GESTÃO DO TRABALHO AUTÔNOMO NO SISTEMA DE VENDAS DIRETAS

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GESTÃO DO TRABALHO AUTÔNOMO NO SISTEMA DE VENDAS DIRETAS

Adilásio Pedro Pereira Cruz Neto Mestre em Ciências Sociais - UFPA

RESUMO

O esforço de pesquisa que resulta no presente artigo teve por objetivo compreender o mecanismo através do qual se operacionaliza a gestão do trabalho autônomo na empresa de vendas diretas Herbalife. Buscou-se esclarecer, inicialmente, a tendência das teorias contemporâneas de gestão em direcionar aspectos da autonomia dos indivíduos para o mundo do trabalho através do conceito de auto-empreendedorismo. Em seguida, investigou-se a maneira como essa tendência se torna hegemônica e constitui-se como paradigma dominante para as instituições de ensino no campo da gestão do trabalho. Por fim, foram analisadas reuniões promovidas por vendedores Herbalife na cidade de Belém-PA. Essas reuniões de base carismática – destinadas a atrair novos consumidores e vendedores – expõem um mecanismo carismático utilizado como técnica de gestão da força de trabalho autônoma, referenciado no paradigma dominante do auto-empreendedorismo. Como metodologia, procedeu-se à coleta de informações secundárias sobre o conteúdo das disciplinas curriculares dos programas de MBAs (Master in Business Administration) mais influentes do mundo – portanto, que determinam o paradigma dominante desse campo – segundo um jornal especializado em administração de empresas. Essas disciplinas e currículos foram sistematizados em uma tabela, e expõem um programa de ensino voltado à gestão da autonomia e do empreendedorismo no trabalho como um todo. Também realizaram-se observações diretas em duas reuniões de vendedores Herbalife, ocorridas na cidade de Belém no ano de 2013, onde são expostas todas as técnicas e toda a dinâmica específica utilizada para atrair novos consumidores e gerenciar vendedores da empresa. A partir da comparação dos resultados obtidos com os dois recursos metodológicos, pôde-se revelar o modo de gestão e organização dos trabalhadores autônomos no sistema de vendas diretas da Herbalife, que asseguram a perenidade e a reprodução da força de vendas. Este artigo é um desdobramento de parte da dissertação de mestrado defendida no ano de 2014 junto ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Palavras-chave: Trabalho. Trabalhadores Autônomos. Vendas Diretas.

1. INTRODUÇÃO O uso do termo “venda direta” remete imediatamente à modalidade de comércio realizada fora de um estabelecimento comercial fixo, onde um vendedor autônomo compra um produto no varejo e tem de deslocar-se até o consumidor final para a venda no atacado.

Ao longo do seu tempo de desenvolvimento, a venda direta se transforma e complexifica a relação entre o vendedor e a empresa na qual ele adquire os produtos. Atualmente, mais do que comprar um produto para revender, obtendo o lucro através da diferença de preço, um vendedor que atua nesse sistema tem de se ocupar também do trabalho de atrair outros vendedores e replicar a proposta comercial da empresa. Considerando-se tal conjunto de responsabilidades que recaem sobre um trabalhador juridicamente autônomo, torna-se questão fundamental entender a maneira utilizada pela empresa para coordenar e gerenciar essa forma de trabalho. Historicamente, a venda dieta assume sua característica mais importante em meados do século XX, nos Estados Unidos, como forma de se adaptar ao New Deal de Frankling Roosevelt. Este plano econômico pressionou as empresas a formalizarem o vínculo empregatício com sua força de trabalho, como forma de assegurar direitos trabalhistas e garantir as políticas de “bem estar” do pós-guerra nos Estados Unidos. No entanto, após longas disputas contra opositores da venda direta, e em resposta ao segundo New Deal, fora estipulado pela National Association of Direct Selling Companies (NADSC) que o vendedor atuante nesse sistema não se caracteriza como empregado, mas sim como trabalhador autônomo; desse modo evitava-se a imposição do vínculo empregatício conservava-se o sistema de vendas diretas (BIGGART, 1989). Tal estratégia se mantém até os dias atuais, orientando globalmente a relação jurídica entre empresa e força de vendas. Na maior parte das empresas contemporâneas, os ganhos com a atividade de vendas dietas não se resume apenas ao lucro obtido com a revenda. Algumas empresas oferecem premiações em bens, serviços ou dinheiro de acordo com uma escala de desempenho, tanto na atividade de vendas em si, quanto na capacidade de influenciar outros indivíduos a tornaremse vendedores. Assim ocorre no caso da empresa abordada nesse estudo, a Herbalife, onde os vendedores criam redes as quais são utilizadas como critérios para concessão de premiações e aumento nos ganhos. Conforme as redes se ampliam, o número de consumidores também se amplia, assegurando – virtualmente – o incremento nos ganhos da empresa. No entanto, o caráter autônomo da força de trabalho torna incerta a possibilidade de difusão dessas redes, pois essa tarefa é realizada pelo trabalhador de acordo com seu julgamento e habilidade, sem supervisão direta da empresa. Isso abre espaço para o problema fundamental desse artigo, que é investigar o modo pelo qual o sistema de vendas diretas da Herbalife garante a gestão do trabalho autônomo.

Para se cumprir com esse objetivo, é necessário compreender o conceito de autoempreendedorismo, cujos fundamentos genéricos não se encontram restritos a um único autor, e podem ser observados permeando as transformações recentes no mundo do trabalho. A passagem para um modelo de gestão que admite autonomia consiste no paradigma predominante no âmbito do trabalho, e é exatamente no desenvolver desse processo que o auto-empreendedorismo emerge. Esse conceito faz referência a um modus operandi do trabalho, que se expõe como tipologia de comportamento. Com isso, o auto-empreendedorismo pode ser encontrado em diferentes setores de atuação, e se distribui tanto nas atividades com vínculo empregatício quanto – e primordialmente – nas atividades autônomas. Doravante, essa tipologia não se restringe nem mesmo ao âmbito do trabalho, mas torna-se uma linha de ação para qualquer indivíduo em diferentes aspectos da vida social. Após analisar esse conceito e sua permeabilidade enquanto tipologia, será preciso entender melhor a sua gênese e como suas categorizações atingem o mundo do trabalho. Para isso se recorre à teoria do campo empresarial de Bourdieu, demonstrando-se que os fundamentos do auto-empreendedorismo são consolidados por meio de escolas de gestão empresarial. As matrizes curriculares dessas escolas expressam os paradigmas dominantes do campo, difundindo o auto-empreendedorismo como modelo primordial. Com objetivo de apresentar essa organização do campo de ensino em gestão, foi elaborado um quadro onde se expõem parte dos conteúdos curriculares das escolas de negócios mais influentes do mundo, conforme avaliação de jornal especializado. Foram destacados nesse quadro, as disciplinas e conteúdos que exemplificam a presença do auto-empreendedorismo como paradigma hegemônico de ensino empresarial. Superado a definição dos conceitos iniciais, é necessário entender a maneira pela qual esse processo se relaciona com a empresa estudada, para permitir o gerenciamento de seus trabalhadores e a equivalente reprodução de sua força de vendas. As regras para ingresso e aquisição de bônus no sistema Herbalife são denominadas de “oportunidade de negócio” (HERBALIFE, 2013). Parte fundamental do sistema de reprodução da força de vendas na empresa consiste em transmitir essa oportunidade de negócios para outros indivíduos. O principal mecanismo utilizado para isso é o contato direto entre o vendedor e seu público, que não é formalmente mediado pela empresa; atestando a autonomia da função. Ainda assim, existem estratégias para guiar esse contato, as quais são unificadas e transmitidas em eventos, com objetivo de atrair neófitos e treinar os vendedores

de menor nível hierárquico em função do auto-empreendedorismo – e desse modo assegurar a gestão da força de trabalho.

2. AUTO-EMPREENDEDORISMO E TRABALHO O sistema de vendas diretas articula sua força de trabalho baseando-se no pressuposto de que os vendedores serão contratados como trabalhadores autônomos, tendo liberdade de decisão frente a aspectos variáveis, tais como o discurso a ser usado para repassar o produto, o perfil de clientes a ser escolhido, a gestão financeira etc. A liberdade da autonomia, contudo, é problemática, pois confere ao trabalhador autônomo a responsabilidade pelo seu desempenho individual, o que consequentemente, interfere nos ganhos finais da própria empresa de vendas diretas. Esse fator de incerteza em função de certo grau de autonomia compõe um enorme desafio à venda direta, obviamente em decorrência do caráter exclusivamente autônomo de sua força de vendas. Contudo, a temática da autonomia distribui-se medianamente por diferentes setores do mundo do trabalho, inclusive do trabalho com vínculo empregatício. A autonomia figura como um aspecto do toyotismo, que permeia o trabalho formal (e industrial), liberando o trabalhador de “chão-de-fábrica” – outrora atado às tarefas fixas e integralmente planejadas – para ter ideias e tomar decisões ante a aspectos variáveis da produção (PINTO, 2002). Conforme esse paradigma se consolida no ocidente, como uma adaptabilidade ao modelo toyotista oriental, fomenta-se uma nova tipologia de trabalhador:

Uma vez que o cenário tem se tornado cada vez mais adverso à classe trabalhadora, na falta dos mecanismos socioculturais de incentivo japoneses, as empresas ocidentais têm tentado introduzir junto ao sistema toyotista uma nova “mentalidade” no corpo de funcionários. Estabeleceu-se um “tipo ideal” de trabalhador, do qual se exige iniciativa, equilíbrio, acessibilidade e facilidade no trabalho em equipe, raciocínio ágil e, sobretudo, responsabilidade para com os compromissos da empresa, dentre outros aspectos que vêm se conformando dentro do ambiente de trabalho. (PINTO, 2002, p. 71)

Desse modo, a questão da autonomia se torna um requisito pertinente ao trabalho, que se integra à produção enquanto parte do conjunto de capacidades humanas necessárias como substrato para o valor final. Mas para isso, a autonomia precisa ser direciona de modo coeso, integrando-se sob o controle e orientação dos sistemas gerenciais. Estes, por sua vez, desenvolvem mecanismos onde o indivíduo saiba reagir autonomamente às situações

imprevistas no trabalho, sem a necessidade do controle externo constante. O que se espera do trabalhador, doravante, é a disposição irrestrita para que ele se coaja em função dos interesses da empresa, sendo capaz de adotar uma postura ativa frente às variáveis de suas tarefas:

A diferença entre o sujeito e a empresa, entre a força de trabalho e o capital, deve ser suprimida. A pessoa deve para si mesma tomar-se uma empresa; ela deve se tornar, como força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente reproduzido, modernizado, alargado, valorizado. Nenhum constrangimento lhe deve ser imposto do exterior, ela deve ser sua própria produtora, sua própria empregadora e sua própria vendedora, obrigando-se a impor coerções sobre si, necessárias para assegurar a viabilidade e a competitividade empresa que ela é. (GORZ, 2005, p.23, grifos do autor)

Isso significa que no esteio das transformações trazidas pelo toyotismo e pela flexibilização do trabalho, o indivíduo é cobrado como se sua subjetividade fosse uma empresa, e deve olhar desse modo para sua vida social, em seu aspecto ontológico. Há uma confusão entre o que é interesse subjetivo e o que é interesse empresarial, e essa mentalidade é artesanalmente atribuída aos indivíduos pelos sistemas de gestão. Não se trata de um processo de adaptação imanente às condições materiais do trabalho no toyotismo, mas sim de um sistema de gerenciamento e capacitação dedicado a modelar mentalidades em função da maior autonomia e subjetivação necessárias. O gerenciamento dessa mentalidade perpassa esquemas de ensino que serão analisados a seguir, contudo, é a presença consolidada de um aparato intelectual que admite e implementa a autonomia como parte das competências de trabalho que interessa nesse ponto. É a partir dessa mentalidade que se origina a tipologia do trabalhador o qual orienta suas ações para atender as necessidades da empresa, incorporando a visão de um empreendedor, ainda que esta seja antagônica à sua real condição de assalariado. Com isso, observa-se o que Gorz (2005) chama de “auto-empreendedor”, uma tipologia de indivíduo que não reconhece limites entre vida pessoal e trabalho; mas também não possui capital ou empreendimento próprio: Com o auto-emprendimento, a transformação em trabalho (mise en travail) e a redução a um valor (mise en valeu), de toda a vida e de toda pessoa, podem finalmente ser realizadas. A vida se toma "o capital mais precioso". A fronteira entre o que se passa fora do trabalho, e o que ocorre na esfera do trabalho, apaga-se, não porque as atividades do trabalho e as de fora mobilizem as mesmas competências, mas porque o tempo da vida se reduz inteiramente sob a influência do cálculo econômico e do valor. A fronteira entre o que se passa fora do mundo do trabalho e o que ocorre na esfera do trabalho apaga-se, não porque as atividades do trabalho e as de fora mobilizem as mesmas competências, mas porque o tempo de vida reduz inteiramente sobre o cálculo econômico do valor. (GORZ, 2005, p.24-25)

Ao cooptar a autonomia para a empresa, fazendo do trabalhador um autoempreendedor, coopta-se igualmente sua subjetividade, e mescla-se vida pessoal e tempo de trabalho, tornando esvanecidas as fronteira entre um e outro. A subjetividade aparece aqui como os aspectos da vida social que outrora não eram integrados à produção, mas que nesse momento são admitidos e incentivados enquanto fonte de valor própria da autonomia. Isso revela-se como aspecto peculiarmente acentuado no âmbito da venda direta: Ora, é evidente que o “vendedor de mercadorias” compromete muito mais a subjetividade da sua força de trabalho. (...). Por isso, a ampliação das implicações mercantis não apenas no seio da esfera de circulação, mas nos interstícios da produção, uma produção cada vez mais implicada com a atividade de venda, significa que o capital se apropria, de forma intensa e qualitativamente nova, da subjetividade complexa do trabalho vivo. O trabalhador assalariado ou o proletário que se diz “prestador de serviço” está imerso na lógica do produto-mercadoria. (...). Ao vender mercadorias, o trabalhador assalariado ou “prestador de serviço” (o que denominamos de proletário-mascate), vende não apenas um produto, mas vende a si próprio, a imagem com suas disposições anímicas e afetivas. O ato de venda é um ato de investimento libidinal. A prática social mercantil, ao tornar-se estruturante da vida cotidiana, penetra no mundo do trabalho, articulando novas formas de precarização do trabalho vivo, comprometendo a subjetividade do homem que trabalha, envolvendo (e manipulando) a subjetividade complexa, tendo em vista que o capitalismo do século XXI é um capitalismo desenvolvido que ampliou as possibilidades concretas de individuação social. Esta é uma das formas de “captura” da subjetividade do trabalho (...). (ALVES, 2007, p. 141-142)

E se é inteligível que essa proposta advenha ativamente de um sistema de gestão estruturado – não existindo como mera consequência impremeditada das transformações do trabalho – é preciso observar também que esses ideais e tipologias transcendem o emprego e permeiam outras esferas da vida social:

Tudo se toma mercadoria, a venda do si se estende a todos os aspectos da vida; tudo é medido em dinheiro. A lógica do capital, da vida tomada capital, submete todas as atividades e espaços nos quais a produção de si era originalmente considerada como gasto gratuito de energia, sem outra finalidade senão a de levar as capacidades humanas ao seu mais alto grau de desenvolvimento. É ainda Pierre Levy que anuncia a subsunção completa da produção de si: "O 'desenvolvimento pessoal' mais intimo conduzirá a uma melhor estabilidade emocional, a uma abertura relaciona1 mais natural, a uma acuidade intelectual melhor dirigida, e, assim, a um melhor desempenho econômico". Ao menos, essa é a visão neoliberal do futuro do trabalho: abolição do regime salarial, auto-empreendimento generalizado, subsunção de toda pessoa, de toda vida pelo capital, com o qual cada um se identificará inteiramente. (GORZ, 2005, p. 25)

Ora, uma vez admitido que as fronteiras entre o tempo de trabalho e a subjetividade se confundem e tornam-se indistintas, é necessário considerar que o fluxo de interjeições não

é unidirecional. Assim, o processo de fomentação do auto-empreendedorismo não apenas coopta as subjetividades que se movem em direção ao mundo do trabalho na forma de assalariados

(ou

vendedores

autônomos).

Esses

valores

de

autonomia

e

auto-

empreendedorismo também partem do mundo do trabalho em direção a outras esferas da vida social, antecipando-se na difusão de seus princípios como um conjunto de ideais; e isso os permite alçar pretensiosamente ao status senso de comum:

Quando os estudantes chegam à universidade, com os altos percentuais de acolhida a formulações que representam a consciência neoliberal, é porque estiveram expostos à comunicação desses valores, pelos meios de “distribuição das ideias”. Mas principalmente porque essas ideias se materializam na economia política, o mundo dos interesses reais. Dissemos mais: que, acima de todo e qualquer argumento forte dos vários campos do conhecimento e formações, essa gestão contemporânea, com suas técnicas e métodos – gestão da qualidade, customização, empowerment, terceirização, remuneração flexível, enfim, toda a administração flexível, lato sensu –, transformou-se em veículo privilegiado do senso comum neoliberal. Esse poder de persuasão, dissemos ainda, efetiva-se na sociedade civil, o que já se comprovou anteriormente, mas também nas escolas de gestão, onde essas técnicas e esses métodos, a cada ano, são objetos de apreciação, no duplo sentido da palavra. Com o agravante de, com frequência não se dar nenhum laivo de crítica, nenhum contraditório. Antes o contrário, um enorme interesse em assimilar seus detalhes, instrumentos procedimentos e modelos. (GURGEL, 2003, p. 181)

Uma vez que o auto-empreendedorismo pode ser aludido como senso comum, seus valores vão dialogar com outras esferas sociais, e também se impõem aos sistemas de ensino de gestão – ao mesmo tempo em que emergem deles. Assim, as máximas que orientam o aspecto autônomo no trabalho serão distribuídas livremente através de diferentes processos de comunicação. O trabalhador proativo, empreendedor, colaborador, etc. é uma tipologia acessível a qualquer sujeito, os quais são preparados para alcança-la antes mesmo de estarem disponíveis para o trabalho. Isso disponibiliza indivíduos capazes de lidar com a autonomia, e que estão previamente aptos a incorporar os fundamentos necessários a práticas semelhantes à venda direta. A Herbalife, no caso aqui observado, busca gerenciar seus vendedores assimilando essa idealização de trabalhador e esforçando-se para encontrar ou induzir a formação desse perfil ideal entre os participantes de suas atividades e eventos. O fato de não se estabelecer vínculo empregatício, doravante, torna a gestão dessa força de trabalho um desafio, pois a recurso pleno e exclusivo às técnicas de gestão do trabalho formal não se encaixam à venda direta – que recorre ao trabalho autônomo como estratégia específica para sua manutenção. Logo, as peculiaridades desse sistema fazem com que formas mais sutis de gerenciamento da autonomia tenham origem.

A venda direta tomará por base a busca pelo perfil desejado de trabalhador, previamente adaptado a lidar com o trabalho autônomo e capaz de se auto gerenciar. Mas fomentará também o seu desenvolvimento posterior, através de mecanismos específicos, que no caso da Herbalife, são implementados e difundidos nos seus eventos para atrair neófitos. O conteúdo que se apresenta nesses eventos, por sua vez, é indiretamente referenciado em técnicas de gestão do auto-empreendedorismo, consolidadas de modo hegemônico no sistema de ensino para organização do trabalho.

3. AUTONOMIA E DO AUTOEMPRENDEDORISMO COMO PARADIGMA NA GESTÃO DO TRABALHO

O processo de gestão dos trabalhadores autônomos busca selecionar indivíduos que estejam previamente alinhados à tipologia do auto-empreendedor. Contudo, a empresa Herbalife também recorre a seu próprio sistema de treinamento, cujo conteúdo vincula-se direta ou indiretamente ao sistema formal de ensino especializado – que se ocupa de gerir a mesma tipologia de trabalhador. Essa justaposição entre venda direta e ensino é viável, pois o auto-empreendedorismo se tornou um paradigma dominante no âmbito do trabalho, e consolidou-se como senso comum para a vida social; portanto, entende-se que o sistema de treinamento da Herbalife se ancora nas máximas que orientam tal paradigma. E com o objetivo de compreender melhor quais essas máximas, bem como quais as suas fontes, se procederá a uma avaliação das escolas de gerenciamento mais influentes do mundo. Analisando o pensamento sobre o trabalho, sistematizado nas escolas de formação de gestores, estas devem ser entendidas dentro das margens do que Bourdieu (2006) define por “campo da empresa” – uma estrutura tipológica, em que ocorrem disputas pelos diversos capitais presentes nesse campo. O resultado dessas disputas coloca uma empresa na condição de dominante em relação às demais dentro do mesmo campo. Isso origina um conflito por domínio e controle, através do qual se organiza a capacidade de determinar as regras e reorientar o campo, parcial ou totalmente:

Os campos organizam-se de forma relativamente invariante em torno da oposição principal entre aqueles que por vezes chamamos os first movers ou market leaders e os challengers. A empresa dominante tem em geral a iniciativa em matéria de alteração de preços, introdução de novos produtos e operação de distribuição e de promoção; está em condições de impor a forma de jogar e as regras do jogo mais favoráveis a seu interesse. Constitui um ponto de referência obrigatório para os seus

concorrentes, que por mais que façam, são obrigados a tomar posição em relação a ela, de forma ativa ou passiva (...). As forças do campo empurram os setores dominantes para estratégias que têm como finalidade perpetuar ou reforçar seu domínio. É assim que o capital simbólico de que dispõem devido à sua proeminência e antiguidade lhes permite recorrer com sucesso a estratégias que podem ser puro bluff1 mas que o seu capital simbólico torna credíveis, e como tal, eficazes. (BOURDIEU, 2006, p. 276/277)

A estrutura de funcionamento do campo da empresa revela uma dinâmica específica, onde as empresas dominantes impõem seus próprios paradigmas e modificam o campo para assegurar o seu arranjo. Portanto, o processo de assimilação das transformações do autoempreendedorismo – tal qual outros paradigmas hegemônicos nesse campo – pode ser virtualmente deduzido como resultado de uma imposição das empresas dominantes, que adotam paradigmas específicos e os consolidam como referência legitimada, para assim redefinir os padrões de todo o campo. Com isso é possível equalizar e unificar os paradigmas postos à gestão do trabalho, dando origem ao “isomorfismo institucional”:

The concept that best captures the process of homogenization is isomorphism. In Hawley's (1968) description, isomorphism is a con-straining process that forces one unit in a population to resemble other units that face the same set of environmental conditions. At the population level, such an approach suggests that organizational characteristics are modified in the direction of increasing comparability with environmental characteristics. (DiMaggio, 1983, p. 149)

O isomorfismo que consolida a unicidade dos paradigmas, contudo, não é implementado por uma entidade social exógena ou apriorística. A homogeneização da proposta do auto-emrpeendedorismo, como uma forma de isomorfismo, é adotada e conduzida ativamente por decision makers¸ os quais não são “treinados” para tal dentro da própria empresa. O “Isomorfismo pode ocorre porque formas não ideias são selecionadas dentre uma população de organizações, ou porque decision makers organizacionais aprendem resposta apropriadas e ajustam seu comportamento de acordo”2 (DIMAGGIO, 1983, p. 149). No entanto, as empresas, per se, não são instituições de formação didática da força de trabalho especializada (se não ad hoc e complementarmente). Suas demandas por gestores – decision makers que comandam a adaptação das empresas às mudanças do campo – são supridas através das instituições de ensino. Estas, por usa vez, são especialmente interligadas ao campo econômico, e constituem também seu próprio campo; havendo instituições de 1

Blefe (tradução livre) “isomorphism can result because nonoptimal forms are selected out of a population of organizations or because organizational decision makers learn appropriate responses and adjust their behavior accordingly” (tradução livre) 2

referência que impõem-se sobre as outras, como líderes capazes de determinar o que é válido e o que deve ser descartado no âmbito da formação dos gestores . Ao

formularem

e

reformularem

seus

paradigmas

em

torno

do

auto-

empreendedorismo, as escolas mais fortes geram impacto sobre as outras com menos poder, e produzem um processo de reestruturação global das concepções sobre gestão do trabalho. A organização dessa influência pode ser verificada empiricamente a partir da colocação das escolas legitimadamente dominantes e da forma como elas orientam a ética ou os valores a ser adotados pelos seus alunos – futuros decision makers – ao longo do seu processo de formação. O site do jornal Financial Times elabora anualmente uma lista classificando os melhores cursos de MBA (Master in Business Administration) do mundo, levando em conta diferentes universidades em vários países. As instituições que lideram essa lista podem ser entendidas, pois, como o grupo que domina esse campo, dado seu reconhecimento como líderes globais legítimos, no âmbito do ensino e formação de gestores (decision makers). Estas instituições irão forjar o perfil educacional requisitado àqueles profissionais responsáveis por organizar o trabalho em diferentes empresas. Assim, as escolas de gestão atestam os princípios do auto-empreendedorismo – tais como liderança, persuasão, estratégias etc. – dissolvidos nas formas de preparação profissional e treinamentos.

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Pennsylva nia: Whartol

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-

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Observa-se que nas principais escolas de especialização de gestores, fundamentos como a liderança de equipes, o comportamento no trabalho e o empreendedorismo são

temáticas recorrentes, e constituem parte das competências básicas a serem apreendidas pelos profissionais. Nessas instituições, as disciplinas estão voltadas ao entendimento das ações humanas, ou de modo mais correto, das reações humanas em função de variáveis, como poder, intuição, competências interpessoais, etc. Os gestores, enquanto leaders, são capacitados a “ajudar” as pessoas a se desenvolverem e se engajarem voluntariamente no trabalho. O líder organizacional aparece como um agente responsável por inserir a mentalidade

auto-empreendedora

nos

seus

liderados,

oferecendo

opções

para

o

desenvolvimento de competências em função da auto motivação para o engajamento no trabalho. Portanto, verifica-se que entre as escolas que dominam o campo do conhecimento especializado em gestão do trabalho e formação de decision makers, há vigência de teorias especificamente voltadas para a liderança como uma habilidade (desenvolvida) de fazer os demais indivíduos comprometerem-se autonomamente com suas atividades, mediante reação a estímulos motivacionais. A Columbia Business School (2013), a quinta colocada no ranque citado, define exemplarmente quais os processos que um líder deve observar, encontrados na disciplina “Power and Influence in Organizations”, onde se aprende a diagnosticar “como poder e influência podem construir cooperação”3. Dessa maneira, os novos gestores esculpidos nessas escolas irão promover as práticas de gerenciamento baseadas no auto-empreendedorismo, suprindo a demanda por esse tipo de função, legitimados pelas posições de liderança das instituições de ensino onde cursaram seus MBAs. Isso irá repercutir tanto nas instituições por onde eles se distribuem, quanto nas demais escolas de gestão espalhadas pelo mundo. Certamente, não é possível afirmar que essas escolas dominantes são responsáveis pela emergência do paradigma do autoempreendedorismo – o qual está relacionado com a autonomia nas empresas e com os fundamentos do toytismo no ocidente. Contudo, pode-se admitir que essas disciplinas dos MBAs dominantes difundem-se no esteio das transformações no trabalho, que legitimam o paradigma citado e exercem influencia sobre o campo, consolidando – no mínimo – sua influência global e isomórfica. Assim, esse padrão de gerencia se torna cada vez mais influente no campo das empresas em geral, e das instituições de ensino, consolidando-se e, mais importante, servindo de modelo para a gestão do trabalho nos setores que lidam com a autonomia do trabalhador.

3

Tradução livre

4. REUNIÕES DE APRESENTAÇÃO E GESTÃO DO TRABALHO AUTÔNOMO NA VENDA DIRETA

Para observar o paradigma predominante de gestão no sistema de vendas diretas como resultado das influências do isomorfismo em torno da tipologia de auto-empreendedor, é necessário esclarecer, antes, em que consiste a venda direta na Herbalife, de que forma um indivíduo alcança à empresa, e como desenvolve seu trabalho autônomo nela. Somente assim poder-se-á estabelecer as correlações fundamentais que levam a conclusão desse artigo. A atividade de venda direta é definida pela Associação Brasileira de Empresas de Venda Direta (ABEVD) como “um sistema de comercialização de bens de consumo e serviços baseado no contato pessoal entre vendedores e compradores, fora de um estabelecimento comercial fixo” (ABEVD, 2012). Mais do que isso, o processo de ampliação da força de trabalho também depende desse contato pessoal, pois é assim que se atraem novos vendedores nos quadro da empresa pesquisada. Esse mecanismo de inserção de neófitos é vital, pois dele depende a expansão do quadro de vendedores e consumidores. E para suprir essa necessidade de comunicação da proposta da empresa, potencializando o desempenho do contato pessoal vendedor-consumidor – essência elementar de todas as formas de venda direta – é que se desenvolvem as reuniões de apresentação, eventos com duração de três a quatro horas, realizados em espaços com amplitude equivalente ao público esperado. Essas reuniões consistem em mecanismos universais da venda direta, denominado genericamente de party plan (ABÍLIO, 2011). Tratam-se encontros sociais, onde os organizadores buscam transmitir o máximo de informações por meio de apelos carismáticos, valendo-se de técnicas de comunicação que tornem a proposta da empresa o mais atrativa possível. Na Herbalife, essas reuniões são sistematicamente organizadas pelos vendedores mais experientes, e dividem-se em dois grupos. No primeiro encontram-se as reuniões mais simples que introduzem a “oportunidade de negócio”4, realizadas com maior frequência, e de curta duração. No segundo, estão as reuniões mais suntuosas, com duração mais longa e maior uso de recursos. Contudo, ambas as reuniões possuem o mesmo papel: repassar informações especializadas sobre a atividade de vendas diretas da empresa.

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“Oportunidade de Negócio” é o termo utilizado pela Herbalife para classificar as regras do sistema de comercialização de seus produtos e concessão de bônus.

As reuniões mais breves e simples, ou “reuniões de apresentação”5, serão objeto deste estudo, pois são mais facilmente acessíveis ao púbico geral, destinam-se a estabelecer um primeiro contato com as propostas da Herbalife (tanto com o produto quanto com a “oportunidade de negócio”) e apresentam as características dos produtos comercializados, os benefícios nutricionais e estéticos com o seu uso, e as possibilidades de ganhos econômicos e emocionais ao se tornar um vendedor Herbalife. As reuniões de apresentação revelam o modo como se opera o repasse dos conhecimentos a serem utilizados pelos vendedores em sua atividade. Elas ocorrem com periodicidade indeterminada, uma vez que cabe a um grupo de vendedores já estabelecidos organizá-las, de acordo com sua necessidade e intento. Mas apesar disso, sua estrutura de funcionamento e objetivos são constantes. Para compor esse trabalho, foram observadas duas destas reuniões, ocorridas nos dias nove de julho de dois mil e onze, e dezenove de outubro de dois mil e onze, tendo por espaço o auditório de um hotel localizado na região central da cidade de Belém. O auditório possuía lugar para cerca de sessenta pessoas e contava com sistema próprio de som, iluminação e projetores. O início da apresentação é comandado por palestrantes iniciais, que esclarecem a temática da reunião através de colocações generalistas sobre benefícios econômicos e materiais que um indivíduo pode ter ao ingressar na Herbalife. Todos os expositores, independente do prestígio que detém, iniciam suas apresentações falando sobre sua atividade profissional paralela à Herbalife, destacando a instituição que fazem parte e o vínculo estabelecido com ela, atual ou passado, de acordo com o caso. A natureza diversificada de atividades apresentadas pelos palestrantes (emprego em setor privado, emprego em setor público, empreendimento, e trabalho autônomo) indica, implicitamente, a noção de equidade nas chances de obter ganhos e bônus. Nesse contato inicial, há um apelo à ostentação de bens e serviços adquiridos pelos palestrantes em função da venda direta, como grandes imóveis, motos, barcos, e viagens. Em seguida remete-se diretamente aos volumes monetários, que sempre estão acima das dezenas de milhares de reais por mês. Na plateia se desencadeia uma comoção a cada possibilidade de ganho exibida pelos palestrantes, e as reações clarificam a composição do grupo de presentes. Os vendedores e vendedoras de maior experiência se destacam pela vestimenta estritamente formal, pelo uso 5

Terminologia proposta com base na interpretação das observações, uma vez que essas reuniões não possuem denominação pré-estabelecida pela empresa ou pelos vendedores.

de insígnias e principalmente pela interação efusiva com a dinâmica. Eles costumam ocupar os lugares mais próximos do púlpito onde se encontram os apresentadores, bem como reagem de imediato às incitações de ânimo, transmitindo a imagem de uma naturalização das reações. Enquanto o público neófito, por sua vez, se mantém mais distante, participando timidamente ou mesmo se excluindo da dinâmica. Os apresentadores encerram suas colocações gerais criando grande expectativa sobre o palestrante principal, que irá conduzir o trabalho de repassar a proposta da Herbalife. Em seguida, eles o anunciam e retiram-se. O palestrante principal tende a ser a pessoa mais bem colocada na escala meritocrática da empresa. Apesar da sua posição de destaque e da comoção despertada, a dinâmica da sua apresentação difere das demais apenas qualitativamente. O roteiro, ou a estrutura de suas colocações, seguem o mesmo procedimento: eficiência do produto, ganhos financeiros e materiais, e realizações emocionais adjacentes. O primeiro assunto a ser abordado é a história da criação do principal produto Herbalife – um suplemento alimentar. A motivação para o surgimento desse produto teria sido resultado de uma experiência emotiva vivenciada pelo fundador da empresa, ao perder sua mãe em decorrência do uso descontrolado de medicamentos para redução de peso. Como forma de reação pós-trauma, o empresário teria iniciado esforços para desenvolver e comercializar um suplemento nutricionalmente adequado. A ilustração desse processo de cunho emocional é necessária para manter a estrutura da venda direta funcionando. Como evidencia Bittencourt (1999), as empresas de venda direta não utilizam o aparato burocrático como principal maneira de organizar e orientar seus membros. Trata-se de uma forma carismática de legitimação, no sentido weberiano, que articula valores, interpelando sujeitos a agir de acordo com o auto-empreendimentismo. É tendo por base a credibilidade nos valores carismáticos dos líderes locais, no ideal do fundador, no comprometimento dos gestores e de toda a estrutura de suporte (laboratórios, pesquisadores, acionistas, etc.) que se cria uma imagem de solidez nos resultados financeiros amplamente expostos na apresentação. Todos esses aspectos são condensados pelo palestrante para denotar que a empresa oferece o suporte necessário à vendabilidade ampla dos produtos, e o vendedor, por sua vez, deve estar “livre” para ocupar-se apenas em replicar com sucesso as técnicas de venda. Tal idealização das facilidades de mercado expostas na reunião é acompanhada das manifestações da plateia, que corrobora as conclusões do palestrante através de explosões de animosidade.

Assim, a venda direta aglutina – idealmente – a possibilidade de ganhos em vários níveis, incluindo àqueles não monetários:

As empresas de Network Marketing [que baseiam sua comercialização no contato direto entre pessoas], conforme sustenta a socióloga norte-americana Nicole Biggart, são formas de organização carismática baseadas por sua vez em uma racionalidade de valor, segundo a perspectiva weberiana. Elas incorporam um sistema de crenças e valores não exclusivamente relacionados à eficiência ou lucratividade, mas à crença, conforme coloca Weber, no ideal substantivo ou objetivo como dever, honra, a busca da beleza, o chamado religioso, a lealdade pessoal ou a importância de alguma causa. (BITTENCOURT, 1999, p. 95)

O recurso ao carisma trabalhado nas reuniões – sob a forma da personalidade do palestrante, do caráter emotivo na concepção do produto, ou na interação das plateias de vendedores – convida os indivíduos ao empreendedorismo (e às suas múltiplas formas de ganhos), mas os isenta virtualmente dos riscos, declarando a disponibilidade da empresa em assumir funções diversas (como propaganda e organização dos impostos), as quais buscam facilitar a atuação do vendedor no sistema. Expostas dessa forma, as “facilidades” conferidas pela Herbalife aos seus vendedores aparecem como um meio minimizar o trato com aspectos materiais do trabalho – tais como estruturas, locomoção, organização de estoques, etc. – sem contudo negá-los, e assim desloca maior energia para a essência valorativa do empreendedorismo, onde este aglutina a forma tipificada de ação necessária para o conduto da venda direta:

O empreendedor seria o inovador combinando diversos fatores de produção como: trabalho, terra, capital, conhecimento e capital social na produção de bens e serviços para um mercado relativamente competitivo dentro de contextos determinados. Difere do capitalista e, enquanto tal, não se constitui nem profissão, nem condição duradoura e nem de classe. O empresário não seria necessariamente parte da burguesia, estando presente em vários setores sociais, a partir de indivíduos que incorporariam essa “psicologia” do empreendedor (...) Da mesma forma, o empresário se diferencia daquilo que chama de “mero” administrador. A diferença entre o primeiro e o segundo é que aquele escaparia do “fluxo habitual” de todo indivíduo que age racionalmente a partir da segurança dada pela aptidão e experiência que caracterizam o segundo que, ao defrontar-se com a inovação, precisará de orientação. O empresário [empreendedor] ao contrário, seria caracterizado pela liderança ao nadar contra a corrente rotineira. O sucesso dependeria igualmente de fatores subjetivos como a intuição, a capacidade de ver as coisas de uma forma que posteriormente evidencia estar correta. Assim, o tipo empresarial de liderança pode ser encontrado tanto no capitalismo, no socialismo ou mesmo numa tribo primitiva. (LIMA, 2010, p. 165-166)

O empreendedorismo atua como um elemento propulsor, ou uma fonte de energia, que alimenta todo o discurso e a estrutura carismática – a qual solidifica as relações com a empresa. Desde a figura do líder, até a crença no produto capaz de trazer benefícios não

descritos em suas funções essenciais, tudo é orientado e exaltado de acordo com um maior ou menor nível de empreendedorismo imputado pelo palestrante. O líder tem que ser, obviamente, um exímio empreendedor, o produto deve “vender por si” – palavras do palestrante –, o fundador da empresa foi um grande empreendedor com uma ideia original – também carismaticamente constituída –, os melhores empreendedores são aqueles que fazem mais amigos, e os demais benefícios de caráter econômico são uma recompensa e uma forma de avaliar quantitativamente o trabalho. Boltanski e Chiapello (2009) revelam que esse discurso carismático é uma forma de educar o trabalhador para assumir um papel específico de se adaptar às inconstâncias da atividade autonomizada. Todo esse discurso emerge como um produto social das transformações do mundo do trabalho, que atuam para além da técnica impessoal, como uma ideologia cujas origens remetem às escolas de gestão e suas ideias de autoempreendedorismo:

Atualmente, o mercado editorial brasileiro vem explorando um segmento considerado como literatura para profissionais, relacionado à vertente da auto-ajuda e que enfoca o que os profissionais devem fazer para adaptarem-se e terem melhor desenvolvimento no trabalho ou, ao contrário, “largarem tudo” e buscarem o negócio próprio.(...) o sucesso desse setor da auto-ajuda para profissionais pode ser tanto expressão da vitória do saber instrumental e da eficácia da indústria cultural – que trata de homogeneizar comportamentos, de produzir, em massa, problemas, angústias e a solução para tudo isso, por meio de ações controladas e calculáveis – como também uma expressão do “reencantamento”: ao lado de dados estatísticos, de conhecimentos legitimados pelas ciências, tais manuais invocam os deuses, falam de fé, de sorte, de energia positiva, da força da mente e temem a revolta das forças da natureza e das energias negativas do mundo. (LEITE e MELO, 2010, p.41)

No encerramento da reunião, o palestrante principal retoma à frente e passa a trabalhar sua palestra tecendo comparações direcionadas exatamente às atividades de vínculo empregatício. Fica evidente o esforço exercido em toda a reunião para atrair neófitos e consumidores. E a observação das diferentes formas de interagir com o conteúdo exposto, especialmente a coordenação existente nas reações dos vendedores estabelecidos, revelam que a reunião também serve para que vendedores de maior prestígio e com melhores resultados (em vendas e na atração de neófitos) treinem outros vendedores para difundir as técnicas de reprodução da força de trabalho. Ou seja, as reuniões de apresentação consistem – dentre outras coisas – em um modelo de ensino informal para a gerência do trabalho autonomizado no sistema de vendas diretas, habilitando os vendedores participantes a reproduzir e organizar aspectos do auto-empreendedorismo inerente a essa atividade.

5. CONCLUSÃO

Os discursos dos vendedores nas reuniões de apresentação Herbalife são homogeneizados em decorrência da participação nos eventos desse tipo – e de outros que se diversificam conforme o vendedor aumenta seu desempenho. O trabalho de um palestrante – ou de um vendedor que intenta atrair neófitos – é transmitir os valores do autoempreendedorismo de modo verossímil e carismático, articulando uma justaposição desses ao trabalho individual, semelhante ao que se apreende nas grandes escolas empresariais, denotando assim uma homogeneização isomórfica desse paradigma. Contudo, é o elemento autônomo que faz da Herbalife – e das demais empresas de vendas diretas – um caso específico, pois nele, as imprevisibilidades da autonomia relegam pouca margem de controle por parte da empresa. Esse é o revés do trabalho autônomo, e para tornar efetiva a gestão desse trabalhador, ele é instruído a agir como um líder, um empreendedor de si mesmo, que ao transmitir suas ideias, possa despertar nos seus ouvintes uma mentalidade igualmente empreendedora, fazendo com que estes também desejem se engajar com o trabalho na Herbalife – incorporando a tipologia do auto-empreendedor, ao mesmo tempo em que a difunde. O vendedor se torna também o reprodutor do sistema de vendas diretas, recebendo incentivos financeiros e morais para isso. Ele deve reconhecer e estimular talentos, como um gestor empresarial, e transmitir os valores que ele mesmo apreendeu durante seus treinos em eventos, de acordo com o nível que ele se encontra. Estes valores são baseados no carisma, no apelo emocional e motivacional, constituído pela empresa e difundido como um código que reivindica legitimidade – enquanto condição ideal para o desenvolvimento econômico. Nas reuniões, os vendedores são treinados para utilizar esse tipo de técnica como ferramenta de trabalho, não apenas para lidar com um grande público, mas até mesmo quando estiverem realizando uma venda individual. Assim, esse indivíduo adota e reproduz um sistema de gerenciamento da sua autonomia, enquanto descaracteriza as fronteiras entre trabalho e vida pessoal, e também entre competência técnica e subjetividade. Logo, verifica-se que a gestão do trabalho autônomo no sistema de vendas diretas da Herbalife é possível em decorrência do apelo amplo ao auto-empreendedorismo constatado nos discursos carismáticos da empresa, que intencionalmente confunde a legitimidade e a internalização desses ideais com o proporcional desempenho no trabalho. Dessa forma a empresa aglutina indivíduos em torno de sua proposta magna: vender seus produtos. E se o

exímio vendedor é um exímio consumidor no atacado, ao angariar novos exímios vendedores, se obtém a equivalente reprodução de consumidores e de todo o sistema. Com isso, é possível compreender que durante as reuniões, os vendedores são treinados para administrar a si próprios em suas tarefas básicas: a venda e a cooptação de neófitos. Eles aprendem, treinam, e aplicam as técnicas de gestão do auto-empreendedorismo, assim como os gestores decision makers apreendem nos cursos de MBAs, contudo, enfocam o princípio carismático para superar a completa autonomia do vínculo, pois é através do carisma que se legitima a crença no auto-empreendedorismo, condição sina qua non para a reprodução do sistema de vendas diretas. Assim, forma-se uma unicidade de práticas, que alinha e organiza o trabalho autônomo na Herbalife.

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