Grafias de um corpo dissidente. Um tratado homoerótico “suave” na obra de Hudinilson Jr.

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Hudinilson Jr: Zona de Tensão. Mesa de debate: Arte e erotismo | CCSP | São Paulo, 09.08.2016

GRAFIAS DE UM CORPO DISSIDENTE
 Um tratado homoeró:co “suave” na obra de Hudinilson Jr.1

Fernanda Nogueira2

O caminho percorrido aqui será o de uma cartogra7ia afetiva e crítica sobre alguns trabalhos do artista Hudinilson Júnior vinculados ao Movimento de Arte Pornô. Vamos usar uma metodologia que se baseia num trabalho seu: posicionar-se, inverter e penetrar (7ig. 1). Esses são os títulos das matrizes que compõem a instalação Posição Amorosa, respondida coletivamente por seus contatos da rede de arte postal durante o ano de 1981, e exposta como parte do Projeto Releitura na 18ª Bienal de São Paulo, em 1985. Outro elemento dessa metodologia será a sua “ética não conciliadora” do artista, que bem retoma o curador e amigo Márcio Harum no texto de apresentação da mostra Hudinilson Jr. Posição Amorosa, na Galeria Jaqueline Martins, em 2014. 3 Estamos diante de um trabalho artístico super potente. Potente não pela virilidade, ou por aquela força masculina opressora e reprodutora, mas pela suavidade com que esta mesma virilidade chega a ser desconstruída a partir de uma metodologia imagética e estética ímpar. Esta desconstrução passa, fundamentalmente, pela elaboração performática (e performativa) do desejo homoerótico singular. Há alguns anos comecei a pesquisar as produções artísticas e culturais que lidam com os gêneros e as sexualidades dissidentes. Aquelas práticas estéticas e políticas que desviam da heteronorma, da hegemonia corporal e sexual à qual estamos submetidas quotidianamente num regime de subjetivação que nos ensina quem podemos ser e como devemos atuar nesta sociedade para se integrar e continuar alimentando um regime econômico que suplanta a vida (a singularidade, diversidade e em si). Nesse sentido, interessa nomear este regime não de capitalista, mas heterocapitalista.

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Tal regime vem, desde a Colonização, atuando sub-repticiamente para fazer crer que certas formas de vida são “normais”, enquanto que outras, “aberrantes”. Pois bem, é precisamente neste mapa binário de valores que toda a produção discursiva e social vem sendo pautada, e que muitas manifestações da diferença vêm sendo invisibilidadas, por assim dizer, “naturalmente”! O semiólogo argentino Walter Mignolo, teórico contemporâneo da descolonialidade, foi preciso quando apontou a ligação da Estética como disciplina, com a colonialidade. Diz ele: “A estética surgiu como disciplina (isto é, como forma de controle e formação das subjetividades) com a burguesia européia incidindo, na ideologia dos desenhos imperiais/globais e nos projetos de regulação das subjetividades no planeta.”4 Esses desígnios consequentemente afetaram, e continuam afetando, o modo como as sexualidades desobedientes são consideradas no campo estético. Aqui no Brasil ainda nos falta bastante para popularizar o impulso descolonial, para ser conscientes de como a colonialidade se reproduz a si mesma, respondendo a uma regime discursivo sempre cômodo, baseado no senso-comum naturalizador que faz repetir frases como “isto sempre foi assim, e vai continuar sendo”, ou que naturaliza um cânon artístico formalista e conservador. O que esta expressão tão corriqueira tem a ver com o regime estético e político de visibilidade que o grande trabalho do Hudinilson Jr. nos traz? A resposta está na sua própria carreira artística. O sistema “urubu” das artes relegou seu trabalho, e ainda hoje quando o mostra, o relega, ou renega. Como é possível que temas tão incendiários dessa obra, como a sexualidade e o gênero, sejam completamente obliterados, obnubilados, tachados, não mencionados, desviados, considerados menores e subalternizados frente às mídias empregadas? Se há alguma patologia em cena, é a de determinado campo estético neste país quando se trata de enfrentar temas candentes. Esta patologia consiste em considerar su7iciente se falar apenas sobre as formas de experimentação, não entrar nas temáticas abordadas pelas e pelos artistas, como se a resolução formal bastasse. A pergunta que não quer calar é: resolução formal do quê? A experimentação estética têm uma tacada crítica que vai muito além da simples subversão da funcionalidade cotidiana das tecnologias. A prática estética é um signo de algo, e como tal, tem signi7icante e signi7icado: têm uma aparência formal e têm um

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conteúdo histórico, social, acomodado ou crítico. Pois bem! De alguma forma, acionamos aqui o primeiro elemento metodológico inspirado no trabalho do artista: posicionar-se.

INVERTER O que o trabalho de Hudinilson tem de singular salta aos olhos dentro do campo homoerótico e da arte pornô. É a partir destas duas poéticas criativas que podemos entender como esse trabalho opera criticamente. Vale ressaltar aqui que nenhum signo é uma essência em si, mas os seus usos, em determinados contextos, são os que vão de7inir a sua identidade e operação. No campo do homoerotismo masculino é possível desconstruir, por exemplo, a presença do falo em sua obra. Tal como aponta René Schérer, em seu prólogo ao livro de Guy Hocquenghem, O desejo homossexual, o falocentrismo não constitui outra coisa senão a supremacia masculina quando se dá na relação de um homem-objeto sobre uma mulher-objeto. “Esta é a pílula que faz gravitar toda a sociedade humana e seu sentido entorno do falo”, 5 o conhecido falocentrismo tão representativo do sistema capitalista/ colonial patriarcal e heteronormativo. No entanto, não é este o sentido que opera a obra de Hudinilson. No trabalho visual desenvolvido por ele, as relações de poder que emanam das imagens não são heterocentradas. Ali, o falo deixa de representar a dominação ativo-passiva de uma relação hétero. Passa a ser um signo do desejo de caráter horizontal, um objeto em si, na cultura gay, lésbica, pan-sexual, etc. Por extensão, dentro do seu universo de criação, as xerogra7ias têm um sentido super radical! Descentralizam a genitalidade para pulverizar zonas erógenas por todo o corpo. Diz o crítico cinematográ7ico Jean-Claude Bernardet, no texto “Palavras para um Corpo Xerocado”, que abre o catálogo da exposição HUDINILSON JR. “Xerox Action” (1983): “O detalhe nos atrai, nos imanta, nos seduz. Um processo de fascinação que nos dá a ilusão de estarmos à beira do contato desejado com o corpo original, nu, uno, inde7inidamente adiado”.6

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Hudinilson consegue produzir aqui a mais vital arte pornô, que se difere da pura e simples pornogra7ia comercial mainstream, com os seus corpos em posições, gestos, caras e bocas previsíveis, na qual só o corpo feminino pode ser penetrado. Uma indústria que não problematiza o desejo e a sexualidade, mas inviabiliza o próprio aparato de produção que opera ao formar, juntamente com outras produtoras industriais e comerciais, uma norma estética, de corpos respeitáveis, majoritariamente brancos, feitos para excitar dentro dos padrões controlados pela indústria cosmética e farmacêutica. O trabalho de Hudinilson está longe desse ideal deprê-visível. O que ele nos mostra em seu trabalho estético estaria mais associado ao que se chama hoje de pós-pornogra7ia: uma feitura artesanal, do it yourself [faça-você-mesma], que desestabiliza o desejo hétero, com desejos e corpos sub-comuns, marginalizados (e condenados) por esta mesma indústria de excitação. Ainda que os processos de subjetivação façam crer falsamente que temos acesso à totalidade do conhecimento sobre o próprio corpo e poder sobre ele, a sensualidade e os prazeres, na pornogra7ia tradicional, de circulação comercial, o conhecimento de si e do corpo através das imagens, não é permitido, e a autonomia sobre a visualidade está restringida. O fazer artístico complexo de Hudinilson se associa diretamente à 7iloso7ia crítica que permeia o Movimento de Arte Pornô na década de 1980. E é aqui que entendemos o por quê da sua assinatura no manifesto feito nas coxas, em 1980 (7ig. 2). O Movimento de Arte Pornô, especialmente a Gang, braço performático do movimento, prezava por uma estética do obsceno. A partir do slogan “revolução e prazer”, tanto as suas ações públicas (7ig. 3), quanto a produção poética, artística, literária e editorial, procuravam criar um novo léxico, uma “gramática libidinal” para “liberar a sensualidade, subverter a linguagem e incorporar as minorias”. 7 Lembremos que o Brasil estava vivendo, naquele período, o processo de decadência da ditadura militar e a abertura política. O esquema era, então, subverter tudo aquilo visto como anormal, imoral e censurável no sistema de pensamento repressor, a começar pela língua e suas palavras estigmatizadas (os palavrões, as blasfêmias, as injúrias de conotação sexual), para provocar, performativamente, a inversão radical desses valores, incitando outro tipo de sexualidade e relação com o corpo, travestindo e desnudando indiscriminadamente,

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burlando-se da seriedade daquele regime político heteropatriarcal e machista, mas que pretendia se passar por “neutro”.8 A contribuição do Hudinilson Júnior foi bem pontual, mas 7ica clara a sua a7inidade estética com as práticas estimuladas pelo Movimento. Em 1981, Eduardo Kac publica o livro Nabunada Não Vaidinha? 9 (7ig. 4, 5 e 6), o segundo volume da Coleção Bandalha, organizada pela Gang. O volume reúne os poemas do poeta –hoje artista– entre março de 1980 e fevereiro de 1981. E tem na sua capa uma xerogra7ia de Hudinilson da série “Exercício de me ver” (1980). O contato entre eles foi constante, fosse pessoal, via correio –com troca de materiais pela rede de arte postal–, ou com participação em ações artísticas coletivas. Este foi o caso da Semana de Arte Moderna de 1982 (7ig. 7), comemorando os sessenta anos do famigerado evento, em dezembro do ano anterior no Rio de Janeiro. O paralelismo entre a prática dos dois está em foder com a tecnologia: Eduardo Kac operando no campo da linguagem poética, provocando 7issuras na cumplicidade desta com a moral e os bons costumes. E Hudinilson Júnior, subvertendo uma máquina tão funcional quanto pode ser uma copiadora. Mas a ousadia artística de ambos foi além! No 7inal das contas, acabaram subvertendo o próprio corpo como tecnologia de simples reprodução, e, consequentemente, abalando os fundamentos da normalidade (7ig. 8). Eduardo Kac trabalhava sobre a constatação de que “somos falados pela linguagem”, tal como explicita no seu texto “Rebelde sem calça”. E conclui dizendo: “muito além da pornogra7ia e do erotismo, surge triunfante o corpo. Não o corpo massacrado da população terráquea. Não o corpo esculpido dos Mitos. Não apenas o corpo 7ísico do poeta. Um outro corpo. Na estirpe de Sade e Duchamp: uma Body Poetry, uma Energy Writing, ou qualquer outro nome que se queira dar.”10 E diz mais: “Nós, os poetas do Movimento Pornô, valorizamos a política do corpo no que esta pode ser útil na elaboração de uma nova atitude 7ilosó7ica e estética.”11 Por coincidência, Jean-Claude Bernardet se refere da seguinte forma ao trabalho de Hudinilson: “Surge a imagem de um novo corpo, a unidade original não será alcançada. Fica o corpo instrumentalizado para a produção de obras de arte (…) corpos fantasmáticos, novas geogra7ias corpóreas”.12

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No trabalho de Hudinilson, é a ideia de corpo o que se transforma no processo de criação e subjetivação maquínica.13 E para este outro corpo ele constrói todo uma nova máquina erótica. A percepção do corpo como um todo, tal como está presente no nosso imaginário bombardeado de normatividade cotidianamente, importa menos. É a desconstrução do desejo normativo que me interessa no trabalho estético do Hudinilson. A forma como consegue, através da xerogra7ia, da colagem, do gra7ite e do trabalho grá7ico inserido na arte postal fazer com que todos se impliquem nessa subversão do desejo. Sem dúvida, é um trabalho de caráter fático! Não há como sair ileso. A maquino7ilia – a relação erótica com a máquina – é o que constrói o corpo de Hudinilson não como objeto, mas como sujeito de desejo na experimentação de si (7ig. 9). Chego, então, ao trabalho Detalhe do detalhe II (1983) (7ig. 10) pelas mãos de um poeta e escritor, cujo trabalho sobre sexualidade e desejo desviado encontra representação visual na xerogra7ia de Hudinilson. Glauco Mattoso, também membro do Movimento de Arte Pornô, tem uma obra literária excepcional que, desde o 7inal dos anos 1970, vem re7letindo sobre (e recriando) o universo homoerótico e queer / kuir. Ele publica em 1986 a obra-prima Manual do pedólatra amador. Aventuras e leituras de um tarado por pés (7ig. 11), com um posfácio de Néstor Perlongher intitulado “O desejo de pé”. Manifesto aqui a minha grande admiração pelo trabalho radical destes parceiros no campo da cultura. A xerogra7ia presenteada por Hudinilson a Glauco é formada por um conjunto de quadros de imagens dos pés, ampliados e reduzidos, em posições incomuns, juntos ou por separado, tocando-se, com detalhes reforçados. Aqui o corpo aparece, em fragmentos, como potência de desejo, de sedução, de atração que, na operação imagética de Hudinilson, desvia o imaginário sensual para os pés.

A simbologia que Hudinilson vai construindo na representação do corpo é eternizada pela xerogra7ia. A capa do catálogo HUDINILSON JR. “Xerox Action”, por exemplo, é em si um manifesto! Quando aberta mostra as duas mãos do artista formando uma imagem triangular dos dedos indicadores e polegares que se tocam (7ig. 12). Uma imagem que se associa tanto à forma dos lábios vaginais, símbolo de luta e empoderamento feminista, assinalando o seu impulso transgênero solidário, quanto ao triângulo rosa de ponta6

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para-cima, que representa os movimentos homossexuais de resistência (em contraposição ao triângulo rosa de ponta para baixo usado para representar os homossexuais presos nos campos de concentração germanos na época do Nazismo - Nacional Socialismo). Este gesto com as mãos foi usado em varias marchas e protestos feministas e homossexuais. Sua Xerox Action é realmente uma ação através do xerox, uma atitude; não só uma posição, mas um posicionamento. Sua crítica social ao status quo se faz através da xerogra7ia ou da xeroperformance, e a máquina é sua aliada para a multiplicação e sobrevivência das mensagens.

A xerogra7ia e a xeroperformance como prática artística se converte num instrumento de especulação erótica do corpo masculino, tema recorrente nos últimos cadernos e em Narcisse / Estudo para autorretrato (1984). Já nos Exercícios de me ver (1980-83), numa relação promíscua quasi-animista e obsessiva com a máquina, a matriz da experimentação é despistada: já não se sabe se esta é a máquina, o corpo ou a cópia. A cópia é o original; as várias cópias, o estudo; não um espelho para a representação, mas uma seleção precisa de imagens que refazem o desejo de si, que já é o outro. Nessa deprav/ação maquínica, literalmente horizontal, entre o artista e a máquina copiadora para reproduzir imagens do corpo, o tesão, o fetiche, vêm associados ao protesto e à tensão.

E é precisamente da série “Zona de Tensão” a imagem recorrente Pinto não pode (1981) (7ig. 13). Por meio de uma identidade visual própria do pênis, re7letido através do espelho da máquina, ele faz sua crítica ao comércio pornográ7ico que sacralizava o corpo masculino para restringir as suas possibilidades de desejo, ou seja, que não atendia às demandas gays. A con7iguração política do seu trabalho consiste em forçar o limite do imaginário erótico-pornográ7ico, que, como enfatiza Glauco Mattoso, é alvo de censura constante.14 A resposta para este tipo de repressão, talvez fosse fazer ver, como diz poeta pornô Cairo Assis Trindade, que, na verdade, a “obscenidade é tudo aquilo que reduz o homem à condição sub-humana de doença, miséria e exploração”.15

O trabalho de Hudinilson Jr me parece uma das coisas mais alucinantes de serem visibilizadas hoje em dia. A potência política da sua obra é inversamente proporcional à

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caretice social institucionalizada. No entanto, como defende o artista em seu gra7ite espalhado nos anos 80 por todos os lugares do Brasil por onde passou (7ig. 14), a resposta: É BEM SIMPLES Ahhh! 👄 BEIJE-ME

Esta inscrição pós-identitária anônima despertava reações diversas, as mais inusitadas [talvez Mário Ramiro possa narrar algumas delas]. Mas gostaria de mencionar que neste processo de pesquisa de campo do doutorado sobre o Movimento de Arte Pornô, a con7luência das atitudes e poéticas era tamanha em sua diversidade que, espontaneamente, muitos se apropriaram dos motes que circularam, sem nem mesmo conhecer sua autoria. Este foi o caso do gra7ite Beije-me, fotografado naquela década em Brasília pelo poeta Nicolas Behr (7ig. 15), preso durante a ditadura militar por produzir poesia considerada pornográ7ica. O gra7ite de Hudi recentemente intitulou seu livro de fotogra7ias pessoais daquela geração de 80 em Brasília. Aproveito para ir concluindo com uma poema de Nik incluido na Antolorgia. Arte Pornô (1984) – onde também foi impresso um fragmento de fotonovela da obra Posição Amorosa (ca. 1980), de Hudinilson –, e que também ressoa como manifesto pósidentitário e a7irmativo para os corpos e sexualidades dissidentes. PALAVRA FINAL amai-vos uns aos outros e o resto que se foda Nicolas Behr

PENETRAR PENETRAR, que seria a última parte da metodologia hudinilsiana assumida aqui, vai 7icar por conta de todas nós. Sem dúvida, falar da obra de Hudinilson Jr. hoje signi7ica 8

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penetrar no que o universo homoerótico masculino que tem de mais radical! Seu corpo continua vivo, porque, como disse Marcel Duchamp, “Eros, c'est la vie” [Eros, é a vida!], ou Rrose Sélavy, personagem que Hudinilson incorporava (7ig. 16). O trabalho radical de Hudinilson dava conta de mostrar um cotidiano não normativo marcado por um desejo completamente desviado dos ideais da sociedade brancacapitalista-colonizadora-cristã-heteronormativa. Mas a sua operação vai além, vai “contra a normalização da vida erótica, (…) despreza[ndo] e desa7ia[ndo] a coerência e a estabilidade de todas as identidades sexuais”,16 tal como defende o crítico e historiador da arte estadunidense Douglas Crimp. E estas são as práticas estéticas que precisamos “para combater tanto a normalização da sexualidade como a coisi7icação da genealogia da [atitude de] vanguarda por parte da história da arte”.17 Deixo a palavra com os meus colegas e amigos de mesa, Mario Ramiro, Ricardo Resende, Vitor Butkus e Marcio Harum que, com certeza, terão muito mais a acrescentar por terem convivido por mais tempo com esse legado tão fértil que o artista Hudinilson Júnior nos deixou. Viena, 7 de agosto de 2016.

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1 Agradeço imensamente a generosidade da equipe do Centro Cultural São Paulo durante a pesquisa sobre o

Movimento de Arte Pornô, e o convite dos curadores da exposição Hudinilson Jr: Zona de Tensão, Márcio Harum, Maria Adelaide Pontes e Maria Olímpia Vassão, para contribuir com a leitura do trabalho do arNsta parNcipando da mesa de debate “Arte e eroNsmo” no CCSP dia 9 de agosto de 2016. 2 Fer Nogueira é pesquisadora, tradutora e críNca literária, integrante da Red Conceptualismos del Sul desde

2008. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, e em Estudos MuseísNcos e Teoria CríNca pelo Programa de Estudos Independentes (2008-2009) do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Atualmente é doutoranda nos departamentos de Teoria da Arte, Estudos Culturais e PráNca ArbsNca na Academia de Belas Artes de Viena, com o apoio da CAPES. 3 HARUM, Márcio. “Hudinilson Jr. Posição Amorosa”. São Paulo: Galeria Jaqueline MarNns, 2014. Disponível

em: . Acesso em: 2 ago. 2016. 4 MIGNOLO, Walter. “Prefacio”. In: PALERMO, Zulma (org.). Arte y esté6ca en la encrucijada descolonial. Buenos

Aires: Del Signo, 2009, p. 13. 5 SCHÉRER, René. “Prólogo. Un desaqo al siglo”. In: HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual. Barcelona:

Melusina, 2009, p. 14. Versão original: 2000. Epílogo: “Terror anal”, de Paul B. Preciado. 6 BERNARDET, Jean-Claude, “Palavras para um Corpo Xerocado”. In: HUDINILSON JR. “Xerox Ac6on” (catálogo

de exposição). São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, ago. 1983. 7 TRINDADE, Denise H. A. “Cu Rico”. In: KAC, Eduardo; TRINDADE, Cairo A. (org.). Antolorgia. Arte Pornô. Rio de

Janeiro: CODECRI, 1984, p. 191. 8 Cf. NOGUEIRA, Fernanda. “O Movimento de Arte Pornô no Brasil. Genealogias ficcionais das pornografias do

Sul”. In: LÓPEZ, Miguel A. (org.). Alianças de corpos vulneráveis. Feminismos, a6vismo bicha e cultura visual. São Paulo: SESC; Videobrasil, 2016, p. 18-37. 9 O btulo do livro joga com o trocadilho ao esNlo de Bocage: “Não confunda capitão de fragata com Cafetão de

Gravata!”; Não confunda um porrão de macaquinhos com um pouquinho de macarrão. “Na bunada não vai dinha?” (“Na bundinha não vai nada?”, ou ainda “Na bunda e na vagina”) hoje se transformou até em música sertaneja, lamentavelmente de tom ameaçador e machista. 10 KAC, Eduardo. “Rebelde sem calça”. In: ______; TRINDADE, Cairo A. (org.). Antolorgia. Arte Pornô. Rio de

Janeiro: CODECRI, 1984, p. 190. 11 Relato pornô de Eduardo Kac no texto “Levantamento rápido”. Arsenal de Cultura. Órgão oficioso da OH!?!

Posição, Fortaleza, 1981, s/p.. Arquivo pessoal de Hudinilson Jr., São Paulo - SP. 12 BERNARDET, Jean-Claude. Op. cit.

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13 O conceito de máquina ou de maquínico ganha uma conotação mais ampla se baseada nas reflexões de Félix

Guahari. Nas “Anotações sobre os conceitos”, Suely Rolnik traz o seguinte: “Máquina (maquínico): disNnguimos aqui a máquina da mecânica. A mecânica é relaNvamente fechada sobre si mesma: ela só mantém com o exterior relações perfeitamente codificadas. As máquinas, consideradas em suas evoluções históricas, consNtuem, ao contrário, um phylum comparável ao das espécies vivas. Elas engendram-se umas nas outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo aparecer novas linhas de potencialidades. As máquinas, no senNdo lato (isto é, não só as máquinas técnicas, mas também as máquinas teóricas, sociais, estéNcas, etc.), nunca funcionam isoladamente, mas por agregação ou por agenciamento. Uma máquina técnica, por exemplo, numa fábrica, está em interação com uma máquina social, uma máquina de formação, uma máquina de pesquisa, uma máquina comercial.” In: GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolí6ca: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 385. 14 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador. Aventuras e leituras de um tarado por pés. São Paulo:

Expressão, 1986. 15 MÍCCOLIS, Leila. “Movimento de Arte Pornô”. Revista Arsenal de Cultura. Órgão oficioso da OH!?! Posição,

Fortaleza, 1981, s/p. Arquivo pessoal de Hudinilson Jr., São Paulo - SP. 16 CRIMP, Douglas. “Ge‚ng the Warhol We Deserve. Cultural Studies and Queer Culture”. Social Text. Durham,

n. 59, Summer 1999, p. 66 (tradução nossa). 17 Idem.

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Hudinilson Jr: Zona de Tensão. Mesa de debate: Arte e erotismo | CCSP | São Paulo, 09.08.2016 Ideias que norteiam/nortearão “Xerox Action”18 a diagramação, fragmentação de cada parte da imagem, a textura, o contraste, a relação corpo/máquina é algo que, como resultado calculado, só acontece através desta mídia a imagem xerográfica não é a mesma que a da pintura, do desenho, da fotografia ou da gravura cada pelo e cada poro, lido pelo jogo de espelhos, me registra, me reflete e se apresenta como um novo corpo o eu como obra me carinho, pelo a pelo o corpo relacionando-se eroticamente com a máquina, que reproduz outro corpo; detalhes do meu corpo, em branco e preto, em toner a cópia da cópia e seu auto-contraste, a redução à exaustão, e mesmo a ampliação, à redução gráfica de contornos e sombras o voyerismo de mim mesmo após o contato eminentemente fisico com a máquina existe agora tão somente a relação no plano das imagens do que foi meu corpo num primeiro momento, existem agora somente pontos, linhas, sombras e derivações num papel oficio imagem impressa que deve ser traduzida/tratada ao nível do sensual a grafia sensual voltar cada vez mais à máquina, agora com a imagem impressa; reduzi-la, reproduzi-la ao infinito, revê-la à exaustão, retalhá-la, dissecá-la, deturpá-la revisitar cada imagem, trocando-a de contexto, multiplicando a forma de poder me ver; cada imagem mantém a dualidade da face espelhada de meu corpo e a transferência gráfica da mídia

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Hudinilson Jr: Zona de Tensão. Mesa de debate: Arte e erotismo | CCSP | São Paulo, 09.08.2016 é minha mão, mas também é a cópia do detalhe que é detalhe de meu corpo não é como se me olhasse ao espelho, mas uma posição de reflexo formal sobre minhas partes/ partes de um corpo/ outros corpos uma viagem ao próprio umbigo também esta construção, a posterior de casa imagem, se faz tensa e racionalmente o comportamento destas partes na reprodução, os detalhes particulares (reticulares) destas reproduções, fascinam a retina bulinam a mente a libido esta representação do corpo se dá através de um veículo contemporâneo a esse corpo a questão de colocar-me em relação física com este equipamento paralelo às minhas ideias a máquina permeia a existência deste corpo na feitura do trabalho, no momento de pensar e manipular imagens criando “mensagens”, o autor é solitário e solidário na sua intenção viagem a própria imagem narcisse Hudinilson Jr. São Paulo, agosto de 1983.

18 Em: HUDINILSON JR. “Xerox Ac6on” (catálogo de exposição). São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da

Universidade de São Paulo, ago. 1983, p. 3 e 4.

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