Gramática e cognição: um estudo das construções possessivas e existenciais no português brasileiro

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Gramática e Cognição: Um Estudo das Construções Possessivas e Existenciais no Português Brasileiro

ANA FLÁVIA GERHARDT (UFRJ) Diogo PINHEIRO (UFRJ)

1. Apresentação do problema O problema da relação entre sentenças possessivas e existenciais tem figurado no centro das preocupações de lingüistas das mais diferentes searas teóricas. A dupla possibilidade de instanciação do verbo ter, que figura em ambos os tipos de sentenças, é uma manifestação do fenômeno em pauta na gramática do português brasileiro contemporâneo: (1) O Rio de Janeiro tem muitas praias. (2) Tem muitas praias no Rio de Janeiro. A gramática do francês, por sua vez, exibe sentenças como: (3) Il y a Ele expletivo tem

un livre sur la table. um livro sobre a mesa

‘Há um livro sobre a mesa’ Essa sentença, de valor existencial, apresenta em sua constituição o verbo avoir (ter) conjugado na terceira pessoa do singular (Il y a). De Heine (1997:62), retiramos um exemplo bastante interessante, tomado do Cahuilla, língua da nação nativa do Deserto de Mojave, na América do Norte: Revista Portuguesa de Humanidades, VIII (2002), xxxxx

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Nesse exemplo, nota-se que a tradução livre diverge da literal porque, enquanto esta apresenta um verbo de valor existencial (“exist”), naquela recorre-se a um verbo de sentido possessivo (“have”). Mais à frente, esse exemplo será analisado com maiores detalhes. Algo semelhante, se não idêntico, parece ter ocorrido com a construção do latim clássico denominada tradicionalmente “dativo de posse”. Trata-se de uma construção de valor possessivo formada por verbo esse (ser/existir/estar) + nome em dativo1: (5) Est Existe

patri meo domus pai (dat.) meu (dat.) casa (nom.)

‘Meu pai tem uma casa’ Como evidência adicional, comente-se que análises diacrônicas sobre a relação entre estruturas de Posse e de Existência constatam que, na deriva do português, o verbo haver vai progressivamente deixando de ser usado em construções possessivas, sendo substituído, nesse contexto, pelo verbo ter. O século XIV, por sua vez, testemunha o início de uma ampliação dos contextos de ocorrência de ter, que passa, então, a instanciar também construções existenciais, conforme exemplificado em (2)2. A partir da constatação de fatos como esses, além de muitos outros que poderiam ser arrolados aqui, o propósito deste artigo é o de estabelecer, dentro da moldura teórica da Lingüística Cognitiva, a natureza da estreita

—————— Heine (1997) considera que sentenças como (4) e (5) manifestam o que ele denomina de Esquema de Existência (Existence Schema), um dos padrões sintático-semânticos capazes de originar, historicamente, as construções possessivas. No entanto, o autor afirma que tais exemplos evidenciam subtipos diferentes desse esquema: enquanto o primeiro apresentaria o Esquema de Tópico (Topic Schema), o segundo seria uma manifestação do Esquema de Alvo (Goal Schema), devido à marca morfológica de dativo. Essas observações ficarão mais claras adiante, quando comentarmos a proposta do autor. 2O trabalho de Callou & Avelar (2000) examina essa questão de um ponto de vista sociolingüístico, atestando as oscilações no emprego desses dois verbos a partir da consideração de diversas variáveis, tanto lingüísticas quanto extralingüísticas. 1

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relação entre construções possessivas e existenciais. Cabe registrar ainda que iremos nos restringir às construções de estrutura argumental. Esse recorte exclui do nosso raio de observação estruturas de nível sub-oracional, como SNs do tipo “a construção da casa” ou “a união dos políticos”, que poderiam em alguma medida ser tomados como possessivos (é o que faz Langacker 1991, e em preparação, como se verá mais à frente. Conforme já ficou dito, o fenômeno que passaremos a examinar tem merecido a atenção de pesquisadores alinhados às mais variadas orientações teóricas. Por isso, na próxima seção, apresentaremos uma revisão de algumas dessas propostas, enfocando mais de perto os trabalhos de Heine (1997) e de Langacker (1991; em preparação). Tal cuidado se justifica medida em que esses estudos apresentam maior afinidade teórico-epistemológica com o nosso próprio trabalho. Esperamos que tal revisão possa ser útil para levantar algumas questões descritivas que pretendemos repensar à luz da nossa própria proposta. 2. As perspectivas do estudo da relação Posse-Existência 2.1 O tratamento gerativista O estudo da relação entre as construções possessivas e existenciais remonta pelo menos ao trabalho de Lyons (1968), que apontou para a similaridade entre sentenças como (6), (7) e (8) abaixo: (6) (7) (8)

There are Lions [in Africa] (existencial)3. The book is on the table (locativa). The book is John’s (possessiva)4.

Levando em conta a recorrência dessa similaridade estrutural em diversas línguas, Lyons defende que as construções existenciais e possessivas derivam sincrônica e diacronicamente de construções locativas. No eixo sincrônico, essa relação é descrita gerativamente, com a proposta de que a existência de construções diferentes para Posse (no entender do autor: John has a book e The book is John’s) e a relação entre locativas e

—————— Apresentaremos sempre os exemplos usados pelos autores. Sentenças como esta, tomadas pela literatura corrente como possessivas (além de Lyons e Clark, também Callou & Avelar, para o português) são assumidas neste artigo como existenciais, como se discutirá adiante. 3 4

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existenciais se dá por transformação, a fim de resolver alguns problemas sintáticos: 1) As construções The book is John’s e John has a book são equivalentes na estrutura profunda. A construção possessiva John has a book, com POSSUÍDO definido, emerge como uma transformação da possessiva com be The book is John’s, para resolver o problema de relações de posse com o POSSUÍDO indefinido, que não poderia ocupar a posição inicial na sentença, e para trazer o POSSUIDOR à posição de tópico; 2) Sentenças como The book is on the table e there’s a book on the table (there é considerado uma partícula expletiva) se diferenciam na estrutura profunda apenas em relação ao tratamento do SN – ora definido, como no primeiro caso, ora indefinido, como no segundo. 3) Muitas sentenças da forma SN1 have SN2, normalmente chamadas possessivas, têm pouca relação com os significados de posse e propriedade5; este fato, provavelmente, leva Lyons a negar o estatuto de primazia (o autor também usa o termo centralidade) destes significados em relação aos outros que a construção pode assumir. Além disso, segundo o autor, muitas sentenças de outras línguas, que podem ser traduzidas para o inglês como possessivas, apresentam constituintes locativos. Além disso, nas próprias construções possessivas do inglês, o POSSUIDOR pode se visto como um locativo [+animado], dada a relação entre construções como aquelas exemplificadas abaixo, em que o objeto indireto (sublinhado em (10)) equivale ao “direcional” em (9). (9) Bring the book here – The book is here (10) Give the book to me – I have the book Diante desses fatos, Lyons conclui que a distinção entre sentenças locativas e possessivas limita-se à estrutura superficial, e tem a finalidade de atender à posição dos nomes animados no enunciado: assim, John has a book seria a representação superficial de A book (be) at-John. À guisa de explanar as relações diacrônicas entre Locatividade, Posse e Existência, que a propósito o autor considera pouco necessárias, já que

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Problema que depois será examinado em Langacker (1991; em preparação).

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esta relação é recorrente entre as línguas européias (p.499), o autor demonstra que, em inglês e em muitas outras línguas, a relação copulativa não ocorre (ou raramente ocorre) sem complemento locativo. Portanto, toda sentença existencial é, implicitamente, locativa, num sentido temporal e espacial. Pressuposições filosóficas relativas ao ser e à existência também se incluem na explicação de Lyons: “whatever is, is somewhere” (ibid.). Pela via analógica de raciocínio (a “via negativa” dos Escolásticos), a reflexão sobre o ser inclui referências espácio-temporais; pela via dos filósofos empiristas do século XX, as sentenças existenciais são equivalentes lógicos das representações dêiticas. De nossa parte, se admitirmos, com os gerativistas, que os fenômenos observados na organização sintática de uma língua decorrem de regras e parâmetros exclusivamente lingüísticos, será natural, então, a postulação de uma hipótese descritiva que, na tentativa de irmanar as construções possessivas e existenciais, recorra tão-somente a tais regras e parâmetros. Tal perspectiva coaduna-se com o alicerce epistemológico da Teoria Gerativa, que, ao defender a autonomia da linguagem em relação aos outros sistemas cognitivos, abraça a idéia de que as operações lingüísticas se processam em um módulo independente. Dessa maneira, trabalhos de orientação gerativista sobre esse tema focalizam, via de regra, a relação entre sentenças possessivas e existenciais, e não entre os conceitos de Posse e de Existência. 2.2 O tratamento funcionalista clássico Podemos incluir, entre os trabalhos funcionalistas interessados no objeto do nosso estudo, o artigo de Clark (1978) e a obra de Heine (1997). Inserido na tradição funcionalista, Clark apresenta algumas suposições já explanadas em Lyons (op.cit.) acerca das relações entre Posse, Existência e Locatividade, apostando também na identificação de alguns aspectos semânticos que podem relacionar e estabelecer contrastes de uso das construções, bem como definir-lhes parâmetros de forma. As construções examinadas por Clark são apresentadas abaixo: 1) Existenciais: There’s a book on the table. 2) Locativas: the book is on the table.

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3) Possessivas com Have (possessivas1): John has a book. 4) Possessivas com Be (possessivas2): This book is John’s6. Adotando uma perspectiva sincrônica de análise, e baseando-se filosoficamente em afirmações filosóficas, Clark assume a tarefa de buscar uma integração entre essas construções, dado que já que é possível reconhecer nelas uma mesma conceptualização como espinha dorsal: ser um espaço – estar em um espaço. Explorando a relação Locatividade-Posse-Existência como um universal, Clark pesquisa trinta línguas de diferentes famílias e reconhece a mesma fonte locativa nas construções em questão. Por um lado, para as possessivas, há a locação de um objeto relativamente à posse de um sujeito, de forma tal que o possuidor é visto como uma locação (animada). Por outro lado, as existenciais representam a locação de um objeto em um espaço físico. Estas idéias seguem-se congruentemente às afirmações de Lyons sobre uma base locativa comum para todas as construções em pauta. Clark assume como foco definir as finalidades de uso das construções bem como as formas como podem estar associadas, em termos caros ao modelo funcionalista, como animacidade (mais fundamental) e definitude, que são os parâmetros discursivos levados em conta pela autora. Por sua vez, a ordem superficial dos nomes nos enunciados, os usos dos verbos nas construções e a própria definição dos enunciados como existenciais, possessivos e locativos decorrem do comportamento dos nomes em relação àqueles dois parâmetros. Nesse sentido, a autora assume duas pressuposições iniciais: (i) Se o espaço em questão é animado: o enunciado é possessivo. A existência de duas construções possessivas decorre das condições de definitude do SN possuído: a) Possessivas1: SN [-definido]: John has a book. b) Possessivas2: SN [+definido]: The book is John’s. (ii) se o espaço for [- animado], há duas possibilidades: a) para nomes [+definidos]: enunciados locativos; b) para nomes [- definidos]: enunciados existenciais. Com base nessas postulações, a ordem dos SNs nos enunciados em questão relaciona-se à definitude e à animacidade dos SNs envolvidos: muitas línguas revelam o mesmo padrão para essas construções, e seu uso

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Que, como se verá, tomamos como existenciais.

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é governado pelas seguintes regras semântico-discursivas: [+definido] precede [– definido] e [+ animado] precede [– animado]. a) Existenciais (com SN [-definido]): LOC – NOM. b) Locativos com (SN [+definido]): NOM – LOC. c) Possessivos com have: POSSUIDOR – POSSUÍDO. d) Possessivos com be: POSSUÍDO – POSSUIDOR. Quanto à escolha dos verbos nas possessivas, a saber, be e have (ambos com POSSUIDOR [+ definido], usualmente), isso depende de o tema da sentença ser o POSSUIDOR ou o POSSUÍDO, e também da definitude do POSSUÍDO, em termos gerais: 1) Para possessivas com have (possessivas1): com POSSUÍDO [–definido] (com SN singular); 2) Para possessivas com be (possessivas 2): com POSSUÍDO [+definido]. O uso dos mesmos verbos em construções existenciais e locativas de várias línguas leva Clark à conclusão de que os verbos das existenciais é que aparecem em construções locativas e possessivas2, porque aquelas construções são um domínio de interseção entre estas duas últimas. Diante dos fatos colocados, Clark chega a duas assunções que resumem a relação entre as construções em jogo: a) Em relação à animacidade dos SNs, as existenciais se relacionam às locativas (LOC [- animado]), e as possessivas1 relacionam-se às possessivas2 (LOC [+ definido]). b) Em relação à definitude nomes e ao uso dos verbos, as existenciais estão relacionadas às possessivas1 (SN [-definido]), e as locativas relacionam-se às possessivas2 (SN [+definido]). A proposta de Clark nos parece interessante na medida em que é capaz de relacionar as construções em pauta a partir da observação de suas características semânticas. Por outro lado, conforme pretendemos demonstrar, acreditamos que ela pode ser consideravelmente refinada graças à incorporação do instrumental teórico fornecido pela Lingüística Cognitiva. Por meio desse instrumental – que inclui bases de conhecimento, além de processos cognitivos como metáfora e metonímia – será possível revisitar, com ganho teórico significativo, algumas das idéias entrevistas no trabalho da autora.

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2.3 O tratamento funcionalista-cognitivista No terreno das abordagens não-formalistas com viés cognitivista, Heine (1997) também sugere uma solução possível para o problema em pauta. É bom que se diga, porém, que seu trabalho se preocupa fundamentalmente com as possibilidades de expressão da idéia de Posse, e apenas secundariamente com as relações entre construções possessivas e existenciais. Assumindo que o conceito de Posse constitui um “domínio relativamente abstrato da conceptualização humana” (op. cit.: 45), o autor hipotetiza que as construções possessivas seriam derivadas, historicamente, de outras com o significado mais concreto. Para empreender a tarefa de remontar o percurso histórico que teria originado a expressão da Posse nas línguas do mundo, Heine recorre a um constructo teórico que denomina event schemas (esquemas de evento). Nas palavras do autor, os esquemas de evento “possuem as propriedades comumente associadas aos esquemas: sintetizam atributos abstraídos de um vasto número de eventos relacionados, e têm a ver com as situações estereotipadas com as quais nos deparamos freqüentemente.” (op. cit.: 46). Segundo Francis (1999), trata-se de “padrões proposicionais simples que consistem em um predicador mais os seus argumentos e modificadores”7. Para Heine, seriam oito os event schemas que normalmente originam as construções de posse: Action, Location, Companion, Genitive, Goal, Source, Topic e Equation. Destes, os esquemas que aqui traduziremos como Genitivo (Genitive), Alvo (Goal) e Tópico (Topic) se agrupam sob a rubrica de um outro mais geral, o Esquema de Existência (Existence Schema). Isso significa que esses três esquemas apresentariam, em sua origem, valor existencial, tendo evoluído posteriormente para expressar um significado possessivo. É ao investigar esses três esquemas, portanto, que poderemos identificar a maneira como o autor trata a relação entre os significados de Posse e de Existência. O Esquema de Genitivo é caracterizado pela fórmula “X’s Y exists” (em português: “X de Y existe”); o Esquema de Alvo apresenta o padrão “Y exists for/to X” (“Y existe para X”); o Esquema de Tópico, por fim, é representado pela fórmula “As for X, Y (of X) exists” (“Com relação a X, Y

—————— Para o leitor interessado no problema das construções possessivas, recomendamos a leitura completa da resenha de Francis (op. cit.), que confronta a proposta de Heine com o estudo de Taylor (1996). 7

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(de X) existe”)8. Abaixo, repetimos um exemplo que evidencia a presença deste último: trata-se da sentença (4), já mencionada na introdução deste trabalho.

No Esquema de Tópico, o primeiro X funciona como um tópico oracional, enquanto o segundo é um pronome possessivo correferencial ao primeiro. Segundo o autor, devido a um processo de gramaticalização, construções que manifestam esse esquema podem evoluir para outras que apresentem o esquema de possessão predicativa, representado pela fórmula “X has/owns Y”, sendo X um possuidor e Y, a coisa possuída. É precisamente este o processo ilustrado pelo exemplo (4). Nele, uma construção que manifesta, originalmente, o Esquema de Tópico, apresentando tanto valor de Posse (codificado no interior do SN sujeito) como de Existência, se torna, via gramaticalização, uma construção (unicamente) possessiva, com o elemento tópico passando a funcionar como sujeito gramatical e equivalendo, semanticamente, a um possuidor. Neste ponto, cabe dizer que Heine, remetendo a pressupostos centrais ao arcabouço da Lingüística Cognitiva, afirma que “uma estratégia básica para lidarmos com o ambiente é conceber e expressar experiências que são menos facilmente acessíveis, ou mais difíceis de entender ou descrever, em termos de outras mais imediatamente acessíveis, claramente delineadas” (op. cit.: 45). Nesse sentido, não surpreende que o autor, na tentativa de refazer o trajeto das mudanças lingüísticas que teriam dado origem às construções de posse, tenha buscado identificar estruturas que apresentariam, no seu entender, um significado mais concreto. Evidentemente, estamos falando aqui de uma posição teórica que se traduz, no campo da lingüística funcional, no princípio da unidirecionalidade do processo de gramaticalização. É interessante observar, por isso, que o autor identifica, mais à frente (pp. 94-96), um “aparente contra-exemplo” a esse princípio: trata-se de

—————— A fórmula do Esquema de Existência genérico, que segundo Heine (op. cit.: 58) “não corresponde a nenhuma estrutura lingüística verdadeiramente existente”, seria “Y exists with reference to X” (“Y existe com referência a X”). 8

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construções existenciais que parecem ter sua origem em esquemas de evento com valor possessivo. Para que isso fosse possível, comenta Francis (op. cit.), “construções existenciais teriam de apresentar significados que fossem, ao mesmo tempo, mais abstratos e menos abstratos que os de construções possessivas”. Veja-se, abaixo, um dos aparentes contra-exemplos de que fala Heine (p. 95): (11) Posse Il a deux enfant-s He has two children – PL ‘He has two children’ (Port.: ‘Ele tem dois filhos’) (12) Existência Il y a deux enfant-s it there has two children – PL ‘There are two children’ (Port.: ‘Há duas crianças’) A solução desse impasse, na visão de Heine, reside em mostrar que as construções possessivas derivadas das existenciais se distinguem daquelas possessivas que, inversamente, dão origem a construções existenciais. Em síntese, haveria dois processos de gramaticalização envolvendo tais construções: (i) da construção possessiva biargumental X has Y deriva a construção existencial monoargumental Y exists; (ii) da construção existencial Y exists with reference to X derivam as construções possessivas como em (3). Nas palavras de Heine (op. cit.: 96), “em vez de evidenciar a violação do princípio da unidirecionalidade, a evolução geral se mostra de fato unidirecional”. Para sintetizar sua proposta, o autor apresenta o seguinte esquema: Existência (Y existe com referência a X)

> Posse (X tem Y)

> Existência “nuclear” (‘isso tem Y’ (‘it has Y’) > Y existe’)

Para encerrar esta seção, transcrevemos abaixo as reflexões de Francis (op. cit.) acerca das conclusões de Heine expostas acima. Essas reflexões são importantes por evidenciarem algumas questões teóricas fundamentais no tratamento do tema. São essas questões, juntamente com aquelas que serão suscitadas na nossa revisão da abordagem langackeriana, que pretendemos revisitar mais adiante, quando expusermos a nossa proposta

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para a descrição dos significados de Posse e Existência e da relação entre eles. Mesmo assumindo que essa hipótese específica sobre a unidirecionalidade esteja correta, Heine ainda assim não explica como se aplica a noção de concretude relativa. Seriam algumas noções de existência mais concretas que outras? Em caso positivo, será que a noção existencial mais concreta é claramente mais concreta do que as noções de posse? […] O ponto mais básico – que as existenciais são semanticamente relacionadas às possessivas – está claro. Mas Heine, infelizmente, não descreve explicitamente essa relação. (grifo nosso)

2.3 O tratamento da Cognitive Grammar A descrição e a discussão acerca das construções possessivas, existenciais e locativas são feitas ainda segundo prescrições básicas da chamada Cognitive Grammar (Langacker 1987; 1991; em preparação), que revê a hipótese localista (o termo é do autor) defendida por Lyons e Clark, repensando também as próprias colocações feitas em trabalhos anteriores. Langacker (1991:167 passim) identifica duas expressões lingüísticas do significado de Posse: uma no nível oracional (The boy has a dog) e outra no nível lexical (the boy’s dog), que pode veicular uma variadíssima gama de usos: Uma parte (my elbow); uma relação de inclusão (her team); um parente (your cousin); algum outro indivíduo asociado (their friend); algo possuído (his watch); uma posse sem relação com propriedade (the baby´s crib); algo manipulado (my rook); algo à disposição de alguém (her office); algo hospedado (the cat´s fleas); uma qualidade física (his health); uma qualidade mental (your patience); locação transitória (my spot); locação permanente (their home); uma situação (her predicament); uma ação em andamento (his departure); uma ação decorrida (Lincoln´s assassination); algo selecionado (my horse [i.e. the one I bet on]), algo que preenche determinada função (your bus); alguém que ocupa cargo oficial (our mayor), e daí por diante, indefinidamente. Mesmo aceitando que algumas dessas relações podem ser consideradas mais prototípicas (são citadas, especificamente, as relações parte-todo, parentesco e propriedade), Langacker (op. cit.: 169) não vê meios de, a partir delas, derivar metaforicamente todas as outras. É por nisso que,

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insistindo na meta de alcançar uma definição capaz de abranger toda essa aparente polissemia da posse, o autor prossegue rumo a uma caracterização mais abstrata da categoria. Em suma, ele propõe que as construções possessivas evocam um modelo cognitivo idealizado ao qual denomina modelo do ponto-de-referência. Esse modelo representa um mundo (W) povoado de objetos que, por sua saliência perceptual, têm o potencial de servir como pontos-de-referência para a identificação de outras entidades. Cada um desses objetos ancora uma região – seu domínio. O autor explica que “dependendo dos objetivos de cada um, o domínio de um ponto-de-referência pode ser caracterizado de duas maneiras: ou como as regiões a ele adjacentes em W, ou como o conjunto de objetos que ele pode ser usado para localizar” (op. cit.: 170). Assim, se alguém se refere, por exemplo, ao “brinco da Isabel”, a pessoa está se valendo da entidade Isabel, perceptualmente saliente, para permitir ao interlocutor a localização, ou identificação, da entidade brinco. Seria essa, pois, a propriedade compartilhada por todas as expressões possessivas. Nos termos de Langacker (op. cit.: 171), a posse abstrata é simplesmente um tipo de relação em que um sujeito “traça mentalmente um caminho através do ponto-de-referência até o alvo; o ponto-de-referência constitui o possuidor, e o alvo, a entidade possuída”. Na representação desse modelo, o fato de uma entidade sempre se colocar referencialmente a outra justificaria a assimetria posicional no uso dos elementos das construções citadas, já que haveria também uma assimetria conceptual e uma saliência de um elemento relativamente a outro: o todo em relação às partes, o proprietário em relação à propriedade etc. Em Langacker (em preparação), o autor volta a discutir o significado de Posse, agora articulando-o aos de Locatividade e Existência. Focando a construção X’s Y (em português: Y de X), citada no trabalho mencionado acima, e também X has a Y (X tem um Y), o autor revigora as questões já postas e questiona o próprio rótulo possessives, que nivela semanticamente as construções acima, já que o termo se enquadraria em muitos casos não relacionados à noção de posse ou propriedade. Novamente, a solução proposta é a de estabelecer uma representação genérica, assumindo que X relaciona-se a Y, mas agora com fundamentos adicionais. A base da proposta de Langacker é a de que a compreensão dos fenômenos gramaticais, na ótica da Cognitive Grammar, deve ser realizada em dois planos: o nível dos protótipos e o nível dos esquemas. No nível dos protótipos, encontram-se os arquétipos (termo do autor) definidos pelas

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experiências do cotidiano humano; no nível dos esquemas, padronizam-se as habilidades cognitivas subjacentes aos arquétipos. É no nível dos protótipos, portanto, que se define a centralidade dos significados de propriedade, parentesco e parte-todo como as mais prototípicas para as construções possessivas9. No nível dos esquemas, por outro lado, todos esses significados se reúnem sob a rubrica da representação da habilidade cognitiva de estabelecer pontos de referência – de acessar mentalmente uma entidade através de outra, ou seja, acessar uma entidade para estabelecer contato com outra. Este esquema é suficientemente flexível para adaptar-se a uma série de significados arquetípicos, como as inúmeras acepções representáveis pela construção possessiva, donde a possibilidade de construções possessivas, locativas e existenciais serem representativas do esquema de ponto de referência. Nas construções possessivas, especificamente, participa da organização esquemática o controle que o possuidor assume sobre o possuído; isto se dá nas ocorrências mais prototípicas, e vai se tornando mais tênue à medida que vão se constituindo os casos mais periféricos, a ponto de não se perceber este controle em sintagmas como his age, the year’s most tragic event ou Lincoln’s assassination, the moon’s surface temperature. Segundo o autor, porém, as possibilidades de expressão de Posse não se esgotam nas construções “X’s Y” e “X has a Y”: está-se, na verdade, diante de um significado que pode vir expresso gramaticalmente de diversas formas, em construções em que os elementos do esquema de ponto de referência vêm realizados lingüisticamente de forma distinta do que foi apresentado até agora. Diante disso, será lícito observar, em algumas línguas, o significado de Posse expresso em enunciados claramente locativos, como (13) abaixo, em que um sintagma locativo serve como ponto de referência: (13) Russo U menja kniga (at me [is] book) “I have a book”

Já com relação ao exemplo abaixo, que é igual ao exemplo (5) deste artigo, Langacker afirma que o objeto indireto/dativo de posse assume o papel de ponto de referência: (14) Latim Est Johanni liber “John has a book”

—————— Vê-se que o autor mantém os protótipos sustentados no trabalho anterior, mas agora com base em Taylor (1996), que define as relações de propriedade como as mais prototípicas. 9

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É possível também identificar enunciados possessivos significando locatividade ou existência, como no mandarim: (15) Zhu, o-shàng yo, u shu “the table has a book on it”, “there’s a book on the table”

Para distinguir as construções locativas e existenciais, que demonstram estar associadas às possessivas, Langacker recorre à noção de nível de generalização do domínio esquemático da predicação (espacial, basicamente). Predicações existenciais são, em termos esquemáticos, maximamente generalizadas: isso significa que não é necessário especificar ou restringir o espaço de locação para a identificação/visualização do referente. Para as locativas, entretanto, este espaço precisa necessariamente estar restringido para que seja possível a conceptualização do referente. De acordo com esse raciocínio, então, enunciados como Existem prédios altos em Nova York seriam locativos, ao passo que enunciados como Papai Noel existe seriam existenciais10. Os fatos e exemplos acima motivam o oferecimento de duas justificativas importantes para o estabelecimento da relação de ponto de referência (no nível do esquema) como sendo a que delimita os significados de Posse, Locatividade e Existência: (i) é possível à significação de Posse ser representada por construções locativas e existenciais, e também o inverso, o que suscita a hipótese de uma relação semântica entre elas; (ii) tendo elas em sua base a mesma conceptualização referencial, alterar-se-ia a natureza da relação entre as construções em causa: em vez de das locativas derivarem as existenciais e possessivas, posição defendida por Lyons e Clark e considerada por Langacker como insustentável, estabelece-se uma relação fundada nas formas possíveis de perfilamento da relação de referência – em outras palavras, de “proeminência focal” (p. 24). Vale a pena citar o autor (p.21), ao sintetizar sua hipótese: Se a afinidade entre construções possessivas e existenciais/locativas não reside em uma origem diacrônica comum, nem em uma estrutura subjacente comum, a que podemos atribui-la? A resposta já deve estar aparente (…): pos-

—————— As relações entre essas duas construções estão atualmente sob análise em nossas pesquisas, que também se dedicam a investigar padrões subjacentes à presença/ausência de constituintes em construções existenciais, entre outros fatos gramaticais. 10

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sessivas e locativas compartilham uma caracterização conceptual abstrata baseada na habilidade de ponto de referência. Enquanto elas são fundadas em dois arquétipos conceptuais diferentes, refletidos nos seus valores prototípicos, cada arquétipo incorpora uma relação de ponto de referência – imanente nela – que pode ser tudo o que permanece enquanto as construções se estendem para uma larga linha de usos não prototípicos. Esta comunhão abstrata é a ligação que permite que as construções locativas sejam usadas para posse, e vice-versa.

3. A hipótese Langacker (em preparação) começa seu trabalho questionando “o que é Posse?”, para logo depois afirmar: “Semanticamente, o conceito de Posse é qualquer coisa, menos auto-explicativo”. Apesar disso, a maior parte dos estudos comentados acima não apresenta uma descrição precisa da representação semântica subjacente aos conceitos-chave com os quais devem lidar: Posse, Existência, Locação. Na visão de Francis (op. cit.), por exemplo, Heine “não explica com precisão como tópicos se relacionam a possuidores na evolução das construções possessivas a partir do Esquema de Tópico. Em vez disso, deixa-se basicamente para o leitor a tarefa de resolver os detalhes da transferência conceptual que são delineados, em linhas gerais, na descrição do Esquema de Tópico”. O estudo de Clark, por sua vez, parece não deixar perfeitamente claro o conceito de “locação animada”, embora essa noção se revele bastante útil para irmanar construções existenciais e possessivas. Ainda que essa idéia tenha algum apelo intuitivo, é lícito perguntar: em que sentido, exatamente, um ser humano pode ser concebido como uma locação animada? Perguntas como essas estão no centro das nossas preocupações. Nos horizontes da Lingüística Cognitiva, afinal, importa indagar: o que nos permite conceber as noções de Posse e Existência? O que significa ter alguma coisa? E existir? Como somos capazes de entender enunciados do tipo “ele só tem gravata preta”, “minha vida tem histórias inacreditáveis” e “hoje tem jogo no Maracanã”? Mais: o que nos permite manipular conceitos e atribuir significado às nossas experiências e às seqüências lingüísticas com que nos deparamos? Neste ponto, é preciso recorrer à premissa cognitivista segunda a qual nossa mente é inerentemente corporificada (cf. Lakoff e Johnson, 1980 e

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1999; Lakoff, 1987; Johnson, 1987; entre outros). Isso significa que, como seres humanos, não temos acesso a qualquer tipo de razão transcendental: para pensar, recorremos ao aparato cognitivo humano, que é moldado a partir da interação dos nossos corpos com o mundo ao redor. Isso não quer dizer, claro, que sejamos incapazes de manipular conceitos abstratos, mas significa que esses conceitos devem ser entendidos a partir de noções mais básicas, concretas, que podemos experimentar diretamente. Daí decorre outra premissa central à teoria cognitivista: a de que nosso pensamento é, em grande parte, metafórico. Os trabalhos pioneiros de Neisser (1976) e Johnson (1987) apontam para a centralidade das experiências sensório-motoras do indivíduo na formação do seu sistema conceptual. Para dar conta desse fato, o arsenal teórico da Lingüística Cognitiva inclui – entre as bases de conhecimento que, acredita-se, são acionadas pelo sujeito na tarefa de conceber entidades ou eventos, manipular conceitos; raciocinar, enfim – estruturas conhecidas como esquemas imagéticos. Os esquemas imagéticos codificam padrões recorrentes que experienciamos em nossa interação sensório-motora com o mundo. Como exemplos de alguns desses esquemas, citem-se: cenários em que nossos corpos ocupam o centro de um ambiente de experiências com outros semelhantes e objetos; situações em que uma pessoa ou objeto é arrastado por uma força maior que a sua; situações em que um obstáculo impede a passagem de uma pessoa ou objeto; etc. Neste trabalho, importa considerar o esquema imagético que descreve uma configuração espacial específica, na qual um elemento ocupa um lugar dentro de um espaço determinado – ou seja, está contido nesse espaço. Esse esquema, que denominaremos esquema imagético continente-conteúdo, é representado da seguinte maneira por Johnson (op. cit.: 23):

X

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Nossa hipótese é a de que o conceito de Posse se fundamenta nesse esquema imagético. Em outras palavras, para compreender enunciados com valor possessivo, devemos remeter ao esquema imagético continente-conteúdo. A título de exemplo, retome-se aqui a sentença (1): (1) O Rio de Janeiro tem muitas praias Nessa sentença, “Rio de Janeiro” é entendido como o círculo do esquema imagético e “muitas praias” corresponde ao X do mesmo esquema. Respondendo, pois, às questão que havia ficado em suspenso: ter alguma coisa significa ser um espaço dentro do qual essa coisa está contida. Com essa constatação em mente, note-se que a sentença existencial (2), repetida abaixo, instaura a mesma cena objetiva veiculada por (1): (2) Tem muitas praias no Rio de Janeiro Dizer que essa sentença remete à mesma “cena objetiva” que o exemplo (1) significa afirmar que ambas fazem referência ao mesmo esquema imagético: em (2), o SN “muitas praias” corresponde ao X do esquema e o SPrep “no Rio de Janeiro”, ao círculo. Com isso, conseguimos descrever, em termos cognitivos, também o significado da noção de Existência: existir é ocupar um lugar no espaço. Diante disso, a relação entre Posse e Existência parece evidente: embora ambas as noções remetam a um mesmo cenário objetivo, elas traduzem uma diferença de focalização na observação desse cenário. No caso da Posse, focaliza-se o possuidor; no caso da Existência, é a coisa possuída que se torna o foco de atenção. Em outras palavras, dizer que “alguém tem alguma coisa” significa afirmar que “essa coisa existe para essa pessoa, existe relativamente a ela”. Convencionamos representar assim essa distinção: POSSE

X

EXISTÊNCIA

X

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É importante salientar que a habilidade cognitiva que estamos invocando aqui para explicar o relacionamento entre os conceitos de Posse e Existência – a capacidade de enquadrar diferentemente os elementos (entidades e processos) nas cenas que visualizamos – não difere essencialmente do esquema processual de ponto de referência posto em Langacker (em preparação) e dos diferentes perfilamentos possíveis a partir dele. É necessário registrar ainda que essa habilidade tem sido objeto da investigação de outros autores dentro da literatura cognitivista. Talmy (1999), por exemplo, se refere a esse processo como windowing (algo como “enquadramento”). Tomasello (1999: 118), por sua vez, defende a tese de que “o que torna o símbolo lingüístico verdadeiramente único de um ponto de vista cognitivo é o fato de que cada símbolo incorpora uma perspectiva particular de alguma entidade: esse objeto é simultaneamente uma rosa, uma flor e um presente”11. Nossa hipótese básica recorre, portanto, a apenas dois instrumentos teóricos: uma base estável de conhecimento – o esquema imagético continente-conteúdo – e um processo cognitivo – a capacidade de (re)focalização. Essa explicação, contudo, deixa em aberto algumas questões – a mais incômoda delas sendo o problema da polissemia do conceito de Posse, ponto de partida de Langacker nos dois trabalhos comentados. Assim, na próxima seção, tentaremos esboçar uma solução para esse problema. Antes, porém, é preciso lembrar que estamos considerando apenas as construções de estrutura argumental. Dessa forma, nossa descrição deverá recobrir a maior parte dos significados possessivos arquetípicos identificados por Langacker, tais como: propriedade (“O Thomas tem um carro caro”), qualidade física ou mental (“Eu tenho uma saúde ferro” e “Você tem muita paciência”, respectivamente), algo que preenche determinada função (“Só tenho um ônibus para voltar para casa”), dentre muitos outros. Por outro lado, deixaremos de fora as relações semânticas a que Langacker se refere como “ação em andamento” e “ação decorrida”, e que ilustra com os SNs “his departure” (“sua partida”) e “Lincoln’s assassination” (“o assassinato de Lincoln”), respectivamente. Note-se que esse signifi-

—————— 11 Para este autor (op. cit.: descrição por outra, referindo-se a uma mesma cena objetiva, tem a com os propósitos comunicativos ouvinte”.

155), “a razão pela qual um falante pode usar uma diferentes perspectivas disponíveis para a descrição de ver com uma avaliação do que se compatibiliza mais em causa, e com as necessidades e expectativas do

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cado, que o autor considera o menos prototípico dentre os valores possessivos por não manifestar controle do possuidor sobre a coisa possuída, não pode ser representado na construção de estrutura argumental (*Eu tenho duas partidas; *Lincoln teve um assassinato; *o carro teve um estacionamento difícil; etc). 3.1 A polissemia do conceito de Posse

Tomem-se as sentenças abaixo: (16) Este apartamento tem três quartos (17) O Leo tem muita raiva do Lula (18) Minha vida tem histórias inacreditáveis (19) Eu tenho histórias inacreditáveis para contar (20) A Maria não tem muita paciência (21) A Karen não tem uma raquete de tênis (22) A Gabriela tem dois irmãos / muitos amigos (23) O Ricardo só tem um ônibus para voltar para casa (24) Eu tenho um médico ótimo (25) O Rio de Janeiro tem muitos vereadores (26) No escritório onde trabalha, o João tem sua própria sala (27) O Marcos tem um dedo muito grande

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(28) A gente não consegue aposentar mais, quem está na aviação… porque a gente fica numa faiza de salário muito alto, né? Você tem um nível de vida, né? E vai ser muito difícil para você aposentar…12

De todos esses exemplos, (16) é o que se enquadra com maior facilidade na nossa proposta. Nele, “Este apartamento” é o contêiner (representado pelo círculo do esquema imagético) e “três quartos”, o conteúdo (o X do esquema). Para explicar os casos (17) e (18), porém, precisamos lançar mão de recursos adicionais. Em ambos os casos, tem-se um sujeito metafórico. Em (17), o sintagma “o Leo” é entendido metaforicamente como o círculo do esquema – portanto, como um contêiner metafórico – e “muita raiva do Lula” é o elemento contido. Vale lembrar que Lakoff (1987: 381-415) já descreveu as projeções metafóricas que compõem nosso entendimento do conceito de raiva, mostrando que a concepção da raiva como um líquido quente, somada à compreensão dos nossos corpos como contêineres, fica aparente em sentenças do tipo “ele está explodindo de raiva”, “ela finalmente conseguiu conter a raiva”, “aproveita para liberar toda a sua raiva agora”. A sentença (18), bastante semelhante, tem o significado próximo a “dentro do espaço (metafórico) da minha vida, existem histórias inacreditáveis”. Tanto em (17) como em (18), o que importa é que, quando conceptualizado como um contêiner, qualquer elemento passa a poder ser pensado fazendo-se referência ao esquema imagético continente-conteúdo – e portanto, veiculando, por definição, a noção de Posse ou de Existência (a depender do elemento focalizado). Uma paráfrase aproximada dos exemplos (19) a (27), por sua vez, revela uma situação um pouco distinta. Essa paráfrase seria algo como “Y existe dentro do espaço (metafórico) instaurado por todos os elementos que compõem a vida de X”, sendo X o elemento instanciado como o sujeito da construção possessiva de estrutura argumental e Y, seu objeto direto. No caso de (19), por exemplo, teríamos algo como “dentro do espaço (metafórico) que eu ocupo no mundo – ou seja, dentro do espaço cujas dimensões e fronteiras são determinadas pelo horizonte da minha percepção – existem histórias inacreditáveis, que merecem ser contadas”. Essa sentença seria idêntica a (18), não fosse por um detalhe: em (19), o elementos instanciado

—————— 12

Exemplo retirado da tese de Almeida (1991)

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como o sujeito oracional não é mais o próprio espaço metafórico que irá conter (ou ter) determinadas entidades (como ocorre em (17) e (18)). Em vez disso, o sujeito gramatical representa, aqui, a pessoa cujo horizonte de observação define os parâmetros e dimensões desse espaço, estando no seu centro. Ocorre aqui, portanto, além da metaforização do espaço, um caso de metonímia: esse espaço metafórico é substituído pelo indivíduo que o ocupa e determina seus limites – e, assim, podemos substituir “Minha vida” pela pessoa que vive essa vida, resultando em (19). Observe-se que as sentenças (20) a (27) manifestam alguns dos significados arquetípicos da Posse arrolados por Langacker. Pela ordem: qualidade mental, propriedade, parentesco/algum outro indivíduo associado, algo que preenche determinada função, algum outro indivíduo associado, alguém que ocupa cargo oficial, algo à disposição de alguém, parte-todo. No entanto, acreditamos que todos eles podem ser explicados de maneira idêntica ao que propusemos para o exemplo (19). Dessa forma, todos eles apresentam, no nível do esquema langackeriano, a mesma organização conceptual13: em todos esses casos, o sujeito gramatical representa, por metonímia, o espaço de existência da entidade codificada lingüisticamente como objeto direto. E este espaço, por sua vez, é de natureza metafórica, sendo determinado a partir de toda a bagagem de conhecimento do indivíduo que o conceptualiza. Por fim, o exemplo (28) demanda considerações adicionais. O que o torna peculiar é a aparente contradição entre a referência construída pragmático-discursivamente (o conjunto formado pelas pessoas que trabalham na aviação) e a referência normalmente sinalizada pelo pronome “você”. O que causa estranheza, portanto, é que o interlocutor constitua o lugar metafórico-metonímico da existência de algo absolutamente estranho a ele. É interessante notar, no entanto, que esse exemplo se inclui entre os enunciados que Almeida (1991: 164) chama de “implicativos”, caracterizados, entre outras coisas, pelo seu “valor persuasivo” (op. cit.: 165). Em outras palavras, o que a autora prova é que o gênero argumentativo é aquele em que mais comumente se recorre, no português brasileiro atual, à estratégia de indeterminação do sujeito com o pronome “você(s)”.

—————— 13 Agradecemos ao Professor Augusto Soares da Silva, que, ao travar contato com esta pesquisa, nos fez atentar para a distinção entre os níveis do esquema e do protótipo, a qual se revelou fundamental para um tratamento adequado da polissemia do conceito de Posse.

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Ora, se nossa intenção, em uma dada interação comunicativa, é levar o interlocutor a aceitar ou se convencer de algum fato, a estratégia de incluir esse fato no horizonte de percepção do próprio interlocutor (o que, ao fim e ao cabo, é o que faz a construção possessiva), parece configurar um recurso retórico bastante poderoso. 4. Considerações finais O leitor terá notado, talvez, que deixamos pendentes questões teóricas e descritivas. No nível descritivo: ao refutarmos a hipótese da “transferência conceptual” de Heine, tivemos de abandonar também uma saída possível para explicar da vinculação entre as duas construções existenciais identificadas pelo autor14. Por outro lado, no plano teórico, embora tenhamos postulado a habilidade de (re)focalização como o processo cognitivo que sustenta a relação entre Posse e Existência, não fizemos em nenhum momento menção ao indivíduo que promove essa (re)focalização. Em outras palavras: se a (re)focalização é a operação cognitiva que fornece a resposta para nosso questionamento central, onde estaria o sujeito observador/conceptualizador responsável por estabelecer qual objeto será focalizado e qual deverá ficar à sombra? Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essas duas questões não são independentes. Conforme já antecipamos, nossas pesquisas têm-se voltado atualmente para a investigação do vínculo estabelecido entre os dois tipos de construção existencial, que estamos denominando Existencial Inacusativa (por exemplo, “Existe água em Marte”) e Existencial Inergativa (por exemplo, “Deus existe”). Em linhas gerais, pode-se dizer que esse vínculo parece se fundamentar na presença (no caso da Construção Existencial Inergativa) ou ausência (para a Existencial Inacusativa) do sujeito observador/conceptualizador na representação conceptual das construções. Da mesma maneira, a estrutura possessiva analisada aqui parece não incorporar esse sujeito na sua configuração esquemática. Assim, em resumo, sentenças como (1) e (2) de fato não evidenciam, em sua organiza-

—————— 14 Lembramos que, para Langacker (em preparação), apenas a “Existência Nuclear” de Heine (“Y exists”) manifesta verdadeiramente valor existencial, por ser “maximamente generalizada”. Por sua vez, a “Existência Estendida”, ou simplesmente “Existência” (“Y exists with reference to X”), apontada por Heine, deve ser incluída, segundo Langacker, entre as construções locativas.

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ção conceptual, o sujeito que observa (e focaliza ou sub-focaliza) os elementos participantes dos cenários descritos. Não poderemos nos aprofundar, aqui, no problema da vinculação entre as duas construções existenciais. Além disso, não temos obviamente a pretensão de ter esgotado o problema, tão complexo, da relação entre Posse e Existência. De qualquer forma, torcemos para que este trabalho possa trazer uma contribuição efetiva para o debate em torno da questão. Agora, vislumbrado esse caminho inicial, esperamos poder contribuir, em pesquisas futuras, para uma descrição mais acurada do comportamento das construções possessivas e existenciais no português brasileiro. 5. Bibliografia ALMEIDA, Maria Lúcia de (1991). A indeterminação do sujeito no português falado. Tese de Doutorado em Lingüística. Rio de Janeiro: UFRJ CALLOU, Dinah, AVELAR, Juanito (2000). Sobre ter e haver em construções existenciais: variação e mudança no português do Brasil. Gragoatá, no 9. Niterói: UFF CLARK, Eve (1978). Locationals: existencial, locative and possessive constructions. In: Greenberg, J. Universals of human language. Vol. 4. Stanford: University Press. FRANCIS, Elaine (1999). Two perspectives on the grammar of possession. Language Sciences, 22/1, pp 87-107. HEINE, Bernd. Possession: Cognitive Sources, Forces, and Grammaticalization. Cambridge: University Press. JOHNSON, Mark (1987). The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination and reason. Chicago: University Press. LAKOFF, George (1987). Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: University Press. _______ & Johnson, Mark (1980). Metaphors we live by. Chicago: University Press. _______ & Johnson, Mark (1999). Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books. LANGACKER, Ronald (1987). Foundations of cognitive grammar. Vol. I. Stanford: University Press. _______, Ronald (1991). Foundations of cognitive grammar. Vol. II. Stanford: University Press. _______, Ronald (em preparação). Possession, Location and Existence. To appear. University of California, San Diego. LYONS, John (1968). Existence, location, possession and transitivity. In: ROOTSELAAR, B. van, STAAL, T. F. Logic, methodology and philosophy of science. Vol III. Amsterdam: North-Holland Publishing Co.

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