Gênero, Raça e Classe: sobreposições perversas explícitas no cotidiano

September 25, 2017 | Autor: Alex Eleotério | Categoria: Race and Racism
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Gênero, Raça e Classe: sobreposições perversas explícitas no cotidiano da mulher negra

“Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher” Simone de Beauvoir (1962)

“Ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser é tornar-se negro” Neusa Santos Souza (1983)

Introdução

Este texto tem por objetivo, não o suscitamento, visto haver poucas, mas sérias e relevantes pesquisas que escrutinam esta temática, mas sim uma continuidade e, por conseguinte, a busca de maior visibilidade a este que é um tema explicitamente marginalizado não só na academia, como também na comunidade externa. De forma sintética e simplista, poderíamos denominar o tema em questão de o problema da mulher negra. O que por sua vez, por ser um problema desta, caberia a ela, concomitantemente ao auxilio do Estado, por meio da implementação de políticas publicas a elas direcionadas, uma resolução e como resultado, o fim do problema da mulher negra. Devemos lembrar que no Brasil este problema é quase tão antigo quanto sua própria história, com a chegada das primeiras(os) escravas(os) negras(os) africanas(as) em solo brasileiro, em 1532. Todavia, o que se busca não é explicitar o já explicito, des-historizado e acrítico, o que nos levaria a lugar algum, deixando-nos assim à deriva numa superficialidade teórica, que nos leva ao entendimento de que o problema da mulher da negra é tão e somente dela, cabendo a ela algum tipo de preocupação a fim de solucioná-lo. Com efeito, a fim de uma compreensão mais sólida acerca dos elementos sócio-históricos que levam a mulher negra a se deparar com um problema específico para si é que surge este texto. Assim, partindo-se inicialmente de duas categorias de analises: mulher e negra, verifica-se a necessidade, a priori, do entendimento sobre o conceito de gênero, para assim compreendermos quais os problemas específicos que

acometem o feminino e o masculino e, se há algum entre esses que abarque a ambos; num segundo momento, analisa-se a categoria raça, expressa aqui como a categoria negra. É neste momento que há a percepção de que a concepção de raça não foi desde seu surgimento a mesma, sendo que alhures esta se ligava ao paradigma biológico e na contemporaneidade está arraigada no social. Destarte, levando em conta essa nova realidade a qual a categoria raça está inserida, faz-se necessário o entendimento de como a concepção de classes sociais, elemento aqui entendido como constituinte da realidade social contemporânea, acaba por se agregar às duas categorias anteriores e assim gerar o problema da mulher negra em nossa época atual. É a fim de compreender como as categorias de gênero, raça e classe sobrepostas e vivenciadas no dia-a-dia da mulher negra, em sua maioria, em condições sociais de pobreza -, ditam os padrões sociais de representação e também a economia política, que nas linhas que se seguem examinaremos o problema da mulher negra, que como veremos, não é um problema desta, mas sim um problema outorgado a ela, não só em nosso passado sócio-histórico, mas ainda mantido e cotidianamente reforçado em nossa época atual.

Sexo e Gênero: relações assimétricas, mas intrínsecas

O nascimento De uma alma é coisa demorada Não é partido ou jazz Em que se improvise Não é casa moldada Laje que suba fácil A natureza da gente Não tem disse me disse (O Rappa, Papo de surdo e mudo)

Fundada a civilização, podemos entender que uma possível arbitrariedade do ser humano se restringe ao momento da descoberta pelos pais de sua existência ainda nas primeiras semanas de gestação no útero materno. Descoberto esse ser humano até então “arbitrário”, sua vida começa a ser planejada e, por conseguinte, moldada, independente de sua ciência, a começar pelas falas exteriores a ele direcionadas, mesmo diante da falta de uma resposta objetiva. A este futuro indivíduo é direcionado uma parte do todo social ao qual a priori irá acessar, não obstante, esta parte previamente acessada guiará a visão social desse sujeito, que por um longo período, senão por toda a vida, terá a percepção de que esta parte é de fato o todo social e, como resultado, sua única possibilidade de vivência social. Diante da viabilidade de dispositivos que nos permitem antever ao seu nascimento o sexo do bebê, o ‘mundo’ ao qual este será recebido começa a ser formatado meses antes de sua chegada. A visualização do pênis, observada na técnica de ultrassonografia, roupinhas azuis, souvenirs de times de futebol, carrinhos de brinquedo, etc. são utilizados para caracterizar o ambiente que irá receber o menino que chegará e que fará o uso destes apetrechos ditos masculinos. Não menos arquitetado é o ambiente que receberá a menina, roupinhas cor-de-rosa, bonecas, sapatinhos, brincos, etc. são esses os utensílios responsáveis por feminizar o bebê, cuja genitália é compreendida pela vagina. Ainda no que tange a visualização dos órgãos genitais, a constatação de que o bebê será um menino, leva os pais a vislumbrarem um cotidiano

em âmbito público mais intenso, haja vista a conduta impetuosa do menino, tão esperada e, até certo ponto, estimulada pelos pais; já para as meninas, é aguardada e mais que estimulada, uma conduta tida como sensível, assim, o dia-a-dia em família, após a chegada dessa, se guia rumo a maior privacidade, a fim de moldá-la ao âmbito familiar. Nascido o bebê, em si, a existência do ambiente acima mencionado não lhe diz muito, sendo necessária uma longa socialização para que este, de acordo com seu sexo, compreenda quais os objetos e também as posturas que deve manipular e assumir, não apenas no âmbito privado, mas, e, sobretudo, no público. Verifica-se, portanto, que tanto os objetos quanto as posturas mencionados não têm uma ligação intrínseca com o sexo, mas sim com o masculino e com o feminino, esses sim atrelados ao sexo. Daí o entendimento, mesmo que ainda parcial, da famosa frase de Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”. Ora, quem em um ambiente no qual há a prevalência ou mesmo a presença de poucas crianças, não presenciou um adulto, e até mesmo uma outra criança mais adiantada, repreender um menino ou uma menina cujo interesse se voltava a um objeto que se distinguia do delegado a seu sexo ou cuja postura se diferenciava daquela que era dele(a) esperado? Ao longo do desenvolvimento do ser social, as mediações culturais foram crescendo e se diferenciando, portanto deixando cada vez mais remota e menos importante a diferença sexual. Como, porém, o ser social não poderia existir sem as outras duas esferas ontológicas (inorgânica e orgânica), não se pode ignorá-las. Mais do que isto, o ser humano consiste na unidade destas três esferas, donde não se pode separar natureza de cultura, corpo de mente, emoção de razão etc. É por isso que o gênero, embora construído socialmente, caminha junto com o sexo (Saffioti, 2004, p. 135-136).

Os exemplos acima objetivam a compreensão de que nascemos homens ou mulheres (ou macho e fêmea), sendo que essas categorias estão aqui intrinsecamente atreladas ao sexo, todavia, o masculino e o feminino, que poderíamos aqui entender como concepções sociais do sexo ou simplesmente como gênero, não têm uma correspondência tão precisa quanto o sexo, por necessitar, inexoravelmente, de uma representação do social, que como sabemos é dinâmica e por vezes efêmera, da qual não podemos prescindir. Desta forma, podemos inferir que,

[...] o corpo de uma mulher, por exemplo, é essencial para definir sua situação no mundo. Contudo, é insuficiente para defini-la como uma mulher. Esta definição só se processa através da atividade desta mulher na sociedade. Isto equivale a dizer, para enfatizar, que o gênero se constrói-expressa através das relações sociais (Saffioti, 1992, p.190).

Verifica-se aqui o papel decisivo que o social tem para que o sexo, tão objetivo e, aqui assumindo um prisma valorativo, tão sem alma, possa vir a se tornar social, pois como visto no excerto acima, são nas mediações possibilitadas pelas relações sociais que o ‘corpo’ aspira o status de sujeito, expresso socialmente pelo gênero que, Em um importante sentido, não se pode traçar o gênero até uma origem definível,

porque

ele

próprio

é

uma

atividade

criadora

ocorrendo

incessantemente. Não mais compreendido como um produto de relações culturais e psíquicas transcorridas há tempo, o gênero é uma maneira contemporânea de organizar normas culturais passadas e futuras, um modo de a pessoa situar-se em e através destas normas, um estilo ativo de viver o corpo no mundo. [...] A escolha de assumir uma certa espécie de corpo, de viver e usar o corpo de uma certa maneira implica um mundo de estilos corporais já estabelecidos. Escolher um gênero consiste em interpretar recebidas normas de gênero de forma a reproduzi-las e organizá-las de novo. O gênero é mais um tácito projeto de renovar a história cultural de acordo com os termos corporais próprios de cada pessoa do que um ato radical de criação (Butler, 1988, p. 130-1 apud Saffioti, 1992, p. 189).

Diante da intransigência do sexo, desconsiderando as possibilidades contemporâneas para a mudança desse, o gênero assume uma maleabilidade ímpar, o que, por sua vez, permite a homens e mulheres usarem seus respectivos corpos de acordo com os elementos do masculino e/ou do feminino que mais lhes apraz. Todavia, são estas mesmas relações sociais, que nos permitem ser e viver no mundo, que acabam por nos tolher a possibilidade de nos furtar a rigidez do sexo, quando tendo por base a razão dualista polarizam de forma maniqueísta o feminino e o masculino, o que por sua vez, como veremos, fornece as bases da construção das estruturas cognitivas ocidentais, referenciadas na razão cartesiana.

A dominação masculina

Em nossa época atual a errônea polarização do dualismo contido no gênero leva o masculino e feminino a serem tratados de formas desiguais, e não diferentes como a priori – “cabe lembrar, aqui, que diferente faz par com idêntico. Já igualdade faz par com desigualdade, e são conceitos políticos” (Saffioti, 2004, p. 116). Com efeito, o masculino se liga ao polo positivo e o feminino ao negativo. Assim, na vida cotidiana os caracteres do masculino assumem maior proeminência que os femininos, inerentemente subjulgados arbitrariamente. Mediadas por respostas articuladas tanto pelo senso-comum quanto por teorias rasas e/ou propriamente enviesadas, as desigualdades de gênero são tidas como inexoráveis às sociedades humanas, em particular às ocidentais. É contra essa mentalidade que acaba por naturalizar a desigualdade entre homens e mulheres que as feministas e as teóricas, e também as teóricas feministas, vêm lutando contundentemente. A história nos mostra que esse dualismo perverso no conceito de gênero é historicamente recente, Gênero é aqui entendido como muito mais vasto que o patriarcado, na medida em que neste as relações são hierarquizadas entre seres socialmente desiguais, enquanto o gênero compreende também relações igualitárias. Desta forma, patriarcado é um caso específico das relações de gênero. Em termos históricos, o patriarcado é um recém-nascido (Saffioti, 2004, p. 118-9), contando com cerca de 7 mil anos.

Assim, Saffioti explica que: O patriarcado refere-se a milênios da história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina. Tratar esta realidade em termos exclusivamente do conceito de gênero distrai a atenção do poder patriarca, em especial como homem/marido, “neutralizando” a exploração-dominação masculina (2004, p. 136).

Vemos aqui a introdução do conceito de patriarcado que, como visto, é parte da história humana, tendo como base o gênero, datada do início da humanidade, ou seja, 250-350 mil anos. Destarte,

é preciso realmente perguntar-se quais são os mecanismos históricos que são os responsáveis pela des-historicização e pela eternização das estruturas da divisão sexual e dos princípios de divisão correspondentes. [...] Lembrar que aquilo que, na história, aparece como eterno não é mais que o produto de um trabalho de eternização que compete a instituições interligadas tais como a família, a igreja, a escola [...] (Bourdieu, 2003, p.5).

Segundo

Bourdieu,

a cognição

humana tende

naturalmente a

compreender o mundo de forma intermediada, inextricavelmente, por oposições homólogas, e, é esta possibilidade cognitiva que nos permite conceber o real e o simbólico e, por conseguinte, os signos e os significantes, tão necessários ao nosso desenvolvimento psíquico. Com efeito, o autor explica que: Arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e feminino recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas, alto/baixo, em cima/em baixo[...]. Semelhantes na diferença, tais oposições são suficientemente concordes para se sustentarem mutuamente, no jogo e pelo jogo inesgotável de transferências práticas e metáforas[...]. Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as ‘naturalizam’, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparências; de modo que as previsões que elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo (Bourdieu, 2003,p. 16).

Desta forma, podemos conceber que as diferenciações podem e são tidas como algo salutar ao desenvolvimento humano, tanto na esfera individual quanto na social. A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (Bourdieu, 2003, p. 17).

Todavia, mudanças nesta forma de ver e viver o mundo geraram sérias transformações nas representações de gênero, ou seja, do masculino e do feminino, o que por sua vez, os levaram a um novo patamar histórico no que diz respeito ao reconhecimento do eu e o do outro. É a este momento histórico que denominamos patriarcal, quando, “os seres humanos, que tinham uma relação igual e equilibrada entre si e com os animais, transformam-na em controle e dominação. O patriarcado é um dos exemplos deste fenômeno” (Saffioti, 2004, p. 120). Como mencionado por Saffioti, o patriarcado é um dos, e não o único desdobramento desta nova forma de reconhecimento do eu e do outro. Com efeito, “embora o patriarcado diga respeito, em termos específicos, à ordem de gênero, expande-se por todo o corpo social. [...] o valor central da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é o controle, valor que perpassa todas as áreas da convivência social” (Saffioti, 2004, p. 122). Desdobramento deste paradigma é o androcentrismo, visão de mundo centrada no ponto de vista masculino, que ao servir como referência à construção da ciência moderna fez - e continua a fazer - crer homens e mulheres que há apenas uma única possibilidade de ver e viver o mundo: o prisma do Homem. Vemos desta forma que “a diferença sexual é convertida em diferença política, passando a se exprimir ou em liberdade ou em sujeição” (Saffioti, 2004, p. 127). Ainda sobre os desdobramentos tencionados pelo prisma patriarcal, cuja característica é a dominação-exploração, para além do androcentrismo, insere-se nesta lógica o eurocentrismo, prisma que tende a restringir ainda mais os responsáveis e privilegiados pela influência androcêntrica, quando aloca os europeus - com primazia do homem - como os principais interlocutores da civilização moderna ocidental. Numa linearidade histórica, seria a partir deste momento que a sociedade passa a se dividir entre civilizados e não-civilizados, e nesta perspectiva, cabendo aos primeiros a civilização desses segundos, aqui, os povos não-europeus. Daí uma outra polarização maniqueísta que ao longo da história tem sido a responsável por gerar desigualdades de status, explícitas, em particular, nas desigualdades sociais no que tange a raça e a etnia – no Brasil e no mundo. Pertencimento racial e desigualdade de status Segundo dados do Censo 2010, elaborados pelo IBGE, a população negra brasileira é representada atualmente por 51% do total de habitantes. Conjuntamente às

populações indígenas, representada por 0,47% da população, constituem um grupo social ao qual podemos denominar como a minoria racial brasileira – mesmo constituindo mais da metade da população. É importante salientar que o conceito racial não está como a priori, atrelado a bases biológicas, mas sim ao conceito social, que, sobretudo, por fatores fenotípicos, distingue os sujeitos, alocando-os em distintas posições sociais. No caso dos negros e dos índios, sua alocação se dá em uma posição social inferiorizada, em relação à população branca. Tal fato traz consigo graves consequências, desta forma, estudiosos das relações étnico-raciais, no Brasil, apontam o racismo e a discriminação racial como uma das explicações mais palpáveis para as desigualdades sociais que assolam este país (Hasenbalg, 2005; Bastide e Fernandes, 2008; Munanga, 2008; Skidmore, 2012). Esses mesmos teóricos nos levam a compreensão sobre a forma racialmente hierárquica sob a qual foi estruturada a sociedade brasileira. É com base nessa, que a população branca pôde vir a se beneficiar, mesmo que de forma inconsciente, de privilégios materiais e simbólicos - destinados em um primeiro momento aos colonizadores europeus - conquanto que negros e índios continuam a ser os mais subordinados no interior da referida estrutura. A priori, tal estrutura emerge tendo por base o regime escravista (1530 – 1888), período no qual negros e índios foram subordinados e subjulgados com maior veemência no país. É neste mesmo período que, por fatores sociais, culturais e econômicos, estes dois grupos populacionais, ainda hoje subjulgados, assumem posições sociais diferentes na sociedade brasileira (Fausto, 2006). Mas, é com a abolição da escravatura que as desigualdades raciais, em sua forma contemporânea, começam a se delinear (HASENBALG, 2005). O breve histórico acima nos leva a compreensão de que no Brasil, desde sua chegada até os dias atuais, a população negra viveu e vive em condições adversas de subordinação. Todavia, em que pese a semelhança desta subordinação negra à raça/etnia branca, o que subjaz e, portanto, garante a manutenção desta desigualdade ao longo destes mais de quatro séculos de história é, num primeiro momento, como veremos, uma pseudociência com bases biológicas, e num segundo momento, um posicionamento sociopolítico. Segundo Todorov (1993), as discussões, ensaios e teorias sobre a diversidade humana e, consequentemente, sobre raças na cultura ocidental emergiram

como resultado das grandes viagens e “descobertas” iniciadas no século XV, pois foi a partir destes encontros entre a “civilização” europeia e os índios americanos, os negros africanos e os asiáticos, que surgiu a necessidade de classificar e definir o que era e quem era a humanidade. Com efeito, esse autor argumenta que “o racismo é um comportamento antigo e de extensão provavelmente universal; o racialismo é um movimento de ideias nascido na Europa ocidental, cujo grande período vai de meados do século XVIII a meados do século XX” (Todorov, 1993, p.107). Assim, a utilização do conceito de raça, tendo por base o racialismo europeu, objetivava naquele momento, início da idade contemporânea, não apenas a distinção, mas a hierarquização, sobrepondo os europeus aos demais povos, pautada numa visão de inferiorização que exaltavam os primeiros em detrimento dos últimos. Devido a sua expansão planetária, grandes descobertas, colonização e um processo econômico de mundialização, os povos europeus passaram a se ver, frente ao outro – povos colonizados - com superioridade. Essa se dá, sobretudo, pela crença de que sua cultura, fenótipo, ecologia social e geografia, em outras palavras, que sua civilização estava adiantada a daqueles, que nesta lógica estavam por evoluir (Wieviorka, 2007). Herdeiros da ideologia iluminista, intelectuais de grosso calibre como o naturalista Georges-Louis Leclerc, - o conde de Buffon, cujas teorias influenciaram Lamarck e Darwin - e o escritor francês Denis Diderot responsável pela edição da Encyclopédie (1750-1772) 1 compartilhavam a concepção de que: as raças humanas são, então, “degenerações” e “alterações” provocadas por causas ligadas ao meio e ao clima, a partir da raça branca que constitui o protótipo da espécie. [...] a mestiçagem é o meio mais rápido para reconduzir a espécie a seus traços originais e reintegrar a natureza do homem: bastariam, por exemplo, quatro gerações de cruzamentos sucessivos com o branco para que o mulato perdesse os traços degenerados do negro (Munanga, 2008, p. 26).

Kant e Voltaire - expoentes do Iluminismo, cujas teorias foram imprescindíveis para a consolidação da ciência moderna e manutenção da contemporânea - também explicitaram suas visões no que tange às questões de raça. Todavia, mantendo a presunção da superioridade europeia, eram contrários à

1

Dicionário razoado das ciências, artes e ofícios, no qual Diderot reportou todo o conhecimento que a humanidade havia produzido até sua época.

mestiçagem por acreditarem que os “frutos” dessa seriam nefastos. Para ambos, de modo geral, a mistura de europeus e outros povos seria percebida como uma anomalia, visto que a superioridade daqueles primeiros não se coadunariam à inferioridade destes segundos e vice-versa, degenerando assim a raça superior e sem possibilidades da trazer melhorias às raças inferiores (Munanga, 2008, p. 23-29). É, grosso modo, sob essa consciência eurocêntrica que os estudiosos europeus viriam a elaborar teorias e conceitos, as quais de forma ímpar influenciaram e assim continuam - o cotidiano científico, social e cultural do mundo ocidental. Salienta-se, porém, que as qualificações nas quais se enquadraram os indivíduos, desde a Idade Antiga até meados do século XVIII, não contavam com a legitimidade do respaldo científico. Sendo as leis da hereditariedade desvendadas somente em fins do século XIX, pode se concluir que os indivíduos que ocuparam os postos de comando social (elite intelectual e política) ao longo da história, se qualificaram e também avaliaram os demais indivíduos segundo padrões próprios e narcísicos (Munanga, 2008; Diwan, 2007; Wieviorka; 2007). Desta forma, Munanga afirma que: Ao abordar a questão da mestiçagem do final do século XIX, os pensadores brasileiros se alimentaram, sem dúvida, do referencial teórico desenhado pelos cientistas ocidentais, isto é, europeus e americanos de sua época e da época anterior. (...) todo o arcabouço pseudocientífico engendrado pela especulação cerebral ocidental repercute com todas as suas contradições no pensamento racial da elite intelectual brasileira (Munanga, 2008, p. 47, grifo nosso).

Vimos desta forma, como, em um primeiro momento, as desigualdades raciais se estruturaram, engendrando as diferenças maniqueístas de status, na qual os fenótipos, em particular, a cor da pele, bem como os traços culturais passam a ser julgados e subjulgados. Todavia, com o avanço da ciência e sob influência da conjuntura sociopolítica e teórica de fins do século XIX e início do XX, as bases que sustentavam os privilégios eurocêntricos esmoreceram, entretanto, como veremos, não a ponto de restituir as bases naturais da diferenciação, em detrimento da hierarquização imposta pelo racialismo europeu.

Os impactos do androcentrismo e do eurocentrismo na sociedade capitalista Em que pese os importantes avanços sociais proporcionados pela revolução industrial (1780-1840)2, com a ascensão do capitalismo industrial o social perde a primazia e o lucro passa a ser o “ator” principal. Com essa troca da centralidade dos papéis se estabelece um novo cenário socioeconômico no qual há a prevalência de desigualdades de renda com maior proeminência que em outros períodos históricos. Desta forma, compreender os mecanismos e processos de produção e reprodução dessas desigualdades se faz de extrema importância, visto que uma análise com tal propósito nos permite evidenciar a relação entre atributos individuais e da estrutura social expressos na vida cotidiana. A fim do entendimento sobre a influência do androcentrismo e do eurocentrismo sobre ‘sociedade do lucro’ faz-se necessária a compreensão de como estas três categorias se entrelaçam. Com efeito, recorremos a Saffioti que faz a seguinte afirmação: Sexismo e racismo são irmãos gêmeos. Na gênese do escravismo constava um tratamento distinto dispensado a homens e a mulheres. Eis por que o racismo, base do escravismo, independentemente das características físicas ou culturais do povo conquistado, nasceu no momento histórico em que nasceu o sexismo. Quando um povo conquistava outro, submetia-o a seus desejos e suas necessidades. Os homens eram temidos, em virtude de representarem grande risco de revolta, já que dipõem, em média, de mais força física que as mulheres, sendo, ainda, treinados para enfrentar perigos. Assim, eram sumariamente eliminados, assassinados. As mulheres eram preservadas, pois serviam a três propósitos: constituíam força de trabalho, importante fator de produção em sociedades sem tecnologias ou possuidores de tecnologias rudimentares; eram reprodutoras desta força de trabalho, assegurando a continuidade da produção e da própria sociedade; prestavam (cediam) serviços sexuais aos homens do povo vitorioso (2004, p. 124-125, grifo nosso).

Uma breve análise sociológica, sobre a afirmação de Saffioti, nos permite inferir que na passagem, ou desenvolvimento, das sociedades sem tecnologia ou 2

O início e a duração da Revolução Industrial variam de acordo com diferentes historiadores, desta

forma, para fins históricos, aqui utilizamos as datas propostas por Eric Hobsbaum. Cf.: em, HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

possuidores de tecnologias rudimentares para a sociedade industrial, a lógica de serventia das mulheres como força de trabalho e também como reprodutora dessa permanece quase que inalterada. Já aos homens, devido, em particular, a dispositivos socioculturais - no caso do escravismo no Brasil podemos citar o desconhecimento geográfico para possíveis fugas e a separação e junção de indivíduos de sociedades africanas cujos elementos culturais e linguísticos se diferenciavam, o que, por sua vez, dificultava as rebeliões e os enfraquecia individualmente – a possibilidade de escravização e/ou exploração se mostra mais contundente que outrora. Desta forma, tanto o patriarcado quanto o racialismo têm a possibilidade de se desenvolverem plenamente, indo de encontro às demandas da sociedade capitalista. Na Europa de meados do século XIX, na qual o tipo de trabalho prevalecente era o assalariado, um novo fenômeno social chama a atenção, trata-se da “questão social”, A expressão surge para dar conta do fenômeno mais evidente da história de uma Europa Ocidental que experimentava os impactos da primeira onda industrializante, iniciada na Inglaterra no último quartel do século XVIII: tratase do fenômeno do pauperismo. Com efeito, a pauperização massiva da população trabalhadora constituiu o aspecto mais imediato da instauração do capitalismo em seu estágio industrial concorrencial e não por acaso engendrou uma copiosa documentação. Para os mais lúcidos observadores da época, independentemente da sua posição ídeo-política, tornou-se claro que se tratava de um fenômeno novo, sem precedentes na história anterior conhecida. Com efeito, se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiqüíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente dos seus membros que, além de não terem acesso efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos até das condições materiais de vida de que dispunham anteriormente (Netto, 2010, p. 4).

Com a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, e com a implementação de mão de obra assalariada, o fenômeno do pauperismo, seguindo a

mesma lógica do ocorrido na Europa, se expressa no país através da crise de 1929, com a depressão econômica e, por conseguinte, as altas taxas de desemprego. Vemos desta forma, que entre meados do século XIX a meados do século XX o pauperismo não foi característica exclusiva de um único país ocidental, mas experienciado de formas diversas pela generalidade dos países. É em meio a esta conjuntura que se expressa de forma mais nítida a divisão de classe social, tão bem teorizada por Marx e Engels. Todavia, sob influência tanto do androcentrismo quanto do eurocentrismo, as necessárias discussões teóricas e políticas sobre as contradições de classes suscitadas, em particular, ao longo do século XX tenderam a subestimar e/ou ignorar as perversidades tanto do sexismo quanto do racismo, dando maior atenção à categoria de classe social. Este posicionamento teórico permitiu com que a sociedade brasileira se estruturasse sob a égide de uma concepção tida por muitos como grosseira e arcaica, o patriarcalismo, cuja expressão é a dominação-exploração não só de classe, mas também de gênero e raça/etnia.

O papel do agente numa estrutura estruturada e estruturante

Falávamos no início deste trabalho que ao nascermos já encontramos pronto um ambiente familiar “propício” a fim de fazer com que o sexo se represente no social, o que por sua vez confere ao bebê uma das duas possibilidades constituintes de gênero, o masculino ou o feminino. Para além desta socialização no sentido de feminilizar ou masculinizar o sexo, voltada, sobretudo, ao próprio indivíduo, há também, de modo concomitante, uma socialização cultural-valorativa, que diz respeito à forma com que o indivíduo concebe e assimila o todo social. É com base nessa segunda socialização - que tende a acessar uma ínfima parte do todo social - que os indivíduos tendem a experienciar a cotidianidade de suas vidas. Com efeito, desprovidos de um olhar crítico acerca do âmbito microssocial no qual estão encerrados, acabam por manter em contínua marcha elementos macrossocietários, de maneira à des-historicizálos. Por conseguinte, acabam por naturalizar o patriarcalismo e seus desdobramentos de forma a constituírem-no num processo contínuo de elaboração conceituada na teoria bourdiana como um habitus social. Além de ser um modus operandi, que tende a orientar e organizar determina prática, Bourdieu acredita que podemos compreender o conceito de habitus a partir da premissa de que esses se constituem por “estruturas estruturadas” que,

contudo, funcionam como “estruturas estruturantes”, ou seja, ao mesmo tempo que geram e determinam os objetivos a serem alcançados e os caminhos trilhados de maneira inconsciente pelos diferentes indivíduos, normatizam suas práticas conscientes frente as complexidades do cotidiano urbano. Em linhas gerais, podemos dizer que habitus é uma grade de leitura que os indivíduos dispõem para ler a vida social, deste modo, agem, sentem, possuem disposições próprias e advindas desta grade, contando, porém, com a possibilidade de deixarem de ser um “apêndice” da estrutura para voltar a criar, agir, inventar, como os indivíduos de outrora, mesmo que apenas em certas condições. Outro elemento importante a ser destacado são os sistemas de classificações criados a partir do habitus. Ora, pode parecer que o agente se apodera de uma liberdade um tanto quanto irrestrita quando é retomada a noção de habitus, porém nos alerta Bourdieu de que há uma determinação antes mesmo da ação, os “esquemas generativos”. Estes presidem a escolha, é a ação da estrutura na indicação de categorias de classificação, com bases cultural-valorativa, que podem ser utilizadas pelo agente, “esquemas generativos” que, antecedem e guiam a ação, e são base para os outros “esquemas generativos”. Isso significa dizer que antes de um agente agir, há um leque de possibilidades para essa ação e que, ao agir, tomando como base alguma categoria deste “leque”, as próximas ações estarão sobre esta primeira escolha; um exemplo disso são os gostos, “não é visto como simples subjetividade, mas sim como ‘objetividade interiorizada’; ele pressupõe certos ‘esquemas generativos’ que orientam e determinam a escolha estética” (ORTIZ in BOURDIEU, 1983, p. 17). Ora, tendo em vista que na sociedade capitalista há a prevalência do “gosto” patriarcal, é fecunda a percepção de que é esse que rege a mente, a ação e os gostos daqueles que inseridos na sociedade do lucro não buscam uma alternativa crítica à compreensão desta realidade. Acabam assim em uníssono por contribuir para a legitimação de uma estrutura social que vê com naturalidade a opressão das mulheres, dos negros(as) e dos pobres e de forma ainda mais perversa a sofrida pela mulher negra e pobre.

O problema da mulher negra no Brasil

As sobreposições de categorias subordinadas, no tange à estrutura econômica bem como a hierarquia de status, às quais a mulher negra se vê inserida têm

sido objeto de discussão tanto de teóricos(as) quanto de gestores(as) públicos implicados com as temáticas que envolvem, em particular, gênero e raça. Destarte, algumas teóricas feministas elaboraram categorias de análises cujo objetivo é permitir uma análise mais apurada sobre a complexidade específica de subcategorias contidas em categorias mais amplas, como gênero, raça e classe social. Segundo Saffioti (2004), as subordinações encerradas no conceito de patriarcado - gênero, raça e classe – são concebidas a partir de uma condição de fundidas, enoveladas ou enlaçadas em um nó; para Crenshaw (2002) estas mesmas subcategorias são consideradas como uma intersecção que tendem a complexificar as condições de vida da mulher negra; por fim, para Fraser (2002), tais sobreposições de subordinação são melhor analisadas como categorias bidimensionais. As três concepções teóricas têm em comum o fato de buscarem o entendimento de como categorias distintas se entrelaçam e acabam por complexificar o cotidiano de uma categoria social, aqui, a mulher negra. Desta forma, levados pelo simplismo teórico, poderíamos crer que se trata de uma superexploração da mulher negra, todavia, o conceito de superexploração não dá conta da realidade, uma vez que não existem apenas discriminações quantitativas, mas também qualitativas. Uma pessoa não é discriminada por ser mulher, trabalhadora e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente discriminada, porque, além de mulher, é ainda uma trabalhadora assalariada. Ou ainda, não é triplamente discriminada. Não se trata de variáveis quantitativas, mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa (Saffioti, 2004, p. 115).

Por meio do excerto acima podemos entender que na vida cotidiana as discriminações pelas quais a mulher negra passa não se expressam por um único viés, dependendo assim do ambiente social no qual ela esteja. Ora, uma mulher negra pode sofrer discriminação de gênero no âmbito familiar pelo marido, discriminação racial em uma loja de elite em determinado Shopping, ou ainda discriminação de classe ao não ter os direitos garantidos no ambiente de trabalho, sem que estas três categorias necessariamente se entrelacem. Entretanto, falando sobre as especificidades raciais do país, Guerreiro Ramos afirma: Num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre estes valores está o da brancura como símbolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições. Na cor negra, ao

contrário, está investida uma carga milenária de significados pejorativos. Em termos negros pensam-se todas as imperfeições. Se se reduzisse a axiologia do mundo ocidental a uma escala cromática, a cor negra representaria o polo negativo. São infinitas as sugestões, nas mais sutis modalidades, que trabalham a consciência e a inconsciência do homem, desde a infância, no sentido de considerar, negativamente, a cor negra. O demônio, os espíritos maus, os entes humanos ou super-humanos, quando perversos, as criaturas e os bichos inferiores e malignos são ordinariamente, representados em preto. Não tem conta as expressões correntes no comércio verbal em que se inculca no espírito humano a reserva contra a cor negra. ‘destino negro’, ‘lista negra’, ‘câmbio negro’, ‘missa negra’, ‘caldo negro’, ‘asa negra’ e tantos outros ditos implicam sempre algo execrável (Ramos, 1957, p.193).

Vemos desta forma, que independente da categoria de classe social a qual o homem ou a mulher negra estejam inseridos, esses serão tidos sempre, sem exceção, como partícipes duma hierarquia de status caracterizada pela inferioridade. Já no que diz respeito ao gênero, Bourdieu expõe a seguinte tese: A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens, e a casa, reservada às mulheres [...] (2003, p.18).

Constata-se, assim, um “avanço” no que diz respeito aos limites hierárquicos de status da mulher negra, tendo essa um status inferior não só na ampla categoria de gênero e raça, mas também no âmbito das duas respectivas subcategorias. Estando essa realidade hierárquica no bojo da estrutura social, seu acesso e, por conseguinte, reconhecimento, se vê restrito àqueles(as) que se aventuram a decifrá-lo e/ou àqueles(as) cuja essa realidade se lhes impõe. Distante do entendimento sobre as origens e atualidade dessa dupla discriminação, gênero e raça, teóricos(as) e agentes sociais como um todo se atêm, em particular, as desigualdades de renda e creem que esta é a principal, senão a única, problemática a ser resolvida. Não veem, ignoram, ou simplesmente camuflam a realidade de que mesmo em meio a uma sociedade na qual

a desigualdade socioeconômica é tida com naturalidade, independentemente do indicador social utilizado, as mulheres negras estão sempre no patamar mais baixo desse, conforme dados do IBGE, 2010. Como exemplo desta realidade, no que diz respeito à distribuição de renda, basta lembrar que, segundo dados do IPEA 2011, a renda per capita da mulher negra equivale a 46% do homem branco, 52% da mulher branca e 95% do homem negro. O acesso restrito à renda é a expressão fenomênica mais superficial que se pode visualizar dos empecilhos socioculturais imputados à mulher negra. Falando sobre os efeitos psíquicos que recaem sobre ela, Neusa Santos Souza, no livro Tornar-se Negro, explica que: Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades (Souza, 1983, p. 17-18).

Podemos, assim, considerar que o que se vê no âmbito social se inclui como parte de um movimento dialético, que tende a escamotear os efeitos mais nefastos daquilo que o tecido social outorgou, ao longo da história, à mulher e ao fenótipo negro, daí o entendimento de que “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (Souza, 1983, p.77). É a parte visível desta complexa problemática social, a ponta do iceberg, que se tende a denominar como o problema da mulher negra. Contudo, uma análise dotada de um mínimo de criticidade nos leva a compreensão de que este não é de fato um problema dela, mas sim imposto, dia após dia, a ela.

Considerações finais

Enraizada na estrutura social, logo, subjazendo às relações sociais como um todo, a ruptura para com o patriarcado - termo tido por muitos como obsoleto – e a restituição de gênero e raça/etnia como marcadores da diferença e não da desigualdade são as únicas alternativas para que a opressão cotidianamente vivenciada pelas categorias e subcategorias sociais se desvaneça. É fato que tal tarefa não é das mais fáceis. Todavia, quando do olhar sobre a história da humanidade, aquilo que alguns possam vir a chamar de utopia se transforma na mais objetiva realidade possível.

A fim de mudanças que permitam o fortalecimento de uma diferença despolarizada em detrimento da desigualdade, acreditamos que um caminho possível seja o teorizado por Nancy Fraser. Tratando as subordinações de gênero/raça e classe como categorias bidimensionais a autora explica que: Gênero (assim como raça) não é somente uma ‘diferença’ construída simultaneamente

pelos

diferenciais

econômicos

e

pelos

padrões

institucionalizados de valores culturais, mas também pela má distribuição e reconhecimento equivocado, que são fundamentais para o sexismo (e também para o racismo) (Fraser, 2002, p. 66)

Desta forma, para que haja uma concepção bidimensional de justiça, a fim de lidar com status e classe a mesma acredita que, Por um lado, precisa englobar as preocupações tradicionais das teorias de justiça distributiva, especialmente a pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de classe. Ao mesmo tempo, precisa também englobar as preocupações recentemente ressaltadas nas filosofias de reconhecimento, especialmente o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status social (Fraser, 2002, p. 66).

Fraser (2002) fala, portanto, não apenas na necessidade de uma ruptura com a sociedade de classes na qual vivemos, mas também na inevitabilidade da desconstrução da racionalidade cartesiana. Em seus respectivos lugares deve advir uma sociedade na qual havendo a diferença de renda, essa não se dê devido à exploração de mão de obra e na qual o pensamento dialético permita com que os indivíduos fujam à perversidade do pensamento maniqueísta. Assim, o problema do outro, aqui o da mulher negra, não será um problema constituído pelo tecido social, mas sim pelas neuroses do sujeito e neste caso um atendimento terapêutico será o mais recomendado. Entretanto, enquanto não contamos com as benesses de tal sociedade, a gestão de políticas públicas focalizadas, em paralelo com as políticas universais, é uma ferramenta que se faz imprescindível para a garantia de direitos, sobretudo, da mulher negra. Desta forma, ao discutirmos as temáticas que envolvem categorias sociais marginalizadas buscamos dar maior visibilidade e, por conseguinte, levar o debate a um público cada vez mais amplo, possibilitando assim a implicação de número cada vez

maior de agentes, a fim de que esses tenham a ciência do papel que desenvolvem para a manutenção do problema da mulher negra.

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