Gonçalo Marcelo - Do Diagnóstico à Ação: Crise, Crítica e Mudança (in Ética, Crise e Sociedade)

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Do Diagnóstico à Acção: Crise, Crítica e Mudança Gonçalo Marcelo FCSH-NOVA / LIF-UC

I – Crítica do presente e uso público da razão Em 1984, Foucault dedica um pequeno texto1 a um artigo de Kant2, publicado 200 anos antes, em 1784. Ambos comportam o mesmo título – “O que é o Iluminismo?” – naquilo que constitui uma clara homenagem (crítica) de Foucault a Kant. O facto de ambos os textos serem de exígua dimensão não lhes minora a importância, antes pelo contrário. O artigo de Kant adquiriu o estatuto de um clássico, sintetizando a atitude iluminista na metáfora da superação da menoridade pela qual somos responsáveis; o de Foucault, sendo um dos artigos cruciais da sua produção, ajuda a deitar luz sobre um fenómeno muito particular: o difícil estatuto de uma filosofia da actualidade, de uma filosofia do presente. Como é sabido, a resposta de Kant passa pelo “Sapere Aude”, pela coragem do saber. Assim, e como assinala Foucault, o Iluminismo é descrito por Kant como sendo simultaneamente um facto (ainda que não como resultado, mas como processo em desenvolvimento) e uma tarefa. “Ousar” saber pressupõe precisamente a conversão da vontade, a superação de um obstáculo: neste caso, o do hábito de obedecer à autoridade ou à palavra de outrem em casos nos quais aquilo que se exige é simplesmente o uso da própria razão. Foucault observa igualmente que existe uma ligação íntima entre este pequeno texto e o projecto crítico kantiano enquanto tal. A função da crítica kantiana é, em termos simplificados e consoante se esteja a falar da primeira, da segunda, ou da terceira crítica, determinar respectivamente 1) o que podemos conhecer; 2) o que

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Michel Foucault, “Qu’est-ce que les lumières?” em Dits et Écrits IV, (Paris, Gallimard, 1994), pp. 562578.

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Immanuel Kant, “Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?”, in Berlinische Monatsschrift, Bd. 4, 1784, pp. 481 – 494.

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devemos fazer; 3) o que nos é legitimamente permitido esperar. Em todos estes casos, estamos a falar de usos da razão (uma razão, três usos diferentes, como nota Habermas) e existe uma ligação óbvia entre o Iluminismo e a crítica porque, segundo Kant, o Iluminismo é a altura histórica a partir da qual a humanidade sai da menoridade através do uso da razão e esse uso só pode ser legitimamente determinado pela crítica nas suas três versões. Por outras palavras, a autonomia só pode ser garantida através de um uso correcto da crítica; o uso ilegítimo da razão, garantido pela ausência de crítica ou pela crítica operada de forma insuficiente ou incorrecta, quedar-se-á ou no dogmatismo em termos teóricos, ou na heteronomia em termos práticos. O que é que torna, segundo Foucault, o artigo de Kant publicado na Berlinische Monatsschrift, especial? É que é nesse artigo que, pela primeira vez, a filosofia se interroga sobre a novidade radical do “hoje”, do momento histórico pelo qual a humanidade atravessa e, simultaneamente, se atribui a cada indivíduo a responsabilidade de se envolver a si mesmo num projecto colectivo que nos deve abranger a todos. A isto chama Foucault o indício de uma “atitude de modernidade”. E essa atitude de modernidade, com a consequente interrogação crítica sobre o presente, acabou por não nos abandonar, excepto em períodos em que, por algum motivo, se encontra silenciada. Portanto, o que é o Iluminismo? Um ethos de crítica constante à era presente, que comporta, entre outros elementos, a conquista da autonomia através de um constante trabalho sobre si – de construção de si, em termos foucaldianos – e de um uso, o uso público da razão. A este uso público da razão, e à constituição de um “espaço público” e de uma “esfera pública”, dedicou Jürgen Habermas o seu primeiro livro, a famosa “transformação estrutural do espaço público”3 que descreve como, durante o século XVIII, diversos cidadãos puderam constituir um “público”. Isto é, como é que cidadãos, nas suas vidas “privadas”, reunindo-se muitas vezes em casa uns dos outros, nos famosos salões puderam começar a discutir assuntos públicos e, também, como é que esta discussão evoluiu paulatinamente para a busca do melhor argumento. Neste germe de espaço público, que era tão político quanto literário – as obras publicadas eram em número muito menor e praticamente todo o público cultivado as conhecia, o que facilitava a discussão porque os objectos culturais eram quase universalmente partilhados naquele contexto – o factor decisivo era, segundo Habermas, o facto de serem precisamente os argumentos a determinar as decisões, e nunca os estatutos sociais. Quer isto dizer que neste espaço público burguês poder-se-iam encontrar pessoas com diferentes graus de poder e influência na socie-

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Cf. Habermas, The Structural Transformation of the Public Sphere. An Inquiry into a Category of Bourgeois Society (trans. Thomas Burger and Frederick Lawrence) (Cambridge, Massachusetts, 1989). (Edição original publicada em 1962).

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dade, e com maior ou menor riqueza mas que, nessas discussões, agiam como se essas diferenças não importassem para a discussão. Os dois critérios eram, por conseguinte, a qualidade do discurso e a quantidade da participação: quantos mais indivíduos participassem, melhor. É sabido que, em 1962, quando Habermas escreve este primeiro livro, o diagnóstico que opera é pessimista. Ao longo do século XX, com o advento da cultura de massas, a capacidade crítica dos cidadãos esboroou-se. A Öffentlichkeit transformou-se brutalmente, passando de “esfera pública” a, literalmente, publicidade. Os actores políticos “publicitam-se” e tudo se torna propaganda. Os cidadãos têm menor capacidade de intervenção e estão mais sujeitos à manipulação. E o Estado-Providência assegura a tal ponto a colaboração com o capital que qualquer margem de manobra para o pensamento autónomo é reduzida. No entanto, em 1992, três décadas depois da publicação do estudo sobre a Öffentlichkeit, e tendo obviamente em conta factores históricos decisivos que entretanto marcaram a consciência ocidental, tais como os movimentos estudantis do Maio de 68 e da década de 70, Habermas revisita o seu modelo de espaço público no oitavo capítulo de Faktizität und Geltung4, no qual faz uma reapreciação mais optimista das potencialidades de um espaço público contemporâneo. Este segundo modelo comporta diversas actualizações que visam responder a tantas outras críticas ao primeiro modelo: 1) Respondendo à acusação de “abstracção” dirigida ao seu modelo de razão comunicativa, tenta agora ancorar este modelo nas estruturas do “mundo da vida”; 2) Levando em linha de conta a objecção, formulada principalmente pelas correntes feministas5, de que o seu modelo de esfera pública burguesa silencia a existência de outras esferas públicas, historicamente reprimidas pelos burgueses, constitui um modelo plural, no qual diversas esferas públicas existem e competem entre si; 3) Reconhece a pertinência dos progressos conquistados pelos diversos movimentos sociais na constituição do espaço público; 4) Complexifica imenso o modelo, para tentar entender os diversos canais através dos quais a sociedade civil se pode exprimir e conseguir efectivamente influenciar o exercício do poder. Sem entrar nos detalhes deste modelo, que apenas apresentamos sucintamente, há no entanto que reter que ele é uma rede constituída para comunicar informação e pontos de vista que se caracteriza pelos seus horizontes abertos e permeáveis, isto é, que está em permanente mutação. E é claro que toda a esfera pública tem de ter o seu público,

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Jürgen Habermas, Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurtheorie des Rechts un des demokratischen Rechtsstaats (Frankfurt, Suhrkamp, 1992).

5

Cf. Nancy Fraser “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy” in Social Text no. 25/26 (1990) pp. 56-80.

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o que significa que estas estruturas de comunicação e de debate racional não devem ser vítimas do discurso especializado e tecnocrático: elas devem estar ancoradas no uso da linguagem comum. Só isso permite que qualquer cidadão possa fazer parte dos debates: os cidadãos são simultaneamente membros da sociedade e da esfera pública. Nas suas vidas privadas enquanto cidadãos, consumidores, pagadores de impostos, etc., sofrem muitas vezes as injustiças, as falhas estruturais e as deficiências dos sistemas de organização social. Nos casos de sociedades em que as esferas públicas funcionam de forma satisfatória, os cidadãos podem tender e de facto tendem a denunciar essas insuficiências. Para que isto aconteça, há um conjunto de condições necessárias. Teoricamente, não há espaço público numa ditadura onde as liberdades individuais estejam severamente limitadas. Mas também não o há, acrescentaremos nós, em contextos nos quais a discussão se veja estrangulada pela ditadura do discurso único, ainda que produzido em democracia. É claro que as esferas públicas não são capazes de, por si mesmas e sem recurso a elementos que lhes são exteriores, resolver grande coisa. Por um lado, elas só se tornam possíveis quando já existe um determinado grau de racionalidade no mundo social que as envolve. Para derrubar um regime opressivo, por exemplo, um golpe de estado, ou movimentos sociais de índole contestatária, seja através de protestos ou desobediência civil, são geralmente mais eficazes que o simples debate crítico-racional, simplesmente porque nessas condições não há sequer possibilidade de manter um debate desse género. Por outro lado, a participação na esfera pública não garante por si só o acesso ao “poder”, embora possa garantir influência. Isto significa que as decisões não são tomadas pelo espaço público enquanto tal. Há, é claro, “públicos fracos”, que apenas visam discutir sem preocupação de influenciar decisões e “públicos fortes” que visam directamente a transformação, mas esta última e as decisões que por ela serão responsáveis tendem a ser tomadas por esferas governativas que, exercendo o poder, poderão quando muito ser influenciadas pelas esferas públicas – embora a relação seja complexa, porque as esferas governativas, em democracia, também dependem directamente do escrutínio e da accountability perante os cidadãos e eleitores, pelo que também participam na esfera pública, muitas vezes tentando influenciá-la e/ou manipulá-la com todo o seu manancial de spin doctors. No entanto, aquilo que há que enfatizar para os efeitos que nos interessam é que uma sociedade só é verdadeiramente democrática se tiver um espaço público forte. Muitas sociedades têm espaços públicos em estado de latência. Eles podem não funcionar, mas o potencial de mobilização está lá. E, como Habermas também ressalva, a activação pode dar-se precisamente no momento de uma crise. É isto que nos importa aqui analisar.

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II – Do diagnóstico à acção: crise, crítica e mudança Os diferentes conceitos que fazem parte do título desta breve comunicação estão todos imbricados uns nos outros, de forma quase analítica. Vimos como Foucault analisa a forma como o projecto do Iluminismo contém em germe a análise do presente e a transformação e crítica perpétua da actualidade como tarefas. E vimos com Habermas como a crítica se exerce, em parte, pelo exercício público da razão. A questão seguinte que nos ocupa é: neste processo, haverá algum papel para aquele cujo objectivo é analisar a sociedade? A metáfora médica aplica-se aqui com propriedade. O cientista social pode tentar olhar para a sociedade como o médico olha para um corpo, compreendendo-o na sua complexidade orgânica6. Tal como o médico possui um ideal de saúde definido pelo bom funcionamento dos órgãos, assim também o cientista social pode possuir um ideal normativo de bom funcionamento da sociedade, ideal em relação ao qual pode medir a distância que vai da realidade até lá. Nesse sentido, o teórico que assuma este compromisso pode, em certo sentido, produzir um diagnóstico e até eventualmente detectar determinadas patologias. A estas patologias decidiu-se chamar, na tradição da teoria crítica da escola de Frankfurt, patologias sociais. Todavia, se é que de função para o teórico social se pode falar, então deve poder-se ultrapassar o estádio da mera constatação de facto. Isto é, no âmbito de uma filosofia social, a prática da teoria deve poder passar por uma tomada de posição. Quer isto dizer que face ao eventual diagnóstico e à descoberta de patologias do social, se deve seguir a tarefa óbvia da recondução, tanto quanto possível, ao estado de saúde. Pouco importa, para o caso, se o estado de saúde já foi atingido e entretanto perdido – o que não implica nenhum mito da idade de ouro, apenas indicando que as estruturas sociais sofrem alterações que por vezes implicam, precisamente, crises – ou se ele consiste apenas, enquanto tal, numa norma que funciona como ideal regulador para o qual as práticas tendem. Neste último caso, não é porque o ideal não deva existir que não o devamos procurar. Dizer o contrário seria negar a perfectibilidade das sociedades humanas, projecto tão típico da modernidade e do Iluminismo. Por conseguinte, a tarefa da teoria, neste caso específico, seria a de tentar encontrar o vínculo teórico-prático para a acção. Do diagnóstico à acção, eis o que se exige. Acontece que em condições normais, os mecanismos de reprodução social são de tal ordem que, em geral, asseguram a colaboração dos indivíduos de forma tão eficaz que a questão da

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Esta metáfora é de uso corrente. Uma das formulações clássicas aparece em Nietzsche que, na segunda consideração intempestiva, fala do filósofo como “médico da cultura” (Der Philosoph als Artzt der Kultur.

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contestação à ordem social estabelecida nem sequer se coloca. Aquilo que faz com que os cidadãos, tal como as esferas públicas, vejam o seu potencial crítico passar do estado de latência à possível efectivação concreta é precisamente o advento de uma crise. A crise, entendida precisamente por contraposição a um suposto estado “normal” é geralmente acompanhada por uma desregulação parcial ou completa das regras precedentes e por uma desorientação dos actores sociais, por perda de fundamento, afundamento da regra, desaparecimento do cânone fundamental que orientava as práticas até à altura. Se patologias existiam, pioram. Se o funcionamento “normal” registava, ainda assim, sinais esparsos de falha, estes eram geralmente silenciados pelo sucesso geral da fórmula de organização social. Ora, o que a crise faz, por regra, é trazer à luz todas essas deficiências sistémicas, pô-las a nu. Aquilo que nunca se pensou que acontecesse, embora por vezes se suspeitasse vagamente que pudesse acontecer, acontece. A crise é, muitas vezes, pouco previsível. Descrições pré-revolucionárias da França do século XVIII caracterizavam o povo francês como um povo plácido e ordeiro. Poucos poderiam prever o resultado da convocação dos Estados Gerais que iniciou o processo revolucionário. No entanto, a extrema desigualdade social do Antigo Regime e a prepotência da nobreza eram factores que, acumulados, continham em si o potencial da sua própria superação. Aquilo que acontece é que perante o movimento da crise, muitas vezes bem identificado por outra metáfora, a do furacão, que invocamos no prólogo, tudo muda. O que importa é perceber como é que é possível direccionar a mudança. Daí também se descrever muitas vezes a crise em termos de oportunidade de mudança. A crise muda e transforma, por si própria. Aquilo que está em causa, por conseguinte, é tentar aproveitar esse potencial radical de transformação, influenciando-o. E uma das teses que estou a defender nesta comunicação é que, em contexto democrático, por parte dos cidadãos e dos teóricos do social, essa mudança deve ser incentivada pela crítica, nomeadamente pelo uso público da razão. Falhando esse recurso, perante crises de maior dimensão – daquelas que levam a guerras, mudanças de regime ou mesmo de sistema político, mudanças de ideias que transformam a acção e trazem algo de radicalmente novo – então a tarefa da mudança deve ser deixada aos movimentos sociais, na esperança de que do turbilhão saiam formas de cooperação social que sejam mais justas e mais conformes aos ideais de realização humana do que aquelas que as precederam. É claro que esta crítica pode exercer-se de diferentes formas. A crítica moral, associada aos “moralistas”, a Kant, ou ao socialismo utópico, e tantas vezes desconsiderada quer por pragmáticos, quer pelo socialismo “científico”, pode de facto desempenhar um papel relevante. Tudo isto implica, como é óbvio, uma reflexão sobre o papel do conflito em sociedade e saber se, no horizonte, podemos ter qualquer coisa como uma reconciliação de estilo hegeliano ou não. A uma crítica mais radical e mais adepta do entusiasmo

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da acção nem que seja por derramamento de sangue, pode interessar que os conflitos se agudizem de tal forma que outra saída não haja a não ser o rebentamento total da ordem social anterior, custe o que custar. Na velhinha, resta saber se ultrapassada, oposição entre crítica revolucionária e crítica reformista, uma tal dilaceração do social pode ser interessante para os defensores da chamada opção revolucionária, precisamente por comportar a possibilidade de uma mudança radical, ainda que isso custe a vida a inúmeros indivíduos e sofrimento incrível a tantos outros: “dores de parto da revolução”, dirão provavelmente. Ora, a crítica “moral” pode precisamente desempenhar um papel no evitar desse tipo de acontecimento. É um tipo de crítica que, evidentemente, é mais típico da crítica “reformista” ou, se quisermos, pedagógica. A moral, no plano social, mais não faz do que apontar para boas práticas. A ética mais não é do que a escolha individual, a tomada de decisões no foro interior que regula a acção. A moral, por sua vez, lida com os costumes que se formam em determinadas tradições que regem o comportamento habitual de comunidades, grupos profissionais, religiões. Numa concepção hegeliana do social, as normas que regem estas condutas não são puramente desligadas da realidade social, isto é, em termos simples, o dever-ser não é totalmente oposto ao ser. Antes, a relação dialéctica que constituem leva-nos a tomar atenção àquelas práticas que estão sempre já minimamente reconhecidas como sendo válidas, sempre já mais ou mais menos instituídas, mas não são suficiente observadas ou levadas a cabo. Mencionemos alguns exemplos práticos: a constatação de que a corrupção é indesejável e que constitui um cancro da sociedade goza de uma aceitação e de uma estabilidade normativa relativamente altas na nossa sociedade. Isso infelizmente não impede que os casos de corrupção abundem. Para qualquer teoria da justiça, a desigualdade é um problema empírico incontornável, assim como para qualquer político de boa-fé. Mas a permissão relativamente pacífica de níveis enormes de desigualdade social continua a ocorrer, sem por isso mobilizar demasiados protestos. Aquilo que a crítica moral faz é precisamente denunciar os casos de injustiça, de patologia social; o que se exige é fazê-lo, em condições democráticas, na esfera pública, e esperar que aquilo a que chamamos consciência moral seja, afinal de contas, um fenómeno universal e que, por conseguinte, a denúncia da injustiça possa de algum modo levar à assunção de que a mudança deve ser operada no sentido de maior regulação e de práticas mais justas. A isto acresce que quando os órgãos decisores não são sensíveis ao debate críticoracional, as próprias motivações morais partilhadas por grupos sensíveis às mesmas causas podem ser suficientes para, apenas em virtude desta esfera teórico-prática partilhada, motivar movimentos sociais de resistência e de luta social, que acabam por visar a transformação por todos os meios disponíveis ao seu alcance. Portanto, uma crítica

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social deve poder responder às patologias através da crítica. Essa crítica pode e deve ter várias dimensões (por exemplo, dimensão sistémica a visar a organização social enquanto tal, dimensão normativa a tentar encontrar a melhor formulação dos ideais que norteiam a acção, dimensão hermenêutica que tente discernir as tradições nas quais uma determinada comunidade se reconhece e que podem ter sido desrespeitadas, mas que importa reconstruir, entre outras) mas a dimensão de crítica moral, de denúncia de práticas injustas, deve ser um dos seus elementos fundamentais.

III – A Filosofia social face à crise. Que resposta? Delineados de forma esquemática os vínculos que ligam os principais conceitos desta proposta, cabe agora tentar apontar, pelo menos em parte, a resposta que a filosofia social poderá dar à crise actual. A crise que neste momento nos aflige, à semelhança da crise de 29-30, é uma crise económico-financeira, uma crise das economias de mercado e dos seus agentes. Porém, como nenhuma crise financeira deixa incólume o social, isto é, as vidas das pessoas normais nas suas vidas concretas, como não há, poder-se-ia dizer, decoupling da vida das pessoas em relação às questões mais ou menos complexas das finanças e da macro-economia, teremos de nos concentrar precisamente na estrutura do capitalismo enquanto tal. Por conseguinte, esta secção ocupar-se-á, por um lado, de definir em traços muito gerais o projecto de uma filosofia social7 e, por outro, de operar uma breve análise do capitalismo, para tentar chegar ao esboço de resposta à pergunta seguinte: como responder a esta crise económico-financeira?

3.1) Delimitação da Filosofia Social “Filosofia social” é uma expressão que caiu em desuso. Na realidade, no contexto de muitos países, é até uma tradição de pensamento quase totalmente desconhecida. A única excepção notória é a Alemanha, na qual a soziale Philosophie assume a dignidade de uma disciplina de pleno direito. Não é de espantar pois que a Alemanha seja precisamente o país no qual a fronteira entre a filosofia e a sociologia é menos marcada que na maior parte dos outros países. Os teóricos da Escola de Frankfurt, pelo menos a partir da segunda geração, sendo Habermas o exemplo mais óbvio, são considerados

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A propósito de toda esta secção, cf. o livro de Franck Fischbach, Manifeste pour une Philosophie Sociale, que fornece uma boa síntese da história, da definição e das práticas da filosofia social. Cf. igualmente o artigo de Axel Honneth “Pathologien des Sozialen. Tradition und Aktualität der Sozialphilosophie” in Das Andere der Gerechtigkeit.

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sociólogos na Alemanha, por vezes filósofos em França ou noutros países. De facto, a mescla muito particular entre filosofia, sociologia e as outras ciências sociais, bem patente no programa interdisciplinar desenvolvido por Horkheimer desde o início das actividades do Instituto de Pesquisa Social, pode parecer uma bizarria a quem o veja de fora. Aliás, em certos contextos, como o Francês, a instituição da sociologia como disciplina científica e autónoma foi feita através de uma demarcação completa de tudo aquilo a que pudéssemos vagamente chamar “filosofia social”, com toda a sua carga semântica de subjectividade, a remeter quase para uma “mundividência” mal definida. Comte e Durkheim, por exemplo, tiveram que fundar a sociologia, em parte, contra a filosofia. Foi diferente a situação na Alemanha, onde autores como Simmel ou Weber não hesitavam em incorporar nos seus esforços teóricos a filosofia, inspirando-se por vezes em Nietzsche ou Marx. Mas o que pode então significar filosofia social, numa acepção já não pejorativa, mas produtiva? Em primeiro lugar, pode-se considerá-la como fazendo parte de uma filosofia prática, isto é, de uma filosofia que se ocupe da reflexão e das determinações da acção humana, a mesmo título que a ética ou a filosofia política. Nesse sentido, aquilo que nela está em causa é a análise e a construção de conceitos práticos, a partir de experiências que partam da prática ou que visem a sua transformação. Todavia, a sua especificidade é a de insistir no aspecto propriamente social, isto é, no aspecto da relação do indivíduo com outros indivíduos e com instituições e, simultaneamente, de tentar compreender quer os constrangimentos quer as possibilidades inerentes a essa interacção social para a vida do indivíduo. No seu esforço de clarificação e eventual transformação do social, a filosofia social assume um carácter interdisciplinar, podendo recorrer a elementos vindos quer da sociologia, quer da psicologia ou da economia. O facto de ainda ser “filosofia” aponta para o seu carácter englobante na busca de compreensão do social e para a recusa em ceder, como acontece por vezes noutras ciências sociais, à tentação da análise meramente quantitativa. Assim sendo, muitos dos seus conceitos têm, na realidade, uma dupla vocação, simultaneamente descritiva e prescritiva, na medida em que pretendem analisar as configurações sociais existentes podendo, eventualmente, visar transformá-las. Assim sendo, qualquer análise conseguida de filosofia social reproduz, ou tenta reproduzir, o próprio título deste artigo, do diagnóstico à acção; este é um desígnio que faz parte das suas intenções constitutivas. Uma análise retrospectiva à história recente da filosofia descobre que muitas das expressões filosóficas de uso mais comum, que tiveram repercussões directas no mundo cultural e na compreensão que temos de nós próprios, se reclamam, de uma forma ou de outra, de uma perspectiva que se poderia dizer de “filosofia social”; tais são os casos

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claros dos conceitos de “reificação”8 ou “alienação”9, da “dialéctica mestre-escravo” (ou, melhor dito, “dominação-servidão”)10, do “homem unidimensional”11 de Marcuse ou até mesmo, em certo sentido, da famosa “vida anónima”12 analisada por Heidegger. Em cada um destes casos a descrição de um fenómeno prático tem acoplada uma crítica que visa a libertação de possibilidades mais autênticas, mais reais, menos condicionadas. Esse é o motivo pelo qual a busca de uma vida realizada, para além de ser uma questão ética por excelência, também é uma questão de filosofia social, sempre e na medida em que o indivíduo que não se reconheça nas condições de atomismo nunca poderá fazer abstracção das condicionantes sociais que delimitam a sua “busca da vida boa, com os outros e por eles, em instituições justas”, para parafrasear a famosa definição da “pequena ética” de Paul Ricœur.13 Assim sendo, no estádio actual de desenvolvimento das sociedades humanas, e tendo em conta que o objectivo fundamental da filosofia social é analisar as estruturas sociais que nos enquadram e nos condicionam, tendo em vista o seu melhoramento, é inevitável a qualquer filosofia social uma análise do fenómeno do capitalismo em todas as suas facetas. Isto porque a forma de organização capitalista é, ou parece ser neste momento, inultrapassável. A sua irremediável complexidade, o seu polimorfismo, as suas múltiplas facetas, tornam-no num dos casos de estudo clássicos da filosofia social. Que o capitalismo consiga, neste momento, adaptar-se a sociedades tão diferentes como as sociedades democráticas ocidentais por vezes hiper-desreguladas no que diz respeito à circulação do capital ou, por suprema ironia, a uma sociedade chinesa com uma economia programada, burocratizada e centrada no Estado, mas que é palco do mais selvagem dos capitalismos, diz imenso sobre a capacidade de adaptação do sistema capitalista. Que este sistema produz, de forma sistemática, desigualdades sociais, quase nem valeria a pena referi-lo, de tão evidente que essa proposição é. Que, por isso mesmo, deva ser criticado, também me parece pacífico. Que com isso estejamos, eo ipso, a atacar 8

A reificação é um tema elaborado, antes de mais, por Lukács. Recentemente, Axel Honneth operou uma tentativa de reactualização do conceito em Verdinglichung.

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O tema da alienação é abordado em diferentes escritos de Marx. Uma das formulações mais completas encontra-se nos Manuscritos de 1844.

10

Uma vez mais, este é um tema constantemente retrabalhado por Hegel, havendo formulações desta dialéctica do reconhecimento desde os primeiros escritos de Jena, até à Enciclopédia. A versão que se tornou canónica é a da Fenomenologia do Espírito de 1807.

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Cf. Herbert Marcuse, One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society (Boston, Beacon Press, 1991). (Edição original publicada em 1964).

12

Veja-se o parágrafo 27 de Sein und Zeit de Heidegger.

13

A propósito desta definição, vejam-se os estudos 7, 8 e 9 de Soi-même comme un autre.

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a “sociedade livre”, a “sociedade de mercado” ou a prejudicar o desenvolvimento das democracias, parece-me apenas um argumento de quem queira silenciar a capacidade crítica e esconder as más práticas, nada mais. Digamo-lo sem ambiguidades: qualquer tentativa de substituir o modelo capitalista de organização social a curto prazo é perigosa e indesejável. A humanidade (já) não sabe viver sem ele e a alternativa socialista, nos países em que deveria ter sido implementada, quedou-se no rotundo fracasso conhecido. Porém, constatar esse facto também não deve ser ceder à tirania do discurso único, do “fim da história”, ou da “única solução”. Constatar que é a situação de facto não significa assumir a sua necessidade, e tomar-lhe o pulso e compreendê-lo não significa aceitá-lo tal e qual nos é apresentado. Caberá então à filosofia social, enquanto sede de reflexão crítica sobre o social, indagá-lo e criticá-lo enquanto sistema de organização e integração social e enquanto ideologia.

3.2) Antropologia e ideologia do capitalismo Para tentar compreender a natureza do capitalismo – é curioso constatar que muitas das falhas atribuídas ao sistema capitalista são muitas vezes justificadas, não raras vezes de forma ingénua, com o recurso a uma noção de “natureza humana”, supostamente pejada de defeitos... o que não só pressupõe erradamente que o homem tenha uma “natureza” que alegadamente não pode modificar, como “naturaliza” e quase tende a justificar as falhas: “é assim o homem...” – é útil partir de uma abordagem antropológica. Não que esta abordagem antropológica tenha de pressupor uma “natureza humana”, nem sequer uma ontologia social. Podemos perfeitamente constatar a contingência de tudo o que é humano e ainda assim determinar algumas constantes relativamente estáveis no comportamento humano e nas capacidades e características que nos são imputadas. A primeira dessas características que nos interessa e que é relevante para compreender o capitalismo é a presença do desejo na vida humana. À falta de o conseguirmos eliminar, lidamos com ele. Está amplamente reportada a forma como o sistema capitalista explora esta característica, nomeadamente através da publicidade e da super-produção: inventam-se necessidades. Cada novo produto que é colocado no mercado coloca o consumidor, confuso, a tentar entender como conseguiu sobreviver tanto tempo sem o novo objecto. No entanto, a utilização e a exploração do desejo vai mais longe dentro deste sistema. Para o compreender, é útil recorrer às análises de Frédéric Lordon, no recente livro Capitalisme, désir et servitude14 que parte de uma antropologia espinosista das paixões para a combinar com uma análise estrutural (de inspiração marxista) das 14

Cf. Frédéric Lordon, Capitalisme, désir et servitude (Paris, La Fabrique, 2010).

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relações humanas. Interessa-me mais, neste caso, a antropologia de inspiração espinosista. Lordon define a questão nestes termos: “la vie sociale n’est que l’autre nom de la vie passionnelle collective. Évidemment sous des mises en forme institutionnelles qui font de considérables différences, mais au sein desquelles affects et forces de désir demeurent le primum mobile.”15 Afectos e forças desejantes são, por conseguinte, o primum mobile, aquilo que nos move. Isto, em termos espinosistas, significa o conatus, isto é, o esforço por perseverar no seu ser, a vida, a energia do desejo. Supondo que todos os seres humanos são definidos pelo seu conatus, podemos no entanto também supor que alguns são mais poderosos do que outros. Se o quiséssemos exprimir em termos nietzschianos, diríamos que alguns conseguem exprimir de forma mais conseguida a sua vontade de poder do que outros, seja por vitalidade natural, seja precisamente por condicionantes sociais. Nesse sentido, o capitalista, segundo Lordon, definido enquanto aquele que tem uma empresa, ou seja, o desejo de cumprir algo, é simplesmente alguém cujo desejo se torna mestre e, para cumprir os seus objectivos, subordina outros desejos no seu esforço de obtenção de algo: “Par un de ces retournements dialectiques dont seuls les grands projets d’instrumentation ont le secret, il a été déclaré conforme à l’essence même de la liberté que les uns étaient libres d’utiliser les autres, et les autres libres de se laisser utiliser par les uns comme moyens. Cette magnifique rencontre de deux libertés a pour nom salariat.” (idem, p. 9). Portanto, o contrato salarial que liga o empregado ao patrão pressupõe logo, à partida, uma certa assimetria, na exacta medida em que um dos desejos se fixa na sua mera reprodução material – há que ganhar a vida – tendo portanto que se submeter ao outro, que o contrata para a sua “empresa”. É claro que se pode dizer que há um certo grau de liberdade do trabalhador, que pode escolher, dentro de determinados parâmetros, o tipo de trabalho que exercerá, ou pode escolher não trabalhar e morrer à fome, ou tentar algum outro tipo de esquema mas há que reconhecer que, para aquele que não dispõe do capital como ponto de partida a liberdade está sempre mais condicionada do que a liberdade do capitalista, precisamente aquele que pode decidir investir o dinheiro e deixá-lo capitalizar-se, não tendo que, por definição, trabalhar no sentido estrito do termo. Por conseguinte, na definição de Lordon, o conatus quer fazer e o conatus do capitalista de grandes projectos, para poder fazer, tem de fazer fazer, isto é, tem de conseguir juntar outros desejos ao seu, através do contrato salarial, e convencê-los a colaborar. Não tenho espaço para discutir aqui toda a análise de Lordon. No entanto, o autor assinala que o capitalismo tem tendência a tornar-se um projecto de mobilização total, o que pode facilmente ser comprovado pelas obsessões que gera: longas horas de trabalho, 15

Idem, p. 11.

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busca desenfreada do lucro, fenómenos de identificação grupal com “a empresa” ou “a equipa”, sacrifício de todas as outras dimensões da vida em prol da dedicação à “causa” da empresa, etc. Reencontramos aqui todas as análises marxistas clássicas da vida alienada, com os trabalhadores, por vezes, a inverterem de tal forma o sentido do trabalho que já não compreendem que é o trabalho que transforma o mundo, acabando por vezes por sentir-se presos a uma vontade alheia e a considerarem o tempo em que não trabalham como o tempo “livre”, o que só nos lembra que, em última instância, têm noção de que o projecto com o qual “colaboram” não é o projecto deles. Em última instância, Lordon analisa a questão em termos de “vectores” de desejo, caracterizando o desejo do patrão como um desejo de colinearização dos desejos dos assalariados (alinhando-os com o seu) e o esforço de emancipação como um esforço de se “tornar perpendicular”16, isto é, de conseguir desalinhar o seu desejo desta relação de dominação. Para este autor, nunca há verdadeira liberdade neste “contrato” o que nos faz lembrar, uma vez mais, a pergunta de Marx: o que podem vender todos aqueles que mais nada têm para vender senão a sua força de trabalho? Para Lordon, neste contrato de submissão, tudo o que pode haver por parte dos assalariados é ou um afecto triste (fruto da coerção) ou um afecto feliz (consentimento). Assumindo que pode haver algum exagero na análise operada acima, principalmente na quase nenhuma margem de liberdade que deixa ao indivíduo, há que, no entanto, reconhecer o mérito da análise em termos de desejos e de manipulação de desejos. E há que ficar surpreendido, ainda assim, com o número de pessoas que “consentem”, que acedem a um tipo de relação deste género como se ela fosse a única possível, como se este tipo de relações sociais, de distribuição de trabalho, fossem tão naturais que não consentissem alternativa. Este último factor leva-nos a interrogar a capacidade auto-justificatória deste sistema que é, de facto, extraordinariamente eficaz. A obra de referência neste domínio é o já clássico estudo Le Nouvel Esprit du Capitalisme, de Luc Boltanski e Ève Chiappello, que dá seguimento ao A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber. Em primeiro lugar, porque é que se deve falar de um “espírito” do capitalismo, e porque é que ele tem de existir? Porque, se as análises que acabámos de esboçar estão minimamente correctas, então o capitalismo apresenta-se como algo de relativamente absurdo: porque é que uma massa esmagadora da população haveria de consentir a tais condições, abdicando do resultado do fruto do seu trabalho que, uma vez transformado em capital, se deixa envolver no jogo infinito do reinvestimento e da procura insaciável de lucro dos relativamente poucos capitalistas que a ele se podem dedicar? Afirmar isto é, em certo 16

Ibidem, pp. 179-181.

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sentido, pressupor a relativa falta de racionalidade dos assalariados – a não ser que nos lembremos que a maior parte das pessoas não tem alternativa. Mas o que resulta claro das observações anteriores é que, para funcionar, o capitalismo tem de poder fornecer uma justificação racional e satisfatória, quer dos seus meios, quer dos seus fins. Por outras palavras: tem de conseguir constituir uma ideologia. De resto, não se entenda aqui ideologia em sentido estritamente marxista, como oposta à “realidade” ou à “ciência”. Ideologia aqui significa apenas sistema de justificação.17 Podemos, pois, falar de um “espírito” do capitalismo que, a cada vez, tenta convencer as melhores mentes, os actores sociais mais capazes e produtivos, a colaborar com o seu modo de funcionamento. E o resultado tem sido fantástico. É que existem, teoricamente, muitas virtudes no capitalismo. Alguns dos ideais promovidos com maior veemência são, precisamente, o da liberdade e da autonomia individuais. A estas virtudes “teóricas” que servem mais como ideais reguladores, costuma juntar-se, neste tipo de discurso, a defesa da maior virtude prática: a eficiência. E o capitalismo tem funcionado, inclusive, como motor de desenvolvimento de alguns países pobres e como ajuda a alguns dos sectores mais desfavorecidos da população nos países ricos. Por exemplo, a recente crise do subprime nos E.U.A., por mais insana que tenha sido permitiu, nos anos de boom, que muitos cidadãos que nunca teriam tido acesso a uma casa, pudessem de facto comprar a sua própria casa – embora depois muitos deles se vissem mais tarde obrigados a abandoná-la, por impossibilidade óbvia de pagamento da hipoteca... –, o que significa que uma parte deste discurso de justificação não é sequer enganadora. Boltanski e Chiapello distinguem, grosso modo, três “espíritos” do capitalismo diferentes18. O primeiro, característico do final do século XIX, centra-se na figura do burguês empreendedor. Promove valores como o risco, a especulação e a inovação, mas associa-o a valores burgueses extremamente conservadores, numa mescla instável que viria a ser alvo de críticas no século XX. Para se justificar, o capitalismo aparece nesta fase como um instrumento de emancipação: a famosa fórmula do self made man que alcança a emancipação através da construção da fortuna. A fé na indústria propriamente dita ancora-se, para mais, na crença no progresso, na ciência, na técnica. Numa palavra: na crença optimista no futuro. O século XX, como se sabe, foi pródigo em decepcionar as expectativas optimistas do século XIX e a própria crença no progresso. Dos anos 30 aos anos 60 deste século a ênfase desloca-se do indivíduo empreendedor para a organização. A figura heróica já não é o burguês, mas o director, e a empresa industrial tende a crescer 17

Defendo aqui uma posição próxima daquela que Ricœur apresenta nas Lectures on Ideology and Utopia.

18

Cf. Le nouvel esprit du capitalisme pp. 54-58.

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desmesuradamente, tornando-se burocrática e centralizada. A produção em massa e o consumo em massa tornam-se realidade e, com elas, a mobilização cada vez maior da sociedade e a contratação de cada vez mais pessoas para estas empresas. Cria-se a figura dos “quadros” dirigentes, altos funcionários que, em teoria, estariam mais próximos do patronato do que dos assalariados. No entanto, aquilo que Boltanski e Chiapello assinalam é que também este espírito do capitalismo foi alvo de inúmeras críticas, principalmente a partir do Maio de 68. As críticas à centralização excessiva, às funções demasiado rígidas, ao excesso de formalidade e burocracia, à própria “alienação” da vida do trabalhador das grandes corporações dos anos 60 fizeram com que, para sobreviver com o seu prestígio intacto e a sua capacidade de mobilização reforçada, o próprio espírito do capitalismo tivesse de se transformar e adaptar às novas circunstâncias sociais. E o resultado foi a aparição de uma nova figura, um novo herói capitalista, o “manager”: aquele que trabalha em rede e em múltiplos projectos simultaneamente, que confia tanto ou mais nas suas competências emocionais e sociais do que nas suas capacidades técnicas, que sabe trabalhar em equipa e “motivar” aqueles que consigo colaboram em vez de trabalhar sozinho no seu escritório fechado (proliferam, fisicamente, os “open spaces”, etc.). Através da análise da literatura de gestão dos anos 90, os dois sociólogos cuja obra seguimos nesta pequena secção concluem que no desenvolvimento deste novo espírito, aquilo que esteve em causa foi precisamente a capacidade do capitalismo absorver a crítica. A crítica faz-se sempre tendo em conta a situação actual, as injustiças e as falhas actuais. Por conseguinte, quando é eficaz, deslegitima o espírito anterior do capitalismo. Põe a nu os seus problemas. Por exemplo, na crise do subprime, pode-se dizer que, o alegado papel das empresas Fannie Mae e Freddie Mac, precisamente o de poder potencialmente dar uma casa a cada americano, que lhe servia de discurso de justificação, caiu pela base, quando se percebeu o que se estava realmente a passar com as apostas nos produtos estruturados. No caso do “novo” espírito do capitalismo, aquilo que se passou foi que a crítica “artista” proveniente de um espírito cultural e valorativo próximo do das revoltas estudantis, deslegitimou o paradigma da corporação. Por conseguinte, a transformação seguinte foi no sentido de conferir maior liberdade e “criatividade” ao trabalhador que, em última instância, quase se torna no artesão da sua própria vida e da sua actividade, podendo, até certo ponto, atingir uma vida “realizada” através do trabalho. Daí a sua constante mobilidade, a sua liberdade de associação a projectos diferentes, etc. É muito curioso constatar como este ideal não está, uma vez mais, muito afastado do ideal marxista da vida não alienada. Que ironia seria se tivesse sido, afinal de contas, o próprio sistema do capital a consegui-lo, não apenas para um determinado segmento da população, mas de uma forma tão abrangente quanto possível.

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Qual o resultado desta análise? É que, no final dos felizes anos 90, a crítica se via, uma vez mais, algo deslegitimada. Dir-se-ia em latência, categoria que já utilizámos para qualificar determinadas esferas públicas. Pois bem, aquilo que interessa reflectir agora, num momento em que o estado social se desmantela e em que a própria organização social sofre profundas alterações, revelando também as insuficiências manifestas do paradigma anterior, é o problema de saber como é que se reactiva a crítica e em que sentido é que ela nos deve conduzir. Tudo indica que, à semelhança de momentos históricos anteriores, face à pressão da crítica, serão o capitalismo e as sociedades de mercado a adaptarem-se, encontrando um novo “espírito” e uma nova forma de justificação das suas práticas. Talvez assim não seja, não se sabe. Mas o que importa realçar é que mais do que o tipo de solução que se encontrará, seja ela capitalista em sentido estrito ou não, ela terá sempre de ter em conta os níveis de qualidade de vida das pessoas. Nesse sentido, mais do que apontar soluções concretas e alternativas ao capitalismo, algo que não se afigura possível no nosso horizonte próximo, caberá neste caso à filosofia social tentar salvaguardar, tanto quanto possível, a integridade física e emocional dos cidadãos, operando uma crítica ao tipo de solução que parece, precisamente do ponto de vista do sofrimento das pessoas, errada.

IV – Os bens inestimáveis 4.1) A filosofia e o vil metal No contexto de uma sociedade de tipo cada vez mais mercantil, podemo-nos perguntar: será que tudo tem um preço? Será que tudo deve ser sujeito à tirania do quantitativo? A tendência de objectivação que herdámos da modernidade parece apontar nesse sentido. A própria avaliação do sucesso das nações em termos de “riqueza”, de PIB (absoluto ou per capita) é disso um forte indicador. Porém, a pergunta que nos colocamos, uma vez mais, quando se discutem défices, dívidas externas e rácios de capitalização de bancos, é se não existe algo que deva escapar a esta lógica. Se a filosofia social não tem, uma vez mais, o dever de, através da crítica, quebrar um pouco este tipo de discurso. A pergunta inicial é, portanto, a seguinte: será tudo convertível em dinheiro? O dinheiro justificará tudo? Ou haverá algo que escape a esta lógica? Como é que a filosofia em geral e a teoria da justiça em particular, podem pensar a questão do dinheiro? A primeira observação é a de que, por um lado, o valor social atribuído ao dinheiro, e o prestígio atribuído às finanças nem sempre foram tão elevados como o são hoje. Algumas passagens da literatura universal são suficientes para ilustrar essa espinhosa questão. A figura do usurário, em particular, foi historicamente vítima de um ódio quase universal.

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Poucas personagens literárias serão tão infames quanto Shylock que, no Mercador de Veneza19 de Shakespeare, exige como fiança do seu empréstimo uma libra de carne a António... Já Dante reserva, no seu Inferno, um local especial aos usurários, precisamente o sétimo círculo. Veja-se a seguinte passagem do Canto XVII: “Per li occhi for a scoppiava lor duolo; di qua, di là soccorrien con le mani quando a’ vapori, e qundo al caldo suolo: non altrimenti fan di state I cani or col ceffo or col piè, quando son morsi o da pulci o da mosche o da tafani. Poi che nel viso a certi li occhi porsi, ne’ quali ‘l doloroso foco casca, non ne connobi alcun; ma io m’accorsi che dal collo a ciascun pendea una tasca ch’avea certo colore a certo segno, e quindi par che ‘l loro occhio si pasca.” (Dante, La Divina Commedia, Inferno, Canto XVII, Versos 46-57, p. 158)20 É curioso notar que, mesmo no Inferno, o olhar dos usurários se encontra cravejado na bolsa que trazem pendurada ao pescoço, o que parece significar que, mesmo no sétimo círculo dos Infernos, não se encontram curados do seu mal de ganância, o que diz bem da imagem que Dante deles traçava. Em Shakespeare, para além da já referida personagem de Shylock, temos ainda a fortíssima passagem contra o dinheiro, a raiz de todos os males que a todos corrompe e a todos desgraça e que tudo parece justificar: “Who seeks for better of thee, sauce his palate With thy most operant poison! What is here? Gold? yellow, glittering, precious gold? No, gods, I am no idle votarist: roots, you clear heavens! Thus much of this will make black white, foul fair, Wrong right, base noble, old young, coward valiant. Ha, you gods! why this? what this, you gods? Why, this Will lug your priests and servants from your sides, 19

Cf. The Merchant of Venice.

20

Cita-se a versão da Flammarion, comentada por Jacqueline Risset.

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Pluck stout men’s pillows from below their heads: This yellow slave Will knit and break religions, bless the accursed, Make the hoar leprosy adored, place thieves And give them title, knee and approbation With senators on the bench: this is it That makes the wappen’d widow wed again; She, whom the spital-house and ulcerous sores Would cast the gorge at, this embalms and spices To the April day again. Come, damned earth, Thou common whore of mankind, that put’st odds Among the route of nations, I will make thee Do thy right nature.” (Shakespeare, Timon of Athens, Quarto Acto, Cena III, Timon)21 A razão pela qual estes exemplos são invocados não se prende, de forma alguma, com qualquer vontade de diabolização do dinheiro, das finanças, ou das pessoas que com elas trabalham. O objectivo deste artigo não é, de todo em todo, o de cair na lógica maniqueísta. Servem estas referências culturais apenas para nos lembrar que o próprio dinheiro enquanto ferramenta simbólica e os instrumentos financeiros que se foram desenvolvendo e complexificando, bem como o prestígio associado às profissões que lhe são conexas, foi objecto de uma ascensão histórica.22 De figuras odiadas a “masters of the universe”, o processo foi longo. E o resultado é que, hoje, vivemos em economias de mercado. Mas será que, no entanto, queremos viver em sociedades de mercado? Isto é, em sociedades nas quais absolutamente tudo possa ser convertido em bem mercantilizável e trocado por dinheiro?

4.2 – O que não pode ser comprado nem vendido A resposta, que me parece óbvia, é que não. Neste sentido, convém-nos recorrer a uma teoria plural da justiça, como a de Michael Walzer que afirma, em Spheres of Justice, a necessidade de uma irredutibilidade entre diversos tipos de bens. Walzer defende com convicção a necessidade da existência de bens não mercantis, que não possam 21

Citado por Michael Walzer em Spheres of Justice: A Defense of Pluralism and Equality, pp. 95-96.

22

Para um bom resumo desta ascensão nas suas múltiplas fases, ver o livro de Niall Ferguson, The Ascent of Money.

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ser trocados ou vendidos. A lista de Walzer contém, por exemplo, os seguintes bens não mercantilizáveis: Seres humanos, poder e influência política, justiça, liberdades de expressão, imprensa e associação, direito ao casamento e à reprodução, o direito de abandonar determinada comunidade política, cargos políticos, o direito a um nível pelo menos mínimo de bem-estar, prémios e honras, a graça divina, amor e amizade, entre outros. O elenco é longo.23 Não será aqui que poderei discutir com detalhe a lista de Walzer, nem determinar se todos estes bens são de facto não mercantilizáveis. Mas interessa-me enfatizar a resistência à sociedade de mercado e a escolha de alguns bens como sendo “inestimáveis”. E a filosofia parece ser, precisamente, uma das disciplinas de eleição para discutir esta problemática. Filosofia que, a acreditar nas palavras de Platão, estaria precisamente ligada à prática do sem-preço24: não nos esqueçamos que Sócrates era aquele que não cobrava pelo seu ensino. Não fazia da filosofia qualquer coisa como um conteúdo mercantil, ao contrário, precisamente, dos sofistas. Mostrava por isso mesmo que alguns bens estão, de alguma forma, acima do valor do próprio dinheiro: pensemos na verdade, ou na virtude. Antes que o tom se torne demasiado moralizante, concentremo-nos, no entanto, em dois direitos: o direito à dignidade e o direito à integridade (física, psicológica, emocional). Por mais abstractos, semanticamente indefinidos e fugidios que possam ser, estes dois direitos dizem directamente respeito às vidas concretas das pessoas. Quanto Kant nos recorda que a pessoa humana tem um valor, mas não um preço, e interdita o tratamento do outro como simples meio, aquilo para que está a chamar a atenção é precisamente para isto. Por mais que seja difícil definir a dignidade, ela suporta, enquanto valor positivo, a interdição de práticas tais como a escravatura – quer a total, hoje em dia felizmente muito rara, quer a parcial, imensamente presente na actualidade, sob a forma, por exemplo, das redes de prostituição. O princípio da dignidade possibilita, conceptualmente, a defesa dos direitos humanos, interditando e perseguindo as suas violações concretas. Pois bem, o mesmo princípio dever-se-ia aplicar, parece-me, à integridade. Significa isto que a possibilidade de uma vida realizada, não mutilada, deve ser um direito. E por mais indeterminada que seja a nebulosa de desejos que a ela associamos, por mais difícil que seja de determinar e mesmo por mais plurais que as suas possibilidades sejam, o que é mais urgente determinar é que tipo de práticas

23

Para uma listagem completa e uma discussão de todos estes itens, veja-se o capítulo 4, “Money and Commodities”, de Spheres of Justice.

24

Veja-se, a este respeito, o excelente livro de Marcel Hénaff, Le Prix de la Vérité: le don, l’argent, la philosophie.

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ou políticas públicas devem ser tanto quanto possível evitadas, se é que queremos que um tal ideal seja viável. Neste ponto, é útil voltarmos à economia. Um indicador provavelmente mais significativo do que o PIB, para aquilo de que estamos a falar, é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esse índice sim, pode-nos ser útil. É que o que está em causa é o nível de oportunidades de desenvolvimento que são concedidas às pessoas e, reciprocamente, as políticas que podem impedir significativamente a melhoria do nível de bem-estar da população em geral. Neste sentido, são-nos da maior utilidade possível as teorias económicas que se recordam que a ciência lúgubre continua a ser não só uma ciência social, como também, de forma significativa, uma aplicação muito específica da teoria moral, como o era em Adam Smith e como o continuou a ser quase até ao século XX25. Podemos ler, por exemplo, quase toda a obra de Amartya Sen sob este prisma26. A capabilities approach que nos propõe é especialmente indicada para concebermos este problema. Tem, aliás, semelhanças notáveis com a antropologia das capacidades de Paul Ricœur. Mais desenvolvimento significa maiores liberdades. E aquilo por que devemos lutar, aquilo que podemos legitimamente reivindicar, é o desenvolvimento das nossas capacidades. A contrario, aquilo a que nos devemos opor é precisamente às políticas públicas que resultem numa diminuição concreta das capacidades das pessoas.

4.3 – A integridade face ao seu negativo: o sofrimento social Em última instância, se a lógica que pretendemos defender é a do florescimento das capacidades – da intensificação do conatus, se quisermos falar em termos espinosistas –, teremos de nos opor a toda a política pública que, colocando a ênfase no critério quantitativo (por exemplo, de redução do endividamento) se abstraia da condição efectiva na qual as pessoas são colocadas. Todo o debate sobre a austeridade que assola a Europa neste preciso momento é disso um bom exemplo. Qual o critério, por conseguinte, que podemos utilizar neste debate? Um critério, também ele dificilmente definível, mas ainda assim fulcral para esta questão é o do sofrimento. É um critério subjectivo, é sabido. Mas é também o critério que mais facilmente gera a percepção de injustiça e, eventualmente, pode levar à mobilização colectiva. Num livro recente, intitulado Souffrances

25

Um caso claro de um autor que sublinha esta vertente, entre nós, é o de Vitor Bento. Veja-se o seu recente Economia, Moral e Política.

26

Mencionarei apenas, a título de exemplo muito significativo para a nossa proposta, On Ethics and Economics e Development as Freedom.

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Sociales27, Emmanuel Renault teve o mérito de associar a problemática do sofrimento a uma dimensão social, mostrando que pode existir algo a que chamaremos o “sofrimento social”, isto é, o conjunto de efeitos subjectivos das falhas sistémicas de índole social. Renault mostra que esta problemática pode ser analisada quer em termos filosóficos, quer sociológicos, psicológicos ou políticos. E a questão do sofrimento social é, aliás, uma das questões que deve ser encarada com maior seriedade por todos aqueles que se encontrem na intersecção entre a teoria crítica e a filosofia social. O sofrimento é, precisamente, um dos sintomas de patologia social, no sentido que analisámos acima. Pode-se afirmar, em termos extremamente simples, que quanto mais uma sociedade sofre, isto é, quanto maior for o número de cidadãos cujas vidas subjectivas sejam assoladas pelo sofrimento causado especificamente por falhas de integração e organização social, tais como o desemprego, a precariedade e a pobreza extrema, mais falhada essa sociedade é. Se é que a integridade é um direito inviolável, algo inestimável, então as políticas públicas deveriam visar, tanto quanto possível, a diminuição do sofrimento social. Se tal se revelar impossível, se o trajecto for precisamente o inverso – e que mais se passa na Europa, senão precisamente um aumento acentuado do sofrimento de sectores enormes da população – não há garantias de que o sistema ideológico, a própria justificação de base do capitalismo enquanto sistema de integração, não dê sinais de falha e/ou falência aceleradas. Que, em última instância, seja a própria viabilidade do projecto político que nos anima que possa vir a estar em causa, isso só torna a situação mais dramática.

V – Conclusão: será possível conceber novas formas de acção colectiva? Não é fácil conceber modos de vida e de organização social alternativos ao capitalismo. Nem sequer é certo que sejam desejáveis, uma vez que uma das características da acção é precisamente o facto de ter consequências imprevisíveis. Todavia, a crítica das deficiências estruturais deste sistema que impedem, de forma reiterada, uma efectiva concretização do ideal de igualdade, não pode deixar de ser levada a cabo. A própria categoria do “sem preço” ou do inestimável não serve, por si só, de alternativa. Qualquer coisa como uma “economia da dádiva”, vagamente inspirada em estruturas arcaicas tipo potlatch (com a ênfase no aspecto cerimonial) ou a lógica meramente assistencial da 27

Cf. Emmanuel Renault, Souffrances Sociales. Philosophie, psychologie et politique. (Paris, La Découverte, 2008).

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ajuda ao desenvolvimento (desta vez com a ênfase na dádiva moral, unilateral, que dá sem esperar em troca, à semelhança da caridade cristã) são claramente insuficientes para constituir um paradigma alternativo. No actual estado de complexidade do capitalismo, qualquer alternativa deste género não só é utópica (o que, enquanto tal, não a desclassifica) como efectivamente enganadora, se pretender prometer algo – uma transformação – que não pode cumprir. Outros tipos de projectos comuns, de democracia radical, como sejam os orçamentos participativos ou as comunidades open source e open access nas quais não há propriamente propriedade, apenas esforço colaborativo e fruição comum, por mais interessantes que possam parecer, também não estão verdadeiramente à altura de um novo paradigma. O capital não se está a auto-destruir, como Marx previra. Não é necessariamente verdade que cada crise do capitalismo seja mais grave do que as precedentes (teremos ainda de ver os resultados desta). O que temos absolutamente de tentar é atenuar o sofrimento das pessoas. Qualquer tentativa de encontrar uma alternativa que funcionasse teria de passar por períodos de experimentação e sempre com enorme prudência. Seja como for, aquilo que nunca poderemos esquecer é a especificidade da acção humana. Como tão bem nos recorda Hannah Arendt, só os seres humanos são dotados de iniciativa, isto é, de começar algo de novo no mundo, pela palavra e pela acção28. Assim sendo, mesmo que as alternativas não sejam evidentes, o potencial radical de transformação continua presente. A ferramenta mais evidente ao nosso alcance, enquanto continuamos empenhados em minorar os efeitos da crise, passa provavelmente pela tentativa de aprofundamento da democracia. Colocar a economia ao serviço da sociedade, em vez de deixar que o Estado se transforme em capital. Voltar a falar de política. Aplicar, como sugere Nancy Fraser, o “all-affected principle” à esfera pública29. Isto é, decisões que nos afectam a todos, devem poder ser tomadas por todos. A democracia formal que temos pode ainda ser reforçada com mais instrumentos de democracia participativa, que partam das bases – bottom-up democracy. O referendo pode ser um desses instrumentos. A discussão, a verdadeira discussão política, pode ser outro. Pode ser que, assim, aquilo de que mais necessitamos, utopias que contrabalancem o peso das ideologias30 e nos façam acreditar que uma outra ordem social é possível, mais justa e mais democrática, se tornem 28

Ver, a este respeito, todo o capítulo “Acção” na Condição Humana, da qual cito a tradução francesa.

29

Cf. “Transnationalizing the Public Sphere. On the legitimacy and efficacy of Public Opinion in a PostWestphalian World” in Theory, Culture and Society 24 (4) (2007), pp. 7-30.

30

Adopto aqui o esquema proposto por Ricœur nas Lectures on Ideology and Utopia. A utopia é o par dialéctico da ideologia: uma justifica a ordem existente, a outra quebra a ditadura do discurso único ao contemplar a ordem possível.

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mais acessíveis. Aquilo de que precisamos, como defende Erik Olin Wright, é de utopias reais31. Acreditemos então no aprofundamento da democracia como uma dessas utopias. Como afirma com força Hannah Arendt, os homens não vieram ao mundo para morrer, mas para inovar.32 A cada nova geração, o poder da inovação multiplica-se. Podemos começar de novo. É essa a nossa grande característica, o “milagre da acção”; e é isso que permite a esperança. De resto, “C’est cette espérance et cette foi dans le monde qui ont trouvé sans doute leur expression la plus succincte, la plus glorieuse dans la petite phrase des Évangiles annonçant leur “bonne nouvelle”: “Un enfant nous est né”.33

Referências bibliográficas Arendt, Hannah, La condition de l’homme moderne (préface de Paul Ricœur) (Paris, Calmann-Lévy, 1961). Bento, Vítor, Economia, Moral e Política (Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011). Boltanski, Luc e Chiappello, Ève, Le nouvel esprit du capitalisme, (Paris, Gallimard, 1999). Dante, La Divine Comédie (Présentation et traduction de Jacqueline Risset) (Paris, Flammarion, 2004). Ferguson, Niall, The Ascent of Money. A Financial History of the World (New York, Penguin, 2008). Fischbach, Franck, Manifeste pour une philosophie sociale (Paris, La Découverte, 2009). Foucault, Michel, “Qu’est-ce que les lumières?” em Dits et Écrits IV, (Paris, Gallimard, 1994), pp. 562-578. Fraser, Nancy, “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy” in Social Text no. 25/26 (1990) pp. 56-80. Fraser, Nancy, “Transnationalizing the Public Sphere. On the legitimacy and efficacy of Public Opinion in a Post-Westphalian World” in Theory, Culture and Society 24(4) (1990) pp. 7-30. Habermas, Jürgen, Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurtheorie des Rechts un des demokratischen Rechtsstaats (Frankfurt, Suhrkamp, 1992). Habermas, Jürgen, The Structural Transformation of the Public Sphere. An Inquiry into a Category of Bourgeois Society (trans. Thomas Burger and Frederick Lawrence) (Cambridge, Massachusetts, 1989). Hegel, G. W. F., Phenomenology of Spirit (trans. A. V. Miller) (Oxford, Oxford University Press, 1977).

31

Cf. Envisioning Real Utopias.

32

La Condition de l’homme moderne, p. 277.

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Idem, p. 278.

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