder e acesso a financiamentos das apresentações, as quais garantem a manutenção e continuidade. Mas também é utilizada para regular as relações e as práticas dentro do grupo (Sahlins, 1990), incluindo as relações de gênero. Atualmente esta história é contestada por interpretações alternativas, realizadas por historiadores (Mac Cord, 2001; Guillen, 2004; Souza, 2006; Lima, I. 2008), os quais invocam outras manifestações como possíveis inspirações para os maracatus. Lima, I. (2008) cria uma cronologia da brincadeira, com destaque para o período do Estado Novo (1937-1945), que coincide com uma primeira aceitação do maracatu para afirmar identidade regional e mestiçagem (Guillen, 2004). Mesmo com estas dissensões, nota-se a constituição de uma historicidade pelas pessoas que integram os grupos. Elas compõem uma explicação plausível da origem do folguedo, especialmente a liderança. ______________________________________________________________________

Sobre a Irmandade de São Benedito e a importância dela para os escravos, ver Silva (2000). Das nações negras trazidas da costa africana para o Brasil, as que mais se destacaram foram as da região do Congo, razão pela qual tinha maior presença nos rituais de coroação. (Cf. Souza, 2006). 7

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Deve-se notar que os pontos polêmicos levantados pelos historiadores atuais incidem sobre que tipos de danças marcariam a origem do maracatu. Pouco se debate sobre as possíveis mudanças na organização interna dos grupos que podem ter ocorrido com a passagem do tempo. Por exemplo, como a rainha passou a ser uma das figuras mais importantes da corte, junto à dama do paço, e não mais o rei, como era antes; ou por que o batuque conseguiu a projeção atual. Portanto, as regras, sentidos e práticas de gênero aparecem de uma forma naturalizada, ainda que estas relações e as classificações e símbolos correspondentes tenham se alterado ao longo do tempo e mostrem-se como centrais na organização dos grupos8. Tenho algumas hipóteses para esta omissão. Primeiro, a ausência de ferramentas analíticas para tratar de gênero, o que tornou invisível as mulheres na história de modo genérico (Scott, J. 1996). A forma de organização dos grupos – uma dança apropriada para homens e mulheres nos espaços previamente definidos – permitiu falar dos homens tendo as mulheres como extensão. Parece confirmar esta hipótese as duas figuras emblemáticas do maracatu no século XX: Dona Santa, rainha do Maracatu Nação Elefante, e Mestre Luís de França, mestre do batuque do Maracatu Leão Coroado. Tendo-se um representante de cada sexo nas posições mais importantes e simultaneamente símbolos e emblemas dos dois espaços organizativos da dança no conjunto - corte e batuque -, afigurava-se como tudo estando resolvido e devidamente registrado nos anais da história. Não era necessário levantar as duas questões: por que o rei perdeu seu poder? E, como o batuque ganhou tanto destaque? A segunda hipótese pode ser a dinâmica das relações raciais no Brasil e em Pernambuco. Por muito tempo, evitou-se tratar das tensões raciais que se evidenciam nas danças folclóricas no Brasil (Albernaz, 2011, 2010; Ortiz, 1986). Ainda ______________________________________________________________________

Em outro trabalho, sobre bumba meu boi - dança folclórica do estado do Maranhão -, notei omissões semelhantes no que se refere à sua organização por códigos e práticas de gênero (Albernaz, 2010). 8

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que se tenha feito um esforço difusionista para identificar as origens das danças brasileiras – Europa (brancos, destacadamente portugueses), África (negros, sem mencionar etnias ou nações) e América (índios) – o resultado final era salientar uma fusão mestiça. Como bem aponta Ortiz (1986), usando o samba como exemplo, sua criação negra é omitida em favor da transformação em marca de identidade nacional e suporte mestiço. Mesmo se uma dança, como é o caso do maracatu, fosse uma prática de pessoas negras, para a aceitação ocorrer, ela deveria dialogar com a mestiçagem em alguma medida, como de fato acontece a partir dos anos 1940 com o movimento modernista em Pernambuco (Cf. Guillen, 2004). Penso, então, que a questão racial pode ter se tornado mais interessante e relevante ao se retomar a constituição histórica do maracatu, tornando a discussão de gênero uma dimensão secundária na organização do folguedo. Esta hipótese parece plausível, pois a história alternativa, que os intelectuais constroem sobre o maracatu, destaca a dimensão racial no folclore – ainda que gênero seja aqui e ali contemplado ao se pinçar figuras de mulheres que não seja Dona Santa. Assim permanece o consenso sobre o maracatu ser uma brincadeira de pessoas negras e pobres, como um sinônimo de pertencimento de classe e de raça simultaneamente. Esta caracterização foi acentuada nos anos 1980, quando o movimento negro ressurge no Brasil após o regime militar de 1964 (Albuquerque e Fraga Filho, 2006). Em todo o país, o movimento negro, em especial o Movimento Negro Unificado (de alcance nacional), passou a valorizar e visibilizar manifestações populares das populações negras, como um mediador de afirmação de identidade racial e de positivação do ser negro (Hall, 2003), a exemplo do Black is Beautiful estadunidense. Nos anos 1990, surge na Região Metropolitana do Recife o movimento Mangue Beat, inspirado nos ritmos populares locais, misturando-os com ritmos do pop-rock internacional (Esteves, 2008; Oliveira, 2007; BBC, 2012), dando nova visibilidade ao maracatu. O grupo Chico Science & Nação Zumbi foi o

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maior sucesso deste movimento, alçando-se com destaque na Word Music internacional. Foi um momento de efervescência na cultura pernambucana, reverberando no debate nacional e remodelando os conteúdos de identidade. O Mangue Beat passou a ser uma marca de identidade regional, contribuindo para visibilidade de muitos folguedos populares existentes no estado. Além disso, os trabalhos desenvolvidos por Mestre Salustiano, para preservar o maracatu de baque solto, e a formação do grupo percussivo9 Maracatu Nação Pernambuco reforçaram o reconhecimento do maracatu (Oliveira e Albernaz, 2011). Por conseguinte, ao frevo, uma manifestação da cultura popular constituída como marca de identidade pernambucana10, somaram-se novos ritmos, culminando na possibilidade atual de reivindicar uma conformação multicultural para o estado, particularmente Recife, baseando-se na produção musical11. Ao ganhar esta nova posição entre os símbolos musicais de Pernambuco, o maracatu não perdeu o significado simbólico de uma manifestação do povo negro e pobre, como afirmei anteriormente. O que ocorreu foi o realce da função de resistência para as populações negras ao longo da história, por enfrentar as mais diversas perseguições à própria cultura e modo de ser (Lima, I. 2008). Ao mesmo tempo, de uma forma ambivalente e contraditória – na medida em que se contrapõe ao ideal de mestiçagem –, esta positivação parece ter desencadeado uma aproximação de pessoas “brancas” e “ricas” (como sinônimo de classe média). Estas pessoas, homens e mulheres, assumiram duas formas de interação com o maracatu, integrando grupos tradicionais, especialmente na percussão, ou formando os grupos percussivos, o que aumentou o prestígio da música do maracatu (Esteves, 2008). Além destas mudanças, reforça ______________________________________________________________________

Grupos criados geralmente por pessoas de classe média, inspirados na música do maracatu para aprender percussão ou participar do carnaval. O Maracatu Nação Pernambuco foi pioneiro. Estes grupos podem ter um corpo de baile, mas não uma corte e nem se filiam à religião afro-brasileira. São fonte de polêmica por supostamente concorrerem com os maracatus tradicionais. Ver Esteves (2008). 10 O frevo (música e dança) figura como marca de identidade pernambucana desde os anos 1970. Desconheço trabalhos que tratem desta questão. 11 Para uma discussão sobre identidade e música, ver os trabalhos de Lima, A. (2009) e Pinho (2009). 9

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esta relevância a posição do maracatu como uma das atrações na abertura do carnaval. A performance musical da percussão no evento parece atrair mais atenção do que propriamente a presença das rainhas, reis, damas do paço e as mães e pais de santo dos terreiros das religiões afro aos quais o maracatu se filia, que sobem ao palco ao som dos tambores que estão no rés do chão. Neste sentido, a corte se afigura secundária, ao contrário do que ocorria na coroação dos reis do Congo invocada como origem do maracatu. Num outro plano, nota-se que estes acontecimentos favoreceram a reorganização interna dos grupos. O exemplo mais destacado é a participação das mulheres no batuque que, como já dito, era exclusivamente masculino. São consideradas pioneiras as que integravam os grupos percussivos – de classe média, e as mulheres militantes do movimento negro que, inspirando-se nos ideais feministas, reivindicaram integrar o batuque dos grupos tradicionais (Albernaz, 2011; Oliveira, 2011). A participação de pessoas de classe média em grupos de maracatu tradicionais são signos de prestígio e fama, supõe-se, então, que estas novas práticas motivaram a aceitação das mulheres nestes batuques. Simultaneamente, motivam as mulheres das camadas populares a tocarem instrumentos. De forma que as relações de gênero no maracatu se cruzam com estes marcadores (raça e classe), alterando a organização interna dos grupos com novos significados para as relações de gênero (Neves e Albernaz, 2010; Albernaz, 2011)12. Em outro trabalho (Albernaz, 2011), ressaltei a importância do batuque, tendo em vista a análise da execução dos instrumentos. Mas isso não implica que, internamente ao grupo, corte e batuque não sejam igualmente importantes e também concorrentes pela organização das relações e distribuição de poder entre os membros. Mestres e rainhas, dependendo das ______________________________________________________________________

O acesso das mulheres à percussão ressaltou a classificação de instrumentos em masculino e feminino. Isto ocorre de tal maneira que elas prevalecem nos instrumentos femininos, como o abê, e são minoria na alfaia, masculina. Nas alfaias, predominam mulheres de classe média e, no abê, as de camadas populares, conformando novas desigualdades em intersecção com marcadores de classe (Cf Albernaz 2011). 12

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historias especificas desses grupos e dos arranjos atuais da respectiva liderança, são complementares ou disputam a condução do conjunto. O cargo de presidente, ocupado por homem ou mulher – no geral mestre ou rainha -, parece ser o que legitima, na maior parte dos casos, quem decide e se a proeminência será do batuque ou da corte na organização de cada grupo particular. Há ainda outros elementos que sustentam a relação do batuque e da corte como de disputas e de equilíbrios. Por um lado, se o batuque tem maior visibilidade pública, ainda é a corte que define se um grupo é maracatu ou apenas um grupo percussivo. Por outro lado, se os mestres do batuque podem conferir fama e prestígio, na corte é a rainha a principal figura, ainda mais se for coroada, ficando o rei em um plano secundário. Assim como os batuques vem crescendo em número de participantes, uma corte com muitos casais de nobres e de baianas é sinônima de grandeza e fama do maracatu. Neste sentido, alguns aspectos merecem atenção no que se refere à dança, encenada na corte, que complementam os sentidos do maracatu para além da musica que ecoa do batuque. Primeiro, o público que segue as apresentações dos maracatus o faz também pela dança e procura imitar o desempenho das pessoas que estão na corte. Segundo, não se pode deixar de notar a presença de pessoas de classe média dançando, especialmente como baianas e catirinas (Esteves, 2008) e, mais recentemente, nos personagens da nobreza. Terceiro, a oferta de oficinas para aprender danças populares em geral, dentre elas o maracatu13. Obviamente que o público das oficinas é de classe média, posto que, para os integrantes dos maracatus, quem é da corte sabe dançar sem precisar aprender, a dança é a mesma dos terreiros de candomblé – resposta que mais ouvi quando perguntava por que a corte não ensaiava com o batu______________________________________________________________________

Este tipo de oficina não é necessariamente oferecido pelos grupos de maracatu, como são geralmente as oficinas de percussão. No geral são iniciativas de professores de dança ou de grupos de balé do Recife e região metropolitana. Note-se que o grupo percussivo Nação Pernambuco tinha um corpo de baile, produzindo coreografias próprias que chamavam muito a atenção das mulheres. 13

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que. Quarto, percebi o esforço de criação de passos e gestos novos pelas mulheres mais jovens de maracatus tradicionais, como se quisessem dar visibilidade para este bailado. Quinto, a coreografia das mulheres que tocam abê, que complementa a execução do instrumento, simultaneamente acentua os significados do feminino atribuídos ao instrumento e salienta os sentidos da dança para o conjunto do grupo, estendendo-a da corte ao batuque. Portanto, a dança tem importante dimensão na definição do que é maracatu, sendo a corte o lugar da encenação dela. A dança reproduz a mesma que é executada nos terreiros em louvor aos orixás, portanto, tem e completa a dimensão sagrada. Os gestos e os passos da dança, o ímpeto, a cadência e a intensidade indicam a força e a pujança do conjunto e concorrem para a posição de um maracatu dentre os demais. Dentro da corte, os pares de nobres, incluindo rei e rainha, desfilam de braços dados e fazem passos mais contidos, já a as baianas e as damas do paço atuam na dança de uma forma mais assemelhada ao que se faz no terreiro. A dança dessas mulheres se caracteriza por passos cadenciados, com arrastar alternado por leve batidas de pés, acompanhado por flexões do joelho, que fazem menear os quadris, espalhando os movimentos pelo corpo. Na maior parte do tempo, os braços estão posicionados formando um arco na altura do peito, movimentados para frente e para trás, fechando e abrindo este arco. Intercalado a este movimento, alternadamente os braços sobem e descem da altura da cabeça até a dos quadris. Estes passos são entremeados com giros do corpo sobre si, intensificando a dança no lento avançar durante o desfile. A presença dos homens travestidos, mesmo que inseridos no conjunto das baianas, destaca-se da totalidade da corte. No geral, permanecem juntos durante o cortejo, demarcando um espaço específico. Esta posição está relacionada à atuação deles como baianas ricas, que comumente são representações de orixás femininos do panteão das religiões afro-brasileiras. Assim como acontece com os demais integrantes, o número

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deles aumenta ou diminui de acordo com o tamanho do grupo. É por meio desses personagens que a imagem do feminino se encarna nesses homens de uma forma legítima. O trânsito do masculino para o feminino acentua a corporeidade como uma elaboração cultural e permite o acesso a uma melhor compreensão das relações de gênero.

2 • Vestir-se para dançar: Posso sair daqui para me organizar Durante o campo, dois acontecimentos chamaram minha atenção. No primeiro, estava na sede de um grande maracatu que fora algumas vezes campeão do carnaval do Recife, assistindo, junto das assistentes de pesquisa, ao ensaio do batuque, ouvindo a repetição das loas e acerto do ritmo conduzido pelo mestre. Postou-se ao nosso lado um homem negro, esguio (quase magro), alto, cabelos na altura dos ombros, aproximadamente 35 anos e que passou todo o tempo dançando. Ao perceber nossas anotações, ele entabulou uma conversa, informando que dançava na corte como baiana rica e incorporava um orixá feminino. Enfatizou a própria importância no desfile pela intensidade e força com que dança, que se destacava do conjunto. Lembrou-se de amigos que dançavam com ele, da competição por atrair a atenção, de comentários do público e da satisfação em participar. Daí, passou a destacar as vestes que usa e salientou que, no desfile, estava sempre de salto alto. Atribuiu um sentido múltiplo para este calçado: confere elegância e dificulta a execução dos passos, mas, ao mesmo tempo, como um tipo de transporte para o feminino No segundo, após assistirmos ao ensaio do batuque de um maracatu pequeno, transcorrido na rua, próximo à sede do grupo, pudemos presenciar um convite do presidente a um homem para ser baiana durante o desfile. O rapaz tinha características físicas semelhantes às do homem anterior, apenas um pouco mais jovem. Na conversa entreouvida, o presidente destacou qual seria o orixá do jovem, deu ênfase à beleza da

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roupa, exigia o uso de um sapato alto e chamativo e, por fim, talvez mais importante, o compromisso de dançar bonito, em dar toda a força à apresentação, de maneira a contribuir para o sucesso do grupo. Penso que estes dois acontecimentos atestam que há um reconhecimento e aceitação da participação dos homens travestidos nos desfiles. Que eles são ativamente procurados e/ou buscam manter uma posição, marcando presença em momentos estratégicos da vida do grupo. Aquele que conversou conosco colocou em evidência como são importantes os adereços que usam para desfilar e o desempenho na coreografia. Esta percepção particular se repetiu na conversa entre o presidente e o convidado. Nestas duas passagens, dois elementos parecem importantes para compreender os homens travestidos no maracatu: o desempenho na dança e a estética14. A escolha dos homens para ser baiana no maracatu parece reconhecer neles uma virtuose no bailado, que contrasta com a afirmação que é uma dança que não se aprende. Ou, como afirma Renata Sá Gonçalves (2008, p. 203), se não é um conhecimento explicitado como aprendizado, por meio dela (a dança) se aprende uma experiência ritual e social, e neste caso tornada evidente na escolha dos homens para se travestir. No que se refere à estética, ela está relacionada ao feminino. Por um lado, a forma das roupas e a suntuosidade que marcam no geral o que deve vestir uma mulher em momentos de festa. Por outro, a elegância relacionada com os sapatos de salto alto, que também se liga com um tipo de feminilidade, especialmente aquela que ressalta a sedução. As roupas das mulheres e dos homens travestidos têm formas semelhantes, mas são distintas na ênfase: as deles são mais chamativas (brilho, bordado, decote), o que se acentua com o tipo de sapato. As mulheres no maracatu calçam-se com ______________________________________________________________________

Aqui, concordo com Strathern, concebendo estética mais como uma forma desejável do que uma noção de belo, entretanto, em alguma medida, a estética expressa no maracatu liga-se à beleza. Ver entrevista de Strathern em Simon et al (2010, p. 3). 14

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sandálias ou sapatos baixos e eventualmente desfilam descalças, tal como ocorre num terreiro de Xangô. Penso que estas duas dimensões, dança e estética, podem ser a chave para compreender o que diferencia ser um homem ou ser uma mulher trajada de baiana nas cortes dos maracatus aqui estudados. Quase todos os objetos (instrumentos, vestes, adereços) dentro do maracatu são classificados por gênero. Isto de partida pode ser percebido na distinção entre as roupas da corte e do batuque. Sendo anteriormente um espaço apenas de homens, o batuque reproduzia as vestes dos escravos trabalhadores da cana de açúcar – uma calça de tecido rústico e camiseta. Com o ingresso das mulheres, elas passaram a acentuar, em alguns grupos, que são mulheres usando saias e blusas específicas para se demarcar em relação ao conjunto de homens, mesmo que guardem semelhanças para não quebrar a unidade deste espaço. Na corte, as roupas são de dois tipos principais: aquelas das baianas pobres, um longo vestido de chita, que parece espelhar simplificadamente as roupas da nobreza; e as das baianas ricas. Estas últimas reproduzem os trajes das cortes européias do final do século XVIII. Quanto mais elevado o titulo de nobreza, mais luxuosa deve ser a vestimenta, estando no ápice a roupa do casal real. Detendo-me à roupa feminina, ela é mais ou menos no estilo de Maria Antonieta – corpete ajustado e decotado, mangas bufantes e fartas saias, armadas e rodadas, que vão até o chão. Os tecidos são pesados e brilhantes, que lembram brocados, damascos, tafetás e cetins, algumas vezes bordados com lantejoulas, fios dourados e prateados. As cores são vibrantes: vermelhos, azuis, amarelos, rosas, laranjas, violetas, verdes. Mais do que meramente objetos, as roupas simbolizam gênero, no sentido de Strathern (2006), e conferem nitidez à natureza das relações sociais15. ______________________________________________________________________

Entendo por ‘gênero’ aquelas categorizações de pessoas, artefatos, eventos, seqüência etc. que se fundamentam em imagens sexuais – nas maneiras pelas quais a nitidez das características masculinas e femininas torna concretas as ideias das pessoas sobre a natureza das relações sociais. Tomadas simplesmente como sendo ‘sobre’ homens e mulheres, tais categorizações têm muitas vezes parecido tautológicas. (Strathern, 2006:20). 15

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Para os homens travestidos, isso é ainda mais significativo: são as roupas, em primeiro lugar, que assinalam os trânsitos que deslocam a correspondência sexo-gênero, quando eles se tornam mulheres, transformando-se na personagem baiana, sendo que aqui o desempenho - ou, se quisermos, a ação - é fundamental para legitimar este lugar e como podem e devem expressar o feminino da mulher que incorporam. Como afirma Lagrou (2003), os objetos portam conhecimento, sendo ainda mais importante o modo como as pessoas os incorporam. Podemos afirmar que a relação das pessoas com as vestimentas é significativa tanto para indicar a posição dentro do grupo, como para indicar a identidade de gênero. Em mais de uma sede, realizando entrevistas ou assistindo a ensaios, éramos convidadas a ver a exposição das roupas da corte, rigorosamente penduradas em cabides, enfileiradas, como se prontas a vestir, sendo dada ênfase às vestes femininas. O uso das roupas no maracatu sinaliza para modos distintos de incorporação de conhecimento, que se tornam visíveis inclusive pelo tipo diferente de veste que eles e elas podem usar como baianas. A deles, homens travestidos, sempre parece mais ousada, colorida, farta do que a delas dentro de um mesmo grupo, posto que, de um grupo para outro, há variação, ainda que seguindo um padrão comum. Mas, além dessa diferença, alguns travestidos levam para rua o que se veste apenas nos terreiros, tornando-os mais distintos do conjunto das mulheres. Em alguns grupos, aparecem com vestimentas de orixás do tipo ketu-jêje (uma amarração de tecidos no peito, além de saia até a altura da metade da perna que possibilita mostrar uma calça comprida específica), mesmo que em Pernambuco prevaleça o Xangô e a Jurema. As roupas dos orixás levadas para as ruas podem ser vistas como uma legitimação do travestimento, invocando-se para isso a tradição religiosa. Nos estudos sobre religião afro-brasileira, um dos temas recorrentes é a presença de homossexuais e por extensão a travestilidade (Matory, 1988). Pode-se efetivamente pensar que os preceitos religiosos colaboram

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para dar positividade à presença desses homens. Como também, ainda que momentaneamente, sugere uma aceitação de práticas homossexuais com esta presença. Pois, ao contrário do que ocorre com a travestilidade masculina em outras danças e representações folclóricas, no maracatu a incorporação do feminino pelos homens tenta mimetizá-lo, e não parodiá-lo. Por exemplo, no bumba meu boi, nos moldes tradicionais, os homens que se travestiam deixavam claro que faziam uma paródia e, ao mesmo tempo, tentavam evitar qualquer associação com uma orientação homossexual. No outro folguedo, a encenação do feminino é a feminilidade da sedução ligando-se a uma evidência de desejo por pessoas do mesmo sexo. Nas conversas informais mantidas durante o desfile, eles vestidos com os dois tipos de trajes se identificavam como baianas ricas. Quando se perguntava qual orixá representavam, então, vinha a confirmação de serem Iansã, Oxum ou Iemanjá e, em alguns casos, pombas giras e mestras da Jurema. Mas nem todos os grupos aceitam esta encenação: pelo menos em dois deles em Recife e municípios vizinhos, as lideranças deixam claro que esta prática não é permitida, e o motivo é também religioso. Segundo estas, no terreiro ao qual o maracatu se liga, os homens não se travestem, mesmo que o orixá que recebam no momento do transe seja feminino. Ainda que grupos desse tipo sejam minoria, deve-se levar em conta esta controvérsia no campo das religiões de matriz africana, para não se pretender uma aceitação uniforme da travestilidade ou da homossexualidade16. Mas, não vou me estender nesta discussão religiosa aqui. Dentre os dois tipos de vestimentas, focarei a análise nos tipos de feminilidade que os homens desempenham nas apresentações usando as roupas no estilo comum para toda a corte, comum também às mulheres, repetindo a forma da nobreza européia. Nesta encenação do feminino, parece-me que o maracatu expressa com mais densidade simbólica as relações de gênero ______________________________________________________________________

Matory (1988) pode ser uma boa referência para as polêmicas em torno dessa questão, iniciada com o trabalho de Ruth Landes nos terreiros de Candomblé da Bahia nos anos 1930-1940. 16

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que se vive no cotidiano, seja da comunidade de vizinhança do bairro de origem do grupo, seja da sociedade mais abrangente. Marca uma experiência, em que o ritual serve para confirmar a ordem hegemônica, ou promover um debate ideológico que se contrapõe a esta ordem (Comaroff e Comaroff, 2010, p. 35). Por conseguinte, este tipo de experiência pode ser uma chave de acesso à subjetividade, fundamental para compreender gênero e a reprodução deste ou contestação das desigualdades de poder e dominação. Os homens podem assim sair para se organizar e falar de si, falando também das mulheres.

3 • Encenar feminilidades: Um homem roubado nunca se engana Para iniciar a discussão sobre a feminilidade encenada pelos homens travestidos, deve ficar claro que eles não escondem a orientação sexual pela gestualidade, mas também mostram no rosto e no corpo que são homens, as feições são másculas, ainda que escanhoadas, e não usam seios postiços. A transição para o feminino resulta das vestes de mulher somadas ao tipo de dança e de feminilidade nas quais investem. Portanto, não se trata de travestis que fizeram uma transformação corporal permanente. A travesilidade evidencia a construção de gênero sobre o sexo, opere-se ou não uma transformação no corpo físico. Para os propósitos desse trabalho, penso que o mais interessante na travestilidade em tela é exatamente a transitoriedade, o que ocorre em outras danças folclóricas e que no maracatu delas se diferencia por indicar uma opção sexual pelo mesmo sexo, portanto, uma orientação homossexual. Nesse sentido, pode elucidar questões que o modelo hegemônico de gênero prefere não levar em conta, ou reafirmar uma ordem quando aparentemente a desafia. Partindo do princípio de que a feminilidade se constitui de diferentes formas, nas mulheres e nos homens que discordam do gênero e sexo biológico, é importante perceber que a construção se relaciona a uma discussão maior sobre relações de

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gênero na sociedade brasileira. Estabeleceu-se no Brasil uma tradição de pesquisas sobre classes sociais focando camadas populares e médias, concluindo que as primeiras se orientam por valores hierárquicos e as segundas por valores igualitários, numa clara inspiração estruturalista nos moldes de Louis Dumont. Nestas investigações, a organização de gênero é central para conformação das relações sociais, acentuando, simultaneamente, a diferença ideológica de ambas as classes, ocorrendo nas análises que usam um recorte de classe e nas que partem de uma antropologia da mulher/gênero. Salem (2006) faz uma revisão lúcida da questão e aponta limites em algumas conclusões; enquanto Scott R. (2011) ressalta as diferenças de foco: nas camadas médias, sobressai a subjetividade; nas camadas populares, as relações de trabalho. Importa destacar que o modelo simbólico de gênero que organiza a sociedade brasileira é do englobamento do feminino pelo masculino. Os símbolos marcantes que envolvem as oposições binárias de ordenamento das classificações de gênero são o dentro (feminino) x o fora (masculino), ou nos termos de DaMatta (1989): a casa x a rua. Desdobra-se dessa oposição outra muito importante, o vínculo (feminino) x a circulação (masculina). Saindo do plano da abstração estrutural para o das relações, isto implica num tipo de família mais igualitária que tenta suplantar as diferenças de gênero nas camadas médias, por conta da respectiva ideologia individualista, e uma família mais hierárquica nas camadas populares com forte separação entre homens e mulheres - eles circulantes e pouco envolvidos com a família e elas vinculadas à unidade familiar, aos filhos e aos parentes femininos (Salem, 2006). No escopo desse trabalho, o modelo se afigura útil para compreender os tipos de feminilidades que os homens assumem no maracatu, a despeito dos limites teóricos do estruturalismo já largamente apontados, como por exemplo, a omissão das práticas com a conseqüente supressão das mudanças históricas (Sahlins, 1987), a ausência da agência e implicações disto para a subjetividade (Ortner, 2007), o apagamento dos

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mecanismos de poder atrelado às estruturas sociais (Bourdieu, 1989). Particularmente, considero que o modelo apresenta um limite específico. Ao colocar a ordem de gênero como distinto para as classes que polarizam a estrutura social brasileira em ricos e pobres, perde muito da riqueza analítica e resvala para um formalismo, o que quase sempre ameaça as análises estruturais. Como apontei em outro trabalho (Albernaz, 2004), as análises de cultura popular brasileira, especialmente no que se refere a trocas estéticas, tendem a exagerar as diferenças entre as culturas de classe, mais do que as respectivas relações e tensões. Nem as camadas médias constituem a própria cultura de distinção de forma isolada, nem as camadas populares elaboram os valores fora do contexto capitalista moderno e individualista. Portanto, talvez esteja mais correto DaMatta (1989) quando advoga que a cultura nacional é simultaneamente norteada por valores individualistas e hierárquicos transversalmente às classes – expresso no famoso jeitinho brasileiro e no “Você sabe com quem está falando?” As camadas médias não estão livres do englobamento do feminino pelo masculino, e as camadas populares não estão presas a um modelo hierárquico descontextualizado da modernidade – o que possibilita pensar seus antagonismos derivados de outras razões. Talvez Pinho (2007) tenha razão quando ressalta os constrangimentos de classe como imperativos na subordinação das mulheres das camadas populares ao machismo expresso por esta classe, em que as mulheres e os homens, ainda que não conseguindo romper com a hierarquia, apresentam reflexividade sobre a constituição de subjetividades, mediadas pela sexualidade e pelo gênero. Pode ser interessante compreender como entram no modelo os homens que se travestem, quando colocam em cheque a masculinidade que se afirma pela virilidade em relações sexuais compulsórias e quase obrigatórias com as mulheres, sancionadas pelo modelo de gênero que opera no Brasil.

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Voltando a DaMatta (1989), parece-me que ele ajuda na compreensão das feminilidades prescritas para as mulheres brasileiras. As mulheres parecem divididas em mulheres para casar, ligadas à casa, e mulheres para o sexo, relacionadas com a rua17. Como polos opostos, essa divisão define o tipo de moral que guia a conduta das mulheres, ao mesmo tempo em que traça desenhos de feminilidades que circulam e servem de avaliação do que elas podem ser. Esta dicotomia, na prática, tem nuances no polo da casa, tem várias possibilidades de mulher, assim como na rua; neste último espaço há a prostituta, a mulher fácil e sensual, e a do tipo fatal, cujo emblema é a diva cinematográfica, tida como irresistível18. Estes são apenas alguns exemplos reforçados empiricamente num rol de revistas femininas, um dos lugares onde se constitui a ideia de beleza das mulheres e os comportamentos correspondentes (Campos, 2009). Consideramos que o tipo fatal, a diva, é o que mais se aproxima do arquétipo que caracteriza a feminilidade nos homens travestidos. Isto se justifica tanto pelos artefatos já referidos, como pela gestualidade – com excessos no uso das mãos e dos braços que se dobram com mais ênfase, nos rodopios do corpo no movimento, coroado por uma expressão facial sedutora, função emblemática da dança. O uso de sapatos no contexto do maracatu se torna um complemento chave para exprimir a diva. A saia rodada no geral se ergue pela armação de arame usada para acentuar o volume. Os pés ficam à mostra, e o salto alto, em desproporção, desvela-se. Surpreende ao dificultar o movimento dos pés que atuam na dança, sendo um selo da destreza na coreografia. Equilibrar-se, não cair, simultaneamente atuando de forma voluptuosa e impetuosa nos passos de dança, feminilizando e tornando sedutor o que se faz num terreiro de religião afro-brasileira. Os travestidos con______________________________________________________________________

Em pesquisas recentes, constata-se a permanência dessa divisão em camadas populares. Ver Quadros (2004), para o caso pernambucano, e Pinho (2007) para o Rio de Janeiro. 18 Para uma discussão rica sobre a passagem de Star para Diva, veja-se Markendorf (2010). Esclareço que a análise que se segue aprofunda e desdobra a que foi iniciada em Oliveira e Albernaz (2011). 17

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trastam com as mulheres em volta, com sandálias e sapatos rasteiros ou de pés nus que repetem o ritmo cadenciado dos terreiros, em reverência religiosa. Assim, atuam em registros distintos, fazendo do corpo a força motriz desse transporte, dessa transição entre divino e sedução ao encarnar uma feminilidade específica – conferir fotografias de 3 a 6. Na concepção desses homens, é por meio desses elementos, considerados indispensáveis para a valorização da aparência e redesenho simbólico de si mesmos, que a busca por uma imagem feminina se constitui. Como sugere Lima, C. B. (2007) trata-se, portanto, de uma busca que melhor caracterize a individualidade e a realização de se sentirem mulher. Ao mesmo tempo, a intenção é se destacar no conjunto da corte e atrair a atenção do público ao longo de todo o desfile: [...] tem diferença do homossexual dançar, porque a gente ‘tá mostrando a feminilidade afrangalhada19. É chamar atenção, gostar de chamar atenção! E a mulher não: tanto faz, tanto fez, ‘tão dançando... Não dão o sangue, como diz a história. Aí, o homossexual: “Vai menina, dança!” Aí, já fica chamando e dá vontade delas dançar também. Aí, começa aquela história, a gente grita na passarela: “(...) Vai entrar a guerra agora!” Disse a guerra, já sabe que um vai dançar mais que o outro! (Entrevista, em junho de 2010, com homem nobre da corte do maracatu Estrela Brilhante do Recife).

Embora as mulheres também se utilizem de artefatos para demonstrar feminilidade, comparando-se a esses homens elas parecem se mostrar mais tímidas ao exibirem desenvoltura corporal. Na fala acima, a concepção do entrevistado sugere que as mulheres não dão tudo de si, não exploram toda potencialidade na dança. A presença desses homens na corte, de alguma forma, desencadeia processos de disputas por espaços de poder e visibilidade, uma vez que procuram se sobressair em relação às mulheres na execução da dança. A disputa de poder ______________________________________________________________________

Para uma discussão rica sobre a passagem de Star para Diva, veja-se Markendorf (2010). Esclareço que a análise que se segue aprofunda e desdobra a que foi iniciada em Oliveira e Albernaz (2011). 19

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Fotografia 3, 4, 5 e 6: Homens travestidos desfilando na avenida Fonte: Pesquisa de Campo (Jailma M. Oliveira, 2010)

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parece nítida no trecho “Não dão o sangue”. Esta expressão remete a uma idéia de empenho, que positiva a presença dos homens travestidos no cortejo dos maracatus. Aparentemente estas concepções são partilhadas pelas outras mulheres que integram os grupos. Para elas a participação dos travestis nos maracatus valoriza e incrementa a apresentação na passarela, conforme traduzida no termo “arrasar”, retirada da linguagem específica da comunidade de homossexuais, repetida na fala de uma entrevistada: Eu dou o maior valor a gay desfilando no maracatu. O travesti, principalmente. Porque o travesti tem um negócio na cabeça que ele tem que ser melhor que a mulher. Enquanto a gente dança dez, 15, eles dança 20 e não cansam. Eles só dançam de sapato alto. Eu tava morta no meio da avenida; meu colega frango: “Vai, bicha, arrasa!” [...]. Tem que ter bicha! Maracatu sem bicha não é maracatu! [...]. Porque eles se arrumam muito bem. Melhor do que muitas mulheres. Eu acho que eles têm mais fôlego, mais força pra dançar. (Entrevista, em julho de 2010, com mulher nobre da corte do maracatu Cambinda Estrela)

Este reconhecimento dos homens travestidos carrega consigo o controle moral das performances das mulheres, sintetizadas na separação delas em polos, opostos de acordo com DaMatta, o que se confirma na fala abaixo, em que a classificação deste autor ressoa nas expressões de respeito (mulher da casa) e rodada (da rua): [...] as mulheres quando estão dançando, elas se retraem porque dançam sempre desconcertadas. A não ser que já seja uma mulher já rodada na vida, enfim... Mas quando é uma mulher mais de respeito, ela se põe no seu lugar. E o travesti não, quer aparecer. (Entrevista, em julho de 2010 com batuqueira do maracatu Porto Rico; a ênfase é minha)

Sendo uma mulher vivida (da rua), não terá pudor em aparecer como os homens travestidos, já quando se trata de uma mulher de respeito (da casa), mais especificamente da pessoa moral, performance dela fica subjugada a estes códigos reguladores do que se pode ou não fazer.

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Esta interpretação das falas sugere ainda outras possibilidades. A primeira se refere à falta de empenho. Esta suposição parece mais uma valoração do que um fato, posto que o esforço para dançar na avenida não desaparece nas mulheres por terem um desempenho corporal diferente. O trecho a percorrer é o mesmo e o peso das roupas que vestem também, e, ainda que não gesticulem tanto, elas rodopiam e avançam marcando o compasso da dança assim como os homens travestidos. Curiosamente, uma das falas acima destaca os sapatos diferentes, mas não ressalta os trajes semelhantes nem as idades distintas, pois no geral as baianas são mulheres mais velhas do que eles. O destaque anuncia a força e a resistência do homem, consideradas de partida maior que as das mulheres. Inversamente, o valor prevalecente é o desperdício das potencialidades sedutoras do corpo feminino, num tom mais jocoso na fala da mulher e mais acusatório na fala dos homens que se travestem. No conjunto, é recorrente a aceitação e positividade da presença desses homens, que cumprem uma função necessária para o sucesso do grupo, destacadamente na passarela, suavizando a competição subentendida deles entre si e em relação a elas. Considero que os valores expressos nessas falas, para avaliar os comportamentos de mulheres e de homens travestidos como baianas, concordam com aspectos importantes da ideologia que separa mulheres da casa e da rua. A despeito do homem travestido que anuncia sua homossexualidade ser pejorativo em outros contextos, neste ele se torna positivo, fonte de um tipo de reconhecimento. A competição homens travestidos versus mulheres é apenas aparente. Encarnando a mulher da rua, ainda que discorde gênero e sexo, eles se emparelham com o tipo oposto – a mulher da casa – efetivamente encarnado por mulheres biológicas no maracatu. São os homens que incorporam legitimamente a feminilidade disruptiva que poderia inverter, ainda que ritualmente, a hierarquia e dominação de gênero. As mulheres continuam resguardadas na própria sexualidade – não podem seduzir, mas apenas serem seduzidas,

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subordinando a sexualidade ao casamento (Heilborn, 1993). Soma-se a esta questão o fato de que, nos terreiros aos quais os maracatus se filiam, esta prática (a travestilidade) é corrente e justificada por ser um pedido do orixá, uma divindade que estaria acima das normas terrenas. A aceitação do público reforça esta posição, aceitação que pode ocorrer exatamente por não alterar as classificações das mulheres nas relações de gênero no Brasil. Este lugar dos homens travestidos corrobora também com os esquemas de naturalização do gênero, que atribuem um físico forte para os homens e frágil para as mulheres. Esquemas hegemônicos, ainda pouco afetados pelos embates ideológicos20. Torna-se possível responder a questão que coloquei com Oliveira (Oliveira e Albernaz, 2011): “Por que as mulheres recusam a diva no contexto do maracatu?” Para ser mulher da rua, é preciso mesmo ter tanto uma força, no sentido de coragem, para quebrar os padrões de comportamento sancionados positivamente, quanto uma força física que a rua demanda. Na disputa velada com as mulheres – que implicam dimensões de poder que não podemos avançar aqui –, eles parecem querer dizer que sabem ser mais mulher do que elas próprias seriam capazes de ser. Uma forma de pôr sob a própria guarda o feminino da rua, reforçando a moralidade que desiguala homens e mulheres, especialmente no exercício e acesso à liberdade sexual. As mulheres que estão no maracatu devem mesmo se ater aos tipos corretos para as mulheres brasileiras de forma geral, e para as mulheres das comunidades nas quais o maracatu se situa. Por isso, escondem o próprio esforço para realizarem o desfile – que está aquém e além dele. E eles, mesmo como homens roubados, traídos pelo corpo e pelo desejo, ainda assim, nunca se enganam. ______________________________________________________________________

Sugerimos que a distinção entre modalidades de poder e agência subjaz às diferenças e à relação entre ideologia e hegemonia – que podem ser consideradas (...) como as duas dimensões de poder em qualquer cultura. (...) hegemonia se refere à ordem de signos e práticas materiais, retirados de um campo cultural específico, que passam a ser admitidos como a forma natural, universal e verdadeira do ser social (...) [por isso] seu poder parece ser independente da agência humana (...) no momento em que qualquer conjunto de valores, significados e formas materiais passa a ser explicitamente negociável, sua hegemonia está ameaçada; nesse instante, torna-se objeto de ideologia ou contra-ideologia. (Comaroff e Comaroff 2010: 35) 20

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4 • Sair de cena: Da lama ao caos, do caos à lama Não podemos extrapolar estas interpretações para as práticas cotidianas das mulheres e dos homens que fazem o maracatu, atendo-nos a esta análise simbólica dos esquemas de gênero. Mas é possível dizer que o ritual endossa práticas corretas a serem exercidas no dia a dia. Considero que, para além desse esquema simbólico, o ritual permite avançar a reflexão sobre poder, as normas hegemônicas e os embates ideológicos que eles representam no campo do gênero ao serem encenados nessa dança folclórica (Comaroff e Comaroff, 2010). Os grupos de Maracatu são uma representação folclórica em que classe, gênero e raça se encontram entrelaçados, revelando arranjos simbólicos que legitimam a distribuição do poder. Fazer uma reflexão de gênero no campo empírico das encenações de cultura popular avança para além das análises clássicas que focam nas desigualdades de classe (Burke, 1989; Thompson, 1998; Bakhtin, 1987). No caso do maracatu, ao dar atenção ao gênero, não podia ignorar as relações raciais, tendo em vista os arranjos estruturais da sociedade brasileira. Foi possível salientar, a partir daí, como as disputas ideológicas são mais realçadas no que se refere ao racismo brasileiro do que às desigualdades de gênero. Não quero dizer, com isso, que arranjos das relações entre homens e mulheres e as simbologias que lhes correspondem não sejam percebidas. Mas que a contestação da origem dos grupos como derivações das coroações dos reis do Congo, feita por historiadores atuais, atesta que um saber hegemônico está sob a égide da disputa ideológica – pretende-se, com isso, dar positividade aos grupos, distanciando-os de práticas escravocratas, e realçar atitudes de resistência ao longo do tempo. Junta-se a isto a afirmação do maracatu como marca de identidade negra e de pessoas pobres (a partir dos anos 1980, com o Movimento Negro, e nos anos 1990, com o Mangue Beat) dentro do estado,

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concorrente com a eleição para afirmar uma região na nação. Reconfigura-se um campo de poder que torna obrigatória, final e justamente, a punição legal a atitudes racistas e o reordenamento de políticas públicas, tendo no maracatu um argumento e um mediador desses novos arranjos. Isto não significa que estamos no melhor dos mundos, mas apenas que a cena do debate tem um foco na raça que deve ser considerado. O caso da travestilidade dos homens que analisei revela que gênero ainda é pouco contestado nos estudos de maracatu, pelos integrantes e na sociedade. No campo acadêmico, não localizo trabalhos com este recorte – sendo uma ausência mais ampla, com poucos trabalhos sobre cultura popular com este enfoque analítico (Albernaz, 2010 e 2011). Na observação de campo e nas entrevistas, como visto aqui, a presença desses homens parece mais reforçar os valores hegemônicos do que contestá-los. Uma prática aparentemente de resistência aos valores naturalizados, especialmente por legitimar a discordância entre biologia (sexo) e representação (gênero), como é a travestilidade, reconverte-se como afirmação da hierarquia de gênero. Valora a posição da mulher da casa e coloca sob domínio de homens a possibilidade de vir a ser uma mulher da rua. Desencoraja as mulheres a estar em todos os lugares, devendo antes preferir o céu que lhes protege – o lar sacrossanto. São esquemas simbólicos, decerto, mas sua realização ritual, reconhecidamente tipo de eventos e performances de maior densidade simbólica, configura experiências poderosas para compor subjetividades – estruturas de emoções e sentimentos (Turner, 1986,1987; Ortner, 2007). O ordenamento estético do ritual requisita um olhar para os artefatos, em que cores, tipos de tecidos, modos corporais ganham e ressaltam a importância na elaboração da pessoa. A materialidade elaborada no ritual oferece relevo para o modo de incorporação de qualidades subjetivas. O caso dos homens travestidos colabora para compreender um rol de femininos possíveis, entretanto, hierarquicamente valorados e, como aludem a possibilidades de práticas de sexualidade, remetem para

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a mais profunda individualidade. Permite acessar como supostas essências do feminino, permanecem relativamente inalteradas, como se fora uma constelação simbólica que concebe ser mulher de forma estática, aquela sobre a qual se silencia, resguardada de polêmicas relativas ao poder. Estudos de rituais populares favorecem, pelo menos para mim, retornar ao cotidiano para questionar a inocência dos objetos, alerta para como eles materializam sentidos das relações, por demais organizadas para serem colocadas na zona do caos das disputas ideológicas. Como bem diz a música, cujos versos percorreram os subtítulos deste artigo: organizando, posso desorganizar. Ou, dito de outro modo, que da lama possamos criar um caos. Isto em parte vem sendo alcançado no debate sobre relações raciais relacionadas com o maracatu, mas é pouco nítido no que toca a gênero. As mulheres podem constituir feminilidades que comportem o trabalho realizado na rua, circulando legitimamente neste espaço quando realizam atividades profissionais – a contra-ideologia saiu vencedora neste campo simbólico. Mas parecem ainda fadadas a reproduzir um tipo de família, especialmente nas camadas populares, em que a liberdade sexual se subordina à esfera do casamento. Mesmo que tal constrangimento derive em alguma medida da respectiva classe, a recorrência desse valor não é menos importante. Para contrabalançar, as baianas ricas atuais são geralmente mulheres mais velhas e donas de casa. A presença de jovens mulheres que bailam com outros gestos, criando novos passos na corte do maracatu, sinaliza para mudanças, assim se espera, com possibilidades de novas verdades que poderemos dançar.

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Capítulo 3

Mulheres em movimento: estudo da identidade, sujeito e formação política em coletivos feministas e LGBT Viviane Melo de Mendonça

1 • Introdução O presente trabalho analisa os discursos produzidos por mulheres que são participantes de coletivos feministas e LGBT¹ da região de Sorocaba, e discute as concepções de identidade e sujeito e as articula com a história de formação política destas mulheres. O interesse pelo tema decorreu das discussões acerca dos resultados de outra pesquisa sobre a formação e atuação de militantes que participaram do I Encontro UFSCar - Movimentos Sindicais e Sociais da Região de Sorocaba, realizado em julho de 2011. Tal evento foi uma atividade de extensão organizada por dez docentes e cinco alunos do Departamento de Ciências Humanas e Educação da UFSCar, campus Sorocaba, com 40 organizações e movimentos sociais da região. Participaram o total de 234 militantes. Os objetivos principais para o evento foram: 1º) promover o encontro da comunidade da UFSCar-Sorocaba com os movimentos sociais; 2º) resgatar a história, as conquistas e apontar os desafios dos movimentos e organizações que atuam na região; 3º) viabilizar parcerias entre os movimentos e organizações, e deles com a UFSCar nos âmbitos de ensino, pesquisa e extensão. A participação dos movimentos sociais, organizações e coletivos ocorreu voluntariamente e de acordo com o interesse em estabelecer parcerias com a universidade. ______________________________________________________________________

¹ LGBT é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros

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Após o evento, foi realizada uma pesquisa que analisou o processo de formação e atuação dos militantes dos movimentos sociais e em que medida a escola e outros espaços educativos contribuíram com o processo de formação para a militância. Foram respondidos, durante o evento, 87 questionários. Dos resultados da análise realizada, um dado que nos chamou a atenção foi o da participação das mulheres. Dos respondentes, 40,69% eram mulheres, e 59,31%, homens. Entende-se que um número significativo de mulheres militantes participou do evento (Martins e Mendonça, 2012). No entanto, a especificidade da participação e militância não foi problematizada naquele momento. Tornou-se mais provocador este resultado quando se constatou que, das 40 organizações e movimentos sociais que participaram do evento, apenas uma era específica de e para mulheres, a que tratava de “aleitamento materno”. Identificou-se também uma organização não governamental (ONG) que, dentre diversas frentes, explicitou alguns projetos pelos direitos das mulheres. Ressalta-se ainda que em nenhum dos oito eixos temáticos trabalhados no evento - nem mesmo os que tratavam das questões da sexualidade e diversidade -, tinha como foco o tema da mulher, da mulher lésbica, do feminismo ou outras questões específicas de mulheres. Após estes resultados, provocada pela invisibilidade delas e respectivas pautas nos encontros dos movimentos sociais e sindicais realizados com a universidade, surgiu a necessidade de se compreender a participação política das mulheres no contexto da região. Assim, as questões que se colocam são: como as mulheres produzem suas identidades quando se organizam em lutas específicas de mulheres, lutas feministas e/ou por direitos sexuais e reprodutivos em Sorocaba? Que formação política permeia as práticas delas? Para isto, foi realizada a presente pesquisa que teve como objetivo analisar as práticas discursivas produzidas por mulheres que são participantes de coletivos feministas e LGBT do público especificado, com foco nas concepções de identidade e sujeito e na história de formação política dessas mulheres.

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2 • Metodologia Participaram da pesquisa dez mulheres, entre 18 e 35 anos, que fazem parte de coletivos feministas de Sorocaba. Uma delas também faz parte de um coletivo LGBT. As entrevistas foram semiestruturadas, gravadas e transcritas. As participantes foram esclarecidas sobre os objetivos da pesquisa e registraram concordância na participação. Foi acordado que se evitaria qualquer possibilidade de identificação. Portanto, não serão revelados os nomes e nem dos coletivos e instituições em que atuam ou estudam. Sobre os pressupostos metodológicos, a pesquisa visou a investigar a produção de sentidos na perspectiva da linguagem em ação, que é a linguagem em uso, tomada como prática social, que implica em “trabalhar a interface entre os aspectos performáticos da linguagem (quando, em que condições, com que intenção, de que modo) e as condições de produção (entendidas aqui tanto como contexto social e interacional, quanto no sentido foucaultiano de construções históricas)” (Spink, 2010, p.26). Para esta investigação, outra noção que se tornou importante foi a de posicionamento. Diferentemente de uma concepção de identidade - pautada na ideia de fixidez, mesmidade, essência -, a noção de posicionamento, nesta abordagem, apresenta-se como uma alternativa para um caráter fluído e contextual das assunções conscientes ou não das pessoas no processo de interação com o mundo; ou seja, são as maneiras com as quais as pessoas constroem realidades sociais e psicológicas por meio das práticas discursivas. Quando a pessoa se posiciona, isto implica em múltiplas narrativas que são produzidas no processo pelo qual os selves são situados nas conversações e numa linha de história que é produzida em determinados contextos. Pretendeu-se, nesta pesquisa, trabalhar com o material discursivo dentro da interanimação dialógica, buscando o jogo de posicionamentos de mulheres participantes dos movimen-

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tos feministas e LGBT, de modo a compreender os discursos de identidade e de “sujeito político” destas mulheres e respectivas trajetórias de formação política. Os resultados produzidos pela análise interpretativa das práticas discursivas de mulheres participantes de grupos feministas e LGBT dialogaram com os pressupostos teóricos dos estudos e pesquisas feministas que realizam o debate contemporâneo sobre “sujeito” e “identidade”, em especial, dos pressupostos pós-estruturalistas. Almeja-se, neste sentido, compreender - em um contexto social, geográfico e histórico do município de Sorocaba², interior de São Paulo, marcado pelo conservadorismo e situado na região com o menor IDH deste estado - como as mulheres se constituem como sujeito político e quais jogos de identidades que são produzidos por estas quando se colocam no debate e na participação política, para, deste modo, apontar para algumas possibilidades de compreensão da invisibilidade das ações delas. A proposta, portanto, configurou-se como um trabalho que buscou discorrer sobre as relações de poder e resistências presentes nas suas práticas e nas suas posicionalidades como sujeito.

3 • Posicionalidades de sujeito e identidade nas práticas política O debate sobre o sujeito se tornou uma importante ferramenta de análise das perguntas suscitadas neste trabalho. Nas pesquisas feministas, no que se refere a este debate, evidencia-se uma crítica, de diferentes modos, à concepção de sujeito como universal, autônomo e dotado de uma racionalidade absoluta. É uma crítica, tal como descreve Mariana (2005), à concepção de existência humana como universal, homogênea e unitária, ou, em outras palavras, a uma concepção de sujeito própria do pensamento liberal. ______________________________________________________________________

² Sorocaba é um município de São Paulo. Possui 55% de área urbana e 45% de área rural. A população é de 586.625 habitantes (IBGE). É o terceiro mais populoso do interior paulista e o quarto mercado consumidor do estado fora da região metropolitana da capital.

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A crítica a este pensamento também foi tarefa das pensadoras feministas marxistas, que - para além de uma abordagem que questiona esta concepção de sujeito universal, utilizando-se dos conceitos de classe social, mais-valia e alienação, segundo os quais o sujeito universal era o sujeito do privilégio, ou seja, de uma classe específica, a burguesia - atribuíram também a este sujeito “universal” um gênero, o masculino. Decorre, desta perspectiva, a existência da operação de hierarquias das diferenças de classe e das diferenças sexuais. Revelam, portanto, que o sujeito universal do pensamento liberal e iluminista é específico, tem uma classe e um gênero (Mariana, 2005). Com base nesta noção de sujeito, as feministas marxistas se posicionam tendo como uma preocupação central as mulheres trabalhadoras e, de modo específico, analisam como a instituição “família” está relacionada ao capitalismo, denunciando de modo fundamental, em muitas de suas abordagens, o patriarcado. É interessante observar que algumas entrevistadas desta pesquisa produziram um discurso em que a concepção de sujeito feminista ou militante era a da “mulher trabalhadora” ou se fundamentava em uma perspectiva marxista: (...) quando penso no feminismo, penso nas várias correntes, mas ainda é a que se fundamenta no livro do Engels [Origem da Família e da Propriedade Privada]... E, aí, a gente vai falar mais na mulher trabalhadora, e que é explorada no trabalho da casa, no trabalho doméstico... Esse trabalho da mulher, por não ser remunerado, ele é importante para o capitalismo. Então, quando penso em feminismo, eu penso no fim do capitalismo, sabe? A luta feminista converge para isso. A feminista é a mulher trabalhadora (...). (...) tenho que pensar que a mulher é a mulher trabalhadora. (E3, coletivo feminista, 22 anos)

Observou-se que, nas histórias relatadas, as formações políticas destas mulheres se davam em partidos socialistas e comunistas, movimentos estudantis, bem como em outros movimentos com pautas predominantemente classistas, antes de se envolverem com as questões feministas e LGBT.

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O socialismo surgiu primeiro em minha vida porque eram injustas as relações de classe. Depois, a questão de ser mulher e a questão de ser lésbica surgiram depois porque era injusto o papel que temos na sociedade, e você tem que lutar para que seja justo (...). A militância envolve fazer o seu espaço, construir o seu espaço, a militância envolve você fazer, você construir, você intervir. A mulher [militante] é a que intervém, é a que faz, não necessariamente no movimento feminista, mas de diversas formas (...) o marxismo, Marx e Engel, a minha definição de militância vem muito deles, porque comecei ali. (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

No entanto, embora tenham base no feminismo marxista, ainda incipiente, parecem apontar para uma noção de sujeito relacional que ainda está pautado por uma concepção “essencialista” (de classe social e gênero) que ainda mantém certa homogeneidade e unidade. Aqui, nestes discursos, as mulheres são “as trabalhadoras”, marcando uma identidade homogênea de sujeito político, e indicando como a única via de luta e transformação social - e da própria condição da mulher - a superação do capitalismo. As demandas de lésbicas, gays, transexuais, bem como da mulher negra e indígena, não aparecem como uma pauta significativa dos coletivos em que as entrevistadas participam, porém, por outro lado, esta constatação é apresentada com críticas e indignação por elas. Apontam, com isto, para um equívoco nas pautas de lutas travadas pelos respectivos coletivos. Uma coisa que tenho visto com muita preocupação dentro da esquerda é que tem muito machismo e homofobia. E as organizações de esquerda tendem a ver isto sem muito espírito de autocrítica, e isto afasta muita gente... E não só por afastar as pessoas, sabe? Este movimento da crítica e autocrítica precisa ser feito para a esquerda se revigorar (...). (...) eu vejo uma resistência para falar das questões LGBT na esquerda muito parecida como a que vejo na sociedade, ou na minha família. Esta resistência também tem a ver porque muito do debate sobre sexualidade vem de uma linha de pensamento que tem muito conflito com o marxismo, aí, vira um sectarismo, o que eu não concordo. Tem uma estrada grande para percorrer... (E3, coletivo feminista, 22 anos)

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Uma destas entrevistadas, lésbica, relatou que, quando militava no movimento estudantil e em um partido comunista, participou de congresso no Rio de Janeiro de entidades gerais da União Nacional dos Estudantes (UNE). Neste congresso, havia uma mulher transexual. Ela percebeu ali, indignada, que esta pessoa estava sofrendo muita discriminação por parte dos militantes do partido. Este acontecimento foi apontado por ela como crucial para o rompimento com o partido comunista do qual participava. Neste contexto, ainda destacou a falta de liberdade para a expressão da própria identidade sexual no partido. A sensação de incompatibilidade para a vivência das lutas socialista, feminista e LGBT, concomitantemente, foi vivida como um período de crise e afastamento da militância. Eu fiquei muito brava, foi um momento de ruptura com o partido porque era um partido de esquerda, socialista, mas que era machista, homofófico e transfóbico. Isso me abalou muito, porque a forma como eles trataram esse colega era desumano. Ela se sentia muito mal no congresso inteiro. E isto me fez questionar muito o partido (...). (...) este evento fez com que eu começasse a debater estas causas dentro do partido, só que eu não tinha voz porque eles ficavam muito presos à questão da classe. Que engraçado, eu não militei no movimento LGBT porque não debatia classe, e no partido porque não debatiam outras coisas, só classe (...). Eu não era assumida dentro do partido, porque não conseguia me assumir [como lésbica] dentro do partido, aí, saí do partido (...). (...) mas, embora tenha saído do partido, eu acredito nisso, na importância da revolução, aí, eu fiquei muito tempo em crise. (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

A perspectiva marxista, tal como entendida por alguns grupos e partidos, produz uma explicação material a partir de uma causalidade econômica na qual o sistema de gênero se interage para produzir experiências sociais e históricas. Scott (1990), por outro lado, aponta para a necessidade de se reverter e deslocar as operações da construção hierárquica da relação feminino-masculino produzida apenas por uma causalidade econômica; e coloca o gênero como uma categoria analítica

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que, juntando-se às categorias de classe social e raça, faz um reexame e alargamento das noções tradicionais daquilo que é historicamente importante. Este parece ser um desafio destes coletivos aos quais as entrevistadas pertencem. A rejeição da noção de sujeito universal ou apenas determinado pelo econômico, no entanto, fizeram com que algumas feministas caíssem em outra armadilha: a busca pelo sujeito político feminista que tenha uma unidade e coerência (ou mesmo racionalidade do que é “ser” mulher), o que redundou em outro tipo de universalização, a do sujeito “mulher” das feministas brancas, heterossexuais e primeiro-mundistas. Ainda hoje, esta concepção é criticada pelas feministas negras, lésbicas e dos países do Terceiro Mundo. Estas reivindicam que a categoria “sujeito” - como universal, homogêneo e racional - seja abandonada de vez, visto que cria hierarquias e opressões (Hooks, 2000). A categoria “sujeito” deve se tornar então marcada pela diversidade, pluralidade e contingência. Apesar destas reivindicações, ainda se destacam nos movimentos sociais as hierarquizações destes marcadores de gênero, raça/etnia, orientação sexual e classe nas definições das respectivas pautas privilegiadas de luta. Estas hierarquizações também aparecem nos movimentos feministas e LGBT, objeto dos discursos das entrevistadas, tensionando as políticas de identidade. Uma das entrevistadas, 20 anos, lésbica, que participa de um coletivo feminista em Sorocaba criado há três anos, relatou na entrevista que a pauta das lésbicas nunca foi colocada nas reuniões e ações do coletivo. A diversidade sexual, sim, era discutida, mas nunca de modo específico, ou seja, a partir do ponto de vista e das demandas das lésbicas e bissexuais do grupo. Ela própria nunca sentiu a necessidade, como se não fosse ali necessariamente um espaço para esta demanda. O coletivo é concebido com um espaço de “mulheres feministas”, onde outros marcadores, como raça, etnia, classe e orientação sexual, são importantes, mas dizem respeito à sociedade em geral e não ao grupo em si mesmo.

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Outra integrante, 32 anos, heterossexual, do mesmo coletivo da entrevistada acima, mostrou no discurso sobre o que é feminismo uma afirmação da diversidade e pluralidade no movimento feminista, porém, ainda apontou para a dificuldade que sentem para colocar em ação este fazer político. O feminismo é a ideia radical de que mulheres são seres humanos. Direitos, libertação. É uma luta pra pararem de explorar tanto. Tem especificidades das mulheres, e nós temos que estar juntas, as mulheres trans, as mulheres negras, as homossexualidades, de classes, e a gente tem que estar junta... É uma luta com a gente mesmo, com a sociedade, mas como a gente faz isso, não sei... O feminismo não exclui. Contra todas as opressões de gênero, a gente tem que lutar contra isso. (E5, coletivo feminista, 32 anos)

No discurso produzido por uma participante de outro coletivo feminista, as mulheres lésbicas também não aparecem com as pautas colocadas, nem mesmo há um debate mais profundo sobre heteronormatividade. De modo geral, ela compreende esta invisibilidade da lésbica e também das negras e indígenas como uma característica específica de Sorocaba. Sobre a mulher lésbica, não tem, sempre fica o debate meio raso, sempre o debate de gênero, e não passa por isso... Em Sorocaba, especificamente, não. Nem o debate da mulher negra ou indígena, só quando vêm pessoas de outras partes, aí, tem. Mas em Sorocaba não. (E6, coletivo feminista, 35)

É interessante observar que os coletivos LGBT também são identificados como espaços de invisibilidade da mulher lésbica, questionando este sujeito político normatizador como constituído predominantante pelos homens e as próprias pautas, como uma das entrevistadas relatou: Tem muita lésbica na universidade, mas poucas se envolvem no movimento. Começou com uma briga (...) para saber como a gente ia lidar com o coletivo LGBT. Uma das coisas que pra mim ficou clara: (...) não ofuscar a mulher

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lésbica dentro do coletivo LGBT. Tinha, sim, que trazer a visibilidade da mulher lésbica, para que elas se sintam pertencentes ao movimento LGBT, porque as mulheres não se sentem. A bandeira do arco-íris não representa as mulheres. (...) Eu não me sinto representada pelas cores da bandeira. A gente quer trazer elas e eles para dentro do coletivo. (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

Com esta demanda por uma concepção de sujeito marcada pela diversidade, pluralidade e contingência, construíram-se críticas às políticas de identidade ou conceitos identitários, que, para Costa (2002), “já demonstram extrema instabilidade, fragilidade e vulnerabilidade na sustentação de qualquer tipo de projeto político de emancipação” (p.70). Teresa de Lauretis (1999), por conseguinte, argumenta que a identidade se torna um lugar de múltiplas posições dentro do campo social e que a experiência é concebida como um processo constante de negociações e renegociações das pressões externas e resistências internas. Ela anuncia aqui a perspectiva da posicionalidade do sujeito nos estudos feministas e inclui a noção de lugar/localização, o lugar da enunciação. A posicionalidade é construída pelo discurso dentro de um contexto político específico, e é também contingente. O sujeito do feminismo que tenho em mente não é assim definido: é um sujeito cuja definição ou concepção se encontra em andamento, neste e em outros textos críticos feministas (...). (...) é uma construção teórica, uma forma de conceitualizar, de entender, de explicar certos processos, e não as mulheres” (De Lauretis, 1999, p. 217).

Configurou-se, portanto, a crítica feminista pós-estruturalista à essencialização, que “desconstrói” e descentra a constituição do sujeito e da identidade, e postula que o sujeito e as representações dele estão marcados por relações de poder (Mariana, 2005). Uma das entrevistadas, quando perguntada sobre a identidade de gênero dela, apresentou um questionamento e também possibilidades de flexibilidade no discurso.

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Eu me defino como mulher, sou mulher, nasci mulher... Embora estive pensando durante a Semana Trans³: “Será que sou mulher?” [risos] Prefiro me colocar... Como aquela questão de se tornar mulher. Acho que me tornei. Cresci e fui criada enquanto mulher. Sofri as opressões enquanto mulher. Todos os problemas de mulher, eu sofri. Portanto, posso me classificar enquanto mulher (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

Esta é uma das entrevistadas que se fundamentam em uma perspectiva marxista de mulher militante, o que poderia ser interpretado apressadamente como uma contradição a certa tendência dela à essencialização da categoria mulher apenas pelo marcador de classe. No entanto, ela revela também no discurso a construção de uma posicionalidade no que se refere à prática política, tal como apontado por de Lauretis (1999). O “ser mulher” é definido pelas contingências, contexto e condição histórica, porém, não certa e segura, sempre passível de dúvida: “será que sou uma mulher?” Aqui, nesta fala, o “ser mulher” também é definido por “opressão” e “sofrimento” pelos quais as mulheres passam em nossa sociedade. Revela, portanto, relações de poder que se produzem no cotidiano das respectivas histórias, estão marcados na memória e se tornam elementos constituidores da identidade de gênero delas. Outra entrevistada, quando foi falar sobre a orientação sexual, disse: “eu não sei... Eu acho lésbica, mas me interesso por alguns meninos...” (E2, coletivo feminista, 25 anos). A fala expressava uma reticência, parecia não encontrar uma segurança na identidade narrada e tomava uma posição de produzir uma abertura do desejo para além da identidade. Por outro lado, no decorrer da entrevista, em diversos momentos, a narrativa era sobre o processo de se tornar lesbiana, no qual havia uma tentativa durante a infância e adolescência de encontrar, para esta identidade, uma coerência com a identidade de gênero, pautada pela heteronormatividade. Neste período, por já sentir atração por meninas, tendia a achar que ela deveria ser menino ______________________________________________________________________

³ “Semana Trans” foi uma atividade realizada por um grupo de estudantes da universidade para debater a transexualidade e identidade de gênero.

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ou um homem. Esta tentativa seguiu até o fim da adolescência, em outra cidade na qual foi morar, quando longe da família, pode usar “roupas de homem”. Mas, ao contrário do que esperava, não se sentiu adequada. A partir daí, descobriu que o desejo por mulheres não a obrigava a se tornar do sexo masculino. É neste momento em que ela assume para si a identidade “mulher” e “lésbica”, articulando as duas identidades. Quando fui me assumindo [lésbica], meu estilo foi mudando porque fui me aceitando mulher. Hoje, eu adoro usar roupas femininas, tipo saia, adoro. Eu sempre gostei, mas nunca ia usar, porque não me via naquilo” (E2, coletivo feminista, 25 anos).

Uma das entrevistadas, referindo-se ao que entende como mulher, diz: “a mulher modelo é a Frida [Kahlo]4. Ela era totalmente livre da questão do rótulo. Ela era livre para ser o que queria ser. Ela estava para além dos rótulos.” (E6, coletivo feminista, 35 anos)

Ela coloca, no discurso, Frida Kahlo como um modelo que traz a perspectiva da liberdade e de uma identidade não reificada pela identidade fixa e essencial, e, assim, a entrevistada define o próprio conceito de mulher. Diante destes discursos aqui descritos, parece interessante retomar algumas ideias da filósofa Judith Butler (2003) e a crítica que faz a qualquer substancialização de gênero e identidade, a qualquer possibilidade de unidade, coerência ou essência. O que observamos nos resultados desta pesquisa é que os mecanismos de repressão das diferenças dentro de um grupo de gênero apenas funcionam como produtores de hierarquias sociais no jogo das relações de poder existentes. De acordo com Butler (2003), o que há é a multiplicidade das intersecções culturais, sociais e políticas na qual se constroem as mulheres; e, deste modo, constrói-se uma tendência para a rejeição na prática política de qualquer modo de normatização das identidades. ______________________________________________________________________ 4

Frida Kahlo, pintora mexicana, 1907-1954.

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Um dos elementos aqui questionado pelas entrevistadas, embora não conceituado, foi o da heterossexualidade compulsória. Para Butler (2003), esta é normatizadora das relações de gênero, e, quando discutimos a questão do sujeito e identidade, é também um instrumento que busca uma unidade opressora do que é “ser” mulher na coerência sexo, gênero e desejo - o que pudemos observar nas falas aqui descritas. Parece que uma política de subversão das identidades é proposta como alternativa para a radicalização da democracia. Deste modo, a análise de como a categoria “mulher” é produzida pelas estruturas de poder, por uma heteronormatividade e por discursos hegemônicos, deve ser empreendida e, portanto, não deve encontrar ancoragem nessas estruturas como a possibilidade, às vezes única, para emancipação. Neste caso, é o estabelecimento do político no próprio discurso pelos quais a identidade se articula. Significa reconhecer e analisar as operações de exclusão, elisão e abjeção na construção discursiva do sujeito, tal como proposta por Butler (Almeida, 2008). Dos discursos analisados sobre a perspectiva de sujeito e a identidade política produzidos pelas mulheres entrevistadas, podemos entender que a unidade da categoria “mulheres” não precisa ser pressuposta e nem desejada, mas que, ela própria, na insistência de se definir, causa a fragmentação, a divisão, a resistência e formação de facções, que são causadoras da fragilidade de uma ação política. No entanto, isto não quer dizer que se deva abandonar a política representacional, mas, conforme a proposta de Butler (2003), é ter como ponto de partida o presente histórico, do ponto de vista marxista, para realizar uma crítica às categorias de identidade que o jurídico contemporâneo engendra, naturaliza e imobiliza. Neste caso, o que se torna necessário é repensar as construções ontológicas na prática feminista, empreender uma crítica radical ao processo de construção de um sujeito feminista.

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Enfim, reafirma-se, com base em vários conceitos e figurações de autoras feministas, que não significa que não exista o sujeito político ou a prática política. Mas que a prática política se constitui como uma política de articulação, ou um reassentamento estratégico, ou uma política de coalizões, ou política de afinidades, sem pressupostos fundacionistas, sem uma política de identidade. Considera-se aqui que é a diferença que fortalece a prática política feminista, uma articulação entre diversas posições de sujeitos, que produz agenciamentos e resistências (Anzaldúa, 1999; Braidotti, 1994; Butler, 1998; Mouffe, 1999; Haraway, 2000). Esta visão se aproxima da análise de Costa (2002), para a qual a “mulher” é uma “categoria histórica e heterogeneamente construída dentro de uma gama de práticas e discursos, e sobre os quais os movimentos das mulheres se fundamentam” (p. 71). Seguindo argumento dele, a questão sobre identidade e sujeito na prática política de mulheres nos coloca em uma análise de campo histórico-discursivo, em que a história da categoria é compreendida apenas na relação com as demais categorias, tais como classe, raça, etnia, sexualidade e regionalidades.

4 • Considerações finais A presente pesquisa analisou os discursos produzidos por mulheres que são participantes de coletivos feministas e LGBT da região de Sorocaba, com foco nas concepções de identidade e sujeito e na história de formação política destas mulheres. As questões aqui colocadas surgiram das discussões dos resultados de outra pesquisa que tratava da formação e atuação de militantes que participaram do I Encontro UFSCar - Movimentos Sindicais e Sociais da Região de Sorocaba, realizado em julho de 2011, as quais apontavam para uma invisibilidade das pautas e da participação de mulheres feministas, lésbicas e de respectivos coletivos no evento analisado.

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Foram entrevistadas dez mulheres, entre 18 e 35 anos. Todas participam de coletivos feministas de Sorocaba - apenas uma delas faz parte também de um coletivo LGBT. Este dado apontou para uma das dificuldades da pesquisa: encontrar coletivos, movimento ou organizações LGBT ou de lésbicas com participação efetiva de mulheres no município. Exceto este, no qual a entrevistada desta pesquisa participa, nenhum outro foi identificado até o momento. Não conheço um grupo lésbico em Sorocaba, vejo para meninos, mas não vejo política para lésbicas... (E4, coletivo feminista, 35 anos)

Revela com isto, e com as ausências de debates específicos sobre as mulheres lésbicas também nos coletivos feministas, que algumas questões precisam ser mais bem aprofundadas: quais os espaços de discussão, debates, articulação política, ou mesmo de sociabilidade e lazer, em que as mulheres lésbicas de Sorocaba participam? Quais as dinâmicas que justificam a invisibilidade delas e das próprias pautas nos movimentos sociais e culturais no município? No que se refere à formação política das mulheres entrevistadas, observou-se que quatro participaram de partidos socialistas e comunistas, movimentos estudantis, bem como em outros movimentos com pautas predominantemente classistas, antes de se envolverem com as questões feministas e LGBT, sendo estas questões suscitadas e aprofundadas nestes espaços; as demais entrevistadas nunca participaram de organizações, coletivos ou movimentos sociais; e que o debate e o desejo de participação política feminista se deram por vivências pessoais, leituras de livros, música, movimentos culturais feministas e pelo contato com outras mulheres que se interessavam pelas questões feministas. Porém, de um modo geral, todas relataram que, no que tange à formação e educação, parece haver carência de espaços de estudos, debate e articulação política sobre temáticas feministas e LGBT na região e, em específico, ainda mais, sobre a temática da mulher lésbica.

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Conforme relatados pela maioria das entrevistadas, esta lacuna pode ser entendida pela cultura e história da própria cidade, considerada por todas como conservadora. No entanto, esta afirmação precisa de estudos mais aprofundados e de saber como ela se articula, de modo mais amplo, com a sociedade brasileira. Há muita falta de espaço para se discutir, a cidade é muito conservadora. Tem a parte religiosa, tem a parte maçônica, a parte que acha melhor deixar como está, isso de gente intelectualizada mesmo... Fizemos um festival de gênero e vieram muitas mulheres de fora, as daqui não... (...) aqui é tudo camuflado... (E5, coletivo feminista, 32 anos) Você está lidando com uma cidade que tem aquela mentalidade que [afirma que] “lugar de mulher é na cozinha”, que “você tem que se dar o respeito”. E, se tem filho viado, tem que, pelo menos, se comportar na sociedade. Uma mentalidade bem provinciana, bem medieval... Tipo: ele pode até ser gay, mas precisa... Não dá para ser discreto? Até mesmo as pessoas LGBTs aqui, tipo: “pode ser bicha, mas tem que ser discreto”. Ser discreto como [se] “ser discreto” resolvesse um problema (E6, coletivo feminista, 35)

Vale ressaltar que todos os coletivos feministas e LGBT nos quais as entrevistadas participam foram recentemente fundados. Possuem entre um e quatro anos de existência, o que de certo modo pode explicar a invisibilidade das pautas feministas e de mulheres lésbicas no I Encontro UFSCar - Movimentos Sociais e Sindicais da Região de Sorocaba. Mas as falas das entrevistadas, sobretudo as que estão na faixa de 30 anos, também apontam para um crescimento do interesse pelo feminismo pelas mulheres jovens, o que elas consideram como positivo e transformador para a cidade. Está aparecendo esta vontade de querer saber mais, se articular, de aprender, tanto que tenho feito bastante palestras... As pessoas querem saber o que as feministas pensam sobre as coisas... Estou sentindo uma articulação, porque em Sorocaba não tem muito, o movimento feminista de Sorocaba é antigo... Aqui, tem mais mulheres de movimentos de mulheres ligadas à filantropia... (E4, coletivo feminista, 35 anos)

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(...) mas percebo que várias pessoas têm tomado para si o debate [feminista], o debate há, mesmo com pautas específicas... Tem aumentado quando comparado a quatro anos atrás. (E6, coletivo feminista, 35)

Enfim, os discursos - produzidos sobre identidade e sujeito da prática política pelas mulheres aqui entrevistadas - revelam que a identidade passa a ser entendida como uma estratégia política pessoal e/ou coletiva de sobrevivência, uma estratégia múltipla, fluida e contraditória (Costa, 2002). A identidade é uma conquista, um resultado de uma luta constante e é produzida positivamente nas margens dos discursos dominantes, ou seja, há um posicionamento diante das estruturas de opressão, que visa à própria superação. A constituição do sujeito ou da identidade, nesta concepção, aproxima-se da perspectiva de Costa (2002), que pressupõe o reconhecimento de camadas de subordinação ou eixos de diferenças (raça, classe, orientação sexual, etc.) que se articulam com contextos históricos e geográficos específicos, produzem posições de sujeitos e, por conseguinte, agendas teóricas e políticas. Constitui-se, portanto, como uma ampliação do conceito de gênero, tornando-o heterogêneo, móvel e transformador do campo social.

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‘pós-modernismo’. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COSTA, C. L. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu, n. 19, p. 59-90, 2002. DE LAURETIS. T. Tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, H. B. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo com crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.206-242. HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX. In: SILVA, T. (Org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 37-129. HOOKS, B. Feminism is for EVERYBODY: Passionate Politics. Cambridge: South end Press, 2000. MARIANA, S. A. O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3: 320, set-dez/2005. MARTINS, M. F.; MENDONÇA, V. M. Formação e atuação dos militantes dos movimentos sociais. Impulso, v. 20, n. 49, 2010. MOUFFE, C. Feminismo, cidadania e política democrática radical. In: Debate Feminista. São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1999, p. 29-47. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, 1990. SPINK, M. J. Linguagem e Produção de Sentidos no Cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.





Capítulo 4

Travestis: entre a vulnerabilidade e as estratégias de sobrevivência Daniela Torres Barros Luciana Leila Fontes Vieira

O presente estudo fez parte de uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE e estava inserido no Programa Diálogos para o Desenvolvimento de SUAPE, mais especificamente o Chá de Damas (Menezes, Adrião, Cavalcanti et al, 2015), cujo público-alvo foi formado por profissionais do sexo da sub-região do Cabo e de Ipojuca. Ocorreu ao longo do ano de 2013, objetivando compreender as experiências, no espaço escolar, de travestis residentes no município do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco. Para tanto, investigou-se como se deu o acolhimento das travestis, considerando os aspectos que favoreciam e desfavoreciam a permanência. Percebemos diferentes experiências escolares (positivas e negativas) e diversas estratégias de sobrevivência, porém, constatamos o uso do nome social e do banheiro como gargalos/crivos que cerceavam as existências delas. Este artigo pretende denunciar o alto grau de intensa exclusão e vulnerabilidade social por elas vivido, o que, certamente, interfere na própria inserção no contexto escolar.

1 • Contexto O município do Cabo de Santo Agostinho é localizado na Zona da Mata de Pernambuco e é considerado de porte médio, em termos de habitantes. Em 2012, possuía 189.222 pessoas (BDE, 2012). Tem como principais fontes de renda a exploração turística das praias, a monocultura da cana-de-açúcar e, mais recentemente, o Complexo Industrial Portuário de Suape. Com esse novo investimento, houve mudanças no cenário econômico.

Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 103

Todavia, essas transformações não parecem ter revertido em diminuição das desigualdades. Observando os indicadores socioeconômicos, podemos ver a discrepância entre o indicador do Produto Interno Bruto (PIB) per capita (que é calculado tomando a produção de riqueza econômica e dividido igualmente pelo número de habitantes). Em 2010, somava R$ 24.194,00 por pessoa, destoando enormemente da realidade de renda média domiciliar de apenas R$ 745,10 por pessoa (BDE, 2012). Além do mais, para as instituições governamentais, a chegada de uma quantidade significativa de trabalhadores gerou impactos sociais considerados negativos, tais como: o aumento de circulação de drogas, de prostituição e de gravidez na adolescência. Esses “efeitos colaterais indesejados do progresso” geraram a demanda e a iniciativa da Petrobras de subsidiar o Diálogos, que assumiu a tarefa de minimizar os impactos sociais na comunidade, ao trabalhar com os temas da saúde do trabalhador, direitos sexuais e reprodutivos, protagonismo juvenil e prostituição (Rios et al, 2015). Vale salientar que nossas interlocutoras invertem um pouco a lógica da chegada “messiânica” do capital e a prostituição como problema social ao narrarem uma mudança substancial na cultura, na economia do município e na cartografia da prostituição, devido à implantação do complexo portuário. Pois, segundo os relatos delas, houve um cerceamento maior da prefeitura no combate à prostituição, associada a ponto de tráfico de drogas, o que empurrou a maioria das mulheres e travestis para regiões afastadas do centro urbano, sendo compelidas a aderir ao regime das casas de prostituição e a se submeter a relações mais acentuadas de exploração. Essa mudança dissipou as travestis do centro urbano, que passaram a trabalhar mais isoladamente, alterando as relações de coproteção. Provocou uma desarticulação nas redes de cuidado entre as mulheres e entre as travestis, o que impactou diretamente vidas, esfarelando laços, como também dificultou o nosso contato com as travestis e a formação dos grupos para construção das oficinas.

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Diante disso, gostaríamos de resgatar as contribuições de Gyan Prakash (1994), autora que adota a perspectiva do pós-colonialismo, no que concerne à necessidade de problematizar a tendência histórica e colonialista em se compreender, avaliar e responder como negativo e insatisfatório o desenvolvimento de uma região sob critérios capitalistas. Nesse sentido, estávamos em alerta para que a própria chegada do Programa Diálogos ao Cabo de Santo Agostinho não se restringisse à missão de mapear, diagnosticar e mitigar os “problemas sociais” causados pela instalação do complexo. Afinal, corremos o sério risco de reproduzir um padrão colonial, higienista, norteado por um viés epidemiológico de agravo/doença e de prevenção. A existência do Diálogos, no entanto, parece ser o reconhecimento de que o desenvolvimento econômico de uma região não implica, necessariamente, na melhoria das condições de vida da população. Pensando em dirimir essa condição de invasores, de um grupo de “forasteiros intelectuais” que irão destrinchar e produzir um saber sobre a população da região de Suape, as estratégias do Chá de Damas, mais precisamente desta pesquisa, seguiram no sentido de buscar pactuar com as coparticipantes, o quê, como, onde e quando as ações seriam traçadas.

2 • Natureza da pesquisa Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho participativo, na qual foram aplicados questionários sociodemográficos e realizadas oficinas com grupos de travestis residentes no Cabo de Santo Agostinho. As oficinas estiveram ancoradas na perspectiva de pesquisa participante em Paulo Freire (1984) e permeadas pela noção de cuidado de si e de práticas de liberdade em Foucault (2010). Em consonância com a proposição de Marcos Benedetti (2005) em não definir um conceito fechado ou estabelecer um único modo de ser travesti, adotamos, inicialmente, a autode-

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nominação das travestis como critério que pode desestabilizar as concepções estagnadas sobre a travestilidade, o feminino e o masculino. As nossas interlocutoras foram, portanto, inicialmente travestis, todas maiores de idade e residentes no citado município. Consideramos o interesse e a disponibilidade de participar da pesquisa como critério na escolha das coparticipantes. Fomos aceitando a indicação de integrantes por membros do próprio grupo em formação. Contudo, no segundo encontro, surgiu uma pessoa que se dizia transexual, a qual acolhemos no grupo, pois justificou a participação, tranquilamente, dizendo: “Há bem pouco tempo, eu fui travesti... Sou solidária a essa causa”. Ademais, movimentos sociais e intelectuais engajados têm questionado o uso das categorias nosográficas travesti, transexual, intersexo e preferido adotar a denominação transgêneros para falar de sujeitos que transgridem as linhas sociais que definem o gênero (Bento e Pelucio, 2012). Neste sentido, as diferenças entre as ditas identidades sexuais são relativizadas e é enfatizada a dimensão inventiva dos respectivos modos de ser. Afinal, nossa intenção não era de criar um discurso universal ou descobrir verdades sobre o que seria ser travesti, mas conhecer um pouco as realidades para problematizar. Os questionários serviram para obtermos algumas informações a respeito da renda, escolaridade, etnia/raça, religiosidade do grupo participante das oficinas. De modo geral, observamos o baixo poder aquisitivo das integrantes, cuja renda mensal se situava, em média, abaixo de dois salários mínimos. Vale salientar que aquelas que se prostituíam tinham uma condição financeira um pouco melhor, pois a renda mensal se situava entre R$ 700,00 e R$1.500,00. As atividades laborais se concentraram nas profissões consideradas eminentemente femininas: quatro delas eram profissionais do sexo; duas eram cabeleireiras e revendedoras de cosméticos; outra era manicure e fazia programas para complementar a renda.¹ Todas estudaram somente em escolas

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públicas. Quanto ao nível de escolaridade, quatro conseguiram concluir o ensino médio e três tinham o ensino fundamental incompleto. A faixa etária variava entre 24 e 37 anos.

3 • Encontro com o campo A chegada ao Cabo e as oficinas não ocorreram de modo absolutamente controlado e dentro do planejado. A entrada no campo se deu através da parceria do Centro de Mulheres do Cabo que nos conferiu credibilidade e nos separou de um papel investigativo, policialesco (desconfiança pertinente ao âmbito da prostituição). Após a troca de e-mails, de telefonemas, de algumas reuniões canceladas, colocaram-nos em contato direto com uma das travestis da região. No primeiro contato, em um ponto² em frente a um hospital com nome de santo, numa rua mal iluminada e bastante movimentada, nós nos apresentamos a uma travesti considerada liderança local. Ela se mostrou extremamente atenciosa e disponível (mesmo no horário de trabalho) ao explicamos rapidamente do que se tratava o Programa Diálogos, o Chá de Damas e a pesquisa. Posteriormente, uma reunião oficial ocorreu no Centro de Mulheres do Cabo, instituição parceira do Diálogos e de articulação com a comunidade. Quatro pessoas ficaram interessadas em conhecer a pesquisa. A intenção era esclarecer dúvidas, falar da metodologia e dos procedimentos éticos e técnicos (Termos de Livre Esclarecimento (TCLE), gravação audiovisual), deixando abertura para sugestões, obedecendo à importância dada por Freire (1984) da pesquisa ser pactuada com os sujeitos. Nesse primeiro momento, resolvemos abandonar as formalidades da gravação, dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e da aplicação do questionário. Afinal, o intuito era de sedução (no sentido de uma primeira paquera, se teriam ______________________________________________________________________

¹ Durante a pesquisa, uma das integrantes arranjou trabalho como cozinheira, mas continuou “na lida” (gíria usada para falar prostituição). ² Local de apresentação de prostitutas para o trabalho sexual.

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ou não o interesse de continuar conosco), de buscar criar vínculos. Apesar dessa escolha, explicamos sobre essa etapa da pesquisa e os elementos necessários para o desenvolvimento do trabalho. Foram devidamente informadas de que, tanto os nomes sociais, quanto os civis seriam preservados na escrita da dissertação e na publicação de artigos científicos, por meio da utilização de nomes fictícios (Spink, 2000). Ao longo de todo o trabalho, no trato com as travestis, buscamos respeitar o uso do nome social. Durante a pesquisa, foram realizadas quatro oficinas, com duração (entre uma hora e meia até duas horas cada) e número de participantes variáveis (entre quatro e sete pessoas). Os trabalhos em grupo foram filmados para facilitar a transcrição, devido à interposição de falas, e também para evitar a perda de informações não verbais importantes para a compreensão do que foi dito. Fazendo uma clara referência ao subprojeto Chá de Damas, durante os encontros ofertamos um lanche simples com chá, café, bolo e bolacha, o que tornava as reuniões menos formais, um bate-papo. Devido à condição econômica precária das interlocutoras, além desse lanche foi disponibilizada ajuda de custo para locomoção. Os dois primeiros encontros ocorreram no Centro de Mulheres do Cabo (com quatro e cinco participantes). Posteriormente, houve uma oficina na Câmara de Vereadores (com sete integrantes) e as duas últimas ocorreram na Secretaria Municipal de Educação (com quatro pessoas). As mudanças de localização se deram levando em consideração a conveniência do grupo quanto aos horários disponíveis pelas instituições e à facilidade de deslocamento geográfico das participantes. A alternância de lugares das oficinas não havia sido planejada, mas produziu efeitos de visibilidade nesses diferentes cenários. No Centro de Mulheres do Cabo, representantes desta organização não governamental (ONG) perceberam quão importante era a articulação com as travestis e que a vulnerabilidade delas se relacionava à discussão de gênero.

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Além disso, a partir de oficina realizada na Câmara de Vereadores – com o objetivo de informar e discutir as legislações referentes às travestis –, as participantes agendaram reunião com vereador e presidente. Na ocasião, lançaram mão de material organizado e distribuído em oficina, como documento base na discussão, juntamente à legislação do Recife de número 16.7080/2002 (que institui punições para atos de preconceito por orientação ou identidade sexual), disponibilizada pelas pesquisadoras às participantes. Como desdobramento dessa reunião, ocorreu uma audiência pública, na qual reivindicaram a necessidade de leis que instituem sanções a ações de cunho preconceituoso quanto à orientação sexual ou identidade de gênero. Nesse evento, cobraram providências das autoridades locais quanto aos violentos homicídios de homossexuais no município, defenderam mais empenho na investigação desses crimes, além de mais reforço nas ações de segurança e de prevenção à violência. Consideramos que este efeito disparador é desejável e esperado em uma pesquisa participante, pois ela “se torna formadora de pessoas mais aptas a uma integração mais consequente e corresponsável na vida social” (Brandão, 2006, p. 47). As oficinas que ocorreram na Secretaria Municipal de Educação possibilitaram ainda a apresentação da pesquisadora e proposta da pesquisa ao secretário da pasta. Esta aproximação resultou no convite para apresentação dos resultados junto aos servidores e população locais, criando uma excelente oportunidade para devolução e a discussão da pesquisa junto à comunidade, etapa que faz parte da produção de um saber comprometido com transformações locais (Brandão, 2006; Gergen, 2006).

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4 • No caminho para a escola há o mundo A discussão sobre as experiências das travestis nas escolas foi radicalmente marcada pelos aspectos apontados pelas travestis que interferem, diretamente, na permanência na escola, tais como o direito de ir e vir e a segurança. De modo geral, a precariedade das condições de vida das travestis abre margem para a discussão das políticas sociais que legislam, gerenciam vidas e permitem a assistência à saúde, à educação, à visibilidade nas ruas, o que nos leva a refletir como as normas e as relações de poder se operacionalizam (Butler, 2009). Tal discussão pode gerar transformação social, por meio da subversão e rearticulação de novas práticas e relações sociais, pois evidencia condicionantes de vidas precárias. Nesta direção, Alfonso Adac (2004) elenca o esgarçar das redes de apoio, as dificuldades de entrada no mercado de trabalho e a baixa escolaridade como fatores que aumentam a vulnerabilidade das travestis e a probabilidade de desenvolverem problemas de saúde. Vale salientar que houve relatos sobre o exílio noturno, ou seja, momento demarcado em que podem sair às ruas com um pouco mais de tranquilidade. De fato, esta informação surgiu quando conversamos a respeito do melhor horário para nos encontrarmos. Duas das participantes, Xuxa e Blenda afirmaram que muitas travestis têm as vidas cerceadas pelo medo de sair durante o dia, pela vergonha dos olhares insistentes, dos cochichos, dos xingamentos e das piadinhas, como também pelo medo da violência física. Chegaram a contar que, ao fazer feira, durante o dia, era comum serem atiradas frutas e verduras estragadas contra elas. Ainda assim, muitas enfrentam o dia a dia nas ruas e procuram tomar esse espaço. Outro fato chocante ocorreu durante o período das oficinas, quando houve, de acordo com uma das participantes, o assassinato brutal de uma colega, conhecida dos membros do grupo. Segundo relato, o corpo da vítima foi encontrado na praia (lugar conhecido na região de “pegação gay”) mutilado e

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decapitado. Mais estarrecedor ainda (para nós) foi o fato das participantes não escolherem cancelar o compromisso firmado conosco e agirem com naturalidade diante de tal atrocidade, tão corriqueira, tão banalizada. Nessa situação, fica atestada a vulnerabilidade dos corpos que se situam, mais claramente, fora da norma de gênero e que arcam com graves restrições nas próprias possibilidades de existência. Constata-se que algumas vidas são mais bem protegidas do que outras. Algumas vidas chegam a não ser sequer consideradas como vidas e a violência física passa essa mensagem de desumanização (Butler, 2010b). Vale denunciar as preocupações das interlocutoras quanto ao aumento de violência, de assassinatos cometidos contra homossexuais na região: “Foram seis homossexuais assassinados no município do Cabo [ano passado]. Com este ano, mais três. Foi uns oito, eu acho” (Xuxa). Essas mortes passam a sensação de medo, sobretudo por estarem aliadas à constatação de impunidade e de descomprometimento das autoridades responsáveis: “Enquanto o assassino não matar e colocar uma placa em cima, dizendo ‘É homofobia’, a polícia vai dizer que não é”. E a seguinte situação: “Cartazes homofóbicos pela cidade dizendo “Homem com homem é igual a interrogação”, e outro, ‘Mulher com homem é igual à família’. A Polícia Federal entrou no caso e não deu em nada.” Colaborando para a visualização desse quadro de violência, o Grupo Gay da Bahia (GGB) vem produzindo, desde a década de 1980, levantamentos de assassinatos e crimes contra homossexuais no Brasil, entre os quais sublinha especialmente a violência contra travestis. Nessa direção, a organização contabilizou na última edição, em 2012, um total de 338 homicídios de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. De tal sorte que ocorre uma morte a cada 26 horas. Sabendo que há subnotificação, a situação é ainda mais alarmante. Consequentemente, o Brasil consolida a liderança mundial em homicídios de homossexuais, com destaque para a região Nordeste (onde ocorreram 45% dos casos registrados naque-

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le ano). Confirmando as impressões de indiferença diante das violações desses corpos, observamos que 80% dos assassinatos com vírimas semelhantes em Pernambuco, em 2012, estão sem resolução ou medidas punitivas (GGB, 2013). Somando a essa situação, Butler (2009) elenca especificamente o trabalho sexual como uma condição de precariedade por terem de se proteger tanto da violência típica das ruas, como da perseguição por parte de policiais. Para ilustrar essa sensação de insegurança e impunidade, as meninas relataram uma situação em que policiais atiraram bolas de borracha, sem nenhuma justificativa, em uma delas, que apenas andava na rua durante o dia: “Dois policiais militar brincando de tiro ao alvo, não foi, mona? Mirou pro lado da Bruna com aquelas bolinhas verde. Bicha, foi tão rápido! Bicha, queimou!” Assim se reeditam, cotidianamente, a desumanização e a constatação de que há vidas que são menos importantes de ser preservadas e que não há a quem recorrer, pois aqueles que deveriam proteger são os próprios agressores. Visualizamos aqui o outro lado da moeda da governamentalidade, notoriamente tida como gestão das populações e do biopoder, cujo objetivo seria a garantia e expansão do tempo de vida, mas que, segundo Butler (2008a), teria também a dimensão do deixar morrer, uma maneira silenciosa de matar, de gerir quais corpos devem ou não ser cuidados. Para a autora (2010), a viabilidade de nossa individualidade depende de como as normas sociais nos constituem. Dito de outra forma, a violência de gênero (pautada no referencial heteronormativo) conduz a vidas de exclusão, espécie de suspensão da vida, ou de sentença de morte sustentada socialmente (Butler, 2008). A violência contra os corpos produz corpos abjetos. Ela surge como uma tentativa de restaurar a ordem, de convertê-los em irreais e impossíveis, ratificando a norma. Os atos de violência, portanto, que acometem as minorias sexuais, demonstram a necessidade urgente de estabelecer um tipo específico de política que favoreça a apreensão do ser humano na respectiva vulnerabilidade – carente de proteção e de reconhe-

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cimento público, salientando os aspectos físicos, a relevância do contexto socioeconômico e as relações interpessoais para a sua sobrevivência (Butler, 2010b; Cavarero e Butler, 2007). Paradoxalmente, estes atos de violência tornam evidente a condição de vulnerabilidade humana e, consequentemente, o reconhecimento da responsabilidade coletiva na formação de uma prática de cuidado: “Os corpos devem, todavia, ser apreendidos como algo que se entrega para ser cuidado” (Butler, 2010, p. 44, tradução nossa). Em outras palavras, a vulnerabilidade convoca a dimensão ética do cuidado, pois “implica realmente uma obrigação ética, uma atenção especial diante da precariedade da vida, uma responsabilidade para encontrar as condições em que essa vida frágil possa prosperar” (Cavarero e Butler, 2007, p. 653). Juracy Toneli e Marília Amaral (2013), no texto Sobre Travestilidade e Políticas Públicas: como se produzem os sujeitos da vulnerabilidade, enfatizam a dimensão política e econômica da noção de vulnerabilidade. Neste sentido, apontam a necessidade imperiosa de romper com o silêncio sobre a violência contra esses corpos; ou seja, mapear e expor as vulnerabilidades da população de travestis e de transexuais contribuiriam para “a ampliação e facilitação de acesso aos direitos dessa população” (Toneli e Amaral, 2013, p. 45). Ademais, a sintonia dessa perspectiva com a realidade do Cabo é enorme. Lembramos quando Xuxa afirmou, categoricamente, que elas são pessoas e que os outros a tratam como se não fosse humana, como se fosse menos humana: “Conscientizar as pessoas de que travesti sente dor como qualquer outra pessoa sente, sofre como qualquer outra pessoa sofre, e que não é diferente de ninguém, sofre como todo mundo sofre.” Ou seja, também perece e também precisa de cuidado. Ou na afirmação da humanidade pelo reconhecimento da própria vulnerabilidade, pertencente a todo ser vivente: “É a mesma cor do sangue que corre em mim, corre neles, tudo vermelho” (Bárbara).

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A constatação de Nara de que “Infelizmente, pra sociedade, somos ninguém, essa é a realidade” resume uma verdade árdua destinada aos corpos abjetos. A abjeção nomeia esse passo ao largo, essa zona proibida de corpos que habitam lugares inóspitos e inabitáveis. Para Julia Kristeva (1988), a abjeção é a zona da negação que abarca o proibido e representa as barreiras culturais. A formação de sujeitos dentro da norma exige a identificação com um sexo e forma um campo de abjeção, um fantasma que provoca repúdio, sem o qual o sujeito da norma não emerge (Butler, 2002b). A abjeção aterroriza, causa horror e rejeição, mas seria um elemento crucial, que demarca fronteiras e contribui para a constituição de subjetividades normais, desejáveis por meio da veemente negação. Assim sendo, refletimos sobre como as normas criam marginalidades e somente existem por causa delas. Neste momento, Xuxa relativiza e aceita a existência de normas, ao afirmar que o preconceito pode existir em diferentes níveis e por diversas razões (gordo, preto, pobre, feio). Mas, traz a questão ética, ao ratificar que não podemos deixar de respeitá-la. Saindo do lugar de somente vítima, ela assume: “Eu mesma já fui preconceituosa de não querer ver a bichinha mais nova, de não gostar da bicha mais velha, mangar da velha, não querer a novinha.” E ainda concluem que “preconceito todo mundo tem dentro de si mesmo” (Xuxa) ou “infelizmente o preconceito não deixa de ser” (Nara). De certa maneira, todos/todas estamos enredados em normas, em padrões. Cabe, no entanto, refletirmos permanentemente a respeito das consequências, dos efeitos desses padrões e normas para poder revê-las e fazer deslocamentos em algumas delas. No entanto, Butler (2010) considera que, quando se trata de travestis, transexuais e intergêneros, a violência é maior, por serem figuras que transitam e violam mais visivelmente as normas de gênero.

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Nesse contexto, as noções identitárias, padronizantes e patologizantes sobre as travestis também nortearam posturas e ações excludentes e violentas.

5 • A comédia, o engano aos sentidos e o desvio A dimensão da comédia, daquilo que é absurdo, do extraordinário e do inesperado apareceu associada à figura da travesti: “parece que quando chega uma travesti... parece que chega uma palhaça!” Ela chama a atenção, causa cochichos, olhares, risadas: “... o povo pensa que a travesti é como uma palhaça” (Bárbara). Na fala de Xuxa, “travesti nunca vai ser... travesti sempre vai ser a estrela de qualquer lugar, a gente nunca vai ser... as pessoas são um rosto... é uma pessoa normal no meio da multidão; a gente, quando chega, é o centro das atenções”. Esse frisson provocado pela presença de uma travesti nos remete à ideia de um ser que paradoxalmente assusta, encanta e seduz, como descrito por Bárbara: “A gente tenta levar a vida como uma pessoa normal, porque, pra comunidade, a gente é uma coisa do outro mundo, não se acostuma, não se habitua com a gente não”, bem como a figura mitológica da hermafrodita descrita por Leite Junior (2011). Outra dimensão da comédia seria o uso do humor por elas como uma estratégia, um modo de viver mais leve. Ao longo das oficinas, aprendemos bastante com o grupo a buscar ser mais leve e mais alegre diante da vida. Apesar das inúmeras adversidades enfrentadas, o grupo se mostrava sempre bastante sagaz, irônico e divertido. Xuxa nos contou uma história de uma amiga: “Ela passou pelo ponto de ônibus. ‘Seu veado!’ Ela voltou. Aí, ela disse assim: ‘Quem foi que disse que eu era veado?’ Aí, um homem disse assim: ‘Foi ele’ (bem baixinho). ‘Acertou!’ (Risos) E foi simbora! E se ela fosse bater boca, mona?” A sensação que nos dava era de que não valia a pena viver de modo tão sério, tão pesado. Ao compartilharem as próprias vidas, as pessoas vão se dando conta de que o sofrimento que as atinge não é o único, não é sempre o maior.

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Havia muitas brincadeiras, piadas, mesmo quando falávamos de situações extremamente difíceis. Então, poderíamos nos perguntar se não se trataria de uma defesa egóica, de uma negação. Diante dessa questão, responderíamos que, se fosse uma defesa, parecia uma estratégia bastante eficaz para lidar com tamanhas adversidades. Estratégias que convocam Paiva (2008, p.67) a pensar na “artificialização da vida, humor, criação, paródia, como remédio aos afetos tristes.” Ademais, nascida a partir dos guetos, das comunidades gays, de prostitutas, de excluídos, a proposta da teoria queer é usar o humor, a sátira e a paródia como estratégias de suspensão e reflexão do que se conhece como realidade. Uma maneira eficaz de realizar deslocamentos no discurso, por subverter o sentido valorativo de negatividade e, com isso, reinventar outros olhares. O humor e a ironia, portanto, além de potencialmente produzirem deslocamentos, por subverterem bom/ruim, negativo/ positivo, podem ser uma maneira de dizer algo difícil de ser dito: “É possível perceber potencial subversivo na ironia e no humor e esses, muitas vezes, podem constituir formas privilegiadas de dizer o que, de outro modo, não pode ser dito” (Louro, 2009, p. 138). Por vezes, a indiferença parece ser uma forma de poupar energia, de evitar desgaste: “Eu sei que a gente incomoda, Dani, e eu vou brigar com o povo? Vou nada!” (Xuxa). Ou mais adiante: “Nem toda hora, Nara, você tem aquele tempo, você entendeu, Dani? De ‘tá batendo de frente, de estar discutindo. Você termina perdendo seu tempo, você tem outras coisas para fazer.” Mas, essa leveza pode recair em certo descaso. Expressões como “nem ligo” e “eu até gosto”, porque tiram algum benefício residual de determinada situação, falavam de uma tentativa de não se abalar tanto, diante da cotidiana violência. Todavia, trata-se de uma estratégia que, se muito repetida, pode ser por demais apaziguadora, pois, se evitarem constantemente os conflitos, a tendência é a perpetuação desse status quo.

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No discurso de Nara, as travestis são vistas como criaturas ardilosas que buscam enganar os sentidos, com a intenção de confundir e desestabilizar as pessoas: “Parabéns! Você me enganou” – fala irônica de um senhor para com Nara, por ter pensado que lidava com uma mulher “de verdade”. Como se houvesse um sexo verdadeiro descoberto por detrás dos apetrechos e gestos considerados femininos e a travesti estivesse brincando com esses símbolos, ludibriando, fazendo-nos intencionalmente cair em um erro de julgamento, da razão, dentro de uma lógica de binarismo sexual e da heteronormatividade. Curioso notar que a definição da palavra travesti surge no dicionário de língua portuguesa enquanto disfarce, vestir-se de acordo com um sexo que não se pertence (Michaelis, 2000). Como se quisesse enganar o outro, usando vestes opostas à prescrição social. Retomando historicamente esses sentidos da dúvida, encontramos fortes valores morais associados à necessidade de saber de um sexo-verdade. Essa sede de verdade sobre o sexo adentrou no discurso científico sob diferentes formas: de doenças a serem tratadas, de um sexo verdadeiro a ser descoberto pela ciência, aliado ao imperativo de um único sexo a ser assumido pelo indivíduo (Foucault, 2011b). Além do mais, na lógica binária do sexo único do indivíduo, a figura hermafrodita se torna apenas mitologia longínqua, “não mais o incômodo de um ser intermediário, mas o impasse de um ser impossível. Não há mais lugar na ciência para alguém com os dois sexos/gêneros” (Leite Júnior, 2011, p. 59). Nesse âmbito determinista, a associação entre um desvio do comportamento heteronormativo e a criminalidade permanece nos discursos sobre as travestis. São vistas como seres que passam uma mensagem de ameaça para a integridade física das pessoas, da sociedade, seres à margem, verdadeiros marginais: “O travesti na sociedade brasileira é de forma geral marginal... Travesti rouba, travesti mata, travesti faz isso” (Nara). Ou no relato de Luana: “A gente é ladrão, marginal. Pronto, se tiver um grupinho, se a gente tivesse ali fora, pas-

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sassem: ‘Ali’tá bom de separar’. Ligam pro 190, mulher! Para um carro do lado: ‘‘tá tendo reunião aí, é?’ Já aconteceu comigo.” Semelhante visão, relacionada à marginalidade, confusão e baderna, foi constatada por Rubens Ferreira (2009), em pesquisa realizada com a comunidade ao redor de um notório ponto de prostituição de travestis em Fortaleza, Ceará. Parece-nos que a travesti comete, de antemão, um crime fundamental e inalienável – a transgressão das fronteiras de gênero – e isso as torna eternas fora-da-lei e criminosas para o imaginário coletivo enquadrado no discurso jurídico, da manutenção de norma, das regras. Na obra Os anormais, de Foucault (2010), as travestis podem ser consideradas como uma das monstruosidades de nosso tempo, figuras assustadoras, que fogem às normas, mas que, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, reificam-nas. Além disso, tudo o que foge à racionalidade vigente é jogado para a dimensão da loucura, da aberração como modo de preservação da norma e da razão (Foucault, 2010). Percebe-se, a partir da análise de Foucault (2010), que as categorias hermafrodita e andrógino passaram ao discurso cristão com ares de periculosidade e de pecado. No cristianismo, a ambiguidade, o duvidoso e o pecaminoso eram representantes de uma sexualidade considerada exacerbada; uma criatura com características físicas dos sexos (seios e pênis) virou sinônimo do diabo, e a certeza, como a verdade, era a manifestação de Deus em perfeição, arrodeado de anjos assexuados (Leite Júnior, 2011). Com base nesse mesmo entendimento, Leite sugeriu repensar os limites da categoria humana com a relação que temos com os nossos monstros – que funciona como outra categoria de inteligibilidade, que alegoriza e aterroriza a saída da norma (Leite Júnior, 2012). Faz refletir na maneira de nos relacionarmos com os “outros” que criamos e mesmo na necessidade desse e de alimentarmos o medo infantil de criaturas tenebrosas, fora da norma, como mecanismo de controle de subjetividades enquadradas, encarceradas.

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Diante de acusações de cunho moral e religioso, Carla costuma se defender da seguinte maneira: “Digo logo: atire a primeira pedra quem não tiver pecado”, colocando-se como igualmente errada, pecadora. Contudo, a tentativa de se afirmar pela via da igualdade, não obstante, recai no anúncio humanista de que somos iguais e necessariamente reifica a norma. A estreita relação entre norma e igualdade é problematizada por David Blacker (2011, p. 159), na qual a afirmação da igualdade torna-se uma reafirmação da norma: Quando a conformidade torna-se a norma reinante (talvez, inicialmente, uma mudança quase imperceptível no ideal da igualdade), começa um processo que leva ao alinhamento e a uma ordenação cada vez mais estreitos de acordo com aquela norma.

Ou seja, o normal e a igualdade andam de mãos dadas, estabelecendo parâmetros. Esse tipo de crítica se aproxima da produzida pelos estudos queer, que propõem não a defesa de uma igualdade, mas a valoração das diferenças e compreensão dos aspectos históricos e relações de poder que a acomodam como tal (Furlani, 2005), bem como na proposta de feministas com influências no pós-estruturalismo, como Brah (2006), Nogueira (2008), Scott (1999b) e Pelúcio (2009).

6 • Considerações Nesse estudo, problematizamos sobre as condições de vida de travestis residentes no Cabo. A partir dos diferentes relatos, verificamos como variados discursos posicionam as travestis fora da norma, por meio de atribuição de vidas menos valoradas socialmente. Ora, um elemento que nos inquietava era anterior às penúrias escolares, ou seja, dizia da dificuldade de circular nos espaços públicos, de sofrerem violência verbal, física ao tentarem, simplesmente, andar pela cidade. Essa constatação nos fez indagar sobre o lugar que elas ocupavam e nos motivou a escrever a respeito.

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Todavia, visibilizar tal situação é somente um dos elementos relevantes dessa pesquisa. Sendo assim, seria interessante uma ampliação dos investimentos em pesquisas/intervenções que abordem a questão da travestilidade sob outros aspectos, diferentes da vida na prostituição, das técnicas de transformação corporal, a fim de nos ajudar a compreender os efeitos da exclusão social, contribuindo para a produção de novas configurações, táticas e técnicas de si. Este trabalho, outrossim, ofereceu acesso ao discurso jurídico como uma possível ferramenta de aquisição de direitos, de esclarecimentos, de modificações em posicionamentos – o que nos leva a pensar na pesquisa como um ato eminentemente político e, como tal, demanda algum retorno mais palpável para a comunidade pesquisada (não no sentido da disposição de soluções imediatistas, mas de uma troca de saberes que as favoreça). Nesse plano, sentimos a necessidade de mais pesquisas na área da psicologia que tratem dos aspectos teórico-metodológicos de cunho interventivo, que indiquem caminhos e sugiram novas maneiras de trabalhar. Do ponto de vista macropolítico, consideramos essencial um maior investimento, sobretudo nos recursos humanos e materiais didáticos. Iniciativas que promovam uma maior divulgação de legislação pertinente; a capacitação ampliada de profissionais da educação sobre diversidade sexual, direitos humanos, sexualidade, gênero; a elaboração de materiais informativos e de sensibilização (cartilhas, cartazes, documentátios, curta-metragens, etc). Para tais objetivos, sinalizamos a indispensabilidade da aproximação com ONGs, serviços governamentais, academia e movimentos sociais, contribuindo também para a construção de políticas, estabelecendo redes de apoio e disparando discussões producentes. Em suma, foi muito importante discutir com elas sobre esse contexto e pensar em maneiras e estratégias de resistência. Um exemplo disso foi que, em decorrência dos encontros, elas passaram a fortalecer laços de amizade que repercutiram na ampliação das próprias redes de cuidado. Destarte, pude-

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ram repensar o lugar cristalizado de travesti como sinônimo de prostituição e se verem exercendo também outras atividades/ funções sociais, inclusive no âmbito político.

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Capítulo 5

A heteronormatividade na escola e os desafios para a construção de processos educativos voltados à garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes¹ Marivete Gesser Leandro Castro Oltramari Gelson Panisson

1 • Introdução Desde a emergência dos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos quais se destaca, no caderno referente à temática da sexualidade, que esta deve ser trabalhada em todas as disciplinas de forma transversal, inúmeros estudos têm surgido com a finalidade de auxiliar na construção de pressupostos teórico-metodológicos voltados à formação de educadores no segmento. Todavia, as pesquisas que vêm sendo realizadas nas escolas brasileiras apontam grandes desafios a serem transpostos para a promoção de uma educação voltada à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito em questão. Neste sentido, autores como Seffner (2013), Costa (2012), Alós (2011) e Louro (2008) têm apontado que as práticas pedagógicas abordando a sexualidade, ao contrário do que preveem os documentos oficiais, têm fomentado predominantemente a patologização e o preconceito contra pessoas que divergem do modelo heteronormativo. Além disso, há um processo de pedagogização dos corpos e das sexualidades voltado à manutenção de padrões binários de masculinidades e feminilidades, os quais são considerados saudáveis e legítimos perante a Igreja e o Estado. ______________________________________________________________________

¹ Agradecemos aos bolsistas de pesquisa do curso de Psicologia da UFSC Luiz Henrique Fernandes dos Reis e Alisson de Abreu pela colaboração na realização das entrevistas e transcrições das informações desta pesquisa.

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Esse processo está presente nos variados contextos sociais e contribui para a manutenção de binarismos e fundamentalismos relacionados ao gênero e à sexualidade. Ademais, as Pedagogias Culturais corroboram o adestramento do olhar, direcionando o que é considerado saudável e legítimo para a conduta de nossos alunos e alunas. Neste sentido, Alós (2011) destaca que os discursos religiosos, as morais hegemônicas das classes dominantes, e mesmo algumas teorias pedagógicas, sociológicas e biológicas exercem suas funções de ‘pedagogias culturais’, definindo o que deve ser considerado como um comportamento masculino ‘saudável’ ou um comportamento feminino ‘saudável’ (Alós, 2011, p. 425).

Destaca-se ainda que esse processo corrobora a manutenção das desigualdades de gênero (Alós, 2011) e do preconceito aos sujeitos que desviam desses padrões (Costa, 2012). Partindo do pressuposto de que as(os) professoras(es) se constituem sujeitos atravessados pelos discursos morais, religiosos e biomédicos acerca da sexualidade, e de que as próprias concepções sobre o tema vão constituir as práticas em sala de aula, foi realizada uma pesquisa que teve como objetivo estudar as concepções de sexualidade de professoras(es) que atuam na educação básica de uma capital do Sul do país. Neste ensejo, far-se-á um recorte no qual serão focalizados os resultados acerca da concepção heteronormativa de sexualidade explicitada nas falas dos entrevistados e as implicações desta nas práticas pedagógicas. A demanda pela realização da pesquisa surgiu a partir de uma parceria entre a universidade e o município onde ela está inserida, quando a Secretaria Municipal de Educação solicitou uma avaliação de como a sexualidade vinha sendo abordada, para, com base nisso, elaborar ações de formação de docentes. Acredita-se que a identificação do modo como estes concebem a sexualidade pode contribuir para a construção de propostas de formação inicial e continuada, com base em uma

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perspectiva ético-política acerca deste tema. Essa, segundo Gesser et al (2012), volta-se à desconstrução das significações de gênero e sexualidade opressoras das pessoas que não se encaixam no padrão heteronormativo, à desnaturalização das violências, à ampliação da autonomia, à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e à diminuição da vulnerabilidade dos sujeitos que expressam as próprias sexualidades de forma divergente do padrão heterossexual. Diversos estudos apontaram que os profissionais da educação têm apresentado muitas dificuldades na implementação do que propõe o caderno de orientação sexual dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a Política de Prevenção e Combate à Homofobia e demais documentos oficiais (Seffner, 2013; Gesser et al, 2012; Nardi e Quartiero, 2012; Avila, Toneli e Andaló, 2011). Os discursos morais, religiosos e biomédicos – os que negam a existência da sexualidade na infância e deslegitimam-na na adolescência – têm produzido efeitos voltados à patologização das expressões de sexualidade que fogem ao padrão heteronormativo. Em pesquisa de Almeida et al (2011) com professoras(es) de um município do Nordeste do Brasil, os autores identificaram que estes profissionais abordavam as discussões sobre sexualidade somente em momentos pontuais quando se deparavam com tais situações no cotidiano escolar. Além disso, os entrevistados relatavam dificuldades do ponto de vista pessoal e técnico para abordar tal temática em sala de aula, o que produzia como efeito a supressão da discussão de forma sistematizada no espaço. Rohden (2009) realizou uma pesquisa com os profissionais da educação participantes do Curso de Formação Gênero e Diversidade na Escola, evento financiado pelo Governo Federal com intuito de formar docentes para abordar tais temáticas onde lecionavam. A avaliação acerca dos fóruns de discussão realizados na plataforma virtual do curso evidenciou que, principalmente quando proposta a discussão acerca das diferentes expressões de sexualidade, os comentários das(os)

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professoras(es) eram pautados em posturas pessoais ancoradas em discursos religiosos e biomédicos, os quais corroboravam a naturalização da heterossexualidade como norma e das diferentes expressões sexuais como desvio. Esse dado também foi identificado em um estudo realizado por Avila, Toneli e Andaló (2011) junto a profissionais que atuam na educação básica. Nesta pesquisa, entendeu-se sexualidade como um fenômeno complexo e multifacetado, que incorpora aspectos culturais, históricos, biológicos e políticos que atravessam e constituem a experiência dos sujeitos nesse âmbito. Não negamos a materialidade do corpo, mas destacamos, com base em autores como Laqueur (2001) e Butler (2003), o quanto essa materialidade é discursivamente produzida e atravessada por relações de poder, as quais definem os corpos que importam na arena social e política. Destacamos ainda que, por mais que haja discursos voltados à normalização da sexualidade, tentando o tempo todo produzi-la performativamente, os sujeitos resistem a esses produzindo formas diversas de vivenciá-la (Foucault, 1988), o que impossibilita a universalização dos comportamentos sexuais. Ressalta-se também a transversalidade da sexualidade com os marcadores identitários de gênero, etnia/raça, classe social, geração, orientação sexual, entre outros que constituem a subjetividade.

2 • Método A presente pesquisa foi realizada a partir de uma solicitação da Secretaria Municipal de Educação de uma capital do Sul do Brasil. O pedido foi feito pelos gestores dessa pasta, no intuito de avaliar o impacto de uma lei aprovada pelo município que prevê a discussão de temas como gênero e emancipação feminina nas escolas, sendo essa uma atribuição das(os) professoras(es) de História, Geografia, Língua Portuguesa e Ciências.

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Considerando que, como base nos autores pós-estruturalistas como Butler (2003) e Louro (2010), não há como dissociar gênero e sexualidade, optou-se por incorporar essa segunda categoria também na pesquisa, buscando analisá-las de forma indissociável. Por meio das análises das informações obtidas, foram identificadas três categorias no que se refere às concepções de sexualidade, a saber: concepção preventivista, concepção heteronormativa e concepção de democracia sexual. Neste texto, abordaremos as informações obtidas acerca da concepção heteronormativa de sexualidade e as implicações desta nas práticas pedagógicas. Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética com Seres Humanos da Universidade (Parecer de número 34567/2012), em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, foram mapeadas 12 escolas, situadas nas regiões norte, sul, leste e central do município. Com base nisso, foi realizado o contato com as unidades para posterior agendamento das entrevistas. As (os) professoras(es), no momento do convite, receberam duas cópias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual explicitava os objetivos e procedimentos da pesquisa, bem como garantia o sigilo das informações e explicava que elas seriam utilizadas somente para fins de pesquisa e que as identidades seriam preservadas. Após a leitura deste, eles tiveram a possibilidade de escolher participar ou não da pesquisa. Dos 24 convidados, um escolheu não participar e os demais aceitaram. As entrevistas foram realizadas nas escolas onde os professores trabalhavam, em sala reservada e de forma individual. Elas foram gravadas para posterior transcrição com a autorização dos participantes. No momento da realização, buscou-se, além das concepções de gênero e sexualidade, a obtenção de informações como: área de formação, tempo de docência, tipo de vínculo empregatício (se assessor temporariamente contratado ou professor(a) efetivo(a)), idade, religião, estado civil, conhecimento acerca dos documentos oficiais e acesso à formação inicial e formação continuada em gênero e sexualidade.

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No que se refere ao perfil dos participantes, esses tinham idades variando entre 25 e 66 anos e experiência na área da educação variando entre quatro meses e 33 anos. Em relação à religião declarada por eles, dez se caracterizaram como não tendo religião, nove como católicos, dois como protestantes, um como evangélico, um como cristão e uma como espírita. No que se refere ao conhecimento que os entrevistados relataram ter acerca dos documentos oficiais sobre gênero e sexualidade, apenas cinco dos 23 entrevistados afirmaram que conheciam, até o momento da entrevista, os PCNs e/ou outros documentos norteadores da atuação em relação a esses temas na escola, sendo que dois deles afirmaram ter apenas conhecimento superficial acerca dos PCNs. Em relação ao acesso à formação inicial e continuada em gênero e sexualidade, apenas nove (na modalidade inicial) e sete (na modalidade continuada) dos 23 entrevistados relataram ter acesso, sendo que, nessa última modalidade, um participante disse que teve apenas uma palestra, outro apenas um curso intensivo e outra teve um curso, mas não se lembra sobre o conteúdo. As informações foram obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas e analisadas posteriormente por meio da técnica de Análise de Conteúdo temático do tipo categorial pautado em Bardin (2000). Quanto aos procedimentos utilizados na análise, primeiramente realizou-se a transcrição detalhada das falas. Em seguida, foi realizada a leitura flutuante do material, buscando-se identificar os elementos de conteúdo a serem submetidos posteriormente à classificação por categorias. Por fim, esses conteúdos foram agrupados em categorias de análise. Destaca-se que, para a garantia do sigilo, foram atribuídos nomes fictícios aos participantes da pesquisa.

3 • Resultados e discussão Serão apresentados e discutidos os resultados referentes ao atravessamento da concepção heteronormativa nas falas dos sujeitos e os efeitos nas práticas pedagógicas. A he-

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teronormatividade foi entendida, com base no pensamento de Judith Butler (2003), como as relações de poder entre homens e mulheres e entre homossexualidade e heterossexualidade, demonstrando a construção do dispositivo da sexualidade como marcado pela norma heterossexual. Deste modo, a heteronormatividade se caracteriza como uma prática que produz discriminação baseada na suposição da normalidade da heterossexualidade e dos estereótipos de gênero. Portanto, destacam-se, como efeitos da heteronormatividade, a pedagogização dos gêneros e sexualidades sob uma norma sexista e heteronormativa e a manutenção dos binarismos homem/mulher e homossexual/heterossexual. As principais questões identificadas quanto à heteronormatividade referem-se a: preocupação excessiva com a iniciação “precoce” da sexualidade dos jovens; preocupação com a pedagogização das masculinidades e, principalmente, das feminilidades com base em normas cristalizadas de gênero e opressoras das mulheres; responsabilização das meninas pela gravidez na adolescência; incômodo com as expressões de sexualidade não heterossexuais. Essas questões estarão englobadas nos dois tópicos a seguir.

3.1 • Pedagogização dos corpos e das sexualidades A pedagogização dos corpos e das sexualidades consiste em um processo por meio do qual as práticas pedagógicas direcionam os gêneros e as sexualidades à reprodução do modelo da heteronormatividade. Conforme já destacado, esse processo contribuiu para a manutenção de binarismos e fundamentalismos que mantêm as desigualdades de gênero e para a patologização das diferentes expressões da sexualidade. As falas de alguns dos entrevistados evidenciaram um processo de pedagogização das masculinidades e, principalmente, das feminilidades com base em normas cristalizadas de gênero que oprimem não somente as mulheres, mas todas as pessoas que expressam o próprio gênero de forma diferente da

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instituída socialmente. Percebeu-se uma preocupação muito grande com expressões da sexualidade por meio da utilização de maquiagem, roupas curtas e, principalmente, um incômodo em relação às meninas que “paqueram” meninos. Os depoimentos abaixo expressam essa questão: É a menina botando a roupinha mais curta, começando a se maquiar com 11, 12 anos; (...) a gente percebe alguns traços, entendeu? De que a menina está querendo iniciar uma vida sexual sem antes saber mesmo o porquê (José, professor de Ciências). Nós, professores, nós observamos o comportamento em sala de aula. É a roupa, é a paquerinha. É a menina que ‘tá sempre grudada num menino (...); num dia, grudada em um e, no outro, grudada em outro. Isso aparece o tempo todo (Cristina, professora de Português).

Percebe-se, nas falas dos entrevistados, uma preocupação maior em relação às expressões de sexualidade das meninas em detrimento do comportamento sexual dos meninos, corroborando as informações obtidas nos estudos realizados por Villela e Doreto (2006). Essa percepção é mediada pelos discursos sobre gênero que atribuem à mulher o lugar social de meiga, recatada e discreta, ao passo que, dos meninos, esperam-se comportamentos que expressem virilidade e iniciativa até como forma de provar a masculinidade. Essas normas de gênero, que são o tempo todo reiteradas nas práticas educativas, produzem como efeito a responsabilização das adolescentes e isenção dos meninos pela gravidez na adolescência e demais consequências das relações sexuais. Os depoimentos abaixo explicitam essa questão: E é normal uma menina namorar com quase todos da turma. Uui! E eles ficam fazendo um intercâmbio entre eles (...). E outra coisa que eu fico assim muito chocada, que eu trabalho com eles, é a questão da gravidez e de doenças, né? Principalmente pela promiscuidade que acontece e muita gravidez (Nina, professora de Geografia).

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Porque uma menina de 14 anos já estava casada (...), uma menina da quinta série engravidou e criou-se um alvoroço na turma (Bete, professora de Português).

Portanto, percebe-se um incômodo com a (im)possibilidade de normalizar o comportamento sexual das adolescentes de acordo com as prescrições de gênero e sexualidade naturalizadas e instituídas pelo dispositivo da heteronormatividade. Ou seja, por um lado, há um investimento da escola para a normatização desses sujeitos, haja vista que, segundo Louro (2008, p. 17), “gênero e sexualidade são construídos através de inúmeras aprendizagens e práticas, empreendidas por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais, de modo explícito ou dissimulado, num processo sempre inacabado”. Todavia, os sujeitos resistem a essas normas, vivenciando a sexualidade de forma diferente da esperada pelos profissionais da escola. Outra questão que também foi identificada refere-se a uma preocupação muito grande acerca da postergação da iniciação sexual entre os alunos, sendo que a sexualidade das meninas é alvo de maior investimento em relação ao controle do próprio início. A sexualidade aparece como algo perigoso e os alunos aparecem como “criancinhas com a sexualidade aflorada” (Maria, professora de Ciências). Neste sentido, Renata, professora de Português, afirmou que é relevante que o tema da sexualidade seja trabalhado na escola “até porque é supercomum eles desenvolverem a sexualidade precocemente”. Alguns entrevistados relataram angústia e constrangimento por conta das expressões de sexualidade que, na visão deles, vêm aparecendo cada vez mais cedo entre os alunos, muitas vezes já desde o terceiro ou quarto ano. Isso pode ser identificado no depoimento da Cíntia, professora de História, ao ser questionada sobre se percebia uma demanda por parte das(os) professoras(es) sobre a abordagem do gênero e da sexualidade: “Estamos cada vez mais apavorados com quão precoce estão sendo certas coisas”.

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É importante problematizar a noção de precocidade da sexualidade, uma vez que ela parece estar ancorada em preceitos morais e religiosos que, por restringirem a sexualidade ao coito pênis-vagina e à reprodução dentro de relações estáveis e heterossexuais, produzem como efeito o lugar de assexuados às crianças e aos adolescentes. Essa perspectiva, no nosso entendimento, pode operar como uma barreira programática que dificulta a abordagem dessa temática no contexto da sala de aula em conformidade com os PCNs e demais documentos oficiais que a legitimam.

3.2 • Incômodo com as expressões de sexualidade não heterossexuais No que se refere à concepção heteronormativa de sexualidade, também ficaram evidenciadas, no subtexto de algumas falas, a apropriação dos discursos heterossexistas e a dificuldade de lidar com expressões de sexualidade que fogem a esse padrão normativo. Todavia, identificou-se uma preocupação com o modo como os educadores falavam sobre essa questão, haja vista a preocupação com o “discurso do politicamente correto”. Um dos entrevistados explicitou com mais clareza o discurso heteronormativo. A fala do professor evidencia inquietação e incômodo com a alta da temática homossexualidade, a qual, segundo ele, vem sendo “glamourizada” pelo destaque do tema nos diversos espaços sociais, conforme o depoimento abaixo: [A homossexualidade] é quase um modismo, se já não for. Quer dizer, tem a parte de um modismo e tem a parte que não é. Também não vou achar que tudo seja modismo, né? Mas parece até que (...) não é que parece (...) é que isso vem sendo feito há muito tempo, a glamourização. Então, ser gay hoje em dia é você estar ligado a uma vida glamourosa. Embora, aí, gay na geografia já me vem a ideia da imagem (...) da aparência e da essência. Será que a vida de um gay é sempre glamou-

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rosa? Eu não acredito! Mas já vi alguns documentários sobre travestis etc., e às vezes as pessoas que estão ali estão num submundo, e um submundo muito mais social do que sexual, né? (Paulo, professor de Geografia)

Corroborando o pensamento de Borrillo (2001), o depoimento acima se evidencia como atravessado pelo discurso homofóbico, uma vez que desqualifica e inferioriza as pessoas que expressam a sexualidade de forma divergente da norma, tornando-as abjetas. Nas palavras do autor, a homofobia é: la hostilidad general, psicológica y social, respecto a aquellos y aquellas de quienes se supone que desean a individuos de su propio sexo o tienen prácticas sexuales con ellos. Forma específica del sexismo, la homofobia rechaza también a todos los que no se conforman con el papel predeterminado por su sexo biológico. (Borrillo, 2001, p. 36)

A fala do professor também corrobora o heterossexismo “entendido como uma concepção de mundo que hierarquiza e subordina todas as manifestações da sexualidade a partir da ideia de ‘superioridade’ e de ‘normalidade’ da heterossexualidade” (Rios, 2010, p. 39). Nardi (2010) destaca, em relação a esse conceito, que ele se funda na noção de complementaridade entre a masculinidade e a feminilidade e entre os genitais definidos como femininos e masculinos. Todavia, é necessário destacar que as concepções de gênero e sexualidade das(os) professoras(es), as quais fundamentam as respectivas práticas, são pautadas nos preconceitos, normas e valores presentes nos contextos culturais e históricos em que eles se constituíram como sujeitos. Diante disso, temos que tomar o cuidado de compreender as práticas heterossexistas como efeito do processo de naturalização da heterossexualidade como uma norma que institui o que é considerado como um modo saudável de ser e estar no mundo.

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3.3 • Implicações da concepção heteronormativa nas práticas pedagógicas As informações obtidas na pesquisa evidenciaram que a concepção heteronormativa de sexualidade medeia com bastante influência as ações pedagógicas dos docentes entrevistados. Essa questão foi identificada na busca dos profissionais por estratégias voltadas à pedagogização dos comportamentos dos jovens com base em normas sexistas de gênero, bem como pela culpabilização individual pelos efeitos da sexualidade. Abaixo apresentamos alguns depoimentos que evidenciam a forma como isso ocorre: E, aí, eu digo pra eles: melhor você indo devagarinho, curtindo a infância, a adolescência, usando a camisinha, descobrindo as coisas que tem que descobrir, pra depois encontrar a mulher ideal, saber que com ela pode ter uma relação segura, desde que não fique traindo, trazendo doença de fora pra dentro da família (José, professor de Ciências). Porque dentro da geografia eu trabalho com a parte de planejamento familiar, com IDH, né? Que é o Índice de Desenvolvimento Humano, com população (...) Então, eu sempre busco, eu sempre estou amarrando as questões da geografia junto com a prática deles, com o dia a dia deles. Até porque se tem (...) Aqui nessa escola, a vida sexual inicia muito cedo. Onze, doze anos já tem gestante, né? Em sala de aula mesmo, tu já vê os comportamentos. Então, eu estou sempre puxando pra esse assunto (Nina, professora de Geografia). E também, quando eu dou conselhos e quando converso com eles, eu tomo muito cuidado para não causar muita polêmica na cabeça deles. Eu tento conversar a coisa [sexualidade] de um jeito mais (...), eu não sei como eu posso dizer isso, assim: (...) eu tento conversar de uma forma mais educativa para não chegarem em casa muito apavorados (Cristina, professora de Português).

As falas acima apresentam alguns elementos que devem ser destacados. O primeiro deles se refere à instituição de uma norma acerca da feminilidade, pela qual se acredita que há um

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padrão de mulher ideal a ser buscado pelos rapazes para o casamento. Isso pode produzir como efeito a ideia da construção de “desvio de comportamento” das mulheres que não se comportam de acordo com o esperado, as quais, conforme aponta o subtexto do segundo depoimento, podem engravidar e contribuir para piorar o IDH do país, já que o desenvolvimento humano deve ser buscado com o planejamento familiar. Já em relação aos meninos, o subtexto dos depoimentos acima indica que, além de saber escolher uma mulher que está de acordo com um ideal constituído com base em normas de gênero sexistas, esses devem ser responsáveis pela própria saúde, buscando descobrir “as coisas que têm que descobrir” (até para legitimarem as próprias masculinidades) utilizando preservativo. Destaca-se que essa expectativa de que o adolescente tenha total responsabilidade pelos próprios atos é antagônica à forma como muitos dos educadores entrevistados afirmaram lidar com a sexualidade no contexto da sala de aula em que, por razões variadas (medo do que as famílias vão pensar, medo de incitar processos precocemente), deixam de abordar a temática com base no que os documentos oficiais propõem. Todas as falas acima apresentam a sexualidade na adolescência como uma coisa perigosa, que deve ser gerida cuidadosamente para evitar possíveis consequências caracterizadas como indesejáveis. O medo de abordar a temática da sexualidade e provocar tanto a ira dos pais, quanto a antecipação dos processos de sexualização dos jovens, é um dos principais temores das(os) professoras(es). A insegurança ao tratar o tema foi identificada em pesquisas realizadas por outros autores, como Toneli (2004), Avila, Toneli e Andaló (2011). Essa perspectiva acerca da sexualidade foi identificada também por Foucault (1988), quando esse autor sinaliza que há, nas sociedades ocidentais, a busca pela construção de mecanismos de regulação da sexualidade e que essa deve ocorrer somente no interior do casal heterossexual e ser voltada à reprodução.

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Por fim, os depoimentos também evidenciam que existem normas que regulam o que pode ou não ser dito e que são reproduzidas mesmo não estando em consonância com o que sinalizam os documentos oficiais sobre o tema (PCNs, Política Brasil sem Homofobia, Programa Saúde e Prevenção das Escolas). Outra prática, efeito da heteronormatividade, refere-se ao posicionamento contra atividades propostas para a inclusão da diversidade sexual e de gênero na escola. Nesse sentido, o professor Paulo se posicionou contra a ação da escola onde trabalha de expor, no pátio em que os alunos de todas as idades circulam, os cartazes referentes ao V Concurso de Cartazes sobre Homofobia, Transfobia, Lesbofobia e Heterossexismo, evento que vem ocorrendo há cinco anos no município. Segundo ele, esse material não deveria ficar acessível a todos os estudantes, independentemente da idade deles, concordando com o fato de muitos pais terem reclamado sobre o ocorrido. A fala evidencia o que Borges e Meyer (2008) caracterizam como pânico moral com a possibilidade de os alunos serem influenciados a se tornarem homossexuais desde a tenra idade. Além disso, observou-se que algumas(ns) professoras(es), com base em uma perspectiva voltada à democracia sexual (Fassin, 2009), consideram importante que questões ligadas à diversidade sexual e de gênero sejam abordadas na escola. No entanto, esses têm muitas dificuldades em implementar estratégias para isso, pelo fato de os contextos em que atuam terem princípios morais e religiosos – os quais corroboram o discurso heteronormativo – muito presentes no cotidiano. Nesse sentido, alguns entrevistados defendem uma prática voltada ao acolhimento da diversidade sexual e de gênero, manifestando preocupação com o possível sofrimento vivenciado pelos alunos que fogem ao padrão heteronormativo. Isso pode ser evidenciado no depoimento do Carlos, professor de Geografia, o qual apresentou conhecimento bastante amplo sobre o papel do movimento LGBT na garantia de direitos. Também destacou a necessidade de rompermos com a ideia

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de superioridade do homem em relação à mulher. Todavia, o subtexto da fala dele evidenciou medo de discutir essa questão junto aos alunos pelo risco de eles pensarem que ele é homossexual. Ele destaca: “Mas eu vejo que a maior dificuldade não seria da minha parte, acho que seria dos alunos, de receber, né? Porque podem entender que está fazendo alusão, né? ‘Ah, por que ele está querendo debater isso?’” Por fim, as informações obtidas na pesquisa evidenciam a presença da violência normativa. Destaca-se que essa é caracterizada como a violência das normas de gênero e sexualidade. A violência normativa é primária em um duplo sentido: ela permite a ocorrência da violência secundária que então consideramos como típica, e serve para apagar essa última. Ou seja, a violência normativa exercida ‘antes’ da violência cotidiana/rotineira invisibiliza-a, torna-a inexistente (Toneli e Becker, 2010, p. 6).

Diante da violência normativa exercida pela heteronormatividade e dos efeitos produzidos a partir dela, emerge o desafio de se construírem práticas pedagógicas destinadas ao rompimento dela no cotidiano escolar. Daí, surge a seguinte questão: Como construir processos educativos para a desconstrução dos binarismos e polaridades hierarquizadas reproduzidos no cotidiano escolar? Sem ter a pretensão de esgotar essa questão, no próximo tópico propomos alguns subsídios teórico-metodológicos que poderão contribuir com esse processo.

4 • Alguns pressupostos teórico-metodológicos para a formação de professoras(es) em educação e sexualidade A pesquisa apontou importantes resultados para se pensar a construção de processos educacionais voltados à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito da educação brasileira. Um deles é que os profissionais entrevistados, mes-

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mo quando tinham vontade de realizar trabalhos no âmbito em questão, sentiam-se despreparados para justificar a implementação destes. Isso mostra a relevância de que os programas de formação no âmbito da sexualidade ocorram já na formação inicial e que estes oportunizem o acesso aos principais documentos norteadores da atuação dos educadores no contexto da sala de aula. Acredita-se que o conhecimento da legislação destinada à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos pode instrumentalizar os educadores para lidarem com situações de tensão relacionadas aos muitos preconceitos e discriminações que atravessam e constituem as relações sociais na escola. Todavia, ressalta-se que ele é necessário, mas não suficiente para garantir a efetivação desses direitos. Destaca-se, com base nos resultados da pesquisa, que as políticas públicas voltadas à formação de educadores no âmbito do gênero e da sexualidade, as quais se propõem a nortear as práticas educativas, por mais que tenham como objetivo a garantia dos direitos humanos, podem se tornar “impermeáveis” se não tiverem o olhar para a subjetividade. Isso porque as (os) professoras(es) são sujeitos que se constituem atravessados por concepções de sexualidade higienistas e heteronormativas que – considerando a indissociabilidade das dimensões do pensar, sentir e agir – vão constituir as respectivas práticas educativas em sala de aula. Diante disso, um dos grandes desafios dos programas de formação inicial e continuada de docentes é o de criar dispositivos que tenham como foco o resgate da história de educação sexual vivenciada pelos educadores e os múltiplos atravessamentos, bem como a ampliação da percepção dos efeitos dessas concepções nas práticas pedagógicas. Nesse sentido, experiências anteriores (Gesser, Mello e Stuker, 2014) realizadas a partir do Programa Gênero e Diversidade na Escola evidenciaram a importância da utilização, nos programas de formação de professoras(es), de dispositivos que oportunizem aos educadores o resgate das trajetórias de educação

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sexual, bem como a identificação da forma como essas concepções são reproduzidas de forma naturalizada nas práticas pedagógicas. A estratégia de partir das situações relacionadas à sexualidade vivenciadas pelas(os) profissionais nos locais de trabalho também se mostrou bastante profícua na experiência acima citada. Outra importante questão a ser trabalhada no âmbito da formação de educadores se refere à interseccionalidade entre as questões de gênero, raça, orientação sexual, deficiência e demais marcadores sociais. Isso demanda uma abordagem transversal dessas questões no contexto pedagógico, tendo como norte o rompimento com a naturalização e biologização dessas questões, o que acaba por construir polaridades hierarquizadas, as quais corroboram a transformação das diferenças em desigualdades. Por fim, ressalta-se que, por meio da essencialização das masculinidades e feminilidades com base nos binarismos e fundamentalismos, ratifica-se a diminuição da capacidade de agência dos sujeitos da educação, tornando-os vulneráveis a diferentes formas de violência. Isto posto, destaca-se o caráter ético e político presente na construção de processos educativos voltados à inclusão das diferentes formas de os sujeitos expressarem o gênero e a sexualidade.

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Capítulo 6

O(s) gênero(s) da universidade: das hierarquias e das possibilidades Paula Sandrine Machado Henrique Caetano Nardi

1 • Preâmbulo As hierarquias relativas ao gênero e as expressões da sexualidade são produto de relações de poder. A universidade, apesar de ser um substantivo feminino, performativamente, ainda se mantém como uma instituição de reafirmação das desigualdades associadas à cisheteronormatividade¹ sexista e elitista. Esta constatação não remete ao imobilismo, mas à luta pela equidade, pois o espaço universitário é uma arena de disputas. Além disso, não se trata de um ambiente homogêneo e, apesar de se caracterizar por um movimento interno lento, existe atualmente um tensionamento produzido pelos movimentos sociais na associação com pesquisador*s que lutam pela igualdade de direitos, pelo justo acesso e permanência na universidade, assim como pela democracia na distribuição de postos, recursos e pelo respeito à diversidade epistemológica no ensino superior. Sinais desse processo podem ser percebidos, por exemplo, na crescente feminização do corpo docente e discente em diversas áreas do conhecimento. Entretanto, basta olharmos para as posições de direção das instituições de ______________________________________________________________________

¹ O conceito de heterocisnormatividade remete à norma relativa à orientação sexual, identidade de gênero e atribuição de sentido aos corpos, a qual situa a heterossexualidade e a cisgeneridade como “normais” e as demais formas de expressão da sexualidade (homo, bi, assexuais, entre outras) e de identificações e atribuições de sentido aos corpos (travestis, transexuais, não binári*s, etc.) como mais ou menos distantes deste “normal”. Esta distância depende da legitimidade social das práticas, expressões e corpos. Cabe lembrar que, no interior das heterossexualidades (e das não-heterossexualidades) e das cisgeneridades (e das travestilidades/transexualidades), há também hierarquias da normalidade ligadas à moral (fidelidade, monogamia, etc.) e às lógicas de adequação corporal/ expressões de gênero, como aquelas presentes nos critérios de passabilidade para pessoas trans. Cabe, ainda, indicar que cisgeneridade pode ser definida como uma expressão que remete àquel*s que se identificam/construíram o próprio gênero de acordo com o sexo que lhes foi atribuído ao nascer.

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ensino do tipo brasileiras, para percebermos que as reitorias, pró-reitorias, direções de centros, departamentos e unidades ainda são, em grande maioria, ocupados por homens brancos, supostamente heterossexuais, sobretudo nas universidades de maior prestígio. Situações de discriminação, violência e expressões do preconceito associados à intolerância em relação à diversidade sexual e de gênero fazem parte do cotidiano universitário, sendo que os ritos de entrada – os chamados trotes – são uma forma de marcação simbólica de lugares na hierarquia universitária, além de uma legitimação de expressões heterocisnormativas e uma deslegitimação da diversidade (Nardi et al, 2013; Costa et al, 2015). Apesar dos avanços recentes que envolvem a denúncia de situações de discriminação e que, em alguns casos, levou à punição, o cenário nacional é inquietante em razão de uma reação conservadora em múltiplos planos, sobretudo no campo dos direitos humanos no que tange à igualdade de direitos e políticas específicas. O saber científico tem sido deslegitimado no Congresso Nacional e em instâncias múltiplas de representação política em nome da religião, de uma suposta “tradição”, muitas vezes invocando seletivamente argumentos da “natureza”. Buscando delinear algumas tensões e avanços no cenário atual a partir de nossa experiência, propomos uma discussão das transformações internas ao contexto universitário, assinalando o papel fundamental da ação política e do saber construídos no contexto acadêmico em parceria com os movimentos sociais no reconhecimento da diversidade de constituição do humano.

2 • O contexto universitário e as questões LGBTT Esse tema remete, entre outros elementos, ao espaço que a universidade oferece (e que construímos) para discutirmos as questões de gênero e diversidade sexual, bem como ao

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debate sobre o acesso e permanência da população LGBTT na instituição de ensino superior. Mais amplamente, impõe pensar que espaço a universidade oferece para problematizar e desmantelar a lógica que a organiza, aquela que supõe uma distribuição diferenciada e hierarquizante das posições sociais (Nardi et al, 2013). Essa lógica naturalizada reitera desigualdades, distribui e naturaliza privilégios, assim como autoriza uma série de violências perpetradas cotidianamente, entre as quais podemos situar aquelas que envolvem a diversidade de gênero, da sexualidade e do corpo sexuado. Essas questões são centrais para a vida universitária. Assim, dependendo das escolhas ético-políticas de uma instituição, podem-se abrir ou fechar caminhos, ampliar ou restringir potencialidades. Historicamente, a universidade tem sido uma instituição marcada como um espaço de reprodução das elites, sobretudo em sociedades altamente desiguais e hierárquicas como a brasileira. Assim, no Brasil, foi construída ao longo de uma história de reiteração das violências, as quais impedem ou restringem fortemente o acesso e a permanência de determinados grupos na academia. Frente a uma série de resistências institucionais, bem como ao preconceito e à discriminação em relação ao gênero e à sexualidade vivenciados todos os dias no contexto universitário, o lançamento de iniciativas tão importantes como a Campanha de Sensibilização e Conscientização sobre o Uso do Nome Social e dos Banheiros na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) é um exemplo a ser seguido². O evento de lançamento de tal campanha, que ocorreu nos dias 24 e 25 de setembro de 2015 (ocasião em que foi trazido o debate realizado no presente texto pela primeira autora), interpela-nos e também nos faz perguntar: o que conquistas e eventos ______________________________________________________________________

² A campanha “Meu nome importa” objetiva sensibilizar e conscientizar a comunidade acadêmica UFPE sobre a importância de respeitar o uso do nome social e uso do banheiro. Está em consonância com a portaria normativa três, de 23 de março de 2015, que regulamenta a política de utilização do nome social e uso do banheiro para as pessoas que se denominam travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais. A campanha foi elaborada pela Pró-Reitoria de Comunicação, Informação e Tecnologia da Informação (Procit), em parceria com a Diretoria LGBT e com alunos e alunas trans e travestis da Universidade.

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como esses nos dizem do lugar que as questões de gênero e sexualidade ocupam institucionalmente nas diferentes universidades? Elas se inscrevem no horizonte ético-político dessas instituições? De que modo? O compromisso com políticas de inclusão, assumido pelas universidades, supõe quais sujeitos para inclusão? Inclusão significa o quê? Incluir na norma existente ou a inclusão pressupõe alterar essa mesma norma? Da política institucional às praticas cotidianas, quais hierarquias são forjadas? Como operam as violências mais ou menos explícitas? Para aqueles e aquelas que acabam acessando a universidade, ela se oferece como espaço seguro? Dito isto, é importante tomar posição nesse debate, reconhecendo que não há neutralidade possível de onde possam partir nossas análises. Fazemos isso, portanto, a partir da experiência com algumas ações que temos nos envolvido como núcleo de pesquisa (Nupsex - Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero) e programa de extensão (CRDH - Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de Gênero, Diversidade Sexual e de Raça). Situando nossa escrita, é importante localizar que a primeira autora vem trabalhando academicamente nos últimos anos com o tema da intersexualidade, gerenciamento sociomédico e cotidiano desta, trabalho realizado com um forte envolvimento e compromisso ético e político com o tema, a partir de uma perspectiva crítica em relação às cirurgias desnecessárias e não consentidas em crianças que nasceram com corpos que os padrões de normalidade biomédicos classificam como “ambíguos” ou “incompletos”. O segundo autor tem trabalhado com as transformações no interior do dispositivo da sexualidade (Foucault, 1976) e a forma como as disputas pela legitimação dos discursos têm se dado no campo das políticas públicas, sobretudo, saúde e educação. As ações e pesquisas de ambos têm se dado a partir de uma aliança permanente com os movimentos sociais LGBTT. A primeira autora faz parte do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como docente, desde 2010, e o segundo desde 2002. Ambos integram o Nup-

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sex e o CRDH. No Nupsex, temos trabalhado com pesquisas que enfocam diferentes temáticas no campo dos estudos de gênero e de sexualidade, desde uma perspectiva interseccional (Crenshaw, 2012; Silveira e Nardi, 2015), ou seja, entendemos que diferentes marcadores sociais de diferença como gênero, sexualidade, raça e classe se atriculam posicionando os sujeitos socialmente, subjetivando-os e situando as pessoas em lugares de maior ou menor vulnerabilidade, maior ou menor precariedade, maior ou menor legitimidade. No Nupsex, assumimos nosso compromisso político com essas questões e muitos alunos e alunas se juntaram a nós motivados e motivadas por isso. Em alguns casos, talvez também porque aquele era justamente um espaço mais seguro na Universidade, mais protegido das inúmeras violências sofridas e onde se falava abertamente do preconceito e da discriminação como algo muito concreto que deve ser combatido, analisado, denunciado. O Nupsex também foi, para muitas e muitos que por ali passaram e seguem passando, um espaço potencializador para poderem ensaiar o que começamos a chamar de “terrorismos” cotidianos (que, de fato, constituem contra-terrorismos, uma vez que busca-se com eles desconstruir combatendo o terror imposto pela norma cisheterossexual), ou seja, verdadeiros enfrentamentos em sala de aula, dentro ou fora da Universidade, em relação a diferentes formas de preconceito e discriminação e à naturalização delas tanto nos conteúdos dados em aula, como nas conversas com colegas e professoras(es), em casa, com amigos e amigas, etc. Muitas demandas chegam ao Nupsex, seja na forma de convites para oferecermos oficinas em escolas, atividades de formação em diferentes contextos institucionais, até pedidos de ajuda e orientação em relação a diversas situações de violação de direitos vivenciadas dentro e fora da Universidade. Montamos, então, a partir da identificação dessas demandas, o CRDH - Centro de Referência em Direitos Humanos, Relações de Gênero, Diversidade Sexual e de Raça, que é um programa de extensão financiado pelo PROEXT e que foi formaliza-

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do como atividade de extensão em 2012 (embora a pauta de ações tenha começado anteriormente, em projetos iniciados em 2003, mais direcionados à questão da violência contra as mulheres). O Centro de Referência tem atuado principalmente em quatro eixos de atividades: 1) acolhimento para pessoas vítimas de preconceito em relação ao respectivo gênero, sexualidade e/ou raça; 2) auxílio para a troca do registro do nome civil de pessoas transexuais; 3) capacitação dos profissionais da rede de serviços da área da educação, saúde, assistência e segurança em relação à temática de gênero, diversidade sexual, identidade de gênero e a interseccionalidade racial; 4) formação com estudantes de ensino fundamental e médio sobre os temas que temos trabalhado. A produção do CRDH pode ser acessada livremente online em dois livros editados pela equipe de coordenação do centro (Nardi, Silveira e Machado et al, 2013; Nardi, Machado e Silveira, 2015³). Dentre as ações do Centro de Referência e do Nupsex, é importante destacar nossa parceria com o grupo G8 Generalizando, do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS, e com a organização não governamental Igualdade - Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul. Por meio dessa parceria, é que temos produzido pareceres psicossociais para os processos de retificação do registro civil de transexuais desde uma perspectiva alinhada com a luta pela despatologização das transexualidades. Tivemos também participação no processo de construção da política de uso do nome social da UFRGS. A partir de um parecer solicitado pela Reitoria da UFRGS, elaborado pela equipe do Nupsex e CRDH, em razão de uma demanda do Diretório Central de Estudantes da UFRGS ao Conselho Universitário, criou-se uma comissão para elaboração da proposta de regulamentação da política de uso de nome social para pessoas trans* no âmbito da Universidade. Em reconhecimento ao nosso trabalho, a ______________________________________________________________________

³ Disponíveis, respectivamente, em: e

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Reitoria solicitou que indicássemos membros para a comissão. Assim, a primeira autora e Eric Seger, que faz parte do Nupsex como bolsista de iniciação científica e é integrante do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT), compuseram a comissão, formada em junho de 2014. Discutiremos essa ação mais adiante. Finalmente, no que se refere à prática docente, no curso de Graduação em Psicologia, o segundo autor criou, em 2009, a disciplina “Gênero e Sexualidade nos Modos de Subjetivação Contemporâneos”, que é ministrada, desde 2010, pela segunda autora. Trata-se de uma disciplina eletiva para a Psicologia e que é aberta para outros cursos, sendo uma das poucas disciplinas para a graduação no formato interdisciplinar e que aborda a discussão da diversidade sexual e de gênero na UFRGS. Ambos temos oferecido disciplinas na pós-graduação que giram em torno dessas temáticas, destacando que a primeira disciplina foi oferecida em 2006, no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional, inaugurando a linha de trabalho que veio a originar o Nupsex, temática inexistente até então no Instituto de Psicologia (ver tese de Martha Narvaz, 2009) desde uma perspectiva crítica aos essencialismos biológicos e psicológicos e às naturalizações e às produções normativas no campo do gênero e da sexualidade. Ou seja, a temática estava presente no currículo, mas como forma de reiteração da norma, especialmente nas perspectivas do desenvolvimento típico/atípico (eufemismos para normal e patológico), no campo da psicologia do desenvolvimento, e nas hierarquias criadas em torno do édipo no campo da psicanálise. Considerando todas essas questões, trabalharemos com o argumento de que a educação é um sistema epistemológico-político. Um sistema que, como tal, produz efeitos muito concretos na vida das pessoas, ao criar barreiras, limitar percursos e legitimar/deslegitimar saberes. Nesse sistema, as universidades, assim como outros estabelecimentos de ensino brasileiros, estão atravessadas por marcadores sociais de diferenciação, tais como classe, raça, gênero, território e sexualidade.

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Para pensar a educação como esse sistema epistemo-político, que produz corpos e que participa da construção de gêneros e sexualidades, tomaremos em análise algumas frases de professores e professoras da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, local onde uma primeira versão deste texto foi apresentada pela primeira autora. As falas, com conteúdo sexista, homofóbico, transfóbico e racista foram coletadas e expostas pelos alunos e alunas do curso nos corredores da instituição, nas portas das salas de docentes, nas portas dos banheiros, etc. Citaremos quatro dessas frases, proferidas por professores e professoras, para dar um panorama do que estamos falando: 1) “Tanta coisa importante e tu quer perder meu tempo com essas coisas de feminismo e gênero”; 2) “Isso de racismo já ‘tá manjado, todo mundo já sabe”; 3) “Na época, a gente chamava de putão mesmo, não tinha essas frescuras de nome que tem hoje”; 4) “O feminismo ‘tá tirando o papel de protetor do homem”4. Essas frases, embora proferidas na FABICO, não são exclusivas desse local e remetem a muitos elementos que constituem o espaço universitário e que buscaremos rapidamente abordar: os trotes, a ambiência da sala de aula, com conteúdos muitas vezes sexistas, homofóbicos e transfóbicos, a dificuldade de acesso de pessoas trans e travestis à universidade. E, finalmente, uma questão mais epistemológica: as hierarquias e exclusões quando se trata de reconhecer os saberes produzidos fora da universidade (e/ou a posicionalidade dos diferentes saberes na hierarquia internas às ciências também), criando uma dicotomia entre aquelas(es) que estudam e que podem ocupar lugares de fala acadêmicos e aquelas(es) que são a estudadas(os) e acabam se constituindo como os objetos dessas falas. ______________________________________________________________________

Os registros fotográficos da intervenção realizada, com algumas das frases expostas na FABICO, podem ser conferidos na página criada para o evento III Semana da Diversidade Sexual e de Gênero da FABICO, disponível em: . 4

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Em um artigo que escrevemos com Frederico Viana Machado e Letícia Zenevich, publicado no ano passado, que chamamos “O ‘Armário’ da Universidade: O silêncio institucional e a violência, entre a espetacularização e a vivência cotidiana dos preconceitos sexuais e de gênero” (Nardi et al, 2013), analisamos algumas “observações do cotidiano” e narrativas de experiências de estudantes e professoras(es) que ocorreram no âmbito da UFRGS. O conteúdo do que analisamos se aproxima muito ao das frases mencionadas acima. No nosso caso, selecionamos aquelas situações que foram identificadas por nós como “situações-chave” e/ou “casos-exemplares” da (re)produção da intolerância em relação à diversidade sexual e de gênero na universidade. Tais cenas e narrativas foram acessadas por meio das atividades do Centro de Referência e da equipe do Nupsex, as quais envolviam, entre outras, a observação dos trotes na UFRGS e o acolhimento de denúncias de violência e discriminação associadas às expressões de gênero e sexualidade dentro ou fora do espaço universitário. O que apontamos em nosso artigo, que está disponível na Revista Teoria e Sociedade online, é que há uma violência do cotidiano, que remete à manutenção da norma por meio da demarcação dos espaços nos quais se pode falar de sexualidade e de gênero e dos espaços onde a cisheteronormatividade impera, naturalizando as relações de gênero e a hierarquia sexual. Conforme descrevemos no artigo, vemos, por exemplo, a celebração da heterossexualidade articulada ao sexismo nos inúmeros cartazes de festas organizadas pelos Diretórios Acadêmicos. Indicamos, ainda, em nosso texto, uma série de relatos discriminatórios e de “silenciamento das diferentes expressões de gênero e da sexualidade que habitam a universidade, momentos nos quais a disciplina e o controle se articulam” (Nardi et al, 2013, p. 190). As piadas, os risos, os trotes - que são extremamente violentos na imposição das estratégias de dominação moral da cisheterossexualidade - marcam, assim, a ocupação do espaço universitário pelo preconceito. Além disso, assim como descrito

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no artigo, os cartazes que foram espalhados pela FABICO reforçam que os casos de preconceito e discriminação também envolvem, frequentemente, atitudes e falas de docentes, pessoas que “representam o discurso oficial acerca dos saberes institucionais e que não raro servem de modelo identificatório para muitos alunos e muitas alunas” (Nardi et al, 2013, p. 191). A pesquisa realizada por Angelo Brandelli Costa e Henrique Nardi, ambos do Nupsex, divulgada no ano passado e publicada neste ano (Costa et al, 2015), também levanta alguns achados nessa direção. A pesquisa, sobre atitudes e crenças relacionadas à orientação sexual e identidade/ não conformidade de gênero dirigida ao corpo discente da graduação da UFRGS, buscou mapear o preconceito presente na Universidade entre os e as discentes. Aproximadamente 30% dos alunos e das alunas da UFRGS responderam à pesquisa, ou seja, 8.184 pessoas. Houve representação de todos os cursos. Considerando o universo dos e das respondentes, a análise indicou que 12,17% apresentam nível mínimo de preconceito, o que, segundo os pesquisadores, é preocupante, uma vez que a escala utilizada na pesquisa avalia o preconceito explícito a partir de afirmativas de extrema sensibilidade como: “Travestis me dão nojo”, “Homens e mulheres deveriam ser proibidos de mudar de sexo”, “O casamento entre mulheres lésbicas deveria ser proibido”, “Sexo entre dois homens é totalmente errado”. Dois outros achados são também importantes: um deles é que a permanência na universidade não contribui para a diminuição do preconceito (não há um aumento, mas a vivência universitária também não produz uma mudança nesses padrões de preconceito). O outro dado, que parece muito relacionado a esse, é que quase 70% das pessoas relataram nunca ter realizado formação ou assistido alguma aula, palestra ou atividade relacionada a gênero, identidade de gênero, sexualidade ou diversidade sexual na instituição. Tal achado é alarmante, considerando, como indicado anteriormente, o compromisso da universidade com políticas de inclusão e a existência de diversos núcleos e organizações de estudantes envolvidos com as questões de diversidade sexual, de gênero e de direitos humanos na instituição.

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No contexto dessas discussões, destacamos ainda que apenas em dezembro do ano passado a UFRGS aprovou uma Política de Uso de Nome Social para Pessoas Travestis e Transexuais. O grupo que elaborou a proposta de regulamentação desta medida partiu das já existentes, e almejamos avançar em alguns pontos, tentando considerar o maior número possível de situações em que as pessoas poderiam ter problemas, como espaços segregados por sexo, espaços de publicização do nome, nos documentos ou comprovantes fornecidos pela Universidade. Propusemos a eliminação do critério de idade mínima para requerer o uso do nome social e também sugerimos que não fosse necessário incluir nas informações das pessoas cadastradas na UFRGS o campo “sexo”. Conversamos muito sobre o comprovante de matrícula dos alunos e das alunas e outros documentos que, embora oficiais e de uso não exclusivamente interno, deveriam ser emitidos pela Universidade com o nome social, na medida em que há toda uma discussão jurídica em torno disso. A política e todo o debate levantado ao redor dela foi evidentemente uma conquista, já que os alunos e as alunas transexuais e as alunas travestis passavam por constrangimentos explícitos na Universidade relacionados ao uso do nome e ao desrespeito à respectiva identidade de gênero. No entanto, algumas discussões ainda ficam em aberto, o funcionamento da política ainda possui limitações próprias, pois há ainda muita falta de informação, há muito cissexismo institucional, o que submete as pessoas a processos ainda muito problemáticos (ouvimos queixas, por exemplo, de manutenção do nome de registro civil em plataformas de educação a distância, como o Rooda, e sobre os mal-entendidos nos setores que precisam realizar os acertos no sistema virtual). O comprovante de matrícula ainda tem sido emitido com o nome de registro, pois talvez nem seja informado que a pessoa pode solicitar essa alteração. Recebemos queixas de alunas e alunos em Programas de Pós-Graduação, que também não incorporaram e/ou desconhecem a política.

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Além disso, a implementação da política não parece ter vindo acompanhada de um incremento em atividades de formação, com professores, professoras, técnicos, técnicas e/ou corpo discente, ou de uma discussão sobre outros aspectos, como, por exemplo, a problematização das divisões de banheiros por sexo, presente em praticamente todas as unidades da UFRGS, a questão do uso dos vestiários ou o respeito ao nome social e aos pronomes correspondentes no cotidiano mesmo da universidade: nas salas de aula, em eventos, nos corredores. Inclusive, a necessidade de promover esses debates e essas formações tem sido uma das nossas preocupações e pautas no Nupsex e no Centro de Referência. Ou seja, já que participamos da construção da política, como poderíamos contribuir ativamente na direção da plena implementação dela? O que observamos, então, é que o cissexismo institucional é ainda mais avassalador. O cissexismo habita os corredores da universidade, as salas de aula, os conteúdos das disciplinas e hierarquiza lugares de fala. Entendemos cissexismo, de forma bem resumida, a partir da definição de Eric Seger e Henrique Nardi, como um sistema hierárquico fundamentado na noção de que há uma associação naturalizada e regulatória entre determinadas configurações corporais/anatômicas e um gênero, a qual classifica outras formas de viver ou de se expressar como inferiores ou anormais (Seger de Camargo e Nardi, 2014). Na área da saúde, por exemplo, multiplicam-se perspectivas que patologizam a diversidade no que se refere às expressões de gênero e da sexualidade, que reforçam uma compreensão do corpo sexuado a qual reitera violações, como no caso das transexualidades e das travestilidades, mas também no das intersexualidades. Não são poucas as escalas, os exames e as teorias que insistem em definir o que é ser mulher e o que é ser homem, qual a natureza, a biologia e a constituição psi. E esses mesmos parâmetros não cansam de colocar alguns corpos e formas de expressão do gênero e da sexualidade fora da curva considerada normal. No que se refere à intersexualidade,

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por exemplo, são quase inexistentes espaços na universidade, ou mesmo no hospital universitário, em que questionemos o caráter violento e violador de diagnósticos médicos que enquadram e buscam normatizar a diversidade corporal, mutilando corpos intersex em nome de certa norma corporal que supõe que a um determinado corpo deve corresponder uma determinada identidade (para uma análise do gerenciamento sociomédico da intersexualidade em um contexto hospitalar no Sul do Brasil, ver Machado, 2008). No que se refere a transexuais e travestis, a educação de forma geral ainda é um lugar de muitas violências. Em uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh) da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenada pelo professor Marco Aurélio Prado, foram entrevistadas 141 travestis e transexuais e os dados são alarmantes. De 138 pessoas que frequentaram a escola, quase 60% estudaram até o terceiro ano do Ensino Médio, mas apenas 6,5% ingressaram na universidade e apenas 2,2% concluíram o Ensino Superior. Esses dados falam de contextos de vulnerabilidade e também da “escassez de políticas públicas e/ou de instituições que visem à garantia de direitos” das pessoas trans, como apontado no relatório da pesquisa (Prado, 2015). Os dados são de Minas Gerais, mas certamente servem para refletirmos sobre outros contextos brasileiros.

3 • Concluindo Se é verdade que existem transformações recentes nas diversas instâncias dos sistemas e práticas educacionais como a introdução das cotas étnico-raciais e para estudantes de escola pública -, a universidade ainda está longe de ter enfrentado amplamente a própria estrutura de privilégios, na qual o cissexismo, o heterossexismo, o sexismo e o racismo ainda desempenham um papel fundamental.

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Uma daquelas frases coletadas na UFRGS, na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, dizia: “A academia não é lugar pra militância.” Respondemos a ela com uma citação de Angela Davis, professora da Universidade da Califórnia, ativista feminista que integrou o coletivo Panteras Negras nos anos 1970. Em uma entrevista realizada e publicada em 2012, no Brasil5, ela afirma: “É importante que acadêmicos treinados na estrutura da universidade reconheçam o conhecimento produzido para além das fronteiras dessas instituições. O feminismo, tanto no âmbito acadêmico, mas também como metodologia de luta, enfatiza um tipo de interdisciplinaridade. O conhecimento acadêmico deve estar em diálogo constante com as formas de luta.” A academia é, nesse sentido, sim, mais um lugar de luta. E, para algumas pessoas, essa luta é urgente, constante, pois significa a própria sobrevivência. Na ocasião de uma das aulas do semestre passado da disciplina de Gênero e Sexualidade nos Modos de Subjetivação Contemporâneos, cujo tema era “Ciência e Produção do Corpo Sexuado”, duas alunas fizeram uma performance. Ofereceram os próprios corpos nus, manchados por sangue, ao escrutínio do nosso olhar. Recitaram um texto impactante para a turma que observava paralisada. Denunciavam, camada por camada, nossos lugares de conforto: conforto que, de certa forma, tornava aquele espaço universitário que compartilhávamos, ainda que crítico, cúmplice dessa ciência que normatiza os corpos, os desejos, os modos de expressão do gênero e da sexualidade. Quando acabaram de declamar o texto, as alunas saíram da sala de aula em um rompante, correndo pelos corredores da Faculdade de Educação, numa manhã de quinta-feira, fazendo muito barulho. De fato, a resistência não tem como não ser ruidosa. Um professor, autor de outra das frases registradas pelos alunos e pelas alunas da UFRGS, disse: “A parada gay é barulhenta demais.” Com essa frase, temos que concordar. A “parada gay” é barulhenta demais, assim como foi ______________________________________________________________________

Conferir a entrevista, disponível em: . 5

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a performance que relatamos. O transfeminismo, o feminismo interseccional, as vozes dissidentes também são. E, quanto a isso, felizmente não há saída senão tapar os ouvidos, pois se e enquanto for preciso, não temos dúvidas de que o barulho será cada vez maior. Aqui, as panelas são outras!

Referências COSTA, A. B. et al. Prejudice Toward Gender and Sexual Diversity in a Brazilian Public University: Prevalence, Awareness, and the Effects of Education. Sexuality Research and Social Policy, v.12, n. 4, p. 261272, 2015. CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n.1, p. 177-188, 2002. FOUCAULT, M. Histoire de la Sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976 MACHADO, P. S. O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade. Tese (doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. NARDI, H. C. et al.. O Armário da Universidade: O silêncio institucional e a violência, entre a espetacularização e a vivência cotidiana dos preconceitos sexuais e de gênero. Teoria & Sociedade, n. 21, p. 179-200, 2013. NARDI, H. C.; MACHADO, P. S.; SILVEIRA, R. S. (Org.) Diversidade sexual e relações de gênero nas políticas públicas: o que a laicidade tem a ver com isso? Porto Alegre: Deriva/ Abrapso, 2015. NARDI, H. C.; SILVEIRA, R. S.; MACHADO, P. S. (Org.) Diversidade sexual, relações de gênero e políticas públicas. Porto Alegre: Sulina, 2013.

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NARVAZ, M. A (in)visibilidade do gênero na Psicologia acadêmica: onde os discursos fazem(se) política. Tese (Doutorado em Psicologia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. PRADO, M. A. M. Direitos e Violência na Experiência de Travestis e Transexuais Mulheres de Belo Horizonte. Relatório Descritivo de Pesquisa. Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT: Universidade Federal de Minas Gerais/Fapemig/CNPq, 2015. SEGER DE CAMARGO, E.; NARDI, H. C. Cissexismo e Heterosexismo na educação: uma análise a partir de materiais pedagógicos. Salão de Iniciação Científica, Porto Alegre, 2014. Anais... Porto Alegre: UFRGS, set. 2014, 26. SILVEIRA, R. S.; NARDI, H. C. Interseccionalidade e Violência de Gênero contra as Mulheres: a questão étnico-racial. In: MARTINS, H. et al. Intersecções em Psicologia Social: raça/etnia, gênero, sexualidades. Florianópolis: Ed. da ABRAPSO, 2015, p. 55-79.

Capítulo 7

Sexo entre homens em Suape: informações sobre práticas sexuais, prevenção e acesso à saúde Celestino Galvão Neto Benedito Medrado

1 • Introdução Este texto apresenta alguns dos resultados de pesquisa de uma dissertação de mestrado produzida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, cujo objetivo foi investigar comportamentos, atitudes e práticas sexuais e prevenção em saúde de homens que fazem sexo com homens (HSH) e residem na microrregião de Suape, no litoral de Pernambuco. Nas duas últimas décadas, o número de casos novos de Aids e a prevalência dela entre HSH permanece estabilizada em patamares elevados, apesar das várias iniciativas e esforços, governamentais e não-governamentais, para dar respostas a esse problema. Esta situação se deve, entre outras coisas, às condições em que HSH vivem a sexualidade, numa cultura tradicionalmente homofóbica que se inscreve em padrões morais, mas também em práticas institucionalizadas no campo da saúde que dificultam o acesso aos serviços públicos (Parker, 1991; Parker, 1998; Terto Jr., 2002). Tal situação se torna ainda mais complexa quando nos referimos a contextos de grande expansão econômica e sobre os quais temos poucas informações, como é o caso do Complexo Industrial Portuário de Suape (Galvão-Neto, 2013). A amostra foi composta por 200 homens que se referiam como HSH, com média de idade de 26 anos. Eles foram entrevistados em espaços de homossociabilidade e lazer, no município do Cabo do Santo Agostinho. O instrumento utilizado foi

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um roteiro estruturado em módulos temáticos que variavam em número de perguntas. Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e processados no Software SPSS (Versão 18). Buscando facilitar o entendimento e a visualização de como se deu a análise dos resultados e as discussões destes, optamos por dividir este texto em três tópicos. No primeiro deles, apresentamos características sociodemográficas dos estudados, em contexto específico de homossociabilidade. O segundo focaliza informações sobre sexo, orientação sexual, sexualidade e conjugalidade desta população, bem como sobre práticas sexuais e de prevenção em saúde. O terceiro e último analisa informações sobre acesso e uso dos serviços de saúde disponíveis na região, bem como identifica estratégias de prevenção promovidas por esses serviços.

2 • Características sociodemográficas Nossa amostra contou com 200 homens, com média de idade de 26 anos e desvio padrão de 7,26. As idades variaram entre 18 e 54 anos. A faixa etária predominante foi entre 18 e 25 anos, correspondendo a 53% dos sujeitos. Em relação à residência, 88% dos entrevistados informaram residir no município do Cabo de Santo Agostinho e 12% em Ipojuca. No que diz respeito ao local de nascimento, 37,5% disseram ter nascido no Cabo de Santo Agostinho, 21,5% em Recife e 41% em outros, tanto de Pernambuco (25,5%) como de outros estados do Brasil (15,5%). Essa primeira informação indica, de antemão, que embora residam na região de Suape, a maioria dos entrevistados (62,5%) não nasceu lá. Outra importante característica da população de HSH, bem como em outros estudos sobre a situação de saúde da população em geral, é a categoria de raça/cor. Apenas recentemente essa informação foi contemplada na ficha de notificação de casos de Aids. Sabe-se que há inúmeras variações quando essa informação é obtida por meio da autodefinição, da mes-

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ma forma quando a definição é realizada pelos entrevistadores. Pois, além das questões subjetivas que influenciam essas definições, deve-se considerar também a grande miscigenação de raças do Brasil. Qualquer tentativa de classificação não está isenta de problemas e possíveis questionamentos. Em relação à cor/raça, 44% dos entrevistados se definiram como pardos, 25,5% como brancos, 20,5% como pretos, 4,5% como indígenas e 2,5% como amarelos. Seguindo o padrão de classificação do IBGE, essa amostra apresenta um percentual de negros (pretos + pardos) de 64,5%. Vale ressaltar que, em nossa amostra, os “pretos” (20,5%) representaram um número percentual notavelmente maior do que o encontrado pelo Censo de 2010 para o município de Cabo de Santo Agostinho (8,89%). Ao analisar os resultados encontrados nesse quesito, observa-se que a soma das categorias de raça/cor parda e preta representa mais da metade da amostra (64,5%), diferentemente do estudo realizado no Sudeste do país, no qual a grande maioria (85%) se classificou como branco (Antunes, 2005). As divergências podem estar relacionadas, em parte, pelas diferenças das condições socioeconômicas encontradas no Sudeste e no Nordeste, mas também não se pode deixar de considerar aspectos relativos à colonização com diferentes padrões de imigrantes nas duas regiões, desde o século XVI. No que diz respeito à religião, a maioria disse ter sido criada nas religiões católica (60%) e evangélica (25%). No entanto, quando questionados sobre a religião que frequentam atualmente, a maioria (51,5%) disse não estar frequentando nenhuma. Já quanto ao nível de religiosidade, a maioria (47%) se disse moderadamente religiosa. Em relação à população masculina que reside no Cabo de Santo Agostinho, os dados do Censo 2010 vão na mesma direção apontando que a maioria dos homens residentes professa as religiões católica (39,41%) e evangélica (31,33%) e da mesma forma um número expressivo (25,89%) afirmou não possuir religião.

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Quanto ao nível de instrução, 56% já concluíram o ensino médio e 13,5% estão cursando o nível superior e 10,5% já concluíram o ensino superior. Deles, 72,5% disseram estar exercendo algum tipo de atividade remunerada, e com renda média de R$ 2.124,00. Em relação à coabitação, mais da metade (59,5%) disse estar morando com familiares e apenas 17,5% disseram morar sozinhos. Essas informações podem ser melhor observadas na tabela 1.   Tabela 1: Características sociodemográficas dos entrevistados*

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No que se refere às características sociodemográficas, sabendo das limitações na construção de amostras com a população HSH, acredita-se que foi possível obter uma diversidade razoável, embora algumas tendências e padrões sejam percebidos. Em relação à idade, por exemplo, os resultados obtidos indicam que os HSH mais jovens estão mais representados na amostra, dado semelhante ao encontrado em outras pesquisas com o mesmo recorte populacional (Parker, 1998; Gondim, Kerr-Pontes, 2000; Antunes, 2005; Brignol, 2008; Kerr-Pontes, 2009).

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As pesquisas realizadas com HSH apontam a dificuldade de muitas vezes acessar pessoas com maior idade para serem entrevistadas. Nesse caminho, Parker (1994) levanta a hipótese de que os HSH nascidos entre as décadas de 1950 e 1960 fizeram parte de um momento histórico de maior repressão, anterior ao surgimento das políticas para homossexuais e das lutas políticas pela visibilidade pública, para além dos assim considerados “guetos”. Assim, possivelmente, os valores e os aspectos socioculturais que marcam/inscrevem a vulnerabilidade dessa população podem ter interferido na maneira como estes assumem a identidade em relação à sexualidade e consequentemente no acesso a esses indivíduos. Ainda em relação às características sociodemográficas, há uma representação expressiva de pessoas mais escolarizadas. Tal aspecto se assemelha a resultados encontrados em vários estudos realizados em grandes centros do Brasil (Parker, 1998; Antunes, 2005; Vieira, 2006; Brasil, 2010). No que se refere à renda e situação laboral, como dito anteriormente, percebe-se que a maioria das pessoas entrevistadas se encontra empregada e com uma renda média acima do salário mínimo, porém, contando com uma variação grande dentro da amostram, sendo a menor renda de R$ 250,00 e a maior de R$ 15.000,00 (informante que disse ser proprietário de estabelecimento comercial) - a variabilidade pode ser observada também no estudo de Antunes (2005). Essa renda elevada também pode estar relacionada com o fato da grande maioria dos entrevistados (59,5%) afirmar residir com familiares, pois, ao perguntarmos sobre renda, nós nos referimos à renda familiar. No que diz respeito à religião e religiosidade, observou-se uma diferenciação entre a religião na qual os entrevistados foram criados e a que professam, com quedas entre aqueles que foram educados dentro de padrões católicos indo de 60% para 20%, evangélicos de 25% para 19% e aumento nas religiões de matriz afro-brasileira (umbanda e candomblé) de 2%

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para 8% e, nas religiões espírita ou kardecista, de 3% para 5%. Porém, o que está mais expressivo é o grande aumento de pessoas que dizem não frequentar, no período da entrevista, nenhuma religião (indo de 9% para 51%), o mesmo padrão nos resultados pode ser observado em pesquisa realizada no Rio de Janeiro (Carrara, 2005), bem como em pesquisa realizada em Recife (Carrara et al, 2007).

3 • Sobre sexo, orientação sexual, sexualidade e conjugalidade Dos 200 HSH entrevistados, todos se disseram do sexo masculino ao nascer e, quando perguntados sobre a orientação sexual/ identidade sexual, foram produzidas respostas diversas: 65,5% se definiram como gays (36%) ou homossexuais (29,5%), 16% como bissexuais, enquanto que 4,5% se definiram como heterossexuais, conforme mostra a tabela 2. Observando a tabela 2, podemos perceber uma pluralidade de nomeações assumidas no que se refere à identidade/ orientação sexual dos homens entrevistados. Partindo de uma noção de comunidade estabelecida por meio de afinidades em que as diferenças são reconhecidas, a identificação nestes espaços de homossociabilidade parece ocorrer muito mais no âmbito do compartilhamento da diversidade, inserido no campo do desejo (Rios, 2004). No que diz respeito ao estado civil, 41% disseram estar solteiros, 22,5% ficando, 21% namorando e 12,5% casado. Entre os que disseram estar em algum tipo de arranjo conjugal, 15% disseram estar se relacionando com gay, 17% com homossexual, 14% com heterossexuais e 8% bissexuais. A maioria (32,5%) disse estar nesse relacionamento há menos de um ano. Junto a isso, 11% afirmaram ter filhos, dos quais apenas um foi adotado. Os demais provêm de relacionamentos heterossexuais anteriores.

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Tabela 2: Sociabilidade homossexual

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Os lugares - nos quais conheceram o parceiro atual ou o último parceiro - mais citados foram locais públicos (33%), bares, boates ou festas gay (14%). Internet, casa de amigos e bares e boate hetero foram referidos por 10% da amostra. Pesquisas anteriores destacam os amigos, bares e boates como as formas mais comuns de encontro dos parceiros sexuais (Brasil, 2010; Kerr-Pontes, 2009). Quando questionados sobre para quem já assumiram a sexualidade, 93% disseram já ter assumido para amigos, 74% para colegas de trabalho, 72,5% para familiares, 62% para colegas de escola ou faculdade, 58% para profissionais de saúde e apenas 3% disseram não ter relatado a orientação sexual para ninguém. Vale ressaltar que nossa pesquisa foi realizada, como dito anteriormente, em espaços de lazer e homossociabilidade, portanto, esperar-se-ia que, de fato, a maioria dos entrevistados não tivesse dificuldade com expressar a sexualidade.

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4 • Sobre práticas sexuais e de prevenção A média de idade em que os entrevistados se iniciaram sexualmente foi de 15 anos, sendo a idade mínima 5 e a máxima 26, com desvio padrão de 9,92. A maioria (80%) disse ter iniciado a vida sexual com homens. Essa mesma tendência pode ser observada no estudo de Andrade (2007). No entanto, uma iniciação mais cedo é uma tendência não só entre os HSH - pode ser observada na população em geral como no estudo de Ribeiro (2010), em que as pessoas estão iniciando cada vez mais cedo a vida sexual. Essa precocidade pode vir a se configurar em uma maior vulnerabilidade às DST e à Aids (Andrade, 2007). Teria sido de grande relevância saber a idade do(a) parceiro(a) na primeira relação sexual, porém, esta questão não foi incluída no instrumento. Pensar na juvenilização da epidemia do HIV/Aids (aumento da incidência de casos de Aids em pessoas cada vez mais jovens) implica falar não somente sobre a não incorporação do sexo seguro no cotidiano sexual. Nem tampouco limitar a um estado de transição para a vida adulta perpassada por irresponsabilidades próprias da fase “adolescente”. Mas, pode-se considerar que as pessoas têm iniciado a vida sexual cada vez mais cedo e, ainda, que formas de exclusão também podem (e em geral são) estruturantes para a vulnerabilidade. De tal modo, a prevenção pode ser mais bem discutida se considerados aspectos como o erotismo, os prazeres do corpo e os desejos de transgressão. Ao passo que também se faz necessário encarar a possibilidade de construção de sujeitos conscientes e capazes de exercer autonomia (Rios, 2004). Considerando o uso de preservativos nas parcerias fixas e casuais, nos últimos seis meses, perguntamos sobre esse uso em algumas situações, obtendo o resultado apresentado na tabela 3.

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Tabela 3: Uso de camisinha segundo tipo de parceria e sexo dos parceiros

(*) Não foi perguntado, embora, no momento da análise, percebemos que poderiam ter sido incluídas. (**) Não se aplica.

Do total dos entrevistados, 63,5% disseram usar preservativos nas relações sexuais com parceiros(as) fixos, enquanto 65,8% em relações com parceiros casuais. Do total que respondeu positivamente a questão sobre ter parceria casual, 58,3% disseram ter tido parceria fixa no mesmo período. No que se refere à parceria fixa, 75,4% disseram fazer uso do preservativo no sexo anal passivo com homem e 63,7% disseram usar preservativo na prática do sexo anal ativo com homem, porém, apenas 13% no sexual anal ativo se a parceira for mulher e 16,4% no sexo vaginal. Apenas 36% dos entrevistados informaram usar preservativos em práticas sexuais com sexo oral ativo (chupar o parceiro). Além disso, 53,3% disseram ter feito sexo oral ativo sem preservativo, sem ejaculação, porém, 18% dos HSH disseram ter engolido esperma nesta prática. Quando perguntados sobre propor a camisinha a parceiros fixos, a maioria (85,2%) alegou não ter nenhuma dificuldade nessa negociação. Quanto ao sexo oral vaginal, 80,2% dos entrevistados disse não ter realizado tal prática. Em relação ao uso da camisinha nas parcerias casuais, 76,6% disseram fazer uso no sexo anal passivo com homem e 73,2% disseram usar preservativo na prática do sexo anal ativo com homem, porém, apenas 8,8% no sexual anal ativo se a

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parceira for mulher e 13,9% no sexo vaginal. Apenas 49,2% dos entrevistados informaram usar preservativos em práticas sexuais com sexo oral ativo (chupar o parceiro). Além disso, 54,8% disseram ter feito sexo oral ativo sem preservativo, sem ejaculação, porém, 12,1% dos HSH disseram ter engolido esperma nesta prática. Quando perguntados sobre propor a camisinha a parceiros fixos, a maioria (77,3%) alegou não ter nenhuma dificuldade nessa negociação. Quanto ao sexo oral vaginal, 85,3% dos entrevistados disse não ter realizado tal prática. Ao confrontar os dados relativos às duas formas de parceria (fixa e casual), percebemos uma tendência ao uso frequente do preservativo, porém, as práticas consideradas de risco, acima referidas, ainda se configuram com taxas preocupantes. Quanto ao sexo vaginal, as porcentagens de uso de preservativo foram bem menores, no entanto, deve se levar em consideração o número alto de entrevistados que se abstiveram de responder as questões referentes a tal tipo de prática, por não manterem relações sexuais com mulheres, tendo em vista que na amostra total contamos com apenas 3,5% pessoas que se definiram como bissexuais e 4,5% heterossexuais que se referiram com estas identidades/orientações sexuais, número relativamente pequeno para que possamos ter mais informações sobre a prática de sexo mais seguro por parte deste recorte populacional. Levando em consideração o uso ou não do preservativo nas relações sexuais da população em estudo, perguntou-se aos entrevistados sobre as práticas sexuais em especial a do anal passivo e ativo. Dos 77% da amostra que afirmou já ter realizado prática de sexo anal passivo, 54,1% disse não saber o resultado do teste de HIV de alguns dos parceiros. Quanto ao sexo anal ativo, dos 71,7% que afirmaram realizar essa prática, 48,9% disseram não saber o resultado do teste de HIV de alguns dos parceiros e, da mesma forma, 24,8% afirmaram que todos os parceiros tinham o mesmo resultado que eles no referido exame.

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Chama a atenção o fato de que o uso de preservativos na prática de sexo anal e oral ativos com homens é maior entre parcerias casuais, quando comparados às parcerias fixas. Nas demais práticas sexuais, não se observa diferença relevante. Além disso, o uso de preservativos na prática de sexo anal com parceiros fixos com homens é maior se o entrevistado se coloca como passivo. Em relação ao uso de preservativos, quando perguntados se consideravam a camisinha eficiente, 82% concordaram que o preservativo é uma medida de prevenção adequada, porém, ao serem questionados se a camisinha estoura com facilidade, 44% concordaram. Além disso, ao serem questionados se eram capazes de usar a camisinha com todos os parceiros sexuais, 14,5% afirmaram que não, que se sentiam incapazes. Desse total, a maioria (64,3%) se definiu como gays e/ou homossexuais, 17,9% como bissexuais, 10,7% como travestis e 7,1% como entendidos. A faixa etária com maior predominância foi a de 18 a 25 anos (57,1%). Não houve casos na faixa que vai dos 42 anos acima. A maioria (57,2%) estava em algum tipo de relacionamento (ficando, namorando ou casado), enquanto que 42,9% se disseram solteiros. Já 53,3% disseram estar em um relacionamento a menos de um ano. Quando questionados se sempre usaram camisinha no sexo anal nos últimos seis meses, a maioria (31%) disse que não. Desse total, as causas mais recorrentes foram “por conhecer/confiar no parceiro” (58,3%), “por estar com muito tesão” (50%), “pelo parceiro parecer saudável” (40%). Além disso, ao serem perguntados se paravam de usar camisinha com parceiro após algum tempo, 42,1% disseram sim, sendo o motivo mais recorrente a “confiança no parceiro” (73,8%); outra resposta mais recorrente foi a realização do teste HIV (17,8%) - estas também foram as mais recorrentes no estudo de Antunes (2005). Dos entrevistados que disseram não parar de usar preservativo nas práticas sexuais, a despeito do tempo de relação, 53,2% disseram não frequentar nenhu-

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ma religião atualmente (apenas 16,5% se disseram católicos e 11% evangélicos); no que diz respeito à faixa-etária, o maior número de respondentes se concentrou na que vai de 18 a 25 anos (53,2%). Quanto à escolaridade, 59,6% deles têm o ensino médio completo. Entre esses que disseram não parar de usar a camisinha, 36,7% se disseram gays, 26,6% homossexuais, 17,4% bissexuais, 5,5% entendidos, 5,5% heterossexuais, 3,7% transexuais e 2,8% travestis. Também foi perguntado se estes carregavam camisinha consigo no momento da entrevista: 49,5% disseram estar portando camisinha e 50,5% disseram que não. Os motivos dos que disseram não estar carregando camisinhas foram: sem intenção de fazer sexo (42%), esquecimento (15%), por estar num relacionamento (11%) e não usar (2%). Os motivos alegados pelos que disseram estar portando camisinha foram prevenção (61%), habito (7,79%), “ganhou” (10,4%) e porque ia encontrar o parceiro (6,49%). Dos que haviam dito sempre usar camisinha no sexo anal, 42,8% deles não estavam portando camisinha na hora em que foram entrevistados. Dentre os que disseram estar portando camisinha, a média de camisinhas por respondente foi de 3,55 com desvio padrão de 2,89. Vale ressaltar que 2,5% disseram nunca ter usado camisinha nas relações sexuais. Quando perguntados se já haviam feito o teste HIV, 35,8% disseram já ter feito pelo menos uma vez, 25,4% afirmaram fazer periodicamente e 20,7% disseram ter feito apenas uma vez. Dos HSH entrevistados, 17,6% disseram nunca ter feito o teste (11,9% disseram ter vontade de fazer e 5,7% por não ter vontade). Apenas uma pessoa não respondeu ou não sabia. A média de tempo do último teste foi de aproximadamente um ano com desvio padrão de 20 meses, o mínimo foi um mês e o máximo de 120 meses. Em relação ao teste para HIV, os resultados indicam que a população estudada se testa muito, semelhantemente aos achados de outros estudos (Ferraz, 2003; Lima et al, 2008; Silva, 2004; Costa, 2007). Essa informação provoca questionamentos em torno da possibilidade da testagem estar

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sendo utilizada como uma forma de prevenção e negociação entre os parceiros sexuais. Mesmo tendo encontrado alguns indícios de que isto esteja ocorrendo, não se pode afirmar por não ser esta uma amostra que possibilite generalização. Perguntamos também qual era a chance deles de contrair Aids, 29,3% afirmaram ter pouca chance, 27,3% disseram ter muita, 24,7% disseram não ter nenhuma e 18,6% média. Ao serem questionados se alguma vez sentiram que poderiam ter sido infectados, 55,1% disseram ter sentido essa sensação poucas vezes, 37,2% disseram que não, 5,6% muitas vezes e 2% apenas disseram se sentir assim sempre. Entre os que disseram poucas vezes terem sentido que poderiam ser infectados, 20,4% disseram não ter chance de contrair Aids e a mesma porcentagem disse ter muita chance; entre os que disseram não haver possibilidade de contágio, 49,3% afirmaram não ter chance de infecção e 13,7% disseram ser moderada a possibilidade de contágio. O mesmo pode ser observado em estudos como o de Brignol (2008), no qual a maioria dos participantes declarou se sentir com pouco risco de contrair o HIV. Esse tipo de resposta pode estar atrelada a um sentimento de invulnerabilidade. Pensando nos locais de encontro e homossociabilidade, foi perguntado quanto à dificuldade em usar a camisinha nesses lugares. Dos que disseram usar 14,5%, acham difícil o uso na praia/cachoeira/campo, 12% na rua, 9,5% na própria casa, 9% em motéis/hotéis, 9% na casa de familiares, 8,5% no carro, 8,5% em parques, 8% na casa do parceiro, 5,5% na sauna, 4,5% em banheiros públicos e 4,5% no dark-room. No entanto, em todos os lugares citados, o percentual de pessoas que responderam “não usar o local” foi superior ao de respostas “mais fácil” e “mais difícil”. De acordo com estudos anteriores (Rios, 2003; Parker, 2004), os espaços de “pegação” geralmente são os locais em que se encontram os parceiros anônimos. Pelas situações de exposição e transgressão em que acontecem os encontros, possivelmente o não uso de preservativo pode ser mais uma atitude de transgressão valorizada eroticamente, no

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entanto, não é o que se observa, pois lugares que não assumem essas características tiveram uma percentagem alta de dificuldade de uso, denotando que há várias configurações e reconfigurações quanto aos usos do preservativo que podem estar ligadas a vários determinantes. Ainda sobre as práticas sexuais, perguntamos a frequência com que o entrevistado usou algumas substâncias antes ou durante a transa, nos últimos seis meses. No que diz respeito ao uso de álcool, 33,2% disseram nunca ter feito uso, porém, 30,5% disseram estar frequentemente sob efeito desta substância antes ou durante o sexo. Quanto à maconha, cocaína, inalantes e crack: respectivamente, 80,3%, 89,6%, 88,1% e 95,9% disseram não fazer uso dessas substâncias nunca antes ou durante as relações sexuais. Ao serem questionados sobre as fontes pelas quais obtêm informações sobre Aids, 83,5 % disseram receber informações por folhetos, 83,4% pela TV, 83,3% via internet, 75% disseram receber informações de amigos, 72,5% de jornais, 67,5% dos parceiros, 67,5% do médico, 61,7% de jornais para o público gay, 52,8% do rádio e 51% dos familiares. A partir disso, podemos inferir que a educação sexual está se dando de forma mais informal e fluída do que nas grandes instituições sociais como família e escola. As que se espera que sejam os grandes responsáveis pela circulação de informações nesse contexto do HIV/Aids não são as mais efetivas. Por este motivo que o Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites virais optou, recentemente, por criar perfis nas redes sociais a fim de assegurar o acesso às informações de prevenção para populações vulneráveis, entendendo que este tipo de estratégia pode ser bem mais eficaz e abrangente.

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5 • Sobre acesso e uso dos serviços de saúde disponíveis na região e estratégias de prevenção que promovem Na tentativa de obter informações em relação ao uso dos serviços de saúde pela população de HSH da microrregião de Suape, foi perguntado se estes já haviam feito uso em algum momento: 76,8% responderam positivamente ao questionamento. Aos outros 23,2% que responderam negativamente, foram questionados os motivos do não uso. Desse subtotal, 51,3% disseram não usar por possuir plano de saúde/ serviço particular e 38,5% não precisaram/ não frequentaram. Ainda sobre os que responderam não fazer uso dos serviços, foi perguntado o que estes fazem quando acreditam estar doentes: 63,3% disseram buscar um serviço particular, 20% realizar automedicação e 13,3% disseram usar outras formas de cuidado. Esses dados apontam para uma diferenciação em relação ao estudo de Lima et al (2008) que indica, nos resultados de pesquisa realizada em Brasília, que a maioria dos HSH faz uso dos serviços particulares em sua maioria. Questionamos sobre qual a última vez em que os entrevistados procuraram pelos serviços públicos de saúde. Entre aqueles que faziam uso desse serviço, 62,3% relataram que o fizeram há menos de seis meses, como mostra a tabela 4. Na intenção de compreender de que forma se dá o uso dos serviços de saúde, separamos as questões em quatro blocos temáticos: 1) porta de entrada; 2) acesso; 3) vínculo; 4) prevenção nos serviços de saúde - todas as respostas são apresentadas na tabela 4. No que diz respeito à “Porta de entrada”, como pode ser observada na tabela 4, a maioria das porcentagens indica que os participantes da pesquisa utilizam os postos/unidades/centros de saúde quando precisam de algum tratamento preventivo (69,8%), quando têm algum problema de saúde (71,2%) e quando precisam de atendimento antes de buscar um especialista, desde que não seja em caso de emergência (59%). A partir do que é apresentado ainda naquele item da tabela 4, entende-se que tal serviço, em especial, frequentado por esses HSH está

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Tabela 4: HSH e serviços de saúde

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acessível às necessidades do público, então, estariam em conformidade com a dimensão do acesso que Sanchez e Ceconelli (2012) denominam de disponibilidade, ou seja, serviços abertos e funcionando no momento em que se fazem necessários aos usuários. No que diz respeito ao acesso a esses serviços, quando perguntados sobre a facilidade em conseguir uma consulta, a maioria (47,4%) respondeu ter dificuldade; quanto a estes postos/unidades/centros estarem abertos nos fins de semana, 48,7% dos respondentes disseram que não; 70,3% disseram esperar mais de 30 minutos por uma consulta; e 62% disseram deixar de trabalhar quando precisam de alguma consulta nos serviços públicos de saúde. Quanto à gratuidade dos serviços públicos, 73,8% disseram não pagar nem ajudar financeiramente. As informações relativas a estes aspectos podem ser melhor visualizadas no item “Acesso aos serviços de saúde”, na tabela 4.

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Quando foram abordadas questões diretamente ligadas à efetiva utilização dos HSH dos serviços de saúde, percebe-se uma diferença quanto à porta de entrada. Parece que as garantias de um atendimento que realmente supram as necessidades dos usuários não ocorrem, do ponto de vista dos entrevistados, indo de encontro com medidas presentes tanto no Plano Nacional de Saúde Integral LGBT, como do próprio Plano de Enfrentamento Estadual da Epidemia de Aids e das DST entre Gays, HSH e Travestis. Tais documentos defendem que estes serviços estejam prontos a atender às demandas no momento em que ocorrem, sem interferir na rotina dos usuários de forma drástica, contribuindo assim para a não procura pelos serviços, configurando-se como um impeditivo e influenciando na vulnerabilidade das pessoas aos agravos em saúde. Quanto ao vínculo, quando perguntados se eram examinados pelo mesmo profissional de saúde nas idas aos serviços, 44,9% responderam que nunca. E 51,3% disseram sempre ter tempo para explicar aos profissionais as preocupações e tirar dúvidas; 58,1% disseram que esses profissionais sempre compreendem bem as perguntas; e 59,6% afirmaram que os profissionais sempre respondem as perguntas de maneira clara. A relação entre profissionais de saúde e usuários dos serviços é um dos pontos mais relevantes em todos os documentos relacionados ao acesso aos serviços, tanto para a população em geral, quanto na população de HSH, por ser a partir dessa interação que se materializam os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e que se dá um atendimento igualitário. Por este motivo, o vínculo está intimamente ligado à dimensão apresentada por Sanchez e Ciconelli (2012) da aceitabilidade, que consiste na harmonização entre expectativas dos profissionais e dos usuários e que está baseada principalmente no respeito mútuo. Por isso, no momento em que os entrevistados deste estudo dizem se sentir à vontade para explicar problemas e dificuldades e se sentem compreendidos e aceitos nos serviços, isso aumenta a confiança destes nas ações contribuindo fortemente para um acesso universal a estas. E esse

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retorno dos HSH aos serviços acrescido da confiança pode caracterizar como redutor de vulnerabilidades (Mello et al, 2011; Cardoso e Ferro, 2012). Quanto à prevenção nos serviços de saúde, 51,8% disseram sempre haver propagandas, campanhas ou trabalhos educativos realizados pelos profissionais, e 52% dos respondentes afirmaram que os serviços sempre ofereceram teste de HIV/ Aids. Da mesma forma, 73,7% afirmaram que estes sempre distribuem camisinhas. Ao serem perguntados se se sentiam constrangidos em falar sobre doenças sexualmente transmissíveis com os profissionais de saúde, a maioria (73,2%) respondeu que nunca se sentiu dessa forma. A prevenção é algo de extrema importância principalmente ao se falar da população de HSH, por ser considerada de vulnerabilidade acrescida. Por este motivo, ao serem analisadas as informações dispostas no quadro acima, parece que este serviço citado pelos entrevistados segue as normas e está em conformidade com os objetivos traçados desde a 13ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) (2008) até chegar ao Plano de Estadual de Enfrentamento (2010), pois assegura aos seus usuários os insumos necessários para um maior conhecimento sobre os problemas de saúde que acometem essa população de HSH, abarcando a dimensão da informação, tendo em vista que se entende que usuários bem informados dialogam melhor com o sistema de saúde, facilitando a atuação deste na criação de políticas públicas da área e planos mais resolutivos, contribuindo para a continuidade do uso dos serviços pela população que este atende (Sanchez e Ciconelle, 2012). Buscando comparar algumas características entre os HSH que fizeram e os que não fizeram uso dos serviços de saúde, produzimos a tabela 5, que, a seguir, apresenta melhor as semelhanças e/ou diferenças entre esses grupos. A partir da tabela abaixo, podemos perceber que, de acordo com os entrevistados, a faixa etária que mais procurou os serviços foi a que vai de 18 a 25 anos para ambos os grupos. A maioria em todas as “categorias” identitárias fez uso dos serviços de saúde.

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Tabela 5: Comparativo entre os HSH que disseram fazer uso e os que disseram não fazer uso dos serviços de saúde

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No grupo que fez uso dos serviços, os entrevistados afirmaram terem muita chance de contrair Aids, enquanto que, no grupo que não fez uso, a maioria disse não ter chance alguma de contrair esta síndrome. Essa relação entre não fazer uso dos serviços de saúde e achar que não tem chances de contrair HIV denota ou muita segurança em práticas saudáveis ou alheamento, desinformação quanto aos cuidados em saúde, o que se constitui num impedimento para a prevenção e aumento da vulnerabilidade. Ambos os grupos consideraram a camisinha segura e eficiente e se consideraram capazes de usar a camisinha com todos os respectivos parceiros sexuais. Quanto à testagem para o HIV, a maioria em ambos os grupos disse ter feito algumas vezes o exame; no grupo que fez uso dos serviços, a maioria disse não parar de usar a camisinha; já no grupo que não fez uso dos serviços, metade disse parar de usar e a outra metade disse não parar de usar a camisinha. Mais uma vez, o grupo que não faz uso do serviço de saúde tem práticas mais “perigosas”. O que pode demonstrar também que os serviços de saúde são meios fortes de conscientização e informação sobre prevenção. Quanto a se sentirem contaminados com o HIV em algum momento, a maioria do primeiro grupo disse ter sentido isso poucas vezes; o mesmo aconteceu com o grupo que não fez uso dos serviços. Em linhas gerais, consideramos que o conjunto de informações apresentadas aqui pode contribuir para o desenvolvimento de ações interventivas e de promoção à saúde junto à população LGBT da região de Suape, cujas leituras podem

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ser aprofundadas a partir de contrastes com outras pesquisas e talvez com o desenvolvimento de análises estatísticas mais complexas, para as quais se exigiria mais tempo.

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SOBRE OS AUTORES Amanda França Pereira: graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), desta instituição de ensino. Realiza pesquisas no Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana (LabESHU). Contato: [email protected]. Amanda Pereira de Albuquerque: graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, ligado à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Pibic-Facepe) e pesquisadora no LabESHU. Contato: [email protected]. Benedito Medrado: doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor adjunto da UFPE, vinculado ao Departamento de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPG-Psi). É colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos sobre a Mulher da Universidad de Valência (Espanha), líder do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades (Gema-UFPE) e bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenou a equipe “Homens, Gênero e Saúde: Diálogos com os Trabalhadores das Terceirizadas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: [email protected]. Celestino José Mendes Galvão Neto: doutorando em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-PE), pesquisador do Gema/ UFPE e colaborador no Núcleo de Pesquisas em Vulnerabilidade e Promoção da Saúde (NPVPS-UFPB). Participou da equipe “Homens, Gênero e Saúde: Diálogos com os Trabalhadores das Terceirizadas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: [email protected].

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Clóvis Cabral de Lira Filho: graduando em Psicologia pela UFPE, bolsista do Pibic/FACEPE e pesquisador no LabESHU. Contato: [email protected]. Cristiano José de Oliveira Junior: graduando em Psicologia pela UFPE e bolsista do Pibic/UFPE vinculado ao LabESHU. Contato: [email protected]. Daniela Torres Barros: mestra em Psicologia pela UFPE e psicóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - Campus Recife. Integrou a equipe “Chá de Damas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: danitorres_ [email protected]. Gelson Panisson: graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc) e participante do grupo de pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Álcool e Outras Drogas. Também é integrante do grupo de pesquisa Psicologia da Saúde e do Desenvolvimento Humano, da UFSC. Contato: [email protected]. Henrique Caetano Nardi: doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, professor associado à UFRGS, diretor do Instituto de Psicologia, integrante do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) e do Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de Gênero, Diversidade Sexual e Raça (CRDH). Atua ainda como pesquisador associado ao Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux (IRIS-EHESS), membro do grupo Frontières Identitaires et Représentations de l’Alterité (FIRA) e integrante do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexualidades, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (Anpepp). Contato: [email protected].

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Lady Selma Ferreira Albernaz: doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pós-doutora em Antropologia no Instituto Superior de Ciência do Trabalho e da Empresa - Instituto Universitário de Lisboa (Portugal). Atualmente, é professora da UFPE, atuando no Departamento de Antropologia e Museologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia. É integrante do Nucléo de Família, Gênero e Sexualidade (Fages) da UFPE. Fez parte da equipe “Chá de Damas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: [email protected]. Leandro Castro Oltramari: doutor em Ciências Humanas pela Ufsc e professor adjunto III desta instituição. Participa do grupo de pesquisa Psicologia e Processos Educacionais, do grupo Instituto de Estudos de gênero e é vice-lider do grupo de pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Álcool e Outras Drogas. Luciana Leila Fontes Vieira: doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFPE e integrante do PPG-Psi. Está à frente da Diretoria LGBT da UFPE e faz parte do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexualidades da Anpepp. É pesquisadora associada ao LabESHU e líder do Núcleo de Pesquisa e Estudo em Clínica Contemporânea (Nupecc). Integrou a equipe “Chá de Damas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: [email protected]. Luís Felipe Rios: doutor em Saúde Coletiva pelo IMS-Uerj, professor associado ao Departamento de Psicologia da UFPE e integrante do PPG-Psi. É líder do LabESHU, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e faz parte do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexualidades, da Anpepp. Coordenou o Programa Diálogos Suape. Contato: [email protected].

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Marivete Gesser: doutora em Psicologia pela UFSC, professora adjunta III no curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, além de ser integrante do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional desta instituição, do Margens - Núcleo de Estudos Modos de Vida, Família e Relações de Dênero e do Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NED). Participa do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexualidades, da Anpepp. Foi pesquisadora do Ministério da Educação (MEC) no âmbito da Prevenção às Violências na Escola. Contato: [email protected]. Paula Sandrine Machado: doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora desta instituição, estando vinculada ao Instituto de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Participa do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) e do Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de Gênero, Diversidade Sexual e Raça (CRDH) do Instituto de Psicologia da UFRGS. Participa do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexualidades, da Anpepp. Contato: [email protected]. Tacinara N. de Queiroz: doutoranda em Psicologia pela UFPE e pesquisadora do LabESHU. Integrou as equipes “Ação Juvenil”, “Caravana da Cidadania” e “Observatório Suape”, do Programa Diálogos Suape. Contato: [email protected]. Viviane Melo de Mendonça: doutora em Educação pela Unicamp e professora associada à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Participa dos grupos de pesquisa Educação, Comunidade e Movimentos Sociais e Núcleo de Estudos e Pesquisas Tecnologia, Cultura e Sociedade, além de coordenar o Núcleo de Estudos de Gênero e Diversidade Sexual, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da UFSCar-Sorocaba. Contato: [email protected].

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Warlley Joaquim de Santana: graduando em Psicologia pela UFPE, bolsista pelo Pibic-facepe e pesquisador no LabESHU. Contato: [email protected].



Os(as) autores(as) que tomam voz em "Gays, lésbicas e tra­ vestis em foco: diálogos sobre sociabilidade e acesso à edu­ cação e saúde" nos interpelam sobre quais estratégias deve­ ríamos inventar para incorporarmos na comunidade humana as vivências LGBT. Seja no âmbito das universidades, seja circunscrito à educação básica e média, seja no campo da atenção à saúde, seja nos coletivos feministas e LGBT, seja na própria comunidade homossexual, a tônica presente é o chamamento para construção de um mundo possível para as múltiplas experiências de gênero e sexualidade. Organizamos o conjunto de textos em duas partes. A primeira, Contextos de sociabilidade, é composta de três textos que abordam espa­ ços em que pessoas com práticas homossexuais transitam, refletindo sobre como constituem/assumem posições identi­ tárias, marcadas por gênero, com desdobramentos na subje­ tividade, na sociabilidade e/ou na luta política. A segunda par­ te, Acesso à educação e saúde, é formada por quatro textos que discutem o modo como escolas, universidades e equipa­ mentos sociais de saúde constituem situações de estigmati­ zação e opressão, e quais estratégias têm sido ou poderiam ser utilizadas para garantir os direitos das populações LGBT.

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