Giorgio Agamben: felicidade e profanação

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Giorgio Agamben: felicidade e profanação



Thanos Zartaloudis Quanto mais de perto se olhar uma palavra, maior a distância de onde ela retribui o olhar. Karl Kraus

No contexto da presente crise imposta por várias forças económicas e meios político-jurídicos, que assolou a Grécia e outros países do sul da Europa, torna-se especialmente interessante verificar a relativa passividade e o silêncio de uma larga maioria das pessoas perante as medidas severas e os duros cortes que as afectam. Após uma tendência inicial de resistência, insurreição e manifestação, a maior parte dos insurgentes na Grécia, pelo menos por agora, parecem ter recuado, amedrontados e desapontados. Creio, todavia, que o lugar para o qual as pessoas deveriam ter olhado em busca de novas questões e respostas face a esta complexa situação encontra-se, precisamente, no interior das suas vozes e corações, e não fora deles. Contrariamente à ideia prevalecente no quadro de todo o género de pensamentos de Esquerda, de que tal movimento seria introspectivo, solipsista e derrotista, creio que é justamente ali que o âmago do comum pode residir. A espectacularização e a sacralização do logos e da physis poderão ter levado a que o comum tenha sido colocado uma vez mais num antigo ou pretensamente novo fórum, mas não é aí que o podemos encontrar. E se a palavra e o sentido mais fortes do comum residirem num limiar profano que reconhece a diferença entre interior e exterior, logos e physis, experienciando contudo aí a indistinção de um lugar comum ou de um campo de imanência, exercendo-o como criação e destruição? Não configurando isso uma panaceia ou um programa político, como podemos pelo menos pensar tal experiência cuja definição aponta precisamente para o sentimento de uma experiência? 1. E se a felicidade fosse o limiar de todo o ser e prática (políticos)? E se a felicidade não devesse ser concebida nem como um estado de inocência natural nem como algo situado num plano teleológico ou escatológico? O que está em causa, pois, é a eudaimonia, a felicidade (num primeiro olhar), ou melhor, em Agamben, a felicidade pensada como forma de vida e uma vida de forma. Embora difícil, é hoje especialmente adequado considerar uma forma de vida (um ethos) capaz de descentralizar a sua existência dos paradigmas de solução e redenção. Tal levaria a uma reperspectivação da prática política como sendo não-ideológica (no sentido de uma remediabilidade) e não-teológica (enquanto redenção). Repensar a política prática como «um meio sem fins», tal como Agamben propõe, requer portanto uma experiência dos meios que se compreendem também pela sua própria receptividade (o que Agamben chama de «potencialidade»). É desafiante conceber a felicidade (o facto de o fazermos filosófica ou politicamente é pouco relevante) como vida e não como um meio (moral, político, filosófico, etc.). No quadro de um entendimento convencional da política, pensar a felicidade como vida pode parecer algo demasiado sem forma para se constituir como um modo moral ou político, ou como um telos. Porém, uma vida na errância dos seus fragmentos, nas suas possibilidades genéticas, não é uma ausência de forma, mas uma forma de vida, ou mais exactamente, parafraseando Agamben, uma forma-na-vida – pois uma vida não pode ser separada da sua forma nem vice-versa, sendo todavia necessária a experiência da distinção entre ambas.

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Texto traduzido do inglês por José Gomes André.

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Neste sentido, a felicidade não pode ser concebida como uma relação entre um meio e um fim, algo vivo que aspira a obter uma certa qualidade ou forma. A felicidade não é algo localizável ou passível de ser encontrado, mas algo que existe. Ser-se feliz (viver bem – eu – com/no seu ethos daimonico, para recordar Heraclito) permanece um enigma insolúvel caso se procure um fim ou uma separação/relação entre meios e fins. Podemos assim perguntar: e se, na verdade, o enigma da vida na sua irredimível fragmentação fosse pensado a partir do olhar da Esfinge, na perspectiva (não-convencional) da experiência do seu próprio surgimento, da sua manifestação como manifestação, em vez de ser olhada como uma solução para um problema? E se a felicidade não fosse um problema que necessita de uma solução, mas uma vida para ser vivida sem recurso a um fim redentor ou a uma resolução política/moral? E se a felicidade não fosse uma questão de escolher que parte (vida ou forma) temos de deixar para trás de modo a se alcançar a outra (como na falsa alternativa entre política anárquica e soberania democrática)? Falamos portanto de um ser-feliz concebido como uma errância em fragmentação entre viver e formar, physis e logos, que não mais teria de culminar com uma separação sacrificial (entre forma e vida), uma estrutura de pressuposição negativa através da qual ora a vida se tornaria forma ou a forma se tornaria vida. Por outras palavras, a felicidade residiria na relação inseparável entre uma vida que só pode ser formada e uma forma que só pode ser vivida. Se isto não é um programa (político), então a vida não é um problema que procura uma solução (nem uma solução que busca um problema), mas algo que encontra problemas seguidos de outros problemas1. A ideia de felicidade como vida profana (por definição uma experiência social, comum, e por conseguinte também política) está intimamente ligada com o modo como Agamben entende a experiência do pensamento. A seu ver, o pensamento é o elo que constitui formas de vida. Este elo é constituído por formas e vidas e, como tal, por uma dupla afecção do pensamento: pela produção de um pensamento, bem como pela experiência da sua própria receptividade ou potencialidade. Para superar o modelo bipolar jurídico-político e teológico de uma teocracia secular e não-secular, que ainda hoje prevalece, é necessário diferenciar a ordem da felicidade da ordem da decisão messiânica (a cisão da vida relativamente à forma ou vice-versa). Ordem de cisão que, por sua vez, forma e é formada por outra ordem bipolar: a imagem soberana de um trono poderoso (o Ser, a Essência, o Poder do poder) e a prática governativa de poderes ou capacidades ministeriais (administração, gerência). Esta segunda bipolaridade do modelo político messiânico revela, assim, a proximidade entre as teocracias seculares e não-seculares. A partir das narrativas teóricas e políticas acerca da origem e significado da felicidade, compreendemos que tanto as perspectivas seculares, como as não-seculares, vêem a felicidade na vida como nada mais do que um fim adiado (seja em nome da lei divina ou do juízo final, ou em função de uma democracia liberal perfeita a alcançar no futuro). Pelo que cabe novamente questionar: e se a felicidade não fosse uma questão de decisão (cisão, separação de forma e vida, physis e logos), mas uma questão de escolha (entre meios e fins, como também entre diferentes meios e diferentes fins)? Poderá a felicidade, enquanto eudaimonia, ser pensada como uma experiência de meios que encontram a sua própria potencialidade, a sua própria manifestação da manifestação? Tal considera Agamben ser a «tarefa da política». Uma experiência profana da felicidade (não concebida aqui de um ponto de vista psicológico ou teleológico) pode residir, em primeiro lugar, na palavra. Ao reflectir sobre a concepção de uma ordem histórica profana, Walter Benjamin considerou que o seu tempo era marcado por uma condição específica que parece manter-se actual: a hipocrisia da “boca silenciada” como lugar de autoridade, que reina mas não governa. A redenção refere-se aqui, não a uma tentativa de salvar o passado, mas de resgatar o que nunca existiu: o novo, a nossa sempre-jovem forma de ser. Políticos-vigários de todo o género pretendem remeter o desejo e a acção para um lugar silencioso e vazio, de forma a destacarem-se posteriormente

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No fundo, seríamos remetidos para o sentido mais próprio do termo “problema”, cuja etimologia aponta justamente para algo que é atirado (ballein), uma questão, uma tarefa, surgindo ao mesmo tempo como uma barreira prestes a ser encontrada, apresentada (-pro) ou colocada diante dos nossos olhos.

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como administradores salvadores. É necessária uma nova prática-em-construção, que reenvie os actos, as ideias e os desejos – a carne-porvir das coisas – para o plano da experiência (um experimentum pela sua physis, uma nova prática-em-construção, em vez de um encontro de linhas de acção e de fins). De modo análogo, uma compreensão profana da felicidade (eudaimonia) como vida significaria a destruição da sacralização da «vida nua» [nuda vita], na expressão de Agamben, uma vida despida do seu poder, das suas potencialidades. O único objecto político autêntico para as várias formas de soberania ou autoridade sagradas tem sido uma vida separada do que poderia fazer, desprovida da experiência que, enquanto forma viva e forma de viver, poderia ser. A alternativa a uma vida condicionada por uma forma vazia (a «vida nua») é uma vida marcada pela sua continuada condição de possibilidade (a sua potentia), a qual será experienciada in actu (no surgimento de um acto). 2. «Sejamos claros», com humor, como Henri Michaux a dado momento propôs: o “segredo” da nossa situação metafísica não reside numa natureza substancial ou numa essência que é postulada primeiramente e acima de tudo, mas sim num nome (onoma). Como tal, a chave para a nossa situação é o facto de ser onomástica. Agamben sumarizou o que está em causa no seu pensamento na seguinte passagem: Nesta autêntica dimensão temporal, descobre-se o verdadeiro significado do estatuto poético do homem na Terra. O homem tem na Terra um estatuto poético porque é a poiesis que lhe oferece o espaço original do seu mundo. É apenas porque ele experiencia na epochê poiética o seu ser-no-mundo como a sua condição essencial que se abre um mundo para a sua acção e para a sua existência. É apenas porque ele é capaz do mais excepcional poder, o poder de produzir uma presença, que se torna também possível uma praxis, uma actividade voluntária e livre. É apenas porque ele alcança, no acto poético, uma dimensão temporal mais original, que lhe permite tornar-se um ser histórico, para quem a todo o instante está em jogo o seu passado e o seu futuro. (Agamben, 1999c: 101).

A abertura desta dimensão ou interrupção poiética original parece estar sempre consignada ao silêncio, à indecisão e à receptividade passiva e escatológica. Escreve Agamben: A espiritualidade genuína e a cultura não esquecem esta vocação original e infantil da linguagem humana. A tentativa de imitar o gérmen natural de forma a transmitir valores imortais e codificados, pelos quais a abertura neoténica se fecha uma vez mais numa tradição específica é, ao invés, precisamente a característica de uma cultura degradada. (Agamben, 1995: 97)

Neste sentido, a «origem» é aquilo que importa mas, de modo crucial, a origem não pode ser um fundamento essencialista ou um fim escatológico aos quais regressaremos de forma a ser absolvidos. Contrariamente ao entendimento dominante, que desconhece os verdadeiros paradoxos, o pensamento deve antes ser compreendido como algo que, paradoxalmente, se move junto daquilo que está ao seu lado (para), junto da sua potencialidade, do seu surgimento não-exaustivo. Não é pois um fim a ser encontrado, mas um fim que deve ser levado para diante (teles-foros). Como podemos entender este movimento, em particular, um tal movimento que se desloca em duas direcções ao mesmo tempo, formando encontros transdutivos entre as suas polaridades? O movimento é uma misteriosa aporia para o pensamento filosófico, jurídico-político e teológico. Devemos sublinhar, porém, que tanto as concepções de Agamben como de Deleuze respeitantes à compreensão da fortuna do pensamento (dike) são bastante próximas, assentando numa imagemmovimento dos seus pensamentos: «o imperativo ético = tornar-se, tornar-se outro, encontrar uma linha de fuga = viver» (Deleuze, 1994: 57). Trata-se apenas de uma mera sugestão, mas talvez um fio condutor que aproxima estes dois autores esteja justamente na sua referência mútua à concepção de Simondon da «relação transductiva», entendida como uma génese contínua (individuação) ou uma ontologia em desenvolvimento que recebem

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in actu (na sua individualização) o que resta de um potencial inexplorado do mesmo poder (Simondon, 1989). O que está “em jogo”, pois, é uma concepção dinâmica e ditosa da individuação, um processo contínuo, e não uma característica intrínseca possuída pelos indivíduos como um predicado (o indivíduo precede a individualidade da diferença prescrita no próprio conceito). Em rigor, ditoso significa, não um retorno a um qualquer fim essencialista da praxis, mas uma certa mudança de atitude (porventura uma forma de ascetismo): a praxis e a existência concebidas e vividas de modo inseparável. Contra o substancialismo, o essencialismo e o hilomorfismo, Simondon chama portanto a atenção para o facto de o processo pelo qual o indivíduo se torna indivíduo ser ontogenético. O indivíduo não é constituído a partir de um arquétipo estático passível de ser usufruído (frui), que encontraria o seu poder tal como se colhe um fruto de uma árvore, resultando, ao invés, de um processo constante de individuação intermédio (puer). Esta tese permite assim estabelecer uma ligação útil entre Agamben, Deleuze e a noção de poder de Foucault (que vai igualmente para além da ideia de um “fruto a colher”). Mais importante ainda, esta ideia conduz-nos de forma lógica à proposição de que o indivíduo não mais pode ser concebido como uma dedução de um estado pré-determinado e pré-individual. A individuação do indivíduo deve ser pensada como emergindo de um contexto e como acontecendo num contexto (tanto no que se refere a um só indivíduo como a um indivíduo colectivo). Ao pré-individual não falta uma identidade essencial, nem ele se constitui como um campo indiferenciado de negatividade. Ao invés, Simondon perspectiva o préindividual como um estado de potencialidade, um contexto de poderes super-saturado (potentiae) que permanece in actu. Este modelo de interacção mereceria uma investigação mais detalhada, mas o que importa aqui relevar é o facto de este processo de individuação ser um surgimento, uma paixão, que ocorre a partir de um contexto pré-individual de potencialidades e de um concomitante plano individual de tensões continuadas e verdadeiros paradoxos (verdadeiras abstracções). Nesta altura valerá a pena recordar a preocupação de Agamben com a concepção aristotélica da passagem à actualidade, tal como expressa no segundo Livro do De Anima, onde Aristóteles analisa a natureza da pashkein (paixão, sofrimento): «Sofrer não é um termo simples. Num sentido, é uma certa destruição pelo princípio oposto; mas num outro sentido, é a preservação [soteria, salvação] daquilo que existe como potencialidade através do que existe na actualidade e daquilo que se lhe assemelha» (Aristóteles, De Anima, 417b 2-16). A potencialidade reside in actu e não como uma reserva do possível ou do que poderia ter existido de outra forma. 3. Regressemos agora à redução sigética da onomatopoieia, experienciada há muito tempo como uma crise ou pobreza de significação, transformada em campo de batalha contra a religiosidade neocapitalista da indiferença (a humanidade globalizada) e a espectacularização (não o fim da história, mas o seu esvaziamento), que ainda prevalecem. Esta crise de sentido, esta cesura ou síncope da significação (aproximando-nos dos termos usados por Nancy), é o principal evento (ainda por atravessar) de uma concepção de história hodierna. Na procura obsessiva pelo sentido e pelas essências (evidente até mesmo no esquema de reflexão de Nancy), «evitamos reconhecer que toda a estrutura do nosso discurso filosófico acabou a medir-se contra a sua própria exaustão: o desejo de significar vê-se confrontado com a projecção nua da significação» (Nancy, 1997: 44). Por exemplo, o isolamento de algo como a vida nua [nuda vita] ou de um «homem sem conteúdo» (gerado hoje violentamente no campo político-jurídico, na arte auto-indulgente e na hiper-autenticidade dos mass media) é tornado possível através da pressuposição da moderna concepção de ser humano como algo que pode ser substituído infinitamente e sem consequências (mesmo se no seu lugar nada subsiste, se há apenas uma vida vazia de poder). Uma significação nua, um Nada (prevalecente em Bataille e Nancy), que continua todavia em vigor sem nada legislar em particular, permanece para Agamben como um problema fundamental. Tal como num labirinto, o pior pesadelo, o enigma mais difícil, é a única forma de sair. A subjectividade moderna parece não ser nada mais do que uma mentira dobrada. Por todo o lado se encontra uma consciência infeliz (uma plenitude adiada) e, junto a si, o louco marginalizado ou a delinquência de uma negatividade dialéctica que não se pode realizar completamente.

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Para ser verdadeiramente, o homem necessita de uma cisão (entre aparência e natureza, o ser linguístico e não-linguístico, etc.), mas resta saber sob a forma de que experiência ela tem lugar e qual o ethos por si gerado. Em vez de uma técnica teo-lógica-política (theurgia, negatividade), que ambiciona garantir a ininteligibilidade da história e a sua relação com causas primárias absolutas e redentoras, urge despertar o pensamento e resgatá-lo da sua alegada rigidez arquetípica e do seu isolamento no campo de um Ser puro que forma, mas não vive. Trata-se, pois, de um regresso do pensamento, não no sentido de mais uma transmissão de um destino, mas de um retorno do passado mítico da humanidade, daquilo “que nunca teve lugar”, de uma experiência de infância: o novo na sua irreparável profanidade. Para se tornar criativamente humana, a cultura dos homens tem de passar para as mãos da poesia, onde a sua coisidade (sem essência) permanece continuamente em potência. Ou seja, onde o indivíduo é delimitado mas não diferenciado pelos seus contextos, e onde a mesmidade pode apenas ser compreendida através da diferença. 4. De acordo com Nietzsche, Anaximandro é o filósofo que deu expressão a esta concepção degradada de existência como um excesso negativo teológico-político, no sentido de uma (in)justiça eterna. Na descrição de Nietzsche, Anaximandro terá dito que «os seres devem pagar uma pena e serem julgados pelas suas injustiças, de acordo com os ditames do tempo» (Nietzsche, 1962: 45). Nesta leitura, o fragmento de Anaximandro é visto como a mais antiga expressão da forma como a negatividade opera, do daimon da existência encontrado pelo mundo dos filósofos pré-socráticos: a existência é descrita como ausência, a partir do ponto de vista negativo do apeiron como um postulado superlativo. Em contraste, para Nietzsche (como escreve Gilles Deleuze), Heraclito é o verdadeiro pensador trágico da justiça profana: O problema da justiça atravessa toda a sua obra. Para Heraclito, a vida é radicalmente inocente e justa. Ele entende a existência a partir de um instinto para o jogo. Ele transforma a existência num fenómeno estético, e não num fenómeno moral ou religioso. [...] Pois não existe um ser para além do surgimento, um nada para além da multiplicidade; nem a multiplicidade nem o surgimento são aparências ou ilusões. Porém, não existem também realidades múltiplas ou eternas que seriam, por sua vez, como essências para além da aparência. A multiplicidade é inseparável da manifestação, uma transformação essencial e um sintoma constante de unidade. A multiplicidade é a afirmação da unidade; o surgimento é a afirmação do ser. (Deleuze, 1986: 23-24)

Entender a existência enquanto fenómeno estético, como Deleuze o teoriza, não implica uma estetização da vida, mas sim uma vida recebida através da aesthesis, uma perceptividade da aparência, uma potencialidade que é uma «manifestação inseparável». Heraclito apresenta assim, não uma teodiceia (palavra que ele próprio não poderia ter conhecido, pois foi inventada muitos séculos depois por Leibniz), mas uma cosmodiceia (para usar um termo por mim cunhado); não uma soma de injustiças a serem expiadas mediante a separação da experiência e do conhecimento, mas uma justiça (dike) enquanto dispersão (nemein) deste mundo (onde o “mundo” é uma junção e não um fim); não uma hybris, mas um jogo (paignion, aion), e a inocência de uma substantia separata, o produto do desejo, o fantasma que encontra a sua realização em nome do amor (porventura o amor fati apenas terá sentido desta forma). Uma vida estética e não anestesiada. Mas, se este novo pensamento retornado equivale a um pensamento planetário cósmico (Axelos), como podemos compreender esta experiência de justiça (como dike, dispersão)? Em vez de uma técnica de theurgia na economia misteriosa de um ser a-cósmico (onde aquele que fala recebe a sua autoridade daquele que permanece silencioso – um lugar arquetípico sacrificial de não-participação, um não-lugar, um poder a-cósmico, uma negatividade), deve surgir uma concretização de algo, a assunção de uma responsabilidade total sem recurso a um juízo ou repartição. Só assim se poderá estilhaçar o lugar de origem daquela obstrução sigética (a sua pseudo-totalidade), que durante milénios governou o ser e o agir

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através de um silencioso princípio: tornar invisível o facto de que o dito deve ser plenamente dito e o acto deve ser plenamente realizado. Princípio este que depende da assunção de que um poder deve estar separado do que pode fazer (res gerere) (Agamben, 1993: 135-140). 5. A religião, as políticas estatais, o direito, a filosofia, a moralidade, entre outras, estiveram porventura desde o início vinculadas a uma theurgia, uma experiência fundada na autoridade e não na criação e no conhecimento, ou seja, sobre algo que não pode ser experienciado e participado. Tal sucedeu, afirma Agamben, porque a autoridade precisa de encontrar alicerces justamente no silêncio e aí procurar o mistério da sua economia e a economia do seu mistério. Agamben adverte, porém, que não basta denunciar este estado de coisas e reagir contra ele, embora tal fosse admissível enquanto reacção temporária (Agamben, 1993: 13-16). Os efeitos de uma tal theurgia, uma definição negativa do ser, foram significativos por um conjunto de razões, uma das quais afecta directamente a concepção de experiência como tal. Até ao nascimento da ciência moderna, como escreve Agamben em Infância e História, a experiência e a ciência tiveram o seu lugar próprio: a experiência teve como sujeito o senso comum existente em cada indivíduo (pathema, alma) e a ciência teve o seu sujeito na ciência pura do nous ou do intelecto activo. A mente e a alma permaneceram separadas até Tomás de Aquino. Por conseguinte, antes da sua unificação, não se interrogava propriamente a relação entre sujeito e objecto, mas sim a relação entre o uno e o múltiplo. O Ego moderno une as propriedades do intelecto separado e da passividade do sujeito da experiência, tornando-se o centro que de modo preemptivo encerra o experimentum da experiência. Estamos de tal forma habituados a esta simplificação, pela qual o sujeito é visto, por exemplo, como uma realidade psíquica, que o sujeito moderno em Descartes, mergulhado em dúvida, não é recordado com a incerteza que afinal patenteava: No momento da sua emergência manifesta na formulação cartesiana, [o sujeito] não é de facto uma realidade psíquica [...], mas um mero ponto arquimediano (nihil nisi punctum petebat Archimedes, quod esset firmum et immobile), que surgiu precisamente através da redução quasi-mística de todo o conteúdo psíquico excepto o acto puro do pensamento. [...] No seu estado originário, o sujeito cartesiano não era nada mais do que o sujeito do verbo, uma entidade puramente linguística-funcional, muito semelhante à «scintilla synderesis» e à «apex mentis» do misticismo medieval, cuja existência e duração coincidem com o momento da sua enunciação. (Agamben, 1993: 22)

Todavia, o antigo sujeito da experiência não mais existe; a experiência – que hoje é o lugar dos processos psíquicos ou do conhecimento científico (ou uma combinação dos dois) – tornou-se necessariamente assintomática para si própria e, como tal, permanece irrealizada, estagnada (o que porém não sugere qualquer tipo de totalidade). O antigo sujeito da experiência foi dividido de uma forma deveras particular na modernidade: No seu lugar existem agora dois sujeitos, que nos são apresentados num romance do início do século dezassete [...], avançando, lado a lado, quais companheiros inseparáveis numa busca cujo carácter aventureiro iguala a sua futilidade. Dom Quixote, o antigo sujeito do conhecimento, foi atordoado por um feitiço e pode apenas submeter-se a uma experiência sem que na verdade a usufrua. Ao seu lado, Sancho Pança, o antigo sujeito da experiência, só é capaz de a usufruir, sem que alguma vez se lhe submeta. (Agamben, 1993: 24)

Mas o que pode significar este interesse de Agamben numa «genealogia pura» do ser humano, onde tanto Dom Quixote como Sancho Pança poderão encontrar a paz? Antes de responder a esta questão, avancemos um pouco mais.

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6. Profanação: o que significa dizer que agora «a força que tenho é apenas a minha», como afirma Próspero no final de A Tempestade? O que se torna aqui peculiar é o facto de o mais pessoal e inato “deus” para nós sempre ter estado já contido na natureza da nossa acção (o nosso daimon ou genio). Um desejo ou um ser divino que reina na indecisão permanece um pseudo-problema. Indulgere genis, ou seja, a questão parece ter sido sempre a mesma: qual a relação que alguém deve ter com o seu próprio daimon de forma a tornar-se eudaimonico (feliz)? Embora seja de certa forma lúcido responder que a única fonte de poder existente é o nosso génio impotente ou o último deus (o nosso desejo moderno tardio), tal revelase insuficiente para nos tornar “finalmente” humanos, desencantados, livres, poderosos e fatais, em relação aos outros e a nós próprios. Pois tal desejo parece ainda requerer uma fonte sagrada, que desapareceria da experiência para que pudesse ser vista uma vez mais como auto-suficiente (uma theopoiesis). Um modo de ser (ethos) torna-se assim, desde tempos antigos, uma forma de se defraudar a si mesmo e ao seu génio. Entendeu-se que teria ocorrido uma vitória derradeira sobre os modos antigos da dependência negativa da natureza, das estrelas, dos desejos e dos deuses, alcançada finalmente na theopoiesis do ser humano (a sua liberdade absoluta) e, ainda (mediante uma necessidade simultânea), através da sua delimitação (moral, política, teológica, económica, etc.) ou da luta pelo reconhecimento (que em última instância requer uma dispersão das verdades e responsabilidades impossíveis de localizar). Esta vitória amarga é, contudo, uma fraude que continua a enganar o daimon do homem ou o seu carácter individual (agora já “indiferente”), levando a uma maior mistificação da vida, repleta de slogans (o discurso vazio) e desejos ocos, que deixa o trono soberano do si igualmente vazio e intocado. Não é fácil cortar com estes velhos hábitos, naturalmente, pois torna-se necessário simultaneamente um acto de esquecimento afirmativo e um acto de destruição criativa. A haver um imperativo, ele pode ser discernido no que «reside em nós próprios» (indulgere genio), a nossa capacidade humana para gerar e ser gerado, a nossa infância: o nosso local de nascimento-em-construção (a nossa forma de ser, ethos), em qualquer forma de ser (genius mens nominatur quia me genuit). 7. Ao sermos confrontados com uma tal demonologia ou geniologia negativas, podemos compreender que este génio ou daimon «mais inato e próximo» em nós é também a “coisa” mais impessoal e sem rosto que possuímos: uma personificação dessa “coisa” impessoal “em” nós que nos ultrapassa e nos escapa (e que pode até destruir-nos). Como escreve Agamben, «o génio é a nossa vida no sentido em que não o criámos, mas ele criou-nos a nós» (Agamben, 2005: 11). Uma vida humana sempre elusiva: o seu modo de expressão é a chave para a sua compreensão – olhar a palavra “humana” sem aspas e ver a humanidade como um segundo poder. Ao passo que os velhos hábitos exigem que nos submetamos, sem contemplações, a uma fonte de empoderamento de nós próprios todavia condenada a desaparecer («segue os desejos do teu daimon, o teu desejo é o desejo dele»), é apenas quando repetimos esta expressão enquanto segundo poder que tal fonte de expressão autopoiética se torna verdadeiramente lúcida (um genuíno paradoxo performativo). Uma vez que é apenas na nossa manifestação linguística que tal expressão pode alcançar um segundo poder, é aí mesmo que o ser humano pode ocupar uma segunda natureza, a verdadeira felicidade (eudaimonia). Dito isto, compreendemos que não podemos escapar à cisão de nós próprios, ao corte entre algo impessoal e sem rosto (um abismo) e os nossos desejos e pensamentos mais pessoais, entendidos como consciência individual. A diferença entre os “velhos hábitos” e uma “vida nova”, tal como o propõem Benjamin e Agamben, a busca por uma vida poiética, não depende de se aceitar ou não a cisão em nós entre o uno e o múltiplo, o impessoal e o individual. Esta cisão é a nossa própria natureza e cognição enquanto seres humanos: a nossa natureza é simbiótica e transductiva entre um Ego (ou qualquer outra coisa que lhe queiramos chamar) e um elemento pré-individual sem rosto. Porém, o que existe entre eles não é uma relação negativa, mas um encontro, um experimentum que permanece constante no seu surgimento sem fim. Neste encontro, pensado como uma experiência contínua, e não como uma separação

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negativa consignada ao que existiu previamente, reside a diferença entre os velhos hábitos e uma nova vida que emerge como um ser qualquer (quodlibet). 8. Não se trata de regressar a um topos anterior, um passado cronológico que podemos simplesmente recordar através da memória, ou ao qual aspiramos em nome de uma utopia. Não se trata de aceitar a assim chamada ironia da vida moderna, uma vida de indecisão e indiferença, pois o capitalismo, a nossa própria destruição dos meios, mostrou que a ironia é ela própria consumível e sempre alterável (acomodada). Vivemos num período em que todos os públicos morreram e não existe mais um sentido de comunidade, a não ser através de um regresso neo-fatal aos velhos hábitos desta ou daquela maneira neoreligiosa e pseudo-política (as quais continuam a ser técnicas usadas por um senhor soberano, ou seja, técnicas de re-utilização de uma soberania autoritária sobre um cosmos onde nada pode ser encontrado ou experienciado). Ao invés, urge reencontrar aquele lugar poiético das nossas expressões e acções, e o seu indissociável modo de expressão linguístico, a sua vida exposta num segundo poder, livre de um senhor. Não de forma a celebrar a nossa derradeira vacuidade mediante um outro auto-senhor que não passa de um beco sem saída numa vida sem imagens (sinais de simulacro sem realidade), mas antes de modo a manifestar a vida humana pelo que ela é: uma experiência sem origens negativas nem fins absolutos. Uma experiência que se manifesta ela própria ao conferir aparência às coisas. Por conseguinte, afirma Agamben: O actual conceito de expressão é dominado pelo modelo hegeliano, pelo qual toda a expressão se realiza através de um meio – uma imagem, uma palavra, uma cor – a qual, no fim de contas, deve desaparecer na expressão plenamente realizada. O acto expressivo realiza-se plenamente quando os meios não mais são percepcionados como tal. O meio deve desaparecer naquilo que nos dá a ver, no absoluto que se revela a si mesmo, que transparece no meio. Pelo contrário, a imagem trabalhada pela repetição e interrupção é um meio, um meio que não desaparece naquilo que torna visível. É aquilo a que eu chamaria um «meio puro», algo que se manifesta como tal. (Agamben, 2004: 318)

A nossa matéria em desaparecimento é, pois, em certo sentido, uma hilomorfia (uma forma de matéria sem matéria), que em última instância tem de ser preservada para que a nossa expressão autosuficiente seja plenamente realizada (o problema das muitas viragens do materialismo ao longo do tempo é que a própria matéria em questão é negada na separação da vida e da forma, da physis e do logos). Esta matéria ou vida pura negada continua a ser uma vida de pseudo-urgência, que permanece vibrante apenas enquanto se defrauda a si mesma, na sua negatividade auto-ausente. É por via do nosso ser linguístico que podemos perceber como o ser humano é a única forma existente composta por duas fases, um resultado da dialéctica complexa entre uma parte vivida e (ainda) não individualizada e uma parte sempre marcada pelo destino e pelo desejo contínuo de se tornar uma experiência individual. A primeira delas não constitui, porém, um passado cronológico que possamos recordar através da memória. Continua a estar presente no presente-por-vir, connosco, através de nós, para o bem e para o mal (Agamben, 2005: 9-10). Tudo depende de como estas duas fases são perspectivadas, especialmente no que concerne à sua relação (entendida como um problema e não tanto como um dogma). É necessário sublinhar que esta é uma relação não-dialéctica: é um experimentum. Não se trata de repetir a negativa ausentificação dos velhos hábitos (o defraudar da negatividade), mas antes reiterar que esta bipolaridade do ser humano não constitui um limite entre dois lados demarcados (não existe um terceiro deus, daimon ou caminho para o conhecimento absoluto que pré-determina ou supra-determina este limite). Ao invés, ela deve ser concebida como um limiar, no sentido agambeniano, uma zona de indiferença entre dois lados, a nossa própria herança (dike) (Heidegger, 2006: 252). Deve ser concebida como a inseparabilidade de vida e forma, a qual, em termos de acção política e até mesmo acção em geral, significa que tudo está em jogo a qualquer altura.

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9. Este tema está bem presente no início da obra Profanações, que Agamben dedica ao Génio (gerere, generare, gignere) ou Genius, referindo-se à antiga religião romana. Os romanos chamaram a Genius (como o fizeram os gregos com o seu idios daimon) o daimon que concede a vida, ou seja, o deus a quem seria atribuído o cuidado pastoral dos seres humanos, sem separar aquele que reina daquilo que governa. Esta compreensão acabou por alastrar-se a todo o Império (do Genius Populi Romani ao Genius Augusti). A longa e complexa genealogia do Génio perpassa, neste caso, tanto a daimonologia da Antiga Grécia como a angelologia do Cristianismo, indo mesmo para além delas2. É aqui de notar o facto de Genius ser encarado como tendo nascido simultaneamente com cada ser humano e com todas as coisas. Genius era como a personificação da alma, o arche e o espírito vital do ser humano. Ingenium, entendido como o interior ético ou as capacidades/características naturais do ser humano, o deus mais inato e pessoal, comanda a indulgência e a aclamação: indulgere genio, de acordo com o qual «a sua felicidade é a nossa felicidade, pois caso contrário aguarda-o uma vida sem prazeres». A imagem de Genius como um jovem ou uma criança, com cabelos longos e asas (representando uma existência fora do tempo), aponta para o facto de o nascimento não ser um dia que passou, mas uma ruptura no tempo onde irrompe a epifania e a presença de Genius (um rei que reina, mas não governa). Genius supera-nos e interrompe-nos a todo o momento, pois algo sempre ocorre para além daquilo que conseguimos realmente suportar. Todavia, Agamben assinala que, antes do poder impessoal em nós (o pré-individual) não existem seres humanos superiores, sendo e permanecendo todos nós sempre diminutos. As atitudes perante tal situação variam: a maioria foge do poder sem rosto ou procura diminuí-lo, ao passo que uma minoria procura experienciá-lo como uma dádiva, como a sua musa ou o seu mágico pessoais. A arrogância é um traço comum a ambos os casos. Os poucos merecedores, afirma Agamben, são aqueles que, ao invés, compreendem que não podem imitar o génio nem permitir que o génio os conduza ao abismo, abismo esse, contudo, que muitas vezes cada um tem de encontrar para obter essa compreensão. Eles proclamam, pois, que «a ausência de Deus ajuda-nos» (Agamben, 2005: 16-17). O impasse desta vantagem foi escondido por muito tempo, dado que a concepção de génio e do daimon grego recebeu uma gradual moralização, com a separação entre um daimon bom e um daimon mau (albus/alter), um anjo da vida e um anjo da morte (Agamben, 2005: 20). Vale a pena recordar, como sugere Agamben, que Horácio defendia, contra esta moralização e cisão entre dois daimons, que existia apenas um Genius – embora instável e flexível. Seguem-se duas observações cruciais no ensaio de Agamben. Por um lado, a ideia de que aquilo que muda, seguindo a sugestão de Horácio, não é o génio (para o bem ou para o mal), mas a nossa própria relação (transductiva) com ele ao longo do tempo. Neste sentido, esta é uma forma de explorar as técnicas e os rituais teúrgicos (litúrgicos) como se eles tivessem lugar no âmago da individualização e da desindividualização, bem como na compreensão da paixão (potentia) em jogo (puer). Por outro lado, é igualmente crucial entender que só através de um questionamento dessa teurgia do indivíduo podem ser expostas as suas técnicas de delimitação da sua relação com o pré-individual. Se o génio equivale à nossa vida, no sentido de que não nos pertence sob a forma de uma essência ou de uma coisa, então estamos receptivos a algo pelo qual não somos responsáveis, mas onde, contudo, podemos experienciar a nossa responsabilidade: «a nossa salvação e a nossa catástrofe têm uma face de criança que é e não é a nossa face» (Agamben, 2005: 20). Não ser responsável ao ser receptivo não nos reduz a uma total ausência de responsabilidade, mas antes, de modo genuíno e paradoxal, a uma total, criativa e meta-estável assunção dessa responsabilidade. A nossa «salvação» é a nossa comunicabilidade (Benjamin), a qual, por sua vez, é a nossa maneira de ser especial (eidética), segundo Agamben, onde o desejo e o ser se relacionam: o nosso eidos. O nosso eidos não nos pertence. O nosso imago reside nos interstícios e não é a nossa substância. O nosso ser eidético

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Sobre o génio e o daimon, cf. Onians, 1951; Harrison, 1957; Harrison, 1962. O exemplo mencionado por Agamben em Profanazioni e central para o argumento exposto é o anjo feminino iraniano chamado Daênâ. Sobre isto cf. Corbin, 1971.

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está dentro de nós, como um hábito ou um ethos (uma forma de ser), o nosso puer impessoal, entre nós, intentio, specie: o verdadeiro significado da comunicação como relação autopoiética num contexto (Agamben, 2005: 59-67). Em última instância, isto mostra a necessidade de escapar tanto ao Ego como ao seu daimon ou génio, de modo a realizar ou salvar a sua aparência, a sua face (eidos). Vale a pena referir o que o poeta trovadoresco medieval entendia como sendo o amor, pela lição aí contida. Como explica Agamben, o que se ama no outro, no sentido mais autêntico, não é o seu Ego, nem a sua personificação de Genius: o que se ama no outro é a forma eidética do outro, que reside nos interstícios, como um limiar. Ou seja, o que se ama no outro é o escape tanto do Ego como de Genius. Como tal, o ser eidético preenche o nosso ser ao não mais pertencer a uma cisão mística entre a natureza e o ser. A natureza é desnaturalizada e o Ser perde o seu poder negativo superlativo. 10. A realização não significa auto-indulgência e suficiência, e tal não deve ser medido em nenhum outro lugar (seguramente não num campo “político” separado) que não as nossas vidas quotidianas. Um limite – uma concepção do génio como um poder-limite moral ou ético para o bem ou para o mal – procura sempre defraudar o daimon que existe em nós, o elemento pré-individual da nossa natureza, de forma a dirigir o nosso Ego para a auto-suficiência, para este ou aquele fim absoluto. Ao invés, uma experiência-limiar da negatividade é indiferente a estes exercícios definidores de limites, pois a sua presentificação processual está iminente e impede-nos de nos fecharmos a nós mesmos numa identidade ou substância essencial, sempre passível de ser pressuposta ou aperfeiçoada. O antigo nome para esta experiência era “espiritualidade”: uma vida espiritual (a nossa segunda e única natureza, o bem). Isto é, uma cognição da parte ainda-não-individualizada do ser individualizado. Assim escreve Agamben: O génio não é apenas espiritualidade. Não tem que ver apenas com as coisas que estamos habituados a considerar de elevada natureza ou valor. [...] Tudo o que existe em nós sem rosto é daimónico. Daimónico é sobretudo a força que faz o sangue circular nas veias, ou que nos faz adormecer: a força desconhecida no nosso corpo que subtilmente regula as suas funções. [...] Viver com o génio significa viver uma relação com uma existência/parte estranha; relacionar-se continuamente com uma zona de não-conhecimento. (Agamben, 2005: 10)

Saber o que deve ser feito com tal «relação» – eis a questão mais significativa. Entre os velhos hábitos e a vida nova (a qual não é seguramente uma utopia superlativa por vir), o que muda não é o génio, mas a nossa não-relação com ele. Isto não quer dizer que iremos ou devemos tentar alcançar um qualquer tipo de união absoluta que nos escapa. Todos tentamos, de algum modo, estabelecer compromissos com o que nos escapa em nós próprios. A forma como o fazemos é o que Agamben chama o nosso carácter (o nosso Ego é permanentemente marcado pelo gesto de tal escape). Assim, prossegue Agamben, o estilo de um artista não é caracterizado pelo seu daimon, mas por aquilo que escapou ao seu chamamento daimónico, o seu carácter. De igual modo, a razão pela qual os artistas e também os políticos dos nossos dias (e a sua arte) são habitualmente intoleráveis deve-se ao facto de serem tão obcecados consigo próprios e auto-suficientes. Embora mostrem um carácter espectacular, não conseguem, em última instância, escapar ao Ego, que se torna uma jaula. A nossa tarefa, se é que há uma, é encontrar uma maneira de existir entre o Ego e o daimon, se queremos afinal escapar a ambos, e viver uma vida humana sem mistério (sem algo que não possa ser dito, de forma a que possamos agir de modo a fundar ou justificar as acções humanas). A nossa tarefa, se é que há uma, é assumir uma responsabilidade total. Só ela realiza a responsabilidade; cumpre-a sem absolvê-la. É a não assunção de uma total responsabilidade que permite, tantos aos pobres burgueses de esquerda e direita a tudo comprometer em nome de um futuro ou passado capaz de os absolver. 11. O mundo pré-histórico do daimónico foi dominado pela lei divina e pela culpa. O mundo histórico é dominado pela sua ausência no sentido da sua delimitação e da sua espectacular internalização,

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na forma de um governo ministerial que age de maneira angélica sobre uma vida de indiferença e espectáculo total. Isto não é apenas niilismo, mas um híbrido entre autoridade mística e desejo total, um onanismo moderno que sempre almeja separar o prazer da vida. Como escreveu Benjamin, «Nem a pureza nem o sacrifício dominaram o daimon; mas onde a origem e a destruição se juntam, o seu reinado terminou» (Benjamin, 1931-34: 457). Contra o historicismo (o retorno ou a reintegração de qualquer coisa numa origem, entendida como uma figura real e eterna da sua verdade) e o pós-historicismo (o retorno de algo a uma origem que sempre lhe escapa), defende-se uma interrupção, portanto. Esta vida nova não trata de uma utopia futura ou de uma redenção protofascista de actos passados em nome de fins sagrados. A questão crucial a colocar aqui é, outrossim: «o que existe que redime o passado?» O que se pretende é encerrar o ciclo interminável de leis críticas e das críticas à lei (jurídicas, políticas, teológicas e filosóficas), que inevitavelmente resultam na recuperação de alternativas hereditárias, uma vez mais trazidas à luz para nos salvar. Benjamin compreendeu-o muito bem, como destaca Agamben, afirmando: Na escrita histórica autêntica, o impulso destrutivo é tão forte quanto o impulso de salvação. Do que pode algo ser redimido? Não tanto de algo que perdeu a reputação ou entrou em descrédito, mas antes de um determinado modo de proceder à sua transmissão. A forma como tal é valorizado enquanto «herança» é mais insidioso do que o seu desaparecimento alguma vez poderia ser. (Agamben, 1999a: 153)

Tal não significa liquidar o passado (transformá-lo em recursos disponíveis de redenção) ou redimi-lo, no sentido de um pagamento final que tudo absolve, como explica Agamben. A situação é mais complexa do que isso e ambas as formas de consciência histórica estão corrompidas. A primeira forma de consciência histórica almeja repetir infinitamente uma origem postulada, de modo a sublinhar a singularidade de cada ocorrência histórica. A segunda forma de consciência histórica procura anular a sua origem ao longo do tempo – um simulacro – de modo a garantir a sua reproducibilidade. A primeira visa a eternidade da singularidade, e a segunda busca a reproducibilidade do Uno (Agamben, 1999a: 154-55). Ambas requerem uma forma de fuga e assim, tanto a similitude da eternidade singular, como a singularidade reproduzível, são marcadas por uma totalidade negativa partilhada. A tarefa do criticismo, ou o que lhe possamos chamar, ambiciona, pelo contrário, uma totalidade pura no interior de uma experiência radical da decidibilidade (Agamben, 1991: 18). Tal decibilidade radical, entre a viva vivida e a vida poética, não é experienciada como um limite de indecisão entre as duas (pois a unidade de cada uma delas deve referir-se necessariamente ao rasto de uma origem sempre-em-regresso ou, na verdade, à sua ausência, a qual ainda exerce uma certa autoridade ao estar em vigor mesmo sem significância). Na verdade, essa decidibilidade é antes vivida como um limiar, uma zona de indiferença entre a poesia e a experiência, entre o decidível e o indecidível. 12. Nas palavras do poeta italiano Antonio Delfini, «[...] na realidade, o homem edifica a sua vida sobre as suas próprias justificações, [pois] aqui ninguém cria algo senão a possibilidade de uma vida espiritual» (Agamben, 1999b: 84). Na vida espiritual ou na vida poiética, a luta pelo reconhecimento dos velhos hábitos (que garantiam o seu uso e justificação) encontra o seu fim. Esta “divergência íntima” (Campana, 1968), o apelo a signos ou imagens garantidos, recebe a notícia de que não mais nos podemos reconhecer em qualquer signo ou imagem, e que, portanto, por outras palavras, o não-reconhecimento representa, paradoxalmente, um estado de paz. Isto é o que significa compreender a ausência ou a morte de Deus como uma vantagem. As leis do reconhecimento como uma luta pela verdade sempre conduziram a uma guerra civil eterna consigo próprio e com os outros. A auto-suficiência é, em última instância, autojustificadora, e mesmo nas suas formas menos extremas, permanece individualista e autoritária. Tal luta pressupõe que algo transcende a aparência. Mas o que pode significar a visão de uma cegueira? Já Platão dizia que o olho não pode transcender o seu ângulo morto: tem obrigatoriamente de olhar para um outro olho (uma face, um eidos). Escreve Agamben:

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Quero capturar a minha obscuridade, o que permanece em mim por exprimir e por dizer; mas tal constitui precisamente a minha abertura, o próprio facto de eu ser nada mais do que um semblante e uma aparência eterna. Se eu tivesse realmente capacidade para ver o ângulo morto do meu olho, eu não veria nada (a escuridão onde Deus jaz, segundo os mistérios). (Agamben, 1995: 198)

Qual é a relação entre o abismo e a luz no mundo? Uma aparência ou imagem só é compreendida por um ser humano. Tal constitui o lúcido ângulo morto da consciência humana. É como se a consciência fosse formada pela necessidade de enganar a sua própria cegueira, a sua demora ou não-contiguidade, a ruptura entre o estímulo e a responsividade. Pois um ser (humano) só pode existir mediante a separação entre a aparência de uma coisa e a coisa que lhe escapa. Segundo Agamben, as coisas são «libertadas» apenas para nós, para que possamos conceber uma relação imediata com elas (Agamben, 1995: 198). Não as conseguimos vislumbrar, pois elas são-nos maravilhosamente dadas em si próprias (es gibt), mas elas aparecem apenas para nós próprios. Todavia, A única coisa que haveria para ser vislumbrada aqui é uma visibilidade pura: um rosto. E o semblante não é algo que transcenda a face – é a exposição da face na sua nudez, como uma vitória sobre o carácter, uma palavra. [...] Mas não nos foi dada a linguagem para libertarmos as coisas das suas próprias imagens, para manifestar a própria manifestação, e conduzi-la à glória? (Agamben, 1995: 198)

Eis a divergência íntima que Dino Campana descreve de forma memorável: «Ao cantar, recordo aquilo que, ao cantar, tento esquecer» (apud. Agamben, 1995: 57). A ausência de identidade não é, de todo, um abrigo ou uma nova identidade (daqui a derradeira falsidade da luta pelo reconhecimento). A nossa apaixonada insignificância não é um vazio que deva ser preenchido com esta ou aquela autoridade em cada momento, mas a experiência do nosso ser e da nossa expressão linguísticas. Se é uma não-coisa, pode ainda assim ser manifestada pelo discurso: ocupa o lugar do não-linguístico no ser linguístico das aparências e vice-versa. 13. As nossas aparências são experienciadas através de uma modalidade transductiva, para recordar o termo de Simondon, pois elas formam e deformam relações, onde uma das partes sempre produz e é motora da outra, numa zona indistinta que põe fim aos meios (uma peripateia dos fins). De igual modo, importa notar o paralelismo com a concepção de afectividade, segundo Espinoza, como um movimento que se desloca em ambas direcções de uma só vez, o que mostra como a questão crucial aqui não é a identidade e o reconhecimento, mas a transformação em algo e a metamorfose (o transformar-se entendido como movimento, um ethos em expressão, uma forma de ser). Tudo se transforma noutra coisa, de modo continuado, pelo que a paixão (pashkein) não pode ser apenas definida pela receptividade (Deleuze, 1994: n3, 78). Contra aqueles que, num estado de pânico não revelado, procuram constantemente encontrar esta ou aquela nova figuração de autoridade – para esconderem a sua vaidade, a sua vontade de poder e a sua intrínseca hediondez – deve ser proclamada uma alternativa, uma saída a ser vivida (e não encontrada), que não mais procure uma via directa para a «boa conduta ética», ao colocar-se acima das suas potencialidades, acima do que pode fazer. Não se trata de saber se o ser humano é caracterizado por uma privação (como algo que está negativamente ou dialecticamente ausente), mas sim descobrir como é que um ser humano tem uma privação. Que ter, que poder ou capacidade é este? Eis a questão central, para Agamben. A negatividade (génio, daimon) não pode ser compreendida uma vez mais como algo que conduz à melancolia, a naufrágios assombrosos ou à teurgia de um final messiânico. Cada acto da criação encontra resistência (de-criação – ou seja, uma diferente compreensão da negatividade). Para capturar este

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surgimento do ser, genético e eruptivo, urge pensá-lo para além da obra (como algo que pode ser produzido) e da dádiva (que pode ser assumida ou imitada). A ordem messiânica e a ordem da felicidade são distinguidas por Benjamin no Fragmento Teológico-Político da seguinte forma: «É a ordem da felicidade – e não a ordem messiânica – que tem a função de servir como ideia reguladora para a ordem histórico-profana» (apud Agamben, 1999a: 194). Esta é a única razão pela qual o daimon tem de ser afinal superado, «não em nome de uma humanidade redimida e de uma natureza libertada», mas em nome de uma «natureza arcaica sem história, no seu estado puro, primevo» (Agamben, 1999a: 150). Em vez de uma vida sacrificial, propõe-se uma vida erótica (interrogativa, tanto quanto criativa), a qual recebe a plenitude do seu passado, ou seja, a sua totabilidade pura: um ser eidético na sua plena e assumida fragmentação e fragilidade. É um poder não separável do que podemos fazer, um modo de transmissão que não configura uma compensação, a única forma de fugir da logística e da governação místicas. A aparência deve ser ela própria remetida para o facto de aparecer: eis a «vitória sobre o carácter – uma palavra» (Agamben, 2000: 95). Ou seja, a simultaneidade (e não o simulacro) da aparência humana, a sua erupção nos interstícios das potencialidades, a nossa infância, a única forma de interromper o horror e as mentiras patentes na nossa vida quotidiana, visíveis naquilo que a agora falida maioria compreende como “a política”, a “economia”, a “lei”, a “moralidade”, ressuscitando a palavra na natureza ou na matéria transductiva das coisas, o único lugar adequado para a nossa experiência eidética (a qual é por definição tanto individual como comum).

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