Global History e História transnacional: perspectivas de abordagem espacial na porção meridional da América Portuguesa (séc. XVI-XVIII)

June 24, 2017 | Autor: F. Aguiar Ribeiro | Categoria: Global History, Colonial Brazil, Fronteira
Share Embed


Descrição do Produto

593

GLOBAL HISTORY E HISTÓRIA TRANSNACIONAL: perspectivas de abordagem espacial da porção meridional da América Portuguesa (SÉC. XVI-XVIII) Fernando V. Aguiar Ribeiro1044 A proposta dessa comunicação é discutir os poderes locais na porção sul da América Portuguesa durante os séculos XVI e XVIII através de uma abordagem transnacional. Para tanto, iremos esboçar a criação de vilas no planalto da capitania de São Vicente e suas relações com os caminhos que ligavam essa região ao Paraguai. A partir dessas conexões iremos conceber a criação de um espaço fluído, correspondente aos sertões da América portuguesa. Antes de 1765 foram fundadas dez vilas no planalto, Mogi das Cruzes, Santana de Parnaíba,

Jacareí,

Taubaté,

Jundiaí,

Itu,

Guaratinguetá,

Sorocaba,

Curitiba

e

Pindamonhangaba1045. Depois do início do governo do Morgado de Mateus inúmeras vilas foram fundadas, as quais destacamos, somente no século XVIII, São José dos Campos, Itapeva, Atibaia, Mogi-Mirim, Itapetininga, São Luís do Paraitinga, Apiaí, Cunha, Lorena, Campinas, Porto Feliz e Bragança Paulista1046. Dessa forma, antes do governo do Morgado, a criação de municípios no planalto não ocorreu por ação de poder central ou intermediário, mas de acordo com lógicas internas às vilas   já   existentes.   Sobre   esse   panorama,   Bellotto   defende   que,   antes   de   1765,   “o  

1044

Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo e bolsista CNPq. Pesquisa contou com apoio da CAPES para etapa de doutorado sanduíche no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) em 2012. E-mail: [email protected] 1045 RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação de mestrado (História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 165. 1046 AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades do Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1956. p. 43-45.

594

aparecimento de povoados sem ligação a um povoamento sistemático seria como 'tradição' paulista”1047. Verificamos a delimitação de dois momentos de povoamento colonial, um entre 1532 e 1765, marcado pela ausência de uma política de criação de vilas e outro posterior a 1765, marcado por uma clara política de urbanização. A ideia de nossa pesquisa de doutorado é que a criação de vilas no planalto correspondeu a um movimento entre as elites locais, visando a manutenção de um equilíbrio político. O conflito entre os Pires e Camargo, pelo controle político da Câmara de São Paulo marcou a dinâmica local e reforçou a ideia de que a criação de novos municípios no planalto levaria a uma distensão nas possíveis tensões entre os grupos que desejavam controle político. A circulação dessas elites durante o processo de criação de vilas levou a uma intensificação dos contatos entre as partes do sertão, notadamente entre a vila de São Paulo e o Paraguai, possibilitados pela rede de caminhos existentes. Ramón Cardozo, em El Guairá: história de la antigua provincia (1554-1676), descreve inúmeros caminhos que ligavam Assunção ao litoral do Brasil. Afirma que existia o “camino de los guaraníes llamado Peabiru (Pe, camino, abirú, mollido) de 200 leguas, de San Vicente, costa del Brasil, al Paraná, con un ancho de ocho palmos y cubierto de un pasto muy menudo”1048. A região do Guairá, que corresponde atualmente ao estado brasileiro do Paraná, pertencia  à  Coroa  castelhana.  Cardozo  a  descreve  como  “una de las más pobladas de todas las tierras ocupadas por los guaraníes. Solamente en los alrededores de la Villa Rica del Espíritu Santo existían más de doscientos mil indios, poblados así por ríos y montañas, como en los campos y piñales que corren hasta San Pablo”1049. Essa alta concentração demográfica de guaranis na região do Guairá atraiu os bandeirantes paulistas. E com seus ataques às missões jesuíticas apropriaram-se do contingente populacional como mão de obra. No entanto, Carlos Jensen aponta que, no período anterior aos ataques paulistas às reduções do Guairá, a tensão entre jesuítas e povoadores paraguaios já era crescente1050.

1047

BELLOTTO, Heloisa L. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus (1765-1775). São Paulo: Alameda, 2007, p. 147. 1048 CARDOZO, Ramón. El Guairá: historia de la antigua provincia (1554-1676). Asunción: El Arte, 1970, [1a edição, 1938]. p. 16. 1049 Idem, p. 17. 1050 JENSEN, Carlos Ernesto Romero. El Guairá: caída y éxodo. Asunción: Academia Paraguaya de la Historia; FONDEC, 2009, p. 41.

595

Jensen atribui como justificativa para os ataques dos paulistas às missões jesuíticas, não somente fatores econômicos e políticos, mas principalmente a existência de uma ampla rede de caminhos que ligavam o Paraguai com o litoral de São Vicente. Washington Luís, em Na capitania de São Vicente, descreve as bandeiras comandadas por Antônio de Raposo Tavares e suas ações de destruição das missões do Guairá e captura de guaranis1051. Em 1623 o ataque maior é concretizado e com ele a estruturação das missões jesuíticas no Guairá é completamente desestruturada pelos paulistas, visto que a solução encontrada pelos missionários foi a mudança das reduções para uma região mais setentrional1052. Ramón Cardozo, sobre os ataques às missões jesuíticas, relata que cuando Antonio Raposo Tavares llegó con sus huestes a San Ignacio y Loreto de las márgenes  del  Paranapané,  las  encontró  desiertas.  El  ‘bandeirante’  se  llenó  de  cólera   por habérsele escapado el rico botín. Entonces, avanzó hacia la Villa Rica del Espíritu Santo para hacerle pagar este fracaso. Hallábase en la Villa el Obispo Aresti como ha visto más adelante. La resistencia fue inútil, por lo que por consejo del prelado, los guaireños también optaron por la fuga y el abandono de sus hogares 1053.

A partir desse contexto de interação contínua entre a capitania de São Vicente, Guairá e Paraguai, nos leva a questionarmos a estruturação da história dessas dentro dos quadros nacionais. Assim, para pensarmos a parte meridional da América de forma global, isto é, inserida nas relações internacionais, é fundamental que questionemos por que as histórias do Brasil e Paraguai são definidas pelos quadros nacionais. Isso se dá, principalmente, pelo fato da historiografia brasileira e paraguaia terem se constituído a partir do século XIX com a Independência política em relação a suas metrópoles. A nova produção historiográfica deveria, portanto, se preocupar com a criação de uma tradição que justificasse a existência da nova nação. Dessa forma, no contexto de ascensão do nacionalismo, principalmente no século XX, observamos  que,  apesar  do  que  se  produzia  à  época,  “nations  emerge  over  time  as  a  result  of   numerous historical processes. As a consequence, it is a pointless undertaking to attempt to

1051

SOUSA, Washington Luis Pereira de. Na capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2006. p. 229. 1052 Idem, p. 351. 1053 CARDOZO, Ramón. La antigua provincia de Guairá y la Villa Rica del Espíritu Santo. Buenos Aires: Jesús Menéndez, 1938. p. 147.

596

locate a precise moment when any particular nation came into existence, as if it were manufactured  product  designed  by  an  engineer”1054. Por conta disso, a construção de uma história nacional, dentro dos quadros que delimitam o novo país é tão importante. Steven   Grosby   ressalta   que   “nation   are   human   creations. However, a proper understanding of the nation requires that it be distinguished from other forms of human creation. The nation has the form of  a  ‘social  relation’”1055. A partir dessa ideia de construção de histórias nacionais no século XIX nos leva a necessidade de pensarmos a história da colonização na América dentro de outra chave interpretativa. Com o fenômeno da globalização, intensificado a partir da década de 1970, e com estudos que advogam perspectivas multiculturalistas1056, a história pautada na descrição de impérios entra em crise. Os estudos que tinham grandes espaços geográficos como objeto, no caso, os impérios europeus, passam, em uma perspectiva fortemente influenciada pelo discurso da globalização, a adotar uma perspectiva global. No entanto, apesar de vários estudos recentes serem feitos a partir de uma perspectiva global, carecem análises que conceituem a história global. Em um esforço de reflexão, Bruce Mazlish define o contexto historiográfico no qual a história global emerge. Define que the emergence of globalization was not simply a matter of science technology, and economics; political developments were also requisite. First, the competition between the Soviet Union and the United States in space was essential for the creation of our increasingly satellite-dependent world, with its attendant communications revolution. Furthermore, the decline of communism eroded the old political-ideological divisions, leaving the way open for a genuinely global society in which all countries can and must participate, though differentially 1057.

Em um artigo recente, Dominic Sachsenmaier estabelece a história global inserida no contexto de crítica às perspectivas ocidentais, superando as formulações apresentadas por Mazlish. Apresenta   que   “during   the   early   1970s,   sociological   titles   referring   to   the term

1054

GROSBY, Steven. Nationalism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 7. 1055 Idem, p. 27. 1056 Para um esforço de definição de multiculturalismo, ver EDELSTEIN, Marilyn. “Multiculturalism   Past,  Present  and  Future”.  College English, v. 68, n. 1, p. 14-41, 2005. e PALUMBO-LIU, David. “Multiculturalism  Now:  civilization,  national  identity,  and  difference  before  and  after  September  11th”.   Boundary 2, v. 29, n. 2, p. 109-127, 2002. 1057 Burce  Mazlish,  “Comparing  Global  History  to  World  History”  Journal of Interdisciplinary History, v. 28, n. 3, p. 392. 1998.

597

‘globalization’  were  still  about  the  same  in  number  as  historiographical  publications.  In  2001,   by contrast, the former outweighed the latter by 800-900%”1058. A   partir   desses   estudos,   “the   situation   is   beginning   to   change.   During   the   past   few   decades many historians have come to regard the close entanglements between their discipline and the nation-state with greater suspicion. More recently debates on how to internationalize or  globalizate  historiography  have  greatly  intensified”1059. Além da perspectiva global, Dominic Sachsenmaier defende a necessidade da superação do discurso eurocêntrico. Afirma   que   “in   that   manner   research   on   transcultural   issues  is  beginning  to  move  from  the  peripheries  of  the  historians’  guild  to  the  centre”1060. Dessa   maneira,   “the debate on global history or new forms of transcultural history have been emerging simultaneously in different parts of the world. For this reason it would be inadequate to characterize the turn to global history as yet another wave of Eurocentism or western  imperialism  in  disguise”1061. Define, portanto, a história global como uma perspectiva para o estudo de fenômenos históricos  que  transcendam  os  limites  dos  Estados  nacionais,  isso  porque  “global  perspectives   can be applied to all epochs of the human past, but if we understand the global history instead as  the  history  of  globalization,  the  timeframes  of  the  field  become  narrower”1062. Em Global perspectives on Global History, theories and approaches in a connected world, Dominic Sachsenmaier propõe retomar a discussão sobre a conceituação e os limites da   história   global.   Destaca   que   “in   a   recent   years,   most   branches   of   historiography   have   increase spatial concepts be they transnational, transregional, or transcontinetal in nature, have become more clearly visible in very different sub fields of historiography, ranging from the   complex   landscapes   of   ‘cultural   history’   to   the   equality   multifaceted   of   ‘economic   history”1063. A partir dessa concepção de que os elementos históricos não podem ser definidos por restrições das fronteiras dos estados-nacionais, podemos conceber o território do interior da capitania de São Vicente como elemento de integração com os domínios castelhanos na América, notadamente o Paraguai. 1058

SACHSENMAIER, Dominic.  “Global  history  and  critques  of  western  perspectives”.   Comparative Education, vol. 42, n. 3, 2006, p. 45. 1059 Idem, p. 452. 1060 Idem, p. 452. 1061 Idem, p. 453. 1062 Idem, p. 454. 1063 SACHSENMAIER, Dominic. Global perspectives on Global History: Theories and approaches in a connected world. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 1.

598

Mais que uma crítica às histórias fundamentadas nos quadros nacionais, a história global permite, através de uma nova abordagem em relação às fronteiras, novos entendimentos no processo de colonização do continente americano. Dentro dessa perspectiva, verificamos que a fundação da vila de Sorocaba, no planalto da capitania de São Vicente, está inserida em uma rede transimperial. Balthazar Fernandes, responsável pela elevação do povoado a município, casou-se  “segunda  vez  com  dona  Isabel   de Proença de Abreu, paulista, em cerca de 1630, viúvo que estava  de  Maria  de  Torales”1064. Com o primeiro casamento estabelece Fernandes ligações familiares e, portanto, políticas, com os Torales, importante família que comandava Ciudad Real no Paraguai. Depois dos ataques dos paulistas às missões jesuíticas nessa região, migraram para a capitania de São Vicente e se estabeleceram em Sorocaba. A   respeito   da   família   Torales,   Carlos   Jensen   aponta   que   “tenemos   entonces   que   Bartolomé de Torales, hijo del capitán Bartolomé de Torales y Violante de Zúñiga, casó con doña Ana Rodríguez Cabral, natural de Ciudad Real y fallecido en Brasil en 1634. Luego casó en  Brasil  con  María  de  Goes,  hija  de  Antonio  Raposo  e  Isabel  de  Goes”1065. Continua  a  descrição  relatando  que  “María  de  Zúñiga  casó  con  Balthazar  Fernandes,   hermano del famoso corsario de los serones André Fernández. De este matrimonio nació María  de  Torales.  Esta  casó  con  Gabriel  Ponce  de  León”1066. A   partir   dessas   relações,   Carlos   Jensen   conclui   que,   “como   se   puede   ver,   estos   Guaireños radicados en San Pablo eran miembros de tres familias de Ciudad Real, los Orrego y Mendoza, los Torales y los Contreras, quienes transmitieron apellidos maternos como ser Zúñiga,  Ponce  de  León,  Guzmán  y  Espinosa”1067. A integração entre vicentinos e paraguaios não se deu somente com a migração de guairenhos   para   Sorocaba.   Anos   antes,   o   português   “Antônio   González   do   Rego   que   nombrado Teniente de Gobernador de San Juan de Vera de las Corrientes en 1603. Sus vinculaciones familiares y sus servicios prestados en las fundaciones de Concepciõn del Bermejo y de San Juan de Vera lo convertían en uno de los principales vecinos de la Gobernación  del  Río  de  la  Plata”1068. Notamos, pois, que a integração entre elites políticas na porção meridional da América somente pode ser observada quando ampliamos a escala da espacialidade analisada. E, mais 1064

ALMEIDA, Aluísio de. Sorocaba: três séculos de história. Itu: Otonni, 2002. p. 21. Carlos Ernesto Romero Jensen. op. cit., p. 380. 1066 Carlos Ernesto Romero Jensen. op. cit., p. 380. 1067 Carlos Ernesto Romero Jensen. op. cit., p. 381. 1068 Carlos Ernesto Romero Jensen. op. cit., p. 407. 1065

599

que ampliar, torna-se necessário que superemos as fronteiras dos Estados nacionais que, apesar de terem sido estabelecidas no século XIX, influenciam ainda hoje a construção da historiografia sobre a colonização das Américas. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Aluísio de. Sorocaba: três séculos de história. Itu: Otonni, 2002. AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades do Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1956. BELLOTTO, Heloisa L. Autoridade e conflito no Brasil colonial: O governo do Morgado de Mateus (1765-1775). São Paulo: Alameda, 2007. CARDOZO, Ramón. El Guairá: historia de la antigua provincia (1554-1676). Asunción: El Arte, 1970. [1a edição, 1938]. ______. La antigua provincia de Guairá y la Villa Rica del Espíritu Santo. Buenos Aires: Jesús Menéndez, 1938. EDELSTEIN,  Marilyn.  “Multiculturalism  Past,  Present  and  Future”.  College English, v. 68, n. 1, p. 14-41, 2005. GROSBY, Steven. Nationalism: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2005. JENSEN, Carlos Ernesto Romero. El Guairá: caída y éxodo. Asunción: Academia Paraguaya de la Historia; FONDEC, 2009. MAZLISH,  Burce.  “Comparing  Global  History  to  World  History”  Journal of Interdisciplinary History, v. 28, n. 3, p. 385-395, 1998. PALUMBO-LIU,  David.  “Multiculturalism  Now:  civilization,  national identity, and difference before and after September 11th”.  Boundary 2, v. 29, n. 2, p. 109-127, 2002. PEREIRA DE SOUSA, Washington Luís. Na capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2006 [1a edição, 1956]. RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação de mestrado (História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 165. SACHSENMAIER,  Dominic.  “Global  history  and  critques  of  western  perspectives”.   Comparative Education, v. 42, n. 3, p. 451-470, 2006.

600

______. Global perspectives on Global History: Theories and approaches in a connected world. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.