Gramsci nos trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos

September 15, 2017 | Autor: V. Gomes | Categoria: Political Science, Ciencia Politica
Share Embed


Descrição do Produto

EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2014

EDITORA MULTIFOCO Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda. Av. Mem de Sá, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152

Gramsci nos trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos REBUÁ, Eduardo (org.) 1ª Edição Novembro de 2014 ISBN: 978-85-63471-36-9

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

G747 Gramsci nos trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos / Eduardo Rebuá, organizador. – Rio de Janeiro: Multifoco, 2014. 218 p. ISBN: 978-85-63471-36-9 1. América Latina – Política. 2. Gramsci, Antonio, 1891-1937. I. Rebuá, Eduardo. (Org). II. Título. CDD 320.98 Bibliotecário Responsável: Thiago Lourenço F. da Silva (CRB 7 - 0090/13)

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

A Carlos Nelson Coutinho, latino-americano e gramsciano, sempre!

Um simples olhar sobre a imponente quantidade de trabalhos e publicações referidos à problemática latino-americana em todos os seus aspectos, desde aqueles históricos até os mais estritamente culturais, dá conta da presença [...] e da difundida utilização dos instrumentos conceituais que Gramsci colocou em circulação para analisar velhas e novas dimensões da realidade de países colocados frente à disjuntiva de encarar profundas transformações para superar suas crises e possibilitar a abertura para sociedades mais justas. Desta perspectiva e com as pontuações que neste caso, como em qualquer outro, devem sempre ser feitas, pode-se afirmar que as formulações de Gramsci fazem parte da nossa cultura e constituem um patrimônio comum de todas aquelas correntes de pensamento democráticas e reformadoras do continente. Todos somos, em certo sentido, tributários do seu pensamento, ainda que alguns não o sejam ou não estejam dispostos a reconhecê-lo. E se há razões para pensar que as incertezas nas quais se debatem as correntes de esquerda colocam em questão a atualidade de tais formulações, torna-se difícil acreditar também que as respostas às novas perguntas da sociedade possam encontrar-se mais aquém e não mais além do seu pensamento. ARICÓ, José. Por que Gramsci en América Latina?. In: ______. La cola del diablo: itinerário de Gramsci en América Latina. Buenos Aires: Punto Sur, 1988.

Sumário Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 G IOVANNI SEMER AR O

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 E DUARDO REB UÁ

Introdução: Gramsci e América Latina (quase) trinta anos depois. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 M ARCO AURÉLI O N OG U E IR A

I. A América Latina com lentes gramscianas A construção da perspectiva gramsciana de educação. . . . . . . 36 RO DRI GO GO MES

Líder comunitário e classes subalternas: transformações e conflitos no universo político das favelas cariocas. . . . . . . . . . .62 RO GÉRI O SO UZ A

Revolução passiva e meios de comunicação: uma análise gramsciana das manifestações no Brasil em 2013. . . . . . . . . . . 87 E DUARDO REB UÁ

O primeiro “desembarque” de Gramsci no Brasil: o homem certo na hora errada?. . . . . . . . . . . . . . . . 120 AIMAN FRANCO

II. A teoria de Gramsci com lentes latino-americanas Estado e sociedade civil: entendendo a atualidade da política gramsciana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 V ICTO R L. C. GO ME S

Cultura e arte na obra de Antonio Gramsci: disputa de hegemonia e transformação de consciências. . . . . . . . . . . . . . 177 M ARCIO MALTA

Gramsci: o vigor de seu pensamento político. . . . . . . . . . . . . . 193 ANA LO L E

Biografias dos autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Prefácio GIOVANNI SEMERARO Universidade Federal Fluminense (UFF)

Jovens intelectuais e militantes, “especializados e políticos”, como Gramsci, envolvidos com pesquisa, trabalho e diversas frentes de lutas sociopolíticas, em situações não menos adversas do encarcerado pelo fascismo italiano. São esses os traços essenciais dos autores desse livro, escrito com acuidade e paixão, impresso em páginas inovadoras e contagiantes. Mas, na verdade, são esses os ingredientes indispensáveis para entender, interpretar e desenvolver coerentemente as ideias legadas por Gramsci numa obra deixada em aberto, incompleta porque gigantesca e coletiva, que precisa continuar a escrever corajosamente em outras circunstâncias e frente às novas interpelações da história. Entre outros aspectos, portanto, o privilegiado leitor dessas páginas vai se deparar com a tentativa de entrelaçar três difíceis e complexas tarefas que exigem, ao mesmo tempo, maturidade intelectual e inteligência política: 1) um amplo conhecimento do pensamento de Gramsci disseminado no imenso “canteiro de obra” dos seus escritos e na variedade das suas anotações; 2) a análise cuidadosa e penetrante de diversas situações e questões do nosso “mundo grande e terrível”; 3) o envolvimento pessoal com os fatos e os movimentos sociopolíticos retratados em vista da transformação 11

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

da realidade e do fim da divisão de classe. Operações inseparáveis que os jovens autores desses capítulos aprenderam do método designado por Gramsci com a feliz expressão de “filologia vivente”, ou seja, com a investigação apaixonada que se realiza na relação com um corpo vivo, com um organismo em movimento, feito de contradições e potencialidades. O que implica não a análise de um “objeto” inerte a ser dissecado por uma razão mecânica, mas, a vibração político-existencial diante de um interlocutor que interage num campo de forças em jogo, que questiona os nossos pontos de vista e amplia a inteligibilidade do imenso e fascinante universo do real. Quando é “vivente”, toda “filologia” rigorosa, não resvala em exercício tecnicista de textos, ainda mais em se tratando de uma obra viva como a de Gramsci, escrita não para academias e bibliotecas, mas pensada como munição para os “grupos subalternos” que se organizam para combater a dominação, conquistar a hegemonia e revolucionar o mundo. Mas, por outro lado, sendo “filologia” cuidadosa e abrangente dos textos e da realidade, impede de cair no ativismo precipitado, de ler superficialmente ou de manipular o pensamento de Gramsci, colocando-o a serviço de um “subversivismo esporádico”, de um rebeldismo inconsequente, tão criticados por ele, um autor muito citado, porém, ainda pouco estudado e concretizado. A louvável iniciativa dos autores deste livro, portanto, sintoniza-se não apenas com a impressionante multiplicação e complexidade dos estudos sobre Gramsci - que nesses últimos anos vêm se dedicando a aprofundar seu arsenal conceitual, a reconstruir o seu contexto histórico, as correntes de pensamento, os interlocutores, os adversários e as questões políticas que ele enfrentou – mas, acima de tudo, com o resgate de sua 12

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

elaborada filosofia da práxis que conjuga dialética e inseparavelmente estrutura e superestrutura, prática e teoria, análise da realidade e revolução protagonizada pelo “bloco” de intelectuais e classes populares politicamente organizadas. Depois da extraordinária fortuna dos escritos de Gramsci em todos os continentes, e dos estudos que se concentraram prevalentemente sobre as “grandes vértebras” do seu pensamento, assistimos agora a um fenômeno não menos espantoso: a produção de inovadores estudos que partem de diversas realidades e grupos sociais que, na interlocução fecunda com o pensamento de Gramsci, chegam a renovar e ampliar os horizontes do marxismo. Nesse sentido, do livro que o leitor tem em mãos, emerge um aspecto muito impactante: o diálogo com Gramsci a partir da ótica dos “grupos subalternos”, da concepção de educação, da resistência nas favelas, na cultura e na arte que emergem dos movimentos populares, das surpreendentes manifestações da juventude e das insurgências de massa que constelam cada vez mais a história do Brasil e do “subcontinente” latino-americano. Dessa forma, as páginas deste livro apresentam uma considerável ousadia uma vez que muitas leituras de Gramsci limitam-se a transpor e aplicar mecanicamente algumas de suas categorias sem passar pelos “prismas” complexos e contraditórios da realidade que nos cerca, pela refração extraordinária que seu pensamento adquire quando se depara com o universo incandescente da política, da cultura e das atuais lutas sociopolíticas. Não é sem motivo que o livro é dedicado a Carlos Nelson Coutinho, o mestre “gramsciano” que, como poucos, tem percorrido esse caminho e avançado na imponente tarefa que essa nova geração propõe-se a levar adiante. 13

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Da incumbência da apresentação faz também parte a responsabilidade de alertar o leitor sobre o grau de risco e o teor de contágio contido neste livro. Nele, encontram-se não apenas uma inusitada abordagem de Gramsci, uma leitura crítica da realidade e novos pontos de vista, mas, sobretudo uma forte e perigosa atração para se envolver na “práxis sub-versiva” dos “sub-alternos” que nesse “sub-continente” se organizam e lutam para conquistar a autodeterminação e a direção de uma nova sociedade.

14

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Apresentação EDUARDO REBUÁ

No bojo dos eventos de junho de 2013, intitulados, dentre outras denominações, de Junho Rebelde, tive a intenção de reunir numa obra coletiva escritos gramscianos sintonizados ao “otimismo da vontade”, para fazer uso de famosa expressão de Antonio Gramsci, referência teórica e política importante de todos os sete “cúmplices” deste livro. A ideia inicial, e que felizmente norteou todo o processo de produção do livro, era construir um material que tivesse como estampa e conteúdo o diálogo entre os conceitos gramscianos e a realidade latino-americana, num movimento dialético de pensar – e a obra se divide nestes dois eixos básicos – a América Latina com “lentes” gramscianas e debater a teoria gramsciana com “lentes” latino-americanas. Três meses após as manifestações de junho, produzi o artigo intitulado Revolução passiva e meios de comunicação: uma análise gramsciana das manifestações no Brasil em 2013 – presente nesta coletânea – esforço teórico-analítico de interpretação gramsciana dos episódios daquele mês rebelde, ainda que “em cima dos fatos”, tendo como lastro os meios de comunicação, estratégico e robusto aparelho privado de hegemonia. Deste texto, revisto em junho de 2014, surgiu a oportunidade de, em parceria com amigos queridos, “coincidentemente” marxistas, formados na área de Humanas e 15

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

educadores como eu, produzir um livro que, com suas limitações e incompletudes, recuperasse a pujança dos vínculos entre o pensamento de Gramsci e nuestra America, num resgate simbólico da paradigmática e pioneira obra Gramsci e a América Latina (1988), organizada pelo saudoso Carlos Nelson Coutinho e por Marco Aurélio Nogueira. Feito o convite ao ilustre sexteto que deu vida a esta ideia na contramão e a contrapelo – no mesmo sentido dado por Walter Benjamin – foi quase imediato o convite ao professor e gentil amigo Giovanni Semeraro, um dos mais importantes intelectuais gramscianos de nosso tempo, para que prefaciasse o livro após a organização (extremamente “desorganizada” por mim) de todos os sete artigos, num primeiro esboço, ainda bastante cru. Em sua abertura dos trabalhos, num texto generoso, bem-humorado e exortador, enfatiza duas características que me parecem centrais no material aqui presente: a ousadia e a tentativa de “contágio”. Como salienta Semeraro, o canteiro de obra dos escritos gramscianos ainda exige o trabalho de muitos, sobretudo os “ainda” jovens como nós. Nesta empreitada editorial coletiva, duas pessoas foram imprescindíveis e a simples menção neste espaço é uma maneira formal, porém afetuosa, de lhes agradecer por todo o trabalho, preocupação, zelo: Victor L. C. Gomes e Ana Lole, também autores deste trabalho. Co-organizadores desde a primeira hora, é deles a “culpa” da formatação ideal do livro, da revisão minuciosa, do cuidado com aquilo que estávamos produzindo e, finalmente, do convite aos professores Marco Aurélio Nogueira – um dos grandes responsáveis pela tradução/organização das obras de Gramsci no Brasil – e Marcos Del Roio, notável arqueólogo dos escritos grams16

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

cianos. O texto de Nogueira, que inicialmente apresentaria o livro, devido à sua densidade teórica e atualidade histórica, foi alçado ao “posto” de oitavo artigo do livro, enquanto Del Roio, em breves e incisivas palavras, escreveu a orelha deste Gramsci nos trópicos. O artigo de Nogueira, que se apresenta muito melhor que estas diminutas considerações, representa um balanço, especialmente elaborado para o livro, do que significa falar de Gramsci quase trinta anos depois da publicação de Gramsci e a América Latina. Num texto fluido e refinadamente crítico, o autor traça um panorama em caráter de raio-x: como se deu a “semeadura” da teoria de Gramsci em solo brasileiro (bem como argentino, mexicano etc.); por que “germinou” de forma vigorosa por estas terras do sul; de que maneira enfrentou as “intempéries” do regime civil-militar instaurado em 1964; quais “frutos” puderam ser colhidos quando da abertura política conduzida “pelo alto” sob fortes tensões “por baixo”; quais os “sabores” perceptíveis/imperceptíveis da teoria gramsciana nos tempos hodiernos neste país e no continente. O texto de Rodrigo Gomes – que abre a primeira parte da obra – começa indicando claramente a intenção do autor: analisar a perspectiva gramsciana de educação, tendo como ponto de partida a defesa de que tanto o filósofo sardo quanto Marx, mesmo não sendo educadores stricto sensu, colaboraram de maneira decisiva para os estudos no/do campo da educação (notadamente Gramsci). É bastante rica a investigação em Marx de suas preocupações com a formação integral do homem; uma educação omnilateral, unitária, que não dicotomiza trabalho manual e atividade intelectual. Apresentando de forma bastante elucidativa conceitos 17

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

importantes da teoria gramsciana, contextualiza a contento o processo de construção da concepção gramsciana sobre a educação e suas possibilidades. Descreve bem as características da “escola desinteressada” do revolucionário, apontando sua crítica em relação à escola tradicional/oligárquica e sua defesa dos vínculos entre instrução e trabalho (trabalho como princípio educativo, o maior legado marxiano ao campo da educação). “Traduzir” categorias gramscianas para realidades contemporâneas, de outro contexto histórico, social, cultural, não representa tarefa fácil. Foi na América Latina – “chão” de nosso livro coletivo – que a metáfora gramsciana do novo (que nasce) e do velho (que morre), ligados umbilicalmente, ganhou contornos mais nítidos. Nas palavras de José Aricó (“responsável” por nossa epígrafe), a “fortuna” que o autor dos Cadernos do Cárcere alcançou em nosso continente (o “Novo Mundo”) a partir da década de 1960, contrastava com o declínio de sua presença em seu próprio país (no “Velho Mundo”). Rogério Souza, estudioso das dinâmicas sociais da realidade carioca, sobretudo, e fluminense, com ênfase na análise das favelas e das lutas de seus habitantes, incursiona pelo tema – concreto, multifacetado, mutável – dos conflitos urbanos na/da cidade do Rio de Janeiro, tendo como “diário de bordo” o arsenal conceitual gramsciano, extremamente preciso e rico no que se refere aos estudos acerca dos subalternos, dos espaços periféricos, marginais, seja ele o sul italiano ou a favela tipo brasiliano. Aiman Franco, no artigo O primeiro “desembarque” de Gramsci no Brasil: o homem certo na hora errada, inicia sua argumentação contextualizando os Cadernos e colocando questões para a análise historiográfica da recepção das ideias 18

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de Gramsci no Brasil. Debate com propriedade a centralidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB) para o marxismo no país, diferenciando-o de países como a Argentina, por exemplo. Situa o leitor na conjuntura do XX Congresso do Partido Comunista soviético e descreve bem os embates internos pecebistas, suas linhas políticas, teóricas, hegemônicas e divergentes. Apresenta um breve, porém razoável panorama dos anos 1950 e 1960 no Brasil, “dentro e fora” do PCB. Tem como um de seus pontos altos a caracterização – crítica e ancorada em autores importantes – do regime civil-militar instaurado em 1964 (utilizando categorias gramscianas) e a apresentação dos horizontes culturais do período, notadamente a produção editorial vinculada ao marxismo e a atuação de intelectuais no meio universitário. Sua crítica da pequena abrangência desses “fenômenos” culturais sobre o conjunto da população brasileira é bastante pertinente, assim como é didática sua apresentação dos ciclos de Gramsci no Brasil. Dentro da tradição marxista de pensamento, talvez Gramsci tenha sido o mais incisivo ampliador de conceitos, renovando-os à luz dos eventos históricos que vivenciava e daqueles que lhes eram legados pelo passado. Intelectuais, Estado, Partido, Hegemonia, Sociedade Civil são alguns dos exemplos de categorias teóricas “dilatadas” pelo pensador italiano, aquele que segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm, foi o cérebro mais original surgido no Ocidente desde 1917. Victor L. C. Gomes, que introduz a segunda parte do livro numa investida teórica necessária, porém sempre difícil – manejar conceitos já consagrados de autores clássicos – estabelece uma incursão de “resgate” do conceito de socie19

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

dade civil de Gramsci, tão “sequestrado” e “metamorfoseado” pelos porta-vozes da ordem, à esquerda e à direita do pensamento liberal, quase sempre esterilizado de suas componentes constitutivas mais fundamentais: a radicalidade e a perspectiva revolucionária. No necessário regresso a Hegel e Marx, através da observação do desenvolvimento histórico-filosófico dos conceitos de Estado e Sociedade Civil (apontando similaridades e dessemelhanças existentes entre os dois) o autor deságua no revolucionário da Sardenha, indicando o que “já existia ‘de Gramsci’ em Marx”, como o fizera em relação aos dois filósofos alemães, no tocante à questão da sociedade civil (o que “já existia ‘de Marx’ em Hegel”). Todavia, como um exímio articulador das categorias marxistas, Victor L. C. Gomes explicita, valendo-se de autores importantes, o caráter inovador da abordagem gramsciana: antideterminista, dialética, sintonizada e comprometida com os processos históricos de sua época. Uma atualização de Marx que não o supera (no sentido do “descarte”), mas o aprofunda, na medida em que atualiza as “lentes marxianas”, estabelecendo críticas, mas, sobretudo, apontando novas questões para velhos problemas. Suas considerações finais, para além da necessária crítica ao ideário neoliberal e seus “laboratórios de barbárie”, exortam o leitor ao resgate contínuo do caráter radical e transformador do pensamento de Gramsci, deixando claro que os vínculos entre sociedade civil e classe são orgânicos, portanto, indissociáveis. Um traço distintivo fundamental da obra gramsciana no conjunto do pensamento marxista é, sem dúvida, sua preocupação com a cultura em suas mais diversas formas e expressões, notadamente a cultura popular, subalterna. Iniciado com uma breve, no entanto necessária apresentação da 20

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

biografia do intelectual sardo, Márcio Malta, alicerçado nos Cadernos, estabelece um diálogo profícuo de Gramsci com outros cânones do marxismo, com destaque para Trotsky e Lukács. Ampliando seu escopo de análise, não se limita apenas à cultura e a arte, mas posiciona em seu “microscópio analítico” as categorias de intelectuais, hegemonia, sociedade civil, no intento de enfatizar que a “elevação intelectual e moral das massas”, condição indispensável na construção de uma nova sociedade e de um novo homem (como defendia Che Guevara), só pode se dar efetivamente, se a cultura for entendida como uma trincheira (difusa, complexa, imprevisível) de luta, de disputa de consensos e sentidos históricos, de embates entre projetos societários; uma trincheira, aliás, muito bem preenchida pelos canais de difusão dominantes, com destaque para três deles: a imprensa, a editora e a escola. Não é fortuita a atuação incansável e destacada de Gramsci como jornalista, editor e “educador”, vinculado aos subalternos e suas demandas. A assertiva do poeta da Revolução de 1917, Vladimir Maiakovski, corrobora a concepção gramsciana acerca da arte e de suas potencialidades: “a arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”. Fechando a obra, Ana Lole reivindica logo de saída a dimensão política como o cerne da obra de Gramsci, a despeito das análises – muitas domesticadoras do caráter eminentemente revolucionário de seus escritos – as quais entendem que no campo da cultura encontra-se o núcleo do pensamento do intelectual marxista. A autora costura temas de profundo interesse para os debates atuais, que são apresentados de forma cuidadosa: esquerdas, neoliberalismo, pós-modernidade, emancipação, cidadania, democracia, práxis, inte21

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

lectuais, contra-hegemonia. O refinado manejo dos conceitos gramscianos é apresentado com bastante clareza e com referências importantes. O texto convida o leitor a debater conceitos que costuram Marx, Engels, Gramsci, Mészáros, enfim, a “escola” do materialismo histórico-dialético, numa narrativa instigante que dialoga com os eventos recentes ocorridos no país, notadamente o chamado Junho Rebelde. Termino estas breves palavras valendo-me daquelas que Semeraro utilizou carinhosamente para concluir o prefácio desta nossa obra: este pequeno esforço coletivo representa a conjunção, ousada e bem-vinda, de novas/velhas lentes marxistas, imprescindíveis nas inúmeras batalhas das ideias, que não existem sem as batalhas das ruas, sem a “práxis sub-versiva” dos “sub-alternos” deste “sub-continente” dos trópicos. Boa leitura!

22

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Introdução: Gramsci e América Latina (quase) trinta anos depois MARCO AURÉLIO NOGUEIRA Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Décadas atrás, tive a oportunidade de apresentar um ensaio no seminário internacional “Transformações políticas da América Latina: a presença de Gramsci na cultura latino-americana”, realizado pelo Instituto Gramsci na cidade italiana de Ferrara em setembro de 1985. O ensaio foi posteriormente incorporado ao volume Gramsci e a América Latina, organizado por mim e por Carlos Nelson Coutinho1. O texto buscava fazer um balanço da recepção das ideias de Gramsci no Brasil e avaliar as funções que desempenhou e poderia vir a desempenhar. Estávamos no início da fase final da transição democrática, na qual tudo parecia se reorganizar: as práticas políticas, as esquerdas, o modo de pensar e, por extensão, o modo de conviver com o marxismo de Gramsci, fortemente marcado pela heterodoxia, pela incompletude e pelo caráter não sistemático. Num momento em que muitas certezas eram postas em xeque, aumentavam expressivamente as possibilidades de se dialogar com uma obra que era, ela mesma, fruto de um diálogo de seu autor consigo mesmo e com sua época. 1. COUTINHO, Carlos Nelson e NOGUEIRA, Marco Aurélio (orgs.). Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 23

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

O cenário era bem diferente do que havia assistido ao ingresso de Gramsci no circuito político e intelectual brasileiro. Quando suas principais obras foram traduzidas e publicadas no Brasil, entre 1966 e 1968, não se podia delinear que impacto viriam a ter. O autor dos Quaderni del Carcere era um nome praticamente desconhecido em nosso país e apenas começava a ganhar projeção fora da Itália. Além do mais, o Brasil estava às vésperas do Ato Institucional n° 5 e já havia sido alcançado pelo vagalhão ideológico que alimentaria muito dos comportamentos, posturas e modos de pensar “sessentoitistas”. A fase era pouco favorável à reflexão crítica em larga escala e ao debate político produtivo. A partir de 1975-1976 tal situação conhecerá um deslocamento. De certa maneira, as ideias de Gramsci serão então progressivamente “socializadas”, transbordarão as fronteiras universitárias e passarão a integrar o corpo conceitual com que se interpretaria a realidade do país. Naquele momento, o “gramscismo” veio à luz do dia com a força de um vulcão. Todos, de uma ou outra forma, tornaram-se “gramscianos”. Daqueles anos em diante, esse quadro se manteve, ainda que com altos e baixos. A popularidade alcançada pela elaboração teórica de Gramsci confirmava sua universalidade, sua capacidade de iluminar as contradições do capitalismo contemporâneo e de auxiliar a investigação da particular história brasileira. No entanto, não iria refletir um entendimento unívoco das posições gramscianas, que desde o início seriam incorporadas de maneira heterogênea e ficariam expostas a diversos usos e interpretações. Esse traço marcante do contato brasileiro com as ideias de Gramsci ajuda a explicar os motivos que fizeram com que 24

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

conquistassem tantos consensos. Elas ingressaram em ambientes inesperados, passaram a ser empregadas de modo difuso e se incorporaram ao léxico da política, do jornalismo e das ciências sociais. Ganhando múltiplas facetas e encontrando inúmeros porta-vozes, Gramsci foi rapidamente difundido no Brasil. No entanto, acabou também por funcionar como “meio” para o estabelecimento de um descompromissado flerte com o marxismo e por emprestar autoridade às ideias arquitetadas a partir de uma operação preocupada em manipular as categorias gramscianas como se tratasse das peças de um quebra-cabeça cuja resolução não interessava. Seu pensamento terminou assim por ser reduzido a conceitos, desvinculado de uma dimensão teórica e filosófica mais abrangente e, sobretudo, separado da perspectiva de transformação socialista e da particular teoria do Estado que fazem de Gramsci um ponto de inflexão na história do marxismo. Somente aos poucos, e no calor da batalha pela afirmação da democracia no Brasil, é que Gramsci encontrará um tratamento mais rigoroso e uma inserção mais equilibrada na vida política e cultural brasileira. A partir de então, passará a ocupar um espaço claro, a ser uma linha demarcatória, um fator de animação e balizamento da reflexão crítica sobre as determinações e as contradições do capitalismo brasileiro. Creio que a recepção de Gramsci nos diversos países latino-americanos seguiu, em linhas gerais, esse mesmo percurso. No mencionado volume que eu e Carlos Nelson Coutinho organizamos em 1988, havia também um belo e instigante ensaio de José Aricó, um dos mais importantes disseminadores do pensamento de Gramsci no subcontinente. Ele se propunha a esboçar, de modo crítico e pessoal, uma “geografia 25

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de Gramsci na América Latina”. Seu diagnóstico inicial afirmava que, “[...] na América Latina, pelo menos algum texto de Gramsci foi publicado praticamente em todos os lugares. E em três países – Argentina, México e Brasil – suas edições são numerosas, repetidas e de grande difusão. Gramsci é hoje parte da cultura latino-americana a tal ponto de que suas categorias de análise atravessam o discurso teórico das ciências sociais, dos historiadores, dos críticos e dos intelectuais em geral, e estão (via de regra de modo abusivo) presentes na linguagem cotidiana das forças políticas de esquerda ou democráticas. Quem poderia refletir sobre os grandes ou pequenos problemas de nossos países sem se utilizar de termos como hegemonia, bloco histórico, intelectuais orgânicos, crise orgânica, revolução passiva, guerra de posição e de movimento, sociedade civil e sociedade política, Estado ampliado, transformismo etc.?”2. Aricó enfatizava que isso não permitia que se avalizasse a “ideia banal” de que o pensamento de Gramsci teria sido assumido plenamente e de modo crítico. Mas mostrava, com clareza, “o alcance de um fenômeno cultural que vai muito além do campo restrito dos setores acadêmicos e faz parte das linguagens da política”3. Um traço típico dessa história de recepções e assimilações foi que a perspectiva teórica de Gramsci não teve como referência política, no Brasil e creio que também na maior parte dos países latino-americanos, uma esquerda forte e organizada, com presença ativa no movimento sindical e operário, na cultura e no conjunto da vida nacional, conforme 2. ARICÓ, José. Geografia de Gramsci na América latina. In: COUTINHO, Carlos Nelson e NOGUEIRA, Marco Aurélio (orgs.). Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 25-46. p. 26-27. 3. Ibidem. p. 27. 26

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ocorreu na Europa da época de Gramsci. Encontrou por aqui partidos de esquerda, de baixa porosidade social, enquadrados num rígido doutrinarismo e atravessados por mentalidades ideológicas pouco flexíveis. Também não interagiu com sociedades politicamente ordenadas, com padrões intelectuais “estáveis” e uma organização da cultura sedimentada. Ao contrário, teve de se defrontar com ordenações sociais muito divididas, sem classes bem estruturadas e atravessadas por uma movimentação social repleta de componentes “tradicionais”, aos quais se superpuseram componentes “selvagens” do desenvolvimento capitalista. A dinâmica sociopolítica também esteve sempre pressionada e condicionada pela irrupção de comportamentos e demandas derivados do “inchaço” do setor terciário e de uma inusitada presença reivindicativa das camadas médias. No subcontinente, além do mais, o marxismo teve ampla disseminação, mas nem sempre encontrou estabilidade ou real poder de fogo vis-à-vis um liberalismo que nunca hesitou em tomar de empréstimo conceitos e procedimentos estranhos à sua racionalidade formal e à sua tradição, misturando ainda mais as já embaralhadas cartas das culturas políticas nacionais. Num quadro assim instável e turbulento, acabou por ser inevitável que o pensamento de Gramsci sofresse os usos mais diversos. O caráter mesmo da América Latina ajuda que se entenda isso: o fato de ser, como dizia Aricó apoiando-se em Mariátegui, “um projeto a realizar” que “inclui e torna uniformes diversidades profundas e experiências diferentes de heterogeneidades estruturais e econômicas imensas, pluralidades étnicas e poderes regionais que enfraquecem um Estado nacional incapaz de se afirmar como tal”4. 4. Ibidem. p. 29. 27

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Em decorrência, afirmou-se “uma pluralidade de caminhos e perspectivas que deram lugar à formação de núcleos de elaboração teórica e política diversos, no interior dos quais as ideias de Gramsci foram assumidas e se contaminaram com posições e perspectivas diferentes, produzindo os mais singulares efeitos”5. Houve muitos “gramscismos” no subcontinente. Assim também no Brasil, onde quase todos os tipos de malabarismo teórico foram justificados com o recurso a Gramsci, especialmente nos ambientes de esquerda, nos setores democráticos e na universidade. Ao mesmo tempo, em sua incorporação iriam se espelhar o modo de ser e as características da intelectualidade brasileira, sua dispersão e seu fascínio pelas “últimas modas” europeias, o caráter fragmentário de sua produção, sua apropriação instrumental e não filosófica (dialética) do marxismo. No entanto, seria absurdo não reconhecer o papel positivo que a obra de Gramsci desempenhou na história recente da teoria social brasileira, em particular junto às suas vertentes marxistas. Creio, aliás, que esse é o principal ponto a ser destacado quando se examinam as relações entre Gramsci e o Brasil: Gramsci foi decisivo para arejar o pensamento de esquerda no Brasil, até então majoritariamente subordinado ou às formas clássicas do “marxismo-leninismo” ou às variantes funcionalistas do radicalismo liberal. Em boa medida, foi com ele que melhoramos nossa capacidade de desmistificar o marxismo, de sermos serenamente heterodoxos, de pormos em xeque as ultrapassadas fórmulas “revolucionárias” de pensar o Estado, o partido político, a democracia e o socialismo. Nas páginas dos Quaderni – repletas de ino5. Ibidem. p. 29. 28

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

vação e de termos novos como revolução passiva, bloco histórico, transformismo, Estado ampliado, hegemonia e guerra de posição –, encontramos uma privilegiada perspectiva para melhorar nosso conhecimento sobre a complexidade da luta política e nossa compreensão do caráter “prussiano” assumido pelo processo de transformação capitalista e de formação da nacionalidade no Brasil. Através delas, aguçamos nosso entendimento da modernização conservadora impulsionada pelo regime implantado em 1964 e pudemos requalificar nosso conhecimento sobre o “atraso” brasileiro, a multidimensionalidade do fenômeno estatal e a relevância da cultura para a política. De certa forma, Gramsci nos ajudou a entender o Brasil moderno, industrial e de massas – mas também autoritário, desigual e miserável – que tínhamos diante dos olhos e nem sempre percebíamos. Ele foi, sobretudo, decisivo para que se resgatassem entre nós o valor da democracia e a autonomia relativa da política, que ao longo dos anos 1970 haviam passado a interessar sempre mais às preocupações teóricas marxistas e à prática de esquerda. Também é importante lembrar que o pensamento de Gramsci ganhou densidade no Brasil como parte (dotada de expressiva singularidade) de uma nova teoria do socialismo, elaborada pelo Partido Comunista Italiano (PCI). Nas concretas condições dos anos 1970, o PCI buscava repor o movimento comunista e a ideia mesma de esquerda numa posição de contemporaneidade com o mundo realmente existente. O pensamento de Gramsci e a elabora­ção política do PCI – o “marxismo italiano dos anos 1970” – agiram, assim, no Brasil, como revitalizadores de uma esquerda que se esfacelara no plano organizacional e se repetia no plano político-cultu29

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ral, tanto por força de sua própria evolução interna, quanto da violência ditatorial e da “selvagem” modernização capitalista do país. Aquele marxismo italiano (juntamente com seu eurocomunismo) foi duplamente funcional no Brasil. Por um lado, facilitou a ruptura com a tradicional visão doutrinária do marxismo sem implicar a rejeição do próprio marxismo e, com isso, suavizou a renovação de uma esquerda que se dispunha a largar pela estrada o “marxismo-leninismo” de que era caudatária e a resgatar o núcleo universalmente vivo do pensamento de Marx. Por outro lado, se ajustou à forma e às características da luta contra a ditadura e pela democracia no Brasil. De fato, como sabemos hoje, a oposição ao regime de 1964 jamais pôde se sustentar à base do confronto direto (insurrecional, violento) ou da ruptura brusca e radical com o sistema político e o Estado. Ao contrário, só conseguiu realmente avançar à custa de um amplo esforço unitário que gradativamente deslocou as bases de sustentação do regime, isolou-o da sociedade e bloqueou sua reprodução. A transição brasileira, na verdade, fez-se centralizando o momento democrático, político-institucional: a heterogênea frente que se opôs ao regime (e finalmente o derrotou em 1984-1985) encontrou seu elemento catalisador na luta contra o autoritarismo, que não só restringia os direitos humanos, as liberdades políticas e a livre manifestação dos interesses sociais como perturbava o prosseguimento da acumulação e jogava o país na mais profunda crise de sua história. Sempre foi preciso, portanto, fazer política em todos os níveis, buscar a construção de um consenso ativo entre as massas, insistir na consolidação e no progressivo alargamento dos espaços du30

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ramente conquistados – temas, digamos, quase “puramente” gramscianos. Alianças amplas, negociações, recuos táticos, transformações progressivas: as oposições democráticas só conseguiram progredir travando aquela prolon­gada “guerra de posição” que exige “qualidades excepcionais de paciência e espírito inventivo” (Gramsci). A incorporação do marxismo italiano ao longo da segunda metade dos anos 1970 não criou nenhum nexo de dependência intelectual no Brasil. O eurocomunismo não foi imitado ou grosseiramente copiado, mas tratado como elemento de vanguarda da moderna teoria socialista, uma espécie de ponte que permitia saltar as armadilhas do “marxismo-leninismo”. Deu-se, por assim dizer, reconhecimento pleno à tese de que já não mais existiam centros diretores da luta pelo socialismo ou modelos teóricos a serem seguidos ou “venerados”. A elaboração do PCI, portanto, não foi incorporada pela esquerda brasileira como um sistema fechado ou como “guia” para o encontro do caminho brasileiro para o socialismo, mas como uma contribuição a mais para adequar a teoria da transformação socialista aos quadros do capitalismo monopolista e da sociedade industrial de massas que se organizavam (com face muito peculiar) no Brasil. O marxismo italiano de matriz gramsciana estimulou uma expressiva revitalização dos estudos sobre a história brasileira. Agregou novas categorias e perspectivas ao entendimento do caráter autoritário e elitista assumido pelo processo de formação da nacionalidade e do desenvolvimento capitalista no Brasil, facilitando a compreensão de diversos de seus componentes superestruturais. As análises gramscianas do Risorgimento e do fascismo italiano (das quais derivam, entre outros, os conceitos de “revolução passiva” e 31

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

“revolução-restauração”), por exemplo, ajudarão sobremaneira a explicitar nuances decisivas da modernização conservadora reforçada pelo regime resultante do Golpe de 1964; requalificarão o conhecimento sobre o “atraso” brasileiro e iluminarão questões – o fortalecimento da sociedade civil, a nova forma do Estado, o “transformismo” dos políticos etc. – até então pouco consideradas pela intelectualidade. Será também particularmente significativo, o impacto de Gramsci sobre a ciência política, o serviço social e os estudos pedagógicos. Na esteira desta requalificação teórica, o marxismo italiano balizará muito do ajuste de contas que a esquerda brasileira irá empreender com seu próprio passado e sua própria tradição. Por força do caráter da modernização capitalista brasileira – expresso no predomínio do Estado como agente político, na marginalização das massas, no conservadorismo das elites dominantes, nas transições feitas “pelo alto”, no uso intensivo da violência e da cooptação –, a vida política nacional se intoxicou de golpismo e de autoritarismo. Parte integrante deste processo, a esquerda não teve como evitar seus efeitos e consequências, pois esteve obrigada a atuar com os dados oferecidos pela própria sociedade que queria transformar e era por eles contaminada. Além do mais, esteve sempre vitimada pelo marxismo doutrinário, terceirinternacionalista (especialmente aquele demarcado pela época de Stalin), que lhe impediu de analisar com independência, realismo e rigor científico a situação nacional. Acabou assim por construir uma tradição repleta de arrogância e de procedimentos autoritários e dogmáticos. Somente com o tempo, impulsionada pelo processo de redemocratização e pelas transformações socioculturais que a ele se seguiram, é que a 32

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

esquerda acertará o passo e se modernizará. O marxismo italiano a auxiliou sobremaneira nisso. Por sua visão arejada do Estado, da política e da luta pelo socialismo em países que já se deixaram tingir pelas cores do “ocidentalismo” (onde o Estado já não é tudo), por seu marxismo antideterminista e avesso a dogmatismos, o pensamento de Gramsci continua a ser de grande valia e utilidade para a análise dos problemas presentes da vida brasileira. Hoje, quase cinco décadas depois da publicação de seus primeiros livros no Brasil, e quinze anos após a saída da edição brasileira dos Quaderni coordenada por Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques, à qual pude me incorporar6, o balanço de sua contribuição é altamente positivo. Por isso tudo, deve-se saudar a publicação da presente coletânea. Ela mostra o pensamento de Gramsci “em ação”, sendo esgrimido criticamente por jovens pesquisadores atentos aos temas, problemas e dilemas do seu tempo. São intelectuais interessados não em adotar modelos ou fórmulas teóricas, nem em fazer a apologia deste ou daquele autor, mas sim em empreender um corpo-a-corpo com a realidade, valendo-se das ideias de Gramsci e buscando avaliar em que medida elas continuam a nos ajudar na interpelação criativa da vida.

6. COUTINHO, Carlos Nelson; HENRIQUES, Luiz Sérgio e NOGUEIRA, Marco Aurélio (eds.). GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. 6 Volumes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002. 33

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

I A América Latina com Lentes Gramscianas

35

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

A construção da perspectiva gramsciana de educação RODRIGO GOMES

Introdução O objetivo deste trabalho é discutir, em linhas gerais, as concepções e as propostas educativas de Antonio Gramsci, buscando resgatar suas raízes no pensamento de Karl Marx. Os lineamentos do que chamaremos de “concepção marxiana de educação”7 são inaugurados a partir de reflexões mais ou menos dispersas de Marx e Engels sobre o tema, desde meados do século XIX. Contudo, convém assinalar que Marx não era nem “pedagogo” nem “educador” em sentido restrito, mas aliou seus estudos e sua prática política revolucionária à reflexões críticas sobre o capitalismo de sua época, que não prescindiram da crítica da educação que as classes dominantes ofereciam à classe trabalhadora e de propostas para a questão. Mais do que uma concepção educativa exaustiva e sistematizada, as propostas de Marx inseriam-se num contexto mais amplo de luta pela garantia de uma educação de qualidade para os trabalhadores, tendo em vista a superação da divisão capitalista do trabalho e a liberação para um de7. Nesse sentido, “marxiano” distingue-se de “marxista”, que se refere àqueles e àquelas que reivindicam o legado de Marx. 36

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

senvolvimento amplo das potencialidades humanas, em diversas direções (“omnilateralidade”), a partir da redução do tempo dedicado ao trabalho socialmente necessário. Contudo, as propostas marxianas inseriam-se numa realidade capitalista brutal de exploração, na qual Marx lutava para melhorar as condições de vida dos trabalhadores. Assim sendo, percebemos que as propostas educativas de Marx tinham finalidades políticas bastante explícitas, sendo muitas das vezes diretamente expressas em programas partidários. Também assim ocorreu com Gramsci, que não era apenas um continuador da perspectiva marxiana do ponto de vista da tentativa de se relacionar as propostas educativas com o projeto social, mas também por manter o nexo fundamental da associação entre educação e trabalho para uma formação omnilateral. Entretanto, por viver num momento histórico razoavelmente distinto, Gramsci não foi (e nem poderia ter sido) um mero repetidor das fórmulas marxianas, adquirindo também uma particularidade que se vincula à singularidade mesma de sua concepção de marxismo: a “filosofia da práxis”. O contexto de Gramsci era outro: o golpe de Estado e o governo fascista, cuja reforma educativa elitista – que, paradoxalmente, considerava-se “democrática” – reforçava o distanciamento entre uma formação ampla (para os grupos dirigentes) e outra restrita à formação profissional da força de trabalho. Nesse momento de grande adversidade, quando se encontrava preso no cárcere fascista, Gramsci tentou aprofundar o tema da educação também visando a realização da disputa política num nível maior de complexidade.

37

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

A concepção marxiana de educação De acordo com Manacorda8, o primeiro momento em que se destaca um pensamento mais sistematizado sobre educação, por parte de Marx, é no Manifesto do partido comunista, de janeiro de 1848, um texto escrito a partir dos Princípios do comunismo de Engels, de dezembro 1847, para o II Congresso da Liga dos Comunistas. De fato, as concepções de Marx têm muita dependência do texto do segundo. A perspectiva de Engels é retomada resumidamente e em linhas gerais, por Marx, na redação final do Manifesto. A ideia básica é a da unificação entre educação e trabalho, que foi apropriada por Engels a partir das relações que este manteve com discípulos socialistas de Robert Owen, na Inglaterra dos anos de 1844-18459. Nos Princípios, Engels vê a educação como uma ferramenta no combate à divisão do trabalho, dado que uma instrução associada às atividades de todos os ramos industriais proporcionaria uma formação em múltiplas dimensões, combatendo a unilateralidade proporcionada pela divisão capitalista do trabalho: O ensino permitirá aos jovens acompanhar o sistema total de produção, colocando-os em condições de se alternarem de um ramo da produção a outro, segundo os motivos postos pelas necessidades da sociedade ou por suas inclinações. Eliminará dos jovens aquele caráter unilateral imposto pela atual divisão do traba8. MANACORDA, Mario A. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1991. p. 16. 9. NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber, produção em Marx e Engels. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1993. p. 107. 38

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

lho. Deste modo, a sociedade organizada pelo comunismo oferecerá aos seus membros a oportunidade de aplicar, de forma omnilateral, atitudes desenvolvidas omnilateralmente10.

Para Manacorda, tal perspectiva pedagógica está vinculada a uma dada concepção de mundo que se articula com um projeto de sociedade: Na origem dessa opção pedagógica está a hipótese histórica da divisão do trabalho e da consequente divisão não apenas da sociedade em classes, mas também do próprio homem, encerrado como está cada um em sua unilateralidade; está também a exigência da recuperação da unidade da sociedade humana em seu todo e da omnilateralidade do homem singular, numa perspectiva que une, ainda que num rápido aceno, fins individuais e fins sociais, homem e sociedade11.

Marx retomará novamente, com um tratamento mais específico, a questão da educação em 1866, quando redige suas “Instruções” aos delegados do comitê provisório de Londres, por conta do I Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), ocorrido em Genebra, naquele ano – ao qual o autor não pode comparecer por conta da finalização do Livro I de O capital, publicado no ano seguinte. Para Manacorda, as “Instruções são [...] indissociáveis da elaboração contemporânea de O capital” e “seu discurso atinge, pela 10. ENGELS, Friedrich apud MANACORDA (1991). Op. Cit. p. 18. 11. MANACORDA (1991). Op. Cit. p. 18. 39

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

primeira vez, uma autêntica e pessoal definição do conteúdo pedagógico socialista”12. Nesse texto, Marx destaca sua preocupação especial com as crianças e os adolescentes da classe trabalhadora, assinalando que sua pretensão é, nesse momento, confrontar-se com as tendências degradantes do incipiente trabalho industrial de sua época. Por conta disso, ele não entra em detalhes a respeito da educação das crianças menores de nove anos, limitando-se a dar indicações do quão limitada deveria ser a jornada de trabalho diária das crianças e adolescentes operários, divididos em três categorias: de 9 a 12 anos = 2 horas; de 13 a 15 anos = 4 horas; e de 16 e 17 anos = 6 horas. Nogueira procura contextualizar essa divisão categórica que Marx estipula sobre a jornada de trabalho por faixa etária das crianças e adolescentes, relacionando-a a Lei Fabril inglesa de 1843, quando foi limitado o emprego de trabalho infantil a partir dos nove anos de idade, sendo firmada também uma jornada máxima de nove horas diárias para crianças entre 9 e 13 anos e de doze horas para adolescentes de 14 a 18 anos. Assim sendo, para Marx, [...] o que importava, antes de mais nada, era defender a força de trabalho infantil da voracidade dos fabricantes, bem como dos abusos cometidos pelos próprios pais. No que tange a este último ponto, Marx sugere que, por um lado, os operários são obrigados – em razão de suas dificuldades materiais prementes – a ‘comercializar’ os seus filhos para obterem um salário suplementar, mas que, por outro, eles o fazem também porque lhes faltam conhecimentos mí12. Ibidem. p. 26. 40

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

nimos no campo do desenvolvimento físico e mental da criança13.

Entretanto, a proposta educativa de Marx nas Instruções, não se limita a uma resposta defensiva à exploração capitalista sobre as crianças, mas retoma também os fundamentos já contidos nos Princípios de 1847 e no Manifesto de 1848, da associação entre educação e trabalho, na medida em que Marx assume como um “progresso legítimo e razoável” a participação de crianças (a partir dos nove anos) e adolescentes junto dos adultos no processo produtivo necessário à vida social14. Assim sendo, para o autor, a sociedade apenas poderia permitir o emprego de crianças desde que combinado “trabalho produtivo com educação”. E uma educação num sentido bem definido: Por educação entendemos três coisas: 1) Educação intelectual. 2) Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares. 3) Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas dos diversos ramos industriais15.

13. NOGUEIRA (1993). Op. Cit. p. 150. 14. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Centauro, 2004. p. 67. 15. Ibidem. p. 68. 41

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Ainda para Marx, além de um princípio educativo, essa proposta ainda atingiria um objetivo sociopolítico, com a elevação “da classe operária acima dos níveis da classe burguesa e aristocrática”16. À respeito da combinação entre os momentos “intelectual” e “tecnológico” da proposta educativa de Marx, Manacorda faz a seguinte observação, que ajuda a iluminar a questão, não muito desenvolvida no texto do pensador alemão: [...] o ensino tecnológico não absorve nem substitui a formação intelectual. Essa última, por sua vez, não acha especificações nesse contexto como coisa que possa, num certo sentido, ser concebida mais ou menos segundo módulos tradicionais; ao passo que o ensino tecnológico aparece especificado com a indicação de seu aspecto teórico (mas não substitutivo de toda formação intelectual) e prático, um e outro abrangendo omnilateralmente os fundamentos científicos de todos os processos de produção e os aspectos práticos de todos os ofícios17.

Como já foi dito, Manacorda sugere que as Instruções possuem uma relação íntima com a revisão final d’O capital, que lhe corria em paralelo. De fato, no capítulo “Maquinaria e grande indústria”, Marx aponta os efeitos nocivos do trabalho industrial sobre os operários, em especial as crianças, que, por conta da Lei Fabril inglesa de 1844, ainda eram forçadas a passar mais “três horas dentro de quatro paredes de um local chamado de escola”, a qual, entretanto, não 16. Ibidem. p. 69. 17. MANACORDA (1991). Op. Cit. p. 27. 42

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

era dotada de recursos mínimos para a atividade educativa e tampouco de professores qualificados – como Marx pôde constatar a partir de relatórios de inspetores de fábrica britânicos. Contudo, nesses mesmos relatórios, Marx descobre que, quando atividades educativas ocorriam, os professores identificavam nas crianças operárias uma maior facilidade de aprendizado frente àquelas que ficavam inteiramente dedicadas aos estudos, donde ele tira uma conclusão inteiramente positiva da relação entre educação e trabalho (e “ginástica”): Por parcas que pareçam no todo as cláusulas educacionais da lei fabril proclamaram a instrução primária como condição obrigatória para o trabalho. Seu êxito demonstrou, antes de tudo, a possibilidade de conjugar ensino e ginástica com trabalho manual, por conseguinte, também trabalho manual com ensino e ginástica. Os inspetores de fábrica logo descobriram, por depoimentos de mestres-escolas, que as crianças de fábricas, embora só gozem de metade do ensino oferecido aos alunos regulares de dia inteiro, aprendem tanto e muitas vezes até mais. Do sistema fabril, como se pode ver detalhadamente em Robert Owen, brotou o germe da educação do futuro, que há de conjugar, para todas as crianças acima de certa idade, trabalho produtivo com ensino e ginástica, não só como um método de elevar a produção social, mas como único método de produzir seres humanos desenvolvidos em todas as direções18.

18. MARX, Karl. Maquinaria e grande indústria. In: ______. O Capital: crítica da economia política. Volume 1. Livro Primeiro. Tomo 2. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p. 86-87. 43

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

De acordo com Machado, a proposta de educação de Marx inseria-se dentro de uma perspectiva política dialética de agitar lutas por conquistas pontuais que, ao mesmo tempo, apontassem para além do âmbito do capitalismo, a partir do entendimento de que a superação deste modo de produção é resultado de contradições inerentes a ele próprio: Marx considerava fundamental as conquistas parciais. Ele acreditava que a despeito deste enorme potencial de desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, este processo, ao se realizar de forma contraditória, tinha limitações que tenderiam a se avolumar, abrindo a necessidade de sua solução, somente realizável através da superação do próprio modo de produção19.

Nesse sentido, Marx, no âmbito do movimento operário, distinguia-se tanto dos anarquistas quanto dos lassalistas (seguidores de Lassalle): os primeiros eram basicamente negativos frente às conquistas parciais, em especial aquelas que fossem garantidas e implementadas pelo Estado, enquanto que os segundos eram como que virtualmente o oposto dos anarquistas, isto é, tinham uma crença “servil” nas capacidades democráticas do Estado capitalista. Para Marx, ambas as posições tinham em comum a mesma resultante em termos práticos: “imobilismo político e desarticulação das massas”20.

19. MACHADO, Lucília R. S. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2 ed. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1991. p. 97. 20. Ibidem. p. 105. 44

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Finalizando esta seção, destacamos as seguintes palavras de Machado, que fornecem uma bela síntese geral da concepção marxiana de educação: O fundamento básico da concepção de educação de Marx parte da atividade material produtiva, do trabalho, pois esta constitui a primeira e essencial instância educativa do homem. Pelo trabalho o homem aprende a dominar a natureza, apreendendo todo o tipo de conhecimento que se faça necessário a esta tarefa. Ao conhecer e dominar a natureza, os homens acabam se conhecendo mais, pois precisam constatar o estágio de conhecimento já acumulado e disponível, necessitando identificar suas debilidades e criar recursos para dominar a sua própria natureza, adequando-as as exigências produtivas. Através do trabalho, o homem constrói o mundo e se constrói, interagindo com a natureza e com os outros homens. O resultado deste processo é fundamentalmente educação21.

A concepção gramsciana de educação O marxismo desenvolveu-se posteriormente à morte de Marx, mas seus desdobramentos foram os mais variados, nem sempre correspondendo com os fundamentos do pensamento originário. No âmbito do movimento operário, ainda que reivindicasse o legado de Marx, a II Internacional (criada após a dissolução da AIT, no último quartel do século XIX) levou a cabo uma política que mais se assemelharia ao las21. Ibidem. p. 128. 45

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

sallianismo, com a prioridade pela atuação interna ao Estado e admitindo mesmo a coalizão política com partidos burgueses. Em termos educacionais, a chamada “social-democracia” acabou mesmo por se manter restrita à defesa “da proposta liberal de escola unificada”22. Tal mudança política estava embasada numa interpretação, que se manteve hegemônica no âmbito do “marxismo”, de uma perspectiva economicista e fatalista que submetia a atividade política a uma suposta “maturação” das condições da estrutura econômica – baseada em pressupostos herdados das ciências naturais, de corte filosófico positivista. Assim sendo, enquanto as condições objetivas não estivessem “maduras”, o desenvolvimento capitalista era visto como positivo e a aliança política com a burguesia era mesmo desejável, submetendo o marxismo política e filosoficamente às concepções burguesas. É nessa atmosfera intelectual e política – depois acrescida de outra interpretação mecanicista do marxismo, oriunda da III Internacional dirigida pela União Soviética (URSS), sob o comando de Stalin – que se desenvolverá a especificidade da interpretação gramsciana do marxismo, que o autor chamava de “filosofia da práxis”. Gramsci busca resgatar a originalidade e afirmar a autonomia e “autossuficiência” da concepção de mundo inicialmente elaborada por Marx e Engels, com o intuito de reafirmar a importância da iniciativa política revolucionária. Além disso, o autor também reposiciona uma série de questões frente às interpretações mecanicistas do marxismo, das quais destacamos duas: 1) a relação entre subjetividade e objetividade, afirmando a importância da primeira, em especial no sentido da atividade política para 22. Ibidem. p. 223. 46

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

a transformação social; 2) a relação entre estrutura e superestrutura, com o desenvolvimento da perspectiva do “bloco histórico”, baseada no entendimento da “necessária reciprocidade” entre ambas, “reciprocidade que é precisamente o processo dialético real”23. A valorização das ideologias e da atividade política, relacionada à sua reposição da questão do nexo estrutura/superestrutura, está no fundamento da interpretação gramsciana do fenômeno da “sociedade civil”, associada à análise histórica do desenvolvimento das sociedades capitalistas centrais, que chamava de “ocidentais”. Nessas, a sociedade civil ter-se-ia desenvolvido a ponto de tornar pouco provável a conquista do poder político por parte da classe trabalhadora mediante um ataque frontal e em curto período de tempo – que Gramsci representava pela metáfora militar da “guerra de movimento”. Nas sociedades ocidentais, o processo revolucionário complexifica-se e a ação principal passa a ser a da “guerra de posição”, ou seja, a ocupação dos espaços da sociedade civil por parte da classe trabalhadora, orientada pela concepção de mundo da “filosofia da práxis”. O nexo conquistas parciais/superação do capitalismo, defendido por Marx, ganha maior complexidade. Nesse contexto, modifica-se também o papel da educação: Acompanhando a modificação geral que se processa na estrutura social, tal como exposta por Gramsci, a instituição escolar não deixa de sofrer alterações importantes, tornando-se também uma questão comple-

23. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedito Croce. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 251. 47

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

xa. Seu papel dentro da guerra de posição é incomparavelmente maior, relativo ao período da guerra de movimento, quando predominava o elemento militar e o ataque frontal. Para vencer a guerra, a instituição escolar passa a ser um elemento importante, ao lado de outros organismos civis, que passam a constituir ‘trincheiras’ e fortificações a resguardar e ampliar posições adquiridas24.

A educação para Gramsci tem, portanto, uma dimensão política muito ampla, pelo papel significativo que podem ter a organização escolar e a criação de uma nova cultura na reestruturação democrática da sociedade. Essa perspectiva de transformação começaria já no capitalismo e um dos meios importantes para isso seria a luta pela escola única para todos. Essa luta pressupõe, porém, a necessidade do entendimento de como se relacionam estrutura e superestrutura, para que possam ser avaliadas, com objetividade, as forças atuantes no processo e o peso relativo de cada uma25. Assim como Marx, a concepção gramsciana de educação é relativa a um dado contexto e se vincula ao projeto social. O contexto é a chegada do fascismo ao governo italiano na década de 1920 e a condução de sua reforma educacional, cujo principal inspirador era o “liberal-conservador” Giovanni Gentile, que “se baseava numa rigorosa distinção entre as escolas para as classes privilegiadas, com os tradicionais estudos humanísticos, e as escolas para as classes subalternas, limitadas a aprendizados profissionais especializados”. Com isso, foi aumentada a “discriminação e a limitação da instru24. MACHADO (1991). Op. Cit. p. 239. 25. Ibidem. p. 251. 48

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ção pela renúncia do Estado a instituir escolas e difundir a instrução”26. A crítica de Gramsci recai sobre a “fratura” imposta ao sistema escolar italiano pela reforma fascista, que, pondo em termos mais próximos da nossa linguagem, reforçaria e mesmo ampliaria a “dualidade escolar” da educação na Itália, com a reafirmação de uma escola de cultura geral, “desinteressada”, para a formação das elites dirigentes, e outra “interessada”, isto é, voltada para o atendimento imediato da formação de força de trabalho. Na base dessa reforma do ensino na Itália, Gramsci identificava a “crise profunda da tradição cultural e da concepção de vida e de homem”27 que embasavam a escola tradicional. Gramsci achava um paradoxo o fato de a reforma fascista ser apresentada como “democrática” frente à escola tradicional, de ensino humanista, fundamentada nas culturas grega e romana clássicas. Ele reconhecia o limite histórico e mesmo a necessidade de superação da escola tradicional, mas, ao mesmo tempo, ensaia quase que uma “defesa” dela, identificando a sua adequação aos propósitos que se colocava: a 26. MANACORDA, Mario A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992b. p. 331. Sobre o tema, são esclarecedoras as palavras do próprio Gentile: “um dos artigos fundamentais do meu e, permitam-me dizê-lo, do nosso credo pedagógico é este: que as escolas, para que possam funcionar, devem receber somente aqueles que possam entrar nelas com espírito desocupado, livre de segundas intenções, dispostos a procurar nelas a cultura pela cultura, a si mesmos e aquilo que pode ser. Para que isso se torne possível, é preciso que as escolas reduzam de muito seus efetivos escolares”. 27. (Q12, § 2, 1547). Reproduzo aqui a forma de citação que se tornou “convencional” entre os estudiosos de Gramsci a partir da “Edizione critica dell’Istituo Gramsci”, ou “Edição Gerratana”, em que “Q” representa os Quaderni del Carcere, seguido do número do referido Quaderno (neste caso, o nº 12), do respectivo parágrafo, sinalizado, a partir do próprio Gramsci, pelo símbolo “§”, seguido então da página correspondente à referida edição. 49

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

formação cultural dos setores dirigentes. Do conteúdo e da forma de ensino tradicionais, Gramsci destaca a instrução do latim e do grego antigos, que era acompanhada de um mergulho nas sociedades que lhes deram origem, de variações temporais nos seus usos, e de sua contextualização histórica. Ainda que se tratasse de línguas mortas, o método de seu ensino as tornava vivas, reforçando a cultura clássica como base de unidade nacional dos grupos dirigentes. Mesmo reconhecendo, no bojo da crise da tradição cultural desses grupos, a inadequação do ensino das línguas clássicas, Gramsci propunha a sua substituição por matérias ou grupos de matérias que mantivessem um espírito semelhante ao que embasava aquele ensino, que permitissem uma “formação geral da personalidade”, que fosse “desinteressado”, no sentido de não possuir “objetivos práticos imediatos ou muito imediatos”28. Para o autor, a escola tradicional era “oligárquica” por causa da sua limitação à formação dos grupos dirigentes – que sempre tendem a desenvolver um tipo de escola que lhe seja própria –, mas não por seus métodos de ensino. Assim sendo, Gramsci critica a profusão das escolas profissionais dos diversos ramos produtivos, oriundas simultaneamente à falácia “democrática” da reforma fascista, dada a sua tendência a “eternizar as diferenças tradicionais”29. Gramsci retoma, pois, a perspectiva marxiana (e de Engels) de enxergar a escola como um possível espaço de combate à cristalização da divisão do trabalho, acrescida da necessidade de formação dos trabalhadores também como dirigentes:

28. Ibidem. p. 1546. 29. Ibidem. p. 1547. 50

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Se se quer romper com esta trama [da escola tradicional], deve-se então não multiplicar e graduar os tipos de escolas profissionais, mas criar um tipo único de escola preparatória (elementar-média) que conduza o jovem até o limiar da escolha profissional, formando-o, nesse meio tempo, como homem capaz de pensar, de estudar, de dirigir e de controlar aqueles que dirigem30.

E, novamente, mas em outros termos, é colocada a questão marxiana da relação da proposta educativa com o projeto social: [...] a tendência democrática, intrinsecamente, não pode apenas significar que um operário manual torne-se qualificado, mas que qualquer ‘cidadão’ possa tornar-se ‘governante’ e que a sociedade lhe ofereça, ainda que ‘abstratamente’, as condições gerais que lhe permitam sê-lo; a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido do governo com o consenso dos últimos), assegurando a qualquer governado a aprendizagem gratuita da capacidade e da preparação técnica necessária a esse objetivo31.

Entretanto, ainda que defendesse, também para os trabalhadores, uma formação cultural ampla, que lhes permitisse desenvolver-se intelectualmente, adquirir hábitos de estudos e ter a capacidade de serem dirigentes, Gramsci defendia, no 30. Ibidem. p. 1547. 31. Ibidem. p. 1547-1548. 51

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

âmbito do sistema escolar, o vínculo dessa instrução com o trabalho. Assim sendo, a escola “elementar” deveria travar uma “luta contra o folclore”, isto é, contra as manifestações da tradição que as crianças tendem a reproduzir mais ou menos espontaneamente, a partir do ensinamento tanto das leis sociais (ordenamento jurídico, direitos e deveres etc.), quanto das leis naturais. No processo educativo, dever-se-ia mostrar aos estudantes que essas duas “legalidades” são de distintas naturezas: enquanto as primeiras seriam uma obra social e, portanto, passíveis de serem modificadas pelas pessoas, as segundas seriam “automáticas”, tratando-se de conhecê-las para melhor dominá-las. Esse domínio, por outro lado, é oriundo da atividade prática e da transformação ativa da própria natureza, isto é, o trabalho; contudo, para que o trabalho social possa operar regularmente, tornam-se necessárias as leis sociais para ordenar a vida em sociedade, ordem essa que, para Gramsci, deveria ser um resultado de convenções acordadas entre as pessoas, combatendo a necessidade da coerção32. Posto isso, o “conceito de trabalho” tornava-se, então, o “princípio educativo” dessa escola: “o conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola elementar, porque a ordem social e estatal (direitos e deveres) é a partir do trabalho introduzida e identificada na ordem natural”33. Tal era o objetivo da escola elementar organizada sob o fundamento do conceito de trabalho: O conceito do equilíbrio entre a ordem social e a ordem natural sob o fundamento do trabalho, da ati32. Ibidem. p. 1540-1541. 33. Ibidem. p. 1541. 52

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

vidade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo, liberada de qualquer magia e bruxaria, e confere o ponto de apoio ao desenvolvimento ulterior de uma concepção histórica, dialética, do mundo, à compreensão do movimento e do devir, à valorização da soma dos esforços e dos sacrifícios que o presente deve ao passado e que o porvir deverá ao presente, a concepção da atualidade como síntese do passado, que se projeta no futuro34.

De acordo com Manacorda, essa concepção gramsciana do conceito de equilíbrio, no processo educativo, entre as leis naturais e as leis sociais, seriam resultados de um “novo humanismo”, que se concretizaria como “humanismo do trabalho”, quando Gramsci propor-se-ia “aprofundar o conceito de escola unitária, em que a teoria e o trabalho estão estreitamente unidos”35. Tal articulação comporia mesmo a perspectiva propriamente gramsciana de educação: [...] é tipicamente gramsciano o modo em que a sua proposta de trabalho como princípio e fundamento da escola elementar emana da análise do conteúdo educativo do ensino de base, à conclusão de um discurso que parte da diferenciação de dois elementos educativos fundamentais: ‘as primeiras noções de ciências naturais e as noções de direitos e deveres do cidadão’36. 34. Ibidem. p. 1541. 35. MANACORDA (1992b). Op. Cit. p. 243. 36. Idem. (1991). Op. Cit. p. 136. 53

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

A defesa que Gramsci faz da relação entre educação e trabalho está numa base de análise semelhante à de Marx, mas realizada em outro contexto: o lado positivo da modernização industrial para as sociedades contemporâneas. No caso, os dois exemplos que o autor observa com mais atenção são as incipientes iniciativas do Estado Soviético e o fenômeno do “americanismo” – o esforço de desenvolvimento industrial acelerado nos Estados Unidos. No primeiro caso, Gramsci retoma o debate a respeito da necessidade ou não de um desenvolvimento industrial acelerado na URSS, com as consequências negativas que lhe seriam advindas, em especial a defesa de Trotsky a respeito da “militarização do trabalho” – um esforço de disciplina sobre os trabalhadores bastante fundamentado na coerção. No caso do americanismo, Gramsci destacava as práticas coercitivas implementadas pelo advento da forma organizativa fordista, que exigia uma nova constituição psicofísica do trabalhador, “espremido pelo novo método de produção”37, visando evitar seu o colapso. Gramsci via ambas as tendências industrialistas como positivas, por conta de seus resultados objetivos e mesmo na formação de um novo homem, mas, ao mesmo tempo, censurava em ambas seus excessos, em especial o controle sobre a vida dos trabalhadores, inclusive fora do âmbito da produção38. Entretanto, Gramsci não acreditava na existência de um processo social moderno, completamente isento de coerção, sendo bastante crítico ao “espontaneísmo” e ao individualismo: para o autor, a própria socialização “espontânea” é uma forma de coerção (é nesse sentido que deve ser entendida a 37. GRAMSCI, Antonio apud MANACORDA (1992b). Op. Cit. p. 168. 38. MANACORDA (1992b). Op. Cit. p. 165-169. 54

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

já referida “luta contra o folclore”). O autor, portanto, negava na criança qualquer “‘força latente’ originária, já por si mesma orientada, independente das sensações e das imagens que a criança acumula desde os seus primeiros instantes da vida”39. Nesse sentido, em Gramsci, [...] os valores da disciplina intelectual e moral, que se opõe ao autodidatismo e à licenciosidade, estão identificados com a concepção de uma cultura e de um modo de vida modernos, ligados aos novos sistemas de produção, e como isso se conecta a vida de uma atividade prática embebida de caráter científico e de uma ciência capaz de produzir etc.40.

A perspectiva política da concepção educativa de Gramsci Para Nosella, a proposta gramsciana de educação é correspondente a um projeto de sociedade politicamente orientado: “trata-se de uma possível proposta educacional do Partido Comunista para a sociedade italiana, isto é, expõe-se nesse texto uma política educacional alternativa que seria implementada caso os comunistas conquistassem o Estado”41. Aqui, a identidade com as propostas educativas marxianas são bem claras; alguns dos principais textos de Marx sobre educação são programas partidários – o Manifesto

39. Idem. (1991). Op. Cit. p. 141. 40. Idem. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. 3 ed. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1992a. p. 162. 41. NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992. p. 109. 55

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

do Partido Comunista e as Instruções aos delegados da AIT, por exemplo. Frente à crise das tradições culturais dos grupos dominantes italianos, que teve como uma de suas consequências a crise da própria escola tradicional, as alternativas por dentro da ordem, principalmente a moderna “pedagogia ativa”, não conseguiam oferecer uma “alternativa pedagógica adequada”. Para Nosella, assim seria, hipoteticamente, o raciocínio de Gramsci – reivindicando uma experiência da juventude com os operários em Turim, durante o “biênio vermelho” (uma série de mobilizações operárias que, dentre outras ações, implementaram experiências de auto-organização da produção nas fábricas): [...] cabe a nós, isto é, ao Partido que representa a classe social historicamente emergente, oferecer a correta solução da crise pedagógica, como de fato já ensaiamos fazer, diz ele, com sucesso, na ‘escola’ de Ordine Nuovo (1919-1920), instituição formativa desinteressada, que substituiu o fulcro pedagógico do ensino tradicional do grego e do latim (a civilização antiga e a lógica gramatical) por um novo fulcro pedagógico, isto é, a civilização moderna do trabalho industrial através do estudo da técnica-ciência (tecnologia) à luz da história do trabalho42.

Ou seja, para Nosella, Gramsci acreditava já haver realizado a experiência da “escola unitária” com os operários de Turim, ao menos de forma embrionária. Além dessas experiências de organização direta com os trabalhadores ita42. Ibidem. p. 109. 56

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

lianos, Manacorda relembra a importância de Lenin para a continuidade das perspectivas educativas de origem marxiana, e para Gramsci, em particular. Segundo Manacorda, as teses pedagógicas de Marx “não exerceram influência pedagógica direta sobre o pensamento pedagógico moderno e sobre a organização das instituições escolares até o momento de sua retomada por parte de Lenin e da sua admissão como base do sistema escolar do primeiro Estado socialista”. O dirigente comunista russo fora “o primeiro e o único a retomar essa análise marxiana”43 – pelo menos até Gramsci. Sabendo que esse viveu na URSS por um breve período na década de 1920, é possível perceber em suas propostas a influência de sua experiência soviética, a primeira tentativa prática de implementação da perspectiva marxista de educação, que auxilia na compreensão, também, da filiação política das propostas gramscianas44. Considerações finais: proximidades e distâncias entre Marx e Gramsci Neste artigo, procuramos interpretar a concepção gramsciana de educação, destacando as proximidades entre a perspectiva de Gramsci e a de Marx, buscando, portanto, localizar as propostas do autor italiano enquanto um representante da “tradição marxista”. E, de fato, podemos concluir, a partir das questões e das respostas colocadas por Gramsci que a filiação àquela tradição é bastante marcante quanto às propostas educativas: a educação contra a divisão capitalista do trabalho, o próprio nexo educação-trabalho, a perspectiva de 43. MANACORDA (1991). Op. Cit. p. 40. 44. Idem (1992a). Op. Cit. p. 148-151. 57

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

um desenvolvimento mais amplo possível do ser humano (omnilateralidade) e a “politização” das propostas educativas. Entretanto, cabe aqui, nestas considerações finais, também ressaltar as diferenças entre as concepções marxiana e gramsciana de educação, que, como já salientado, não poderiam ser idênticas, dada a distinção dos contextos de seu surgimento. Comecemos pelo próprio elemento que afirmo ser o cerne da concepção marxista (tanto de Marx quanto de seus continuadores) de educação: a associação entre a formação intelectual e o trabalho. Em Marx, devido à prática histórica recorrente do emprego de crianças e adolescentes no processo produtivo, aquela associação está referida a partir do próprio exercício do trabalho industrial desses jovens nas fábricas capitalistas, enquanto que Gramsci “não fala de trabalho industrial, de inserção das crianças na fábrica, mas sim de desenvolver nelas a ‘capacidade de trabalhar’ industrialmente, num processo escolar coordenado com a fábrica, mas dela autônomo”45. Outra distinção significativa é em relação ao conteúdo do ensino. Gramsci defende um ensino elementar, que tenha como base o “equilíbrio” entre o ensino das leis sociais e das leis naturais, sob o fundamento do “conceito do trabalho” – e não há como supor que o ensino dos “direitos” e “deveres” dos cidadãos não seja acompanhado de algum nível de “partidarização”. Contudo, para Marx, “apenas matérias como ciências naturais, gramática etc., podem ser ensinadas na escola”, porque essas não mudariam “quando explicadas por um crente tory ou por um livre pensador”, pois, afinal, “matérias que admitem conclusões diferentes não devem ser 45. Idem (1991). Op. Cit. p. 137. 58

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ensinadas na escola; delas podem ocupar-se os adultos sob a orientação de professores”46. Aqui, Marx deixa o desenvolvimento da concepção de mundo das crianças e adolescentes a cargo do “espontaneísmo” do meio ambiente, cabendo apenas aos adultos o estudo de matérias “partidarizadas” – e esta seria uma particularidade de Marx inclusive em relação a Engels47. Por fim, cabe destacar que as propostas educativas de Gramsci são mais detidas e meditadas, articuladas ao maior nível de complexidade que ele julgava ser necessário para a disputa política socialista em sua época. Com o advento da “sociedade civil” (partidos, sindicatos, imprensa de massas etc.), na qual se enquadrava a própria escola, que, mesmo sendo estatal, não necessariamente precisa ser governamental (uma ideia de Marx), a educação passava a ser enxergada a partir do fundamento da disputa de hegemonia, que, segundo Nosella, estava nos marcos de um suposto programa partidário de poder comunista, e contrário à reforma escolar fascista. Entretanto, ainda que as diferenças sejam salientadas, ressalto, junto com os demais autores (Manacorda, Nosella e Machado), que Gramsci certamente inclui-se entre os continuadores da proposta educativa marxista, em especial, a partir da influência da reapropriação de Lenin das concepções marxianas.

46. MARX, Karl apud MANACORDA (1991). Op. Cit. p. 90. 47. NOGUEIRA (1993). Op. Cit. p. 159. 59

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Referências Bibliográficas GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Volume Terzo. Quaderni 12-29 (1932-1935). Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura de Valentino Gerratana. Torino: Giulio Einaudi editore, 1975, 2001, 2007. ______. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedito Croce. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. MACHADO, Lucília R. S. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2 ed. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1991. MANACORDA, Mario A. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1991. ______. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. 3 ed. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1992a. ______. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992b. MARX, Karl. Maquinaria e grande indústria. In: ______. O Capital: crítica da economia política. Volume 1. Livro Primeiro. Tomo 2. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Centauro, 2004.

60

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber, produção em Marx e Engels. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1993. NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992.

61

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Líder comunitário e classes subalternas: transformações e conflitos no universo político das favelas cariocas. ROGÉRIO SOUZA

Introdução A função histórica exercida pelas lideranças comunitárias dos moradores de favelas, ou seja, a função de líder comunitário é em sua essência uma função política. Uma função que busca com suas ações enfrentar a condição de subalternidade imposta aos moradores de favelas ao longo de sua história. Essa atividade eminentemente política, de representante de um grupo, caracteriza a atribuição primordial do “intelectual orgânico” do grupo subalterno. Uma função que atua na confluência da consciência e da eloquência; falar “a verdade àqueles que não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-las”48. Consciência e eloquência adquiridas na ausência, na falta e na diferença; no tratamento violento e simbólico que marcaram as lutas dos moradores de favelas e suas lideranças. Destarte, este artigo tem como propósito traçar uma análise gramsciana sobre o papel político exercido pelos moradores de favelas, entendidos como “grupos subalternos” e 48. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 70-71. 62

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

suas lideranças no processo histórico de lutas sociais na cidade do Rio de Janeiro. Busca-se por meio das categorias analíticas, tais como: intelectual orgânico, grupos subalternos, hegemonia e transformismo molecular, desenvolvidas na obra de Antonio Gramsci, apresentar e analisar o processo histórico de lutas dos moradores de favelas salientando o papel exercido pelas lideranças comunitárias, bem como as mudanças ocorridas no mecanismo de representatividade dessas lideranças comunitárias a partir das primeiras décadas da redemocratização brasileira, com o surgimento do chamado “agente comunitário”. Para tanto, além de toda bibliografia teórica e dos documentos que nos remetem às primeiras organizações de luta dos moradores favelas da cidade do Rio de Janeiro nos anos de 1940, este artigo conta com um conjunto de entrevistas, anotações, relatos oriundos da pesquisa de campo e de inúmeras atividades de observação participante, realizadas durante os anos de 2002 até 2008 num conjunto de favelas cariocas49. Como se trata de um esforço analítico em aplicar a teoria gramsciana num caso concreto – as lutas de moradores de favelas do Rio de Janeiro e suas lideranças comunitárias – organizou-se estruturalmente este artigo a partir de dois grandes eixos temáticos. O primeiro eixo, de cunho mais conceitual e teórico, discute o papel do “intelectual orgânico” gramsciano, sua importância política e sua função pedagógica na luta de classe dos grupos subalternos. Além disso, busca-se uma aproximação/aplicação da categoria conceitual “grupo subalterno” numa conjuntura histórica de lutas 49. No período de 2002 até 2008 foram realizadas inúmeras entrevistas e pesquisa de campo em cinco favelas na cidade do Rio de Janeiro. Toda essa pesquisa empírica fez parte da minha tese de doutoramento em Ciências Sociais, defendida em novembro de 2009 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). 63

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Já o segundo eixo, intenciona analisar historicamente o processo de luta dos moradores de favelas cariocas à luz dos conceitos gramscianos, bem como discutir as mudanças ocorridas nas formas de representação política através do material empírico já mencionado. O intelectual e a política Na concepção weberiana, o intelectual moderno instituiu-se como ator social na esfera pública no exato momento em que se “desencanta com o mundo”: o mundo dos dogmas e dos estamentos hereditários que serviam à sustentação do Estado absoluto. É na busca de um conhecer por conhecer, que se produzirá, ou se buscará produzir um campo autônomo, o campo do conhecimento. A expansão dessa concepção de autonomia influenciará os inúmeros campos do saber: a filosofia, a arte, a ciência, a história, a literatura etc. Consequentemente, o intelectual se colocará como figura importante no processo de legitimação desse saber autônomo, que na busca da desvinculação dos sistemas tradicionais de poder como a Igreja e o Estado, terá o espaço público e a sociedade civil como palco de sua publicização. Gramsci dividiu os intelectuais em dois tipos: tradicionais e orgânicos. Enquanto estes (os empresários no capitalismo atual, por exemplo) seriam o grupo social que surge em estreita ligação com o aparecimento/desenvolvimento de uma classe determinante no modo de produção econômico, os tradicionais (como, por exemplo, os eclesiásticos, orgânicos no feudalismo) seriam um grupo que no passado já fora uma categoria de intelectuais orgânicos de uma determina64

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

da classe, mas que hoje formam uma camada com independência e autonomia relativas. Os intelectuais tradicionais são aqueles ainda “presos” a uma formação socioeconômica superada, estão “fora do seu tempo”. Para Gramsci, os intelectuais tradicionais eram aqueles cristalizados no campo do Sul da Itália: o clero, os funcionários, a casa militar, os acadêmicos, voltados a manter os camponeses vinculados a um status quo que não fazia mais sentido. Os dois tipos de intelectuais têm como função conferir homogeneidade à consciência da classe ao qual se vinculam, organicamente (no caso dos intelectuais orgânicos) ou por adesão (no caso dos intelectuais tradicionais). Com isso, esses intelectuais preparam a hegemonia de uma classe sobre o conjunto dos seus aliados, sendo agentes da consolidação de um bloco histórico. É importante frisar que classes sociais antagônicas – burguesia e operariado –, forjam e “disseminam” seus próprios intelectuais orgânicos. Em relação aos “de baixo”, através da organização/união de sindicatos, são capazes de organizar uma representatividade política, dando corpo às ideias da classe proletária na materialidade de um partido político representante da classe trabalhadora. Seria esse agente da vontade coletiva que conduziria os trabalhadores à revolução social. O intelectual revolucionário estaria organicamente vinculado ao partido revolucionário formando um só corpo. Para Gramsci, a dinâmica e a complexidade das sociedades capitalistas modernas estabeleceriam novas formas de intelectuais orgânicos, vinculados às estruturas produtivas em diferentes níveis hierárquicos de atuações. Esse novo intelectual, diferentemente do intelectual clássico, deixaria de se constituir na eloquência e na neutralidade, mas se inseri65

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ria na vida pública através da prática política, da organização das massas, nas manifestações dos partidos políticos etc. Os novos intelectuais fariam do espaço público seu palco e a sociedade civil seu público alvo; seriam eles os responsáveis em retransmitirem as ideologias dos grupos em que representam às grandes camadas da população, ou seja, a massa. E é nesse sentido que se pode pensar o líder comunitário como ator responsável em organizar e publicizar as lutas e demandas dos moradores de favelas. Exerce, portanto, função de orientação, organização e ação política – e como destacara Gramsci – uma função pedagógica, função intelectual. Favelados e Classe ou Grupos Subalternos: uma aproximação teórica Como teorizou Georg Lukács em História e consciência de classe, é a partir do reconhecimento de sua situação historicamente estruturada que determinada classe poderá, primeiramente, esclarecer com discernimento o todo social em que está opressivamente posicionada, para assim resolver o conjunto de problemas que foram constituídos ao longo do processo histórico: “[...] o destino de uma classe depende de sua capacidade de esclarecer e resolver, em todas suas decisões práticas, os problemas que lhe impõe a evolução histórica”50. Além disso, Lukács aponta para outra questão: em que medida uma determinada classe realiza consciente ou inconscientemente “as tarefas que lhe são impostas pela história”, e assim sendo, em que medida essa consciência é fal50. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 146-147. 66

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

sa ou verdadeira?51. Entretanto, Gramsci rejeitará a visão da ideologia como falsa consciência, separando o que seriam as ideologias historicamente orgânicas das especulações individuais como forma de visão de mundo. Eagleton52, ao inferir sobre a obra de Gramsci, destaca que, assim como Marx, o pensador italiano rejeita qualquer redução economicista de ideologia e afirma que “[...] as ideologias devem ser vistas como forças ativamente organizadoras que são psicologicamente ‘válidas’”53. E, deste modo, agem estruturando ações individuais e coletivas; a partir das lutas os indivíduos vão tomando consciência de suas posições nas estruturas de poder, seja econômica, política ou social. Corroborando com a análise de Eagleton a respeito da visão de consciência de classe e da ideologia em Gramsci, Coutinho acrescenta que, para Gramsci, a ideologia faz parte de uma realidade prática, ou seja, independentemente das ideias serem verdadeiras ou não, quando elas são incorporadas às massas, são transformadas em poder material: [...] Gramsci pensa que, independentemente de ser verdadeira ou não em sentido epistemológico, ‘a teoria se transforma em poder material logo que se apodera das massas’. Nessa medida, há coisas que, epistemologicamente, ou seja, do estrito ponto de vista da teoria do conhecimento, podem não ser verdadeiras, mas que – do ponto de vista ontológico-social – são fatos reais. Por exemplo: se um número substantivo de membros de uma sociedade acredita em Deus, 51. Ibidem. p. 147. 52. EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997. p. 108-110. 53. Ibidem. p. 109. Grifo meu. 67

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Deus existe socialmente, independentemente de sua existência ou não no plano da ontologia da natureza. Os valores sociais, as religiões, as ideologias, as concepções do mundo, na medida em que são fenômenos de massa, em que se tornam momentos ideais de ação de sujeitos coletivos, são uma ‘verdade’ socialmente objetiva [...]54.

Essas proposições que partem da análise de Gramsci sobre consciência de classe e ideologia se colocam como ponto capital da minha argumentação, pois possibilita pensar o “favelado” como sujeito histórico, a despeito da sua condição de subalternidade, pois, como define Gramsci, “os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e insurgem”55. Neste sentido, os grupos ou classes subalternas serão aquela parte da sociedade civil que sempre sofrerá o domínio ideológico (econômico, político, militar e cultural) dos grupos hegemônicos56. A construção teórica da categoria “subalterno”, em Gramsci, parte dos estudos dos grupos historicamente postos à margem da história da Itália. Para o pensador sardo a história desses grupos foi “desagregada e episódica”, porém, em sua práxis forjaram-se unificações, mesmo que momentâneas. Gramsci destaca que o caráter desagregado da classe subalterna se dá pelas fortes interferências dos grupos e classes dominantes. Mesmo quando estes promovem vitórias 54. COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2008. p. 107. 55. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 5: O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 135. 56. BARATTA, Giorgio. Gramsci em contraponto: Diálogos com o presente. São Paulo: UNESP, 2010. p. 168. 68

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

e rompimentos frente à dominação das classes dominantes, Gramsci afirma que esta situação apenas sinaliza para um estado de defesa, um momento de espera. Em Gramsci, a emancipação dos grupos subalternos e suas unificações só se darão, em seu resultado concreto, quando se tornarem “Estado”, juntamente como a sociedade civil, pois a história dos grupos subalternos está entrelaçada à sociedade civil. Esses grupos subalternos, exercem uma função desagregadora e descontínua da história da sociedade civil, e por isso o estudo desta classe subalterna é também o estudo da própria sociedade civil e “dos Estados e grupos de Estados”57. Isabel Monal, num pequeno ensaio, discute a relevância dos trabalhos de Gramsci para o estudo das classes e grupos subalternos na contemporaneidade, principalmente num contexto ideológico de “posição pós-moderna”, isto é, um momento em que a pluralidade e a multiplicidade de objetivos políticos e propostas identitárias levam a uma desagregação dos grupos subalternos. Para a autora, diante dessa multiplicidade de questões, essa posição política da pós-modernidade causaria uma maior desagregação entre as classes e grupos subalternos, incapacitando-os para elaboração de um projeto com ações políticas mais efetivas, fazendo com que eles mantenham-se em suas subalternidades e marginalidades58. Monal aponta que em vários momentos da obra gramsciana aparece a questão política das classes e grupos subalternos, sendo os Cadernos do Cárcere o espaço em que tal temática surge com maior destaque. Inicialmente, Gramsci 57. GRAMSCI (2002). Op. Cit. p. 131-141. 58. MONAL, Isabel. Gramsci, a sociedade civil e os grupos subalternos. In: COUTINHO, Carlos Nelson e TEIXEIRA, Andréa de Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 196. 69

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

trabalhará utilizando indistintamente os dois termos: classe ou grupos subalternos. A partir do Caderno 13 Gramsci passará a empregar mais o termo “grupo subalterno”. Entretanto, ainda segundo Monal, é só no Caderno 25 que o pensador italiano utilizará com maior ênfase o termo em questão. Essa transição terminológica da utilização de “classes” para “grupos subalternos” é uma tomada de consciência de Gramsci que indicaria uma questão metodológica significativa em sua teoria, na qual o conceito de subalternidade é mais amplo e abrangeria tanto as classes quanto os grupos no interior das classes59. Para a autora, “[...] há em Gramsci uma ampliação do ângulo de visão, o que permite captar melhor a heterogeneidade social dos subalternos”60. Desta forma, Monal abriria espaço para a utilização da teoria de Gramsci, juntamente com sua metodologia, nas questões contemporâneas dos grupos denominados minorias, pois, como conclui a autora, o conceito ampliado de “subalterno” inseriria “as classes exploradas e, em geral, o conjunto dos oprimidos e dos marginalizados, que em grande medida atuam como parte desses movimentos sociais no corpo da sociedade civil”61. Ao analisar com destaque a questão dos subalternos, no Caderno 25, Gramsci propõe vários eixos metodológicos, levando sempre em consideração o processo histórico e as implicações políticas, econômicas e sociais em conjunto com a sociedade civil e o Estado. Desse conjunto de eixos, destacam-se três como importantes para compreensão dos favelados como classe ou grupos subalternos: o primeiro é a necessidade do estudo da formação objetiva dos grupos so59. Ibidem. p. 197. 60. Ibidem. p. 197. 61. Ibidem. p. 197. 70

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ciais subalternos, levando-se em conta o desenvolvimento e as transformações ocorridas no mundo da produção econômica, mantendo em perspectiva a difusão quantitativa e ideológica. O segundo é o estudo da “adesão ativa ou passiva” das classes subalternas às formações políticas dos grupos dominantes, como também as formas de interferirem politicamente nos programas impostos pela classe dominante, ora impondo reivindicações próprias, ora submetendo-se as negociações. Esse segundo eixo possibilitará pensar as consequências resultantes das lutas por propostas próprias ou as adesões negociadas junto ao governo, observando se no processo histórico tais determinações provocaram decomposição, renovação ou novas formações62. O terceiro eixo proposto por Gramsci no estudo dos subalternos diz respeito à necessidade do estudo da formação e constituição própria dos grupos subalternos, quando lutar por suas reivindicações, sejam elas restritas ou parciais, como também buscar “autonomia integrais”63. De acordo com Baratta, pensar a expressão “subalternos” é ir além das relações econômicas (luta de classes), e também políticas e culturais (ideologia e hegemonia). No entanto, como veremos adiante, as lutas dos moradores de favelas a partir dos anos 1940 surgem como um movimento aparentemente autônomo, consciente e determinado a organizar-se como ator político na luta por distribuição e reconhecimento, mas que por seu caráter “necessariamente desagregado e episódico” tal unificação autônoma e consciente se mantém em estado de espera64. Apesar de a história 62. Ibidem. 63. Ibidem. 64. GRAMSCI (2002). Op. Cit. p. 135. 71

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

das favelas e da luta dos seus moradores por direito à cidade remeterem às primeiras décadas do século XX, foi só partir da década de 1940 que os governos municipais e estaduais da cidade iniciaram uma série de políticas públicas com intuito de erradicar as favelas da cena pública da cidade. Nos anos 1960 essas políticas radicalizam-se com um movimento intenso de remoções de favelas. É nesse processo que surge um movimento político e social de luta dos moradores de favelas contra essas políticas de controle e remoção. Uma luta contra-hegemônica, apesar da grande dificuldade de unificação e transformação desta em objetivos conscientemente políticos e da grande dificuldade da formação de quadros (intelectuais orgânicos). Tais lutas trouxeram à cena pública, mesmo que momentaneamente, a realidade concreta da vida e das necessidades desse grupo historicamente subalternizado, os favelados. As lutas dos moradores de favelas do Rio de Janeiro e a formação das suas lideranças O direito à cidade é constituinte da própria história da cidade do Rio de Janeiro, consequentemente, as lutas e reivindicações políticas dos moradores de favelas e as ações de suas lideranças fazem parte desta história. Como argumenta Castells, “toda forma de matéria possui uma história ou, melhor ainda, ela é sua própria história”65. Historicizar esse movimento é também buscar o entendimento da própria cidade. Cidade que é entendida não como um espaço abstrato e racionalmente modelado, mas como resultado de um pro65. CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 35. 72

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

cesso histórico, como uma combinação de política e ideologia, de poder e luta de classes, como teoriza Lefebvre ao afirmar que o “espaço é um produto da história”. Portanto, deflagra-se uma disputa entre grupos de interesses diversos, que buscam apropriar-se dele – o espaço – “para geri-lo, para explorá-lo”66. A busca da ordenação do espaço da cidade é por assim dizer a luta pela dominação do capital, que se reproduz nesse espaço. É a luta pela dominação de classes. Ordenar significa também estabelecer direitos e deveres. Quem tem acesso e quem está excluído. Quem se apropria do resultado do excedente socialmente produzido e quem deixa de se apropriar. Foi a partir da luta por espaços físicos da cidade, da proximidade do trabalho e dos meios necessários à subsistência que os moradores de favelas passaram a lutar por sua permanência e por sua legitimidade enquanto membros da cidade. Assim sendo, o pano de fundo que constituirá a luta política e as ações dos líderes de moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro se dará na tensão existente entre os interesses objetivos do modo de produção capitalista, quando esse busca a apropriação do espaço urbano, com a luta política dos trabalhadores e moradores de favelas, que buscam o direito à cidade. Gramsci afirma que na história dos grupos subalternos sempre há a intervenção dos grupos dominantes e que mesmo quando há vitórias desses grupos, se elas não forem “permanentes”, sempre haverá a subordinação. “[...] Na realidade, mesmo quando parecem vitoriosos, os grupos subalternos estão apenas em estado de defesa, sob alerta”67. O filósofo sardo também coloca que no processo histórico 66. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2008a. p. 62. 67. GRAMSCI (2002). Op. Cit. p. 135. 73

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

dos grupos sociais subalternos, existem necessariamente desagregação e ações episódicas. No entanto, para ele, isto não impede que no processo histórico destes grupos haja “tendência à unificação, ainda que em termos provisórios”68. Devido à necessidade de síntese, meu ponto de partida é a década de 1940. Foi a partir desse período que a cidade do Rio de Janeiro foi marcada pelos programas de construção dos chamados parques proletários, que seria uma solução às moradias insalubres que ocupavam regiões do Centro e Zona Sul da cidade, tendo o Código de Obras do Distrito Federal de 1937, como marco jurídico e operacional do poder público, que teve à frente o prefeito Henrique Dodsworth (1937-1945). O Código de Obras (Decreto nº 6000/37) visava dar continuidade ao processo de adensamento e verticalização das construções da cidade, iniciadas nos anos 1920. Com o novo código, foram criados novos zoneamentos, mais detalhados, prioritariamente nos bairros centrais da cidade69. Além da proposta de novos zoneamentos, o Código de 1937 traçou uma leitura sobre os aglomerados urbanos considerados irregulares, ou seja, as favelas. Estas foram consideradas como um mal social que deveria ser extraído do cenário urbano, transferindo sua população para os parques proletários. Como já exposto, é a partir da tensão entre a luta por direito à cidade dos favelados e a apropriação dos espaços da cidade pelo capital que os movimentos de moradores de favelas tornam-se mais atuantes na cidade, com suas lutas transformando-se em lutas eminentemente políticas. Outro fator que torna as ações dos moradores de favelas 68. Ibidem. p. 135. 69. RESENDE, Vera F. Planos e regulação urbanística: a dimensão normativa das intervenções na cidade do Rio de Janeiro. In: OLIVEIRA, Lucia Lippi (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 256-281. p. 262. 74

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

em ações políticas é a crescente publicização e utilização do espaço público para a divulgação e exigências de suas inúmeras demandas. Publicizar os interesses de um grupo subalternizado numa sociedade é tornar políticos seus interesses coletivos e, ao torná-los públicos, tais interesses passam a ser também objeto de discussão política da cidade, do governo e da sociedade em geral. Em se tratando de uma luta por justiça, a luta dos favelados e de seus representantes se estrutura num movimento histórico, ultrapassando questões individuais de um líder ou uma favela específicos. Trata-se de um movimento orgânico, tal qual define Gramsci. Orgânico por se colocar com relativa permanência, diferenciando-se dos movimentos de conjuntura. Estes, por sua vez, possuem um alcance histórico extremamente limitado, mas nem por isso sem importância. É no processo dialético desses dois princípios metodológicos que se busca entender o movimento em sua totalidade: [...] no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico: eles dão lugar a uma crítica miúda, do dia-a-dia, que envolve os pequenos grupos dirigentes e a personalidades imediatamente responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos, para além das pessoas imediatamente res75

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ponsáveis e do pessoal dirigente. [...] O erro em que se incorre frequentemente nas análises histórico-políticas consiste em não saber encontrar a justa relação entre o que é orgânico e o que ocasional: chega-se assim ou a expor como imediatamente atuantes causas que ao contrário, atuam mediatamente, ou a afirmar que as causas imediatas são únicas causas eficientes70.

Assim, vários movimentos orgânicos buscaram publicizar na cena pública e política da cidade, suas insatisfações, suas demandas e seus interesses. Assim foi o caso da fundação da União dos Trabalhadores Favelados (UTF), em 1954, fundada inicialmente pela associação dos moradores do Morro do Borel. Nos anos de 1954 e 1955, outras favelas foram incluídas71. A fundação da UTF no Morro do Borel teve a importante participação de Magarinos Torres Filho, filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Além dele outros membros do PCB e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) vieram a fazer parte da UTF72. Em 1959, foi criada a Coligação dos Trabalhadores Favelados da Cidade do Rio de Janeiro (CTFRJ), que tinha como 70. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 36-37. 71. Segundo a pesquisa feita por Nísia Lima (1989), as favelas que passaram a participar como membros ativos da União de Trabalhadores Favelados (UTF), além do Morro do Borel, foram: Morro do Jacarezinho; Favela do Esqueleto; Morro Santo Antônio; Morro de Santa Marta; Morro da Formiga; Morro da Liberdade; Morro do Alemão; Morro da Providência; Morro da Mangueira; Morro do Salgueiro; Rocinha e Matta Machado. 72. BRUN, Mário Sérgio Ignácio. O povo acredita na gente: rupturas e continuidade no movimento comunitário das favelas cariocas nas décadas de (1980 e 1990). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Fluminense (UFF/ICHF). Niterói, RJ, 2006. p. 59. 76

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

reivindicações, além da luta pela terra e ações contra as remoções, a busca de garantias aos trabalhadores favelados, manutenção de suas instituições recreativas, obras de infraestrutura urbana para as favelas. A Coligação também apoiava propostas políticas mais amplas, como a reforma agrária no país73, proposta política de cunho esquerdista e fortemente combatida pelas elites conservadoras. Além disso, várias lideranças de moradores de favelas e membros da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG)74 foram presos nos anos subsequentes ao Golpe civil-militar de 1964, mostrando que nem todas as favelas da cidade e suas lideranças corroboravam com o status quo ou apoiavam as políticas governamentais. Muitos permaneceram firmes nos propósitos estabelecidos inicialmente pela UTF e posteriormente na CTFRJ, principalmente no que diz respeito ao combate contra as remoções de favelas75. Todavia, com a acentuação da ditadura militar no país, a força dos movimentos de moradores de favelas foi diminuindo e a figura do líder comunitário foi se reconfigurando, em grande medida pela implantação de políticas de cooptação de lideranças comunitárias com o governo estadual de Carlos Lacerda, que combinaria duas formas de ação política, ora cooptando lideranças comunitárias e transformando-as em presidentes de associações de moradores – comprometidos com as polí-

73. Ibidem. p. 111-113. 74. A Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) fazia alusão ao antigo Estado da Guanabara. Atualmente, a mesma entidade é denominada Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ). 75. LIMA, Nísia Verônica Trindade. O movimento de favelados no Rio de Janeiro: políticas do Estado e lutas sociais (1954-1973). Dissertação de Mestrado. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Rio de Janeiro, 1989. (LIMA, 1998; SANTOS, 2008). 77

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ticas urbanas propostas pelo governo – ora removendo e erradicando favelas. No período do governo Lacerda, foram removidas cerca de vinte sete favelas, com um contingente aproximado de 42.000 pessoas76. Assim sendo, o que se observou foi um aprofundamento do processo de cooptação das lideranças comunitárias de moradores de favelas até os anos 1990, passando pelo governo de Leonel Brizola. A partir do governo de Cesar Maia e a implantação do Programa Favela-Bairro, tem início uma forma diferenciada de controle dos grupos subalternizados e, consequentemente, de suas lideranças. Atores políticos da favela hoje É possível perceber, através do distanciamento histórico, que dois movimentos, ou em outras palavras, que duas ações políticas engendraram-se na luta pela representação dos trabalhadores e moradores de favelas. Movimentos que se guiaram, em determinados momentos, por uma contingência histórica, ou como sugere Gramsci, episódica. E, em outros, como resultado da construção de uma conscientização das identidades coletivas desse grupo social. Dessa forma, se a pressão do capital dirigiu-se à valorização dos espaços urbanos, as ações políticas e de resistências dos trabalhadores e moradores de favelas apontaram para uma política de redistribuição, caracterizada pela defesa da permanência no local de moradia e proximidade das regiões de emprego e trabalho. Se por outro lado, a ênfase da política pública foi favorecer a imagem da marginalização do trabalhador pobre e mo76. LESSA, Carlos. O Rio de Janeiro de todos os Brasis: uma reflexão em busca de autoestima. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 310-331. 78

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

rador de favela, e consequentemente, a redução do valor de sua mão-de-obra, o encaminhamento político desse grupo se dará numa perspectiva de identidade cultural e social: Para ser uma liderança local é preciso ter história na comunidade. Tem que conhecer a luta de todos e como tudo aconteceu. Não basta se dizer líder, é preciso se fazer líder. E isso eu aprendi com o meu pai. Ele tinha uma birosca aqui e lutava para melhorar toda a favela. Falava sempre de política e gostava do Getúlio. Acho que por isso ele defendeu o Brizola, logo quando ele veio para o Rio de Janeiro. Ele era PDT doente. Gastava tempo seu para melhorar a vida de todos e não ficou rico com isso. Eu procurei seguir os passos dele, mas não tenho a mesma estória que ele, mas mesmo assim, estive à frente da associação dos moradores por um bom tempo, duas gestões. Acho que hoje tem muita gente querendo trabalhar na favela como líder, mas antes é preciso fazer estória, e estórias, como dizia o meu pai, se faz na luta. Cadê a luta? Hoje, eu vejo muitos projetos e gente querendo ganhar dinheiro77. Estou inserido no trabalho social na comunidade faz uns três anos. Sempre como agente comunitário. Eu sempre achei que a associação dos moradores era coisa de política para conseguir trazer recursos do Estado para cá. Nunca quis me envolver pois o trabalho 77. Entrevista em setembro de 2006 com um líder local, presidente da Associação de Moradores do Parque de Vila Isabel, no Complexo do Morro dos Macacos. Seu pai foi dono de um dos mais antigos estabelecimentos comerciais da localidade, denominado “birosca”. 79

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

mesmo de resgate social está aqui fora, na comunidade. Sei que a associação é importante, mas acho que de uns tempos para cá ela perdeu o seu espaço. Estamos mais presentes e conhecemos melhor os problemas da comunidade. Conseguimos junto à Prefeitura verbas para implantação de projetos esportivos. Conseguimos também com alguns deputados, principalmente o Rodrigo Maia que ajuda muito a comunidade. Ele abre as portas para gente que quer trabalhar com o social. Além disso, tem o pessoal do asfalto que quer também ajudar. Já tivemos ajuda do Viva Rio, do Roda Viva e de outras instituições. Eu atuei em quase todas elas. O importante é trabalhar e procurar mudar esta realidade que tá aí, entende?78.

Essa diferenciação entre trabalhar para comunidade e estar empregado na comunidade, é fundamental para se entender a dimensão das mudanças ocorridas. O trabalhar para a comunidade é algo que o legitima como um membro e até mesmo como liderança daquela localidade. É a sua identidade e, portanto, é o que o torna diferente dos outros moradores, mas, ao mesmo tempo, é o que lhe torna parte de um coletivo. O trabalhar para a comunidade é uma atividade orgânica, que ultrapassa questões econômicas ou de sobrevivência; é uma atividade que incorpora os elementos políticos decorrentes do papel da representatividade: O meu pai até o ano de 1991 ou 1992 era membro da associação. Lembro quando criança a minha mãe di78. Entrevista realizada em agosto de 2007 com um agente comunitário na favela da Vila Aliança, Zona Oeste da cidade. Grifo meu. 80

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

zia que ele preferia que faltasse comida em casa, do que as coisas da associação. Tudo era a luta política que a associação tinha que fazer, tinha que agitar e muito mais. Eu cresci achando que um dia eles iam se separar. Mas não aconteceu, minha mãe ficou com ele até o fim. E ele nunca deixou de trabalhar para a comunidade. Isso era a vida dele. Eu sinto, às vezes, pois meu pai brincou muito pouco comigo, mas hoje tenho orgulho quando sou lembrada como a filha do Zé da Luz. Ele foi um dos primeiros a lutar pela luz na favela79.

Por outro lado, estar empregado na comunidade representa tão somente a execução de uma atividade remunerada dentro da favela. O empregado não precisa necessariamente ser um membro da localidade: pode ser morador de outra favela ou de outro local qualquer. A identificação com o grupo não passa pela experiência de uma mesma espacialidade, de uma mesma vivência e história coletiva. O que conta são as qualificações profissionais para o desenvolvimento das tarefas para as quais foi contratado. Portanto, a vivência ocorrida na favela “a” ou “b” é provisória, assim como a contratação e a permanência são contingentes: Eu agora trabalho aqui na Vila Aliança, mas não moro aqui. Eu moro lá na Vintém, em Padre Miguel. O nosso projeto se expandiu e trabalhamos em várias comunidades. Tem umas que os projetos duram mais,

79. Entrevista realizada em 2003 com uma antiga moradora e filha de uma das lideranças comunitárias na Favela do Pau da Bandeira no Complexo do Morro dos Macacos. 81

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

quando as parcerias são mais sólidas, e em outras os projetos não chegam a fazer um mês, por vários motivos. Dependendo do projeto, as remunerações variam, mas mais importante do que isso é poder ajudar80.

A fala acima dá indicações para a definição, mesmo que ainda precária, do agente social. O agente social tem como característica o emprego na favela, que independe de ser ele morador ou não. É claro que sua “empregabilidade” – utilizando um termo comum entre os agentes sociais e coordenadores de projetos, tanto do governo quanto das Organizações Não Governamentais (ONGs) – depende do conhecimento que ele tem do universo da favela, por isso, na maioria das vezes, os agentes sociais foram moradores de comunidades. Assim, eles estão aptos para atuar em qualquer favela, pois possuem o capital simbólico que garante uma espécie de legitimidade, nessa forma de espaço, para o trabalho social. Outra característica é que o agente social tem um vínculo empregatício com o poder público ou com ONGs; seus objetivos são os mesmos objetivos dos projetos dos empregadores, e por isso, bastante pontuais. A favela não é pensada como um todo, mas através de nichos específicos, tais como: adolescentes grávidas; crianças e jovens que gostam de práticas esportivas e culturais; adultos que querem montar o seu próprio negócio etc. A forma política de mobilização da classe subalterna se dá pela ocupação do tempo e pela heterogeneidade dos grupos.

80. Entrevista realizada em setembro de 2008 com um agente social que na ocasião estava coordenando a implantação de uma cooperativa de reciclagem de garrafas plásticas. 82

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Considerações finais Há, evidentemente, ganhos para determinadas comunidades, quando da transformação de uma antiga liderança comunitária em agente público, principalmente quanto aos recursos para obras em infraestrutura, mobiliários coletivos e/ou serviços assistenciais. Principalmente quando utilizam o discurso da geração de “postos de trabalho”, sendo contratadas centenas de pessoas, gerando aumento de renda das famílias faveladas. No entanto, após o fim das obras, percebe-se o distanciamento entre o que é ofertado e o que as localidades precisam de fato. Sendo assim, a representatividade das lideranças comunitárias, transformadas em agentes públicos, perde a legitimidade política, que a função de líder comunitário instituiu historicamente através das lutas. No que concerne à “questão de classe” desses sujeitos na luta pelo direito à cidade (como luta por justiça), numa perspectiva ampla, o que se percebeu – apesar do crescimento de inúmeras frentes de lutas, de movimentos dentro das favelas, alargando o campo de reivindicações (não apenas por obras e melhorias espaciais, mas também para tratar de questões culturais, identitárias entre outras) – foi um processo que fragmenta a luta de classe desse grupo subalterno. É a transformação de um grupo que um dia articulou e lutou por uma identidade; um grupo subalternizado nas lutas contra as remoções e no estabelecimento de entidades representativas, como a UTF, a CTFRJ e a FAFEG. Não se tratava de uma luta isolada, de uma ou duas lideranças, ou de uma ou duas favelas, mas da busca por integração de todo um grupo, que por estar em situações semelhantes na distribuição e no ordenamento político e econômico, buscava junto lutar por 83

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

uma melhor redistribuição e por um reconhecimento do direito à cidade. Trata-se de uma luta por justiça. Assim, a função política do líder comunitário como função pedagógica, ou seja, como função “orgânica”, passou a partir das ações dos agentes sociais nas favelas, a servir muito mais ao discurso hegemônico do status quo do que à emancipação das classes subalternas. Referências Bibliográficas BARATTA, Giorgio. As rosas e os cadernos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. ______. Gramsci em contraponto: Diálogos com o presente. São Paulo: UNESP, 2010. BRUN, Mário Sérgio Ignácio. O povo acredita na gente: rupturas e continuidade no movimento comunitário das favelas cariocas nas décadas de (1980 e 1990). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Fluminense (UFF/ICHF). Niterói, RJ, 2006. CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. ______. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

84

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

______. Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2008. CUNHA, Neiva Vieira da (org.). Histórias de favelas da grande Tijuca: contadas por quem faz parte dela. Rio de Janeiro: Ibase Agenda Social, 2006. EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 5: O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. ______. Caderno do Cárcere – Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ______. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2008a. ______. Espaço e Política. Belo Horizonte, UFMG, 2008b. LESSA, Carlos. O Rio de Janeiro de todos os Brasis: uma reflexão em busca de autoestima. Rio de Janeiro: Record, 2000. 85

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

LIMA, Nísia Verônica Trindade. O movimento de favelados no Rio de Janeiro: políticas do Estado e lutas sociais (1954-1973). Dissertação de Mestrado. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Rio de Janeiro, 1989. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Sociabilidade violenta: Uma dificuldade mais para a ação coletiva nas favelas. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio et alli (orgs.). Rio: a democracia vista de baixo. Rio de Janeiro: IBASE, 2004. ______. (org.). Vida sobre cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MONAL, Isabel. Gramsci, a sociedade civil e os grupos subalternos. In: COUTINHO, Carlos Nelson e TEIXEIRA, Andréa de Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. OLIVEIRA, Lúcia Lippi (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. PANDOLFI, Dulce e GRYNSZPAN, Mario. (orgs.). A Favela Fala. Rio de Janeiro: FGV, 2003. RESENDE, Vera F. Planos e regulação urbanística: a dimensão normativa das intervenções na cidade do Rio de Janeiro. In: OLIVEIRA, Lucia Lippi (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 256-281. 86

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Revolução passiva e meios de comunicação: uma análise gramsciana das manifestações no Brasil em 201381 EDUARDO REBUÁ

Eu sei, cansa Quem morre ao fim do mês Nossa grana ou nossa esperança? (“Levanta e anda”, Emicida)

Introdução: Manifestações, direitos e reação dos “de cima” As manifestações ocorridas no Brasil em junho de 2013 – intituladas Jornadas de Junho pelas distintas forças de esquerda do país – deixaram a Academia, a mídia, os intelectuais, a população “bestializados”, como na famosa assertiva do jornalista republicano e abolicionista, Aristides Lobo, quando da Proclamação da República. Para usar outra expressão conhecida da política nacional dos nossos dias, “nunca antes na História deste país” havíamos visto o povo tomar as ruas em números astronômicos, que cresciam como numa progressão geométrica em questão de dias, sobretu-

81. O texto original foi produzido três meses após os eventos de junho de 2013. O artigo aqui apresentado foi revisto, em junho de 2014, não alterando as reflexões elaboradas há um ano, mas tentando minimamente atualizá-las em alguns aspectos. 87

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

do tendo como pauta os direitos sociais (transporte público, saúde, educação etc.), aqueles mesmos que Carlos Nelson Coutinho, no paradigmático e polêmico texto intitulado Notas sobre Cidadania e Modernidade, chama de “os que permitem ao cidadão uma participação mínima na riqueza material e espiritual criada pela coletividade”82. Historicamente, os direitos sociais no Brasil sempre foram encarados pelo povo como concessão por parte das elites, como comprovam o coronelismo do século XIX, o trabalhismo varguista do início do XX e até as recentes políticas das “bolsas” (escola, família, ...), iniciadas no governo Fernando Henrique Cardoso e mantidas/aperfeiçoadas nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff. Ao invés de resultados de uma outorga, os direitos sociais, quando conquistados, são o fruto de profundos embates, materiais e simbólicos, entre os grupos dominantes e os estratos sociais inferiores. Mais uma vez, Coutinho, ainda no texto citado, nos ajuda a pensar a questão: A cidadania não é dada aos indivíduos de uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas é resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando um processo histórico de longa duração83.

No meu entendimento, qualquer análise sobre a “Primavera Brasileira” – das mais aligeiradas às mais ponderadas – não pode perder de vista esse dado: a luta por direitos so82. COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social, ano 2, n. 3, p. 1-21, dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2013. p. 13. 83. Ibidem. p. 2. 88

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ciais atinge diretamente a sempre “incompleta”, gramscianamente falando, hegemonia dos grupos dominantes, colocando em “risco” seu domínio e sua direção sobre o conjunto da sociedade. O mote “não é apenas por 20 centavos”, tão popularizado naqueles meses de lutas e mobilizações, indica como a reivindicação dos direitos sociais, ainda que mínima (um transporte público melhor e mais barato, estopim da rebeldia), é capaz de assumir um caráter de radicalidade importante (independente do “nível de consciência” daqueles que os reivindicam), uma vez que “tocaram” naqueles direitos que, conforme afirma Coutinho, dizem respeito à riqueza, concreta e simbólica: [...] um mal-estar mais profundo foi ganhando força com a superfície. É o mesmo com os protestos que eclodiram no Brasil em meados de junho: foram sim desencadeados por um pequeno aumento no preço do transporte público, mas então porque continuaram mesmo após essa medida ter sido revogada?84. Uma pesquisa nacional realizada pelo Ibope durante as passeatas do mês de junho de 2013 mostrou que os problemas mais citados pelos manifestantes eram a saúde (78%), a segurança pública (55%) e a educação (52%). [...] Estamos diante de um autêntico processo de mobilização do proletariado precarizado em defesa tanto de seus direitos à saúde e à educação pú-

84. ŽIŽEK, Slavoj. Problemas no paraíso. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. p. 101-108. p. 102. 89

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

blicas e de qualidade quanto pela ampliação de seu direito à cidade85.

As vozes que vieram das ruas naquele junho apontavam – de maneira difusa, plural, complexa, em “tom” ora mais alto, ora mais baixo – que a luta de classes no país parecia ganhar, ainda que episodicamente, novos contornos com o posicionamento mais contundente (leia-se: menor passividade) de amplos setores da população, em relação às péssimas condições de vida nas grandes cidades, cada vez “menores” para a maioria das pessoas tratadas como “minoria”. Os meses vindouros mostrariam a enorme dificuldade dos distintos setores/organizações sociais envolvidas nas manifestações em mobilizar/manter aquela massa nas ruas e as bandeiras empunhadas desde os eventos do Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo: A ‘fagulha’ das manifestações de junho não surgiu do nada: foram anos de constituição de uma nova geração de movimentos urbanos – o MPL, a resistência urbana, os movimentos sem-teto, os movimentos estudantis –, que, entre ‘catracaços’, ocupações e manifestações foram se articulando em redes mais amplas, como os Comitês populares da Copa e sua articulação nacional, a Ancop86.

85. BRAGA, Ruy. Sob a sombra do precariado. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013b. p. 79-82. p. 82. 86. ROLNIK, Raquel. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. p. 7-12. p. 9. 90

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Contudo, se houve um ineditismo no “tamanho” dos movimentos que incendiaram o país em junho de 2013, não houve nada de novo no front no que se refere à reação das elites do país, diante de um desequilíbrio na correlação de forças existentes na sociedade. Esta é a preocupação principal deste artigo: analisar, a partir de categorias gramscianas, os esforços ideológico-materiais do atual bloco hegemônico de poder – o mais robusto forjado até hoje no país (congregando, como numa orquestra, os capitais mineral, industrial, financeiro, o agribusiness etc.) – no sentido de preservar sua hegemonia, alterando a “superfície” das coisas e, em alguns casos, cedendo alguns anéis para conservar os dedos, estratégia histórica das elites brasileiras, “mestras” na arte de transformar pelo alto, mudando para se manter o mais do mesmo. Os conceitos gramscianos de revolução passiva (principalmente), sociedade civil, aparelhos privados de hegemonia, transformismo e opinião pública representam um lastro fundamental nesta empreitada. Dois séculos e um conceito: a radiografia do Brasil pela Revolução Passiva Poucas categorias analíticas têm a potência e o alcance que o conceito de revolução passiva – consagrado, porém não criado por Gramsci – possui. O intelectual sardo notabilizou-se, dentro e fora do marxismo por ter ampliado significativamente conceitos importantes e polissêmicos, como Estado, intelectual, partido e revolução passiva, este presente em três autores estudados por Gramsci: Vincenzo Cuoco, Edgar Quinet e Lenin.

91

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

“Revolução passiva” (Cuoco), “revolução-restauração” (Quinet) e “via prussiana” (Lenin) representam as referências fundamentais de Gramsci na elaboração de seu conceito próprio de “revolução pelo alto”, que nos Cadernos aparece também como “revolução sem revolução”. Gramsci e seu historicismo radical encontrará nessa categoria uma poderosa ferramenta analítica para tratar de distintos processos históricos na/da Europa, com destaque para a França (Revolução de 1789) e a Itália (Risorgimento): A literatura sobre Gramsci é hoje unânime em reconhecer que a noção de ‘revolução passiva’, ou ‘revolução-restauração’, ocupa um posto de destaque nas reflexões contidas nos Cadernos. Essa noção é um instrumento-chave de que Gramsci se serve para compreender não apenas a formação do Estado burguês moderno na Itália (os episódios do Risorgimento, que culminaram na unidade nacional italiana), mas também para definir traços essenciais da passagem do capitalismo italiano para sua fase monopolista, ao apontar também o fascismo como forma de ‘revolução passiva’87.

Coutinho auxilia na compreensão desse conceito em Gramsci, indicando algumas características importantes. A revolução passiva representa um processo de “cima para baixo”, conduzido pelos setores dominantes e que compreende dois momentos: a restauração (reação às investidas dos “de baixo”) e a renovação (assimilação das demandas populares 87. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 197-198. 92

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

com o fim de manter a hegemonia dos grupos dirigentes). Estas “restaurações progressistas” representam reações das elites – num momento de crise de hegemonia (crise orgânica) – às ações (subversivismo) das classes populares, muitas vezes esporádicas e desorganizadas88. Ao ser ameaçado, o status quo luta para manter elementos caros à “velha” ordem, que ainda não “morreu”, ao mesmo tempo em que “molecularmente” altera a composição das forças que anteriormente compunham o bloco hegemônico de poder, assimilando demandas dos subalternos (o “novo”) e cooptando elementos oriundos de suas fileiras e também das dos aliados: Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais ‘dirigente’, mas unicamente ‘dominante’, detentora da pura força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais, não acreditam mais no que antes acreditavam etc. A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados89.

A partir da fala de Gramsci, fica claro que a revolução passiva não surge da “passividade” dos grupos sociais (ainda que um de seus efeitos seja o apassivamento dos dominados ), mas ao contrário, indica um acirramento da luta de classes, um momento em que o caráter dinâmico e complexo 88. Ibidem. p. 199. 89. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 184. 93

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de toda hegemonia torna-se visível, como num tabuleiro de xadrez, onde avanços e recuos são calculados de forma detida e cuidadosa. A famosa expressão “dar os anéis para se preservar os dedos” assume a condição de axioma da revolução passiva, que coaduna mudança e manutenção, novo e velho, moderno e conservador. Sobre este último par (moderno e conservador), Coutinho salienta que a revolução passiva parece capaz de “fornecer importantes indicações para a análise dos processos de ‘modernização conservadora’ que caracterizam a história brasileira”90. Ainda sobre a relação revolução passiva e modernidade/modernização, Alvaro Bianchi enfatiza que “como cânone de interpretação, a revolução passiva era uma chave teórica para a compreensão do advento da modernidade capitalista na maioria dos países da Europa”91. Analisar a história brasileira a partir do conceito de Revolução Passiva não é novidade: Werneck Vianna (1976), Nogueira (1984) e Coutinho (1990) representam estudos clássicos que empreenderam esse esforço teórico. Com estes autores, entendo que a história brasileira é profundamente marcada por revoluções passivas, por transições “pelo alto”, o que indica que por aqui sempre houve muito subversivismo e muita “vontade de mudança”, ou em outras palavras: o Brasil, ao contrário do que afirmam os discursos dominantes, o senso comum, é um país profundamente marcado por lutas sociais, desde o período Colonial, passando pelo Império e chegando à República. Interessa-me neste artigo, a partir de Coutinho, analisar o presente atual (as Jornadas de 90. COUTINHO (2007). Op. Cit. p. 195. 91. BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. p. 257. 94

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Junho) tendo como lastro uma leitura do desenvolvimento histórico brasileiro, num recorte temporal amplo92. Mesmo assim, imprescindível para a construção de um panorama histórico-social do Brasil em seu processo de constituição como nação periférica do capitalismo, moderna e ao mesmo tempo arcaica, como afirmaram intelectuais marxistas fundamentais do pensamento social brasileiro, com destaque para Florestan Fernandes e Chico de Oliveira. De acordo com Coutinho: Todas as opções concretas enfrentadas pelo Brasil, direta ou indiretamente ligadas à transição para o capitalismo (desde a Independência política ao Golpe de 1964, passando pela Proclamação da República e pela Revolução de 1930), encontraram uma solução ‘pelo alto’, ou seja, elitista e antipopular93.

O autor gramsciano é contundente ao afirmar que em “todos” os processos de modernização capitalista no Brasil, a “revolução sem revolução” foi a expressão fundamental da ação dos grupos dirigentes e suas frações, que excluíram as forças populares – assimilando membros oriundos de sua base, bem como de setores dominantes não presentes no bloco hegemônico de poder –, sempre sob a ação do Estado e seus aparelhos repressivos e de intervenção econômica. Aos momentos-chave da história brasileira apontados 92. Vale ressaltar que não analiso aqui, de maneira pormenorizada, todos estes processos históricos (da Independência até os dias recentes). O que enfatizo é que não se pode fazer uso da categoria “revolução passiva”, para se analisar o Brasil, perdendo de vista esta “mirada panorâmica” sobre os eventos históricos dos últimos duzentos anos. Estes, claro, são muito diferentes, porém, vinculados entre si no que se refere à manutenção das estruturas dominantes de poder. 93. COUTINHO (2007). Op. Cit. p. 196. 95

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

por Coutinho acrescentamos a dita “redemocratização” de 1985 e a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder federal em 2002. Para o intelectual brasileiro, ao contrário do que afirmavam os representantes do marxismo-leninismo no Brasil, o país construiu sua modernização capitalista sem ser obrigado a realizar uma revolução democrático-burguesa: a despeito do latifúndio pré-capitalista e da dependência em face do imperialismo, o capitalismo pôde se desenvolver plenamente em terras tupiniquins. Segundo Coutinho, Por um lado, gradualmente e ‘pelo alto’, a grande propriedade latifundiária transformou-se em empresa capitalista agrária; e, por outro, com a internacionalização do mercado interno, a participação do capital estrangeiro contribuiu para reforçar a conversão do Brasil em país industrial moderno, com uma alta taxa de urbanização e uma complexa estrutura social94.

Se o Estado representou e representa o agente fundamental dos processos de revolução passiva no Brasil – assim como no Risorgimento italiano, com a diferença de que no Brasil o Estado que protagoniza as revoluções passivas é já um Estado unificado e não um Estado particular, como o Piemonte –, sendo imprescindível na construção/manutenção/legitimação da direção/domínio dos grupos sociais que o hegemonizam, sua ação não se deu sem a absorção de representantes dos setores aliados e também adversários (transformismo), e sem a força da opinião pública, ponto de tangência entre a sociedade civil e a sociedade política. 94. Ibidem. p. 196. 96

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Estes dois conceitos gramscianos – transformismo e opinião pública –, caros à minha análise sobre revolução passiva, serão retomados e apresentados mais à frente. Entendo que sem explicitar minimamente as categorias de sociedade civil e aparelhos privados de hegemonia, fundamentais no pensamento do marxista italiano, comprometemos a compreensão da revolução-restauração, do transformismo (um dos efeitos da revolução passiva) e da opinião pública. Sociedade civil e aparelhos privados de hegemonia em Gramsci Antonio Gramsci entendia a sociedade valendo-se de um esquema triádico, formado por: economia, sociedade civil e Estado (sociedade política), com a economia correspondendo à estrutura e sociedade civil/sociedade política representando dois grandes planos superestruturais. O revolucionário sardo resgatou o conceito de sociedade civil da tradição iluminista e hegeliana dos séculos XVIII e XIX, renovando-o de maneira radical e empreendendo, como afirma Nogueira, “uma operação teórica e política dedicada a interpretar as imponentes transformações que se consolidavam nas sociedades do capitalismo desenvolvido – alterações no padrão produtivo, expansão da classe operária, aumento do associativismo [...]”95. Para Gramsci, que diferentemente de Marx vivenciou as profundas mudanças na relação entre economia e política no século XX96, o Estado, lugar de uma hegemonia de classe, 95. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 185-202, jun. 2003. p. 189. 96. LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 47-48. 97

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

não se resume à sociedade política (aparato político-jurídico – o espaço da coerção) apenas, mas compreende também, numa perspectiva de “Estado ampliado” (que se contrapõe à visão de Marx e Engels, que entendiam o Estado como “restrito”) e numa concepção dialética da realidade histórico-social, a sociedade civil (locus dos aparelhos privados de hegemonia, como a Igreja, a escola e a mídia – o espaço da hegemonia, do consenso). De acordo com o filósofo sardo a sociedade civil é a arena privilegiada da luta de classes, o terreno sobre o qual se dá a luta pelo poder ideológico (consenso); é o componente essencial da hegemonia97 ou nas palavras de Dênis de Moraes, “[...] o espaço político por excelência, lugar de forte disputa de sentidos”98. Dizer que é na sociedade civil que se garante a hegemonia dos grupos dominantes (e onde se forja, na dinâmica dos embates político-ideológicos, a contra-hegemonia) não significa que neste local não atue a coerção. A sociedade civil, conforme dito anteriormente, é um momento do Estado, logo, as esferas tanto da sociedade política quanto da sociedade civil se interpenetram, sendo a hegemonia o polo dominante dentro do funcionamento da sociedade civil e a coerção seu polo secundário99. Gramsci rompe com a perspectiva liberal que entende a sociedade civil e o Estado (sociedade política) como estruturas da realidade social independentes, dicotômicas. Cou97. ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. p. 178. 98. MORAES, Denis de. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009. p. 38. 99. PIOTTE, Jean-Marc apud MOCHCOVITCH, Luna G. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1992. p. 33. 98

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

tinho enfatiza que para Gramsci a sociedade civil, além de um momento do Estado, corresponde também ao mercado, uma vez que compreende as relações sociais engendradas por ele100. Em Gramsci, a sociedade civil é uma figura do Estado, representando a grande “novidade” política da passagem do século XIX para o XX, modificando a natureza do Estado (que se “ampliava” a partir de então), se articulando dialeticamente nele e com ele101. É importante frisar que para Gramsci, a separação entre sociedade civil e sociedade política não é orgânica, mas metodológica. Além disso, como ressalta Acanda, a sociedade civil, como espaço em que se estruturam as relações de poder, não pode ser compreendida apenas como lugar onde se “enraíza” a hegemonia de uma classe, mas também como o local a partir do qual este sistema hegemônico da dominação é questionado/enfrentado102. Em Gramsci, a sociedade civil representa o lugar de criação da hegemonia, de afirmação do senso comum, de formação das concepções de mundo103. Atravessada por conflitos e contrastes, a sociedade civil não é homogênea, assim como os aparelhos privados de hegemonia. Tais aparelhos são as organizações materiais que compõem a sociedade civil moderna, como por exemplo, a escola, a Igreja, os partidos políticos, as associações privadas, os meios de comunicação, a Universidade, os sindicatos, as organizações não governa100. COUTINHO, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006. p. 41. 101. NOGUEIRA (2003). Op. Cit. p. 191. 102. ACANDA (2006). Op. Cit. p. 181. 103. LIGUORI, Guido. Estado e sociedade civil: ler Gramsci para entender a realidade. In: COUTINHO, Carlos Nelson e TEIXEIRA, Andréa de Paula. (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 173-188. p. 187. 99

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

mentais. Esses aparelhos forjam, reproduzem e legitimam interesses de classe, “educando” ideológica e culturalmente as diversas classes e frações de classe da sociedade civil. São chamados de “privados” porque a adesão a eles é voluntária e para distingui-los da esfera pública do Estado. Essas instituições desempenham hoje um papel mais central no processo de controle social. É certo que o Estado burguês nunca abdicará do uso da coerção, fundamental para sua hegemonia, mas tem clareza de que ao fazê-lo, sua legitimidade/credibilidade correm sérios riscos. O poder não pode ser explícito, visível – deve ser invisível aos olhos da sociedade. Disseminado através de diferentes espaços, naturaliza-se, tornando-se costume, hábito104. Com Gramsci, é possível entender que os aparelhos privados de hegemonia são os espaços responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, sendo primordiais para a conquista do poder de Estado nas sociedades complexas do capitalismo recente105. Tais aparelhos representam peça-chave dentro da teoria ampliada do Estado de Gramsci. De acordo com Coutinho, eles são “organizações materiais que compõem a sociedade civil”, são “organismos sociais coletivos voluntários e relativamente autônomos”106 em relação à sociedade política (cujos organismos sociais ou portadores materiais são os chamados aparelhos repressivos de Estado – o aparato policial-militar e a burocracia executiva).

104. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: UNESP; Boitempo, 1997. p. 108. 105. COUTINHO (2007). Op. Cit. p. 127-135. 106. Ibidem. p. 129. 10 0

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Denis de Moraes, alicerçado em Coutinho, contribui para a análise dos aparelhos privados de hegemonia, afirmando que “tais aparelhos são os agentes fundamentais da hegemonia, os portadores materiais das ideologias que buscam sedimentar apoios na sociedade civil”107. Álvaro Bianchi salienta o caráter material dos aparelhos privados de hegemonia, afirmando que o embate de hegemonias não compreende apenas o embate entre ideologias, mas também a luta dos aparelhos que funcionam como suportes materiais dessas concepções de mundo, organizando e difundindo-as108. Os aparelhos privados de hegemonia, gerados pelas lutas de massa, empenham-se em conseguir o consenso, condição fundamental para a dominação de classe. Segundo Moraes, tais aparelhos “abrem mão” da coerção, da repressão visível das forças estatais, que ameaçaria a legitimidade de suas pretensões. Ao analisar a hegemonia, sobretudo nos Cadernos, Gramsci afirma que a resposta para a direção política que o Estado exerce na sociedade não deve ser buscada na esfera pública (instituições governamentais e oficiais), mas nos vários organismos “privados” que controlam/dirigem a sociedade civil. No entendimento de Coutinho, em Marx não existe valor-de-troca sem valor-de-uso, assim como em Gramsci não há hegemonia (direção político-ideológica) sem os aparelhos privados109. As palavras de Acanda indicam de maneira clara os aparelhos privados de hegemonia, sem perder a perspectiva histórica, ressaltando seu espaço de atuação (a sociedade civil) 107. MORAES (2009). Op. Cit. p. 40. 108. BIANCHI (2008). Op. Cit. p. 179. 109. COUTINHO (2007). Op. Cit. p. 129. 101

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

e explicitando o caráter estratégico destes aparelhos para a hegemonia burguesa: Ao Estado se integra também o conjunto de instituições vulgarmente chamadas ‘privadas’, agrupadas por Gramsci no conceito de sociedade civil. O desenvolvimento da modernidade capitalista conduziu ao desaparecimento dos limites entre o ‘público’ e o ‘privado’, e à interpenetração entre essas esferas. Famílias, igrejas, escolas, sindicatos, partidos, meios de comunicação de massa e até mesmo o senso comum compartilhado por todos, e que determina aquilo que é aceito como normal, natural e evidente, são elementos de um espaço cuja denominação como sociedade civil não indica seu alheamento em relação às lutas políticas pelo poder, mas um campo específico do aprofundamento da hegemonia de uma classe. Ainda que as instituições repressivas continuem sendo um instrumento imprescindível para a classe dominante, a coerção absoluta nunca foi uma opção viável. No capitalismo, a burguesia se vê obrigada a buscar e a organizar ativamente o consenso – ainda que passivo – dos dominados. E consegue organizá-lo por sua capacidade de disseminar normas políticas, culturais e sociais através das instituições ‘privadas’ da sociedade civil110.

110. ACANDA (2006). Op. Cit. p. 179-180. Grifo meu. 102

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Democracia de cooptação e apassivamento: transformismo, orquestração do consenso via opinião pública e o papel da mídia nas Jornadas de Junho de 2013 Em recente aula pública ministrada na Escola de Serviço Social da UFRJ, “fora” dos “muros” da sala de aula, o professor e sociólogo Mauro Iasi chamou de “democracia de cooptação” o momento político do país na atualidade. Segundo Iasi, uma de suas características é um certo apassivamento dos movimentos sociais, do movimento sindical, da classe trabalhadora, capturada por um projeto político-social que surge das fileiras da esquerda e que chega a uma forma de governo caracterizado por um pacto social entre capital e trabalho, capitaneado pelo primeiro, com a assimilação de setores importantes do segundo. Em termos gramscianos, é plausível entender democracia de cooptação como transformismo e apassivamento como fragilização da sociedade civil. Em Gramsci, dois dos efeitos mais importantes dos processos de revolução passiva são, de acordo com Coutinho: (i) o fortalecimento do Estado (sociedade política stricto sensu)/enfraquecimento da sociedade civil e (ii) o transformismo111. O transformismo é definido pelo autor dos Cadernos como a “elaboração de uma classe dirigente cada vez mais ampla [...], com a absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam irreconciliavelmente inimigos”112. Sobre a cooptação 111. COUTINHO (2007). Op. Cit. p. 203. 112. Idem. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Rio de Janeiro: Civili103

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

dos adversários, Gramsci afirma que “a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e à sua aniquilação por um período frequentemente muito longo”113. No processo de legitimação de sua dominação e de apassivamento dos setores dominados – fragilização da sociedade civil –, as frações dominantes do bloco de poder, seja na Itália ou no Brasil, sempre souberam orquestrar o consenso a seu favor, via órgãos de opinião pública: jornais, partidos, parlamento. Não à toa, seja na Independência política consagrada em 1822, na abolição da escravidão em 1888, na instauração da República um ano depois, no Golpe de 1930 ou no de 1964, bem como na redemocratização de 1985 e na eleição do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2002 – exemplos contundentes de revoluções pelo alto –, a luta pelo monopólio destes canais “privados” de opinião “pública” sempre representou um movimento imprescindível dos grupos dirigentes, cientes da importância da adesão do “conjunto da sociedade” ao seu projeto societário. Gramsci afirma que: O que se chama de ‘opinião pública’ está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força. O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade civil. zação Brasileira, 2011. p. 318. 113. Ibidem. p. 318. 10 4

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

História da ‘opinião pública’: naturalmente, elementos de opinião pública sempre existiram, mesmo nas satrapias asiáticas; mas a opinião pública como hoje se entende nasceu às vésperas da queda dos Estados absolutistas, isto é, no período de luta da nova classe burguesa pela hegemonia política e pela conquista do poder. A opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia ser discordante: por isto, existe luta pelo monopólio dos órgãos da opinião pública - jornais, partidos, Parlamento -, de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica114.

A partir das considerações de Iasi, entendo que o atual momento político do país, materializado nas Jornadas de Junho, mas não iniciado ali (numa análise macro temos a crise econômica internacional dos últimos cinco anos e numa análise local, temos, por exemplo, o número crescente de greves no país desde 2010, o massacre de Pinheirinho em São Paulo e as lutas contra a usina de Belo Monte/PA em todo o país)115, representa um enfrentamento – difuso, não organizado, complexo – a esta democracia de cooptação, que como dissemos no início deste artigo, “adia” constantemente os direitos sociais e apassiva setores significativos da sociedade civil. Os acordos “pelo alto”, que tem na capitulação do PT116 114. GRAMSCI, Antonio apud COUTINHO (2011). Op. Cit. p. 283. 115. Greves no país nos últimos anos. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013. 116. “A trajetória do PT foi a que mais evidenciou esta ‘evolução’ do protesto social ao transformismo político”. Ver: SECCO, Lincoln. As Jornadas de Junho. In: MARICA10 5

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ao longo dos anos 1990 (com a “conclusão” do processo nas eleições presidenciais de 2002, que alçou o ex-torneiro mecânico Luís Inácio Lula da Silva ao mundo do business e do terno e gravata) sua grande expressão contemporânea, provocaram uma profunda crise de representatividade, sobretudo nos setores jovens da população (médios e proletários), que compõem o precariado, ou o proletário precarizado, categoria fundamental utilizada pelo sociólogo Ruy Braga. Em junho de 2013, a dinâmica do mundo real deu uma verdadeira aula sobre luta de classes e ideologia: em questão de dias, as vozes plurais, dissonantes e heterogêneas das ruas enfrentaram, material e simbolicamente, o atual estado de coisas, atordoando o establishment burguês e seus porta-vozes midiáticos, bem como os tradicionais partidos de esquerda e movimentos sociais/sindicais, indicando claramente que a passividade dos últimos anos tem diminuído, como afirmamos anteriormente. A famosa assertiva de Marx em Crítica do Programa de Gotha (1875) ressurge como um mantra: “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas”117. Numa das várias entrevistas concedidas pelos militantes do MPL, um deles disse: “no jogo político, entrou um agente ‘novo’ que não costuma entrar: O POVO!”: O precariado é o proletariado precarizado, ou seja, um grupo formado por trabalhadores que, pelo fato de não possuírem qualificações especiais, entram e saem muito rapidamente do mercado de trabalho.

TO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. p. 71-78. p. 74-75. 117. MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. 10 6

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Além disso, devemos acrescentar os trabalhadores jovens à procura do primeiro emprego, indivíduos que estão na informalidade e desejam alcançar o emprego formal, e trabalhadores submetidos ao manejo predatório do trabalho. O precariado é composto por aquele setor da classe trabalhadora pressionado tanto pela intensificação da exploração econômica quanto pela ameaça da exclusão social118.

Este agente “novo”, ao longo do desenvolvimento histórico brasileiro, sofreu o controle, a cooptação e a repressão do Estado, capitaneado pelas frações dominantes da burguesia. Para Coutinho, o Estado brasileiro assumiu, assim como ocorreu na Itália com o Piemonte, no “lugar” das classes sociais, o protagonismo dos processos de transformação, dirigindo politicamente ele mesmo as classes economicamente dominantes; em ambos os países, os grupos que dirigem o conjunto da sociedade a partir do Estado, desempenham uma ditadura sem hegemonia, ou na expressão de Florestan Fernandes, uma “contrarrevolução prolongada”, onde uma parte das classes dominantes, uma de suas frações, hegemoniza as outras frações dominantes, e não todo o conjunto da sociedade. Nesse sentido, Também no Brasil as transformações foram sempre o resultado do deslocamento da função hegemônica de uma para outra fração das classes dominantes. Mas estas, em seu conjunto, jamais desempenharam, até

118. BRAGA, Ruy. A economia e seus impactos na população. Le Monde, maio de 2013a. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2013. p. 1. 107

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

recentemente, uma efetiva função hegemônica em face das massas populares. Preferiram delegar a função de dominação política ao Estado – ou seja, às camadas militares e tecnoburocráticas -, ao qual coube a tarefa de ‘controlar’ e, quando necessário, de reprimir as classes subalternas119.

Nesse controle das demandas/pressões sociais, os meios de comunicação exercem papel imprescindível. Segundo Gramsci, numa de suas contribuições teórico-políticas mais originais, um organismo específico da sociedade civil pode assumir a função de partido político das elites: a mídia. Nos Cadernos, defende que a imprensa (principal meio de comunicação à sua época) era a parte mais dinâmica do arcabouço ideológico das elites, do bloco hegemônico120: Gramsci dava uma grande importância à imprensa, como um destacado instrumento da sociedade civil, na disputa de ideias, na direção moral e intelectual e na orientação para as disputas concretas existentes na sociedade. Não por acaso, ele era jornalista e dedicou grande parte de sua vida de militante político socialista (antes de ser preso pela ditadura fascista encabeçada por Mussolini) ao jornalismo. A importância que dava à imprensa se comprova quando ele abandona os estudos universitários (de linguística) para exercer esta atividade121.

119. COUTINHO (2007). Op. Cit. p. 204. 120. MORAES (2009). Op. Cit. p. 42. 121. ALMEIDA, Jorge. A relação entre mídia e sociedade civil em Gramsci. Compolítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 120-132, março-abril 2011. p. 125. 10 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Para Gramsci, assim como toda relação de hegemonia é necessariamente pedagógica, todo relação pedagógica tem uma natureza hegemônica. Partindo desta noção, o filósofo e educador gramsciano Antonio Tavares de Jesus, em sua obra Educação e Hegemonia no pensamento de Antonio Gramsci, contribui de maneira decisiva para a compreensão desta dialética entre relação pedagógica e hegemonia, uma vez que se esforça na compreensão da teoria gramsciana da Educação em sua totalidade. Para ele, [...] a partir do momento em que se aceita o conceito de hegemonia como relação, concorda-se com Gramsci que a supremacia de um grupo social se manifesta como dominação e consenso, aceitando-se, portanto, a reciprocidade entre relações hegemônicas e pedagógicas, onde cada elemento, quando dominante, implica o outro como subalterno122.

Para além do entendimento da hegemonia como uma relação, Gramsci compreendia e deixou claro na grande maioria de seus escritos, que a hegemonia significa direção moral e intelectual e que a passagem de um estado de superstição e folclore para um estado histórico-crítico deveria ocorrer a partir de uma nova cultura, adaptada às exigências da nova classe. Os agentes dessas mudanças seriam os intelectuais (enquanto educadores) e o partido (intelectual coletivo). Ora, “direção moral e intelectual” e “cultura”, confirmam a natureza pedagógica das relações hegemônicas, pois 122. JESUS, Antonio Tavares de. Educação e hegemonia no pensamento de Antonio Gramsci. São Paulo: Cortez, 1989. p. 60. 10 9

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

somente uma ação pedagógica eficiente e integral permite a dominação simbólica (que reforça a dominação material) tanto numa perspectiva hegemônica quanto numa perspectiva contra-hegemônica. “Não se podendo pensar em hegemonia sem o concurso do intelectual, tem-se confirmada a natureza pedagógica das relações hegemônicas”, defende Jesus123. Ainda de acordo com este filósofo, para Gramsci o que importa ao partido é desempenhar sua “função diretiva e organizativa, isto é, educativa ou intelectual”124. Jesus defende ainda que o partido, ao almejar a conquista da hegemonia, constrói uma ação pedagógica, uma vez que seus militantes “se educam” no processo de luta125. Para ele, “unindo a teoria à ação, o partido elabora uma filosofia que educa para uma nova cultura”126. Partindo deste pressuposto (hegemonia como relação pedagógica), é possível argumentar que a grande mídia – “partido político” das elites, ou na acepção togliattiana127, “intelectual coletivo” dos grupos dominantes – desempenha nas sociedades contemporâneas um papel privilegiado de “educadora”, forjando consensos e hegemonizando sentidos, no intuito de preservar seu status quo. Se exercem uma liderança política e ideológica (hegemonia) na sociedade civil, os meios de comunicação ocupam lugar central na luta de classes, sobretudo em países como o Brasil, onde os partidos políticos não têm a mesma capilaridade social, onde a política é muito individualizada (vota-se 123. Ibidem. p. 73. 124. Ibidem. p. 76. 125. Ibidem. p. 79. 126. Ibidem. p. 80. 127. Referente ao militante comunista italiano, Palmiro Togliatti, companheiro fundamental de Gramsci. 110

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

na pessoa e não no partido), deixando uma “lacuna” de representatividade muito bem ocupada pela mídia.128 Compreender a grande mídia como espaço privilegiado da hegemonia do capital, como instrumento privado de dominação ideológica/cultural e como singular “educadora” do senso comum, nos parece fundamental neste atual momento da política no Brasil, onde a rapidez com que a “certezas” têm sido destruídas pela concretude das lutas das/nas ruas, tem forçado os mass media a se “adaptar” também de maneira ligeira, o que acaba explicitando sua fragilidade em tempos de internet e redes sociais, onde a cobertura de um fato não está mais apenas nas mãos de um repórter de um canal de TV/rádio. Parece-nos paradigmático o papel do grupo Midia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), fundado em 2011, nas atuais manifestações em todo o país, notadamente nos grandes centros. O ativismo midiático-político do grupo, alicerçado na força e na amplitude das redes sociais, tem como forma de ação fundamental as transmissões dos fatos em fluxo de vídeo em tempo real, através da internet. Suas centenas de ativistas têm logrado grande destaque nos debates/coberturas sobre as Jornadas de Junho, sobretudo porque desnudaram o véu da neutralidade da grande mídia, divulgando para milhões de usuários de redes sociais no país, o que a imprensa “oficial” não mostra. O impacto da explicitação da “verdade” (A denúncia dos P2 – policiais à paisana – infiltrados nas manifestações de junho, no Rio de Janeiro, é um grande exemplo) pelo Midia Ninja (bem como 128. Na Itália, Gramsci advoga nos Cadernos, “pela falta de partidos organizados e centralizados, não se pode prescindir dos jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos”. Ver (GRAMSCI, Antonio apud MORAES (2009). Op. Cit. p. 43). 111

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

por todo indivíduo que tenha um celular com câmera à mão e faça parte de uma rede social), tem colocado na ordem do dia duas certezas: (i) não se pode negar o potencial das redes sociais nas coberturas – individuais ou coletivas – dos fatos sociais, em qualquer país; (ii) os meios de comunicação hegemônicos (e é necessário afirmar que, a despeito de tudo o que dissemos, ainda são hegemônicos!) têm tentado estratégias de inserção no “mundo das redes sociais”, sem saber ainda muito bem por onde seguir. Colocar repórteres “anônimos” nas ruas, cobrindo o que ocorre para os grandes canais de TV, por exemplo, é mais uma reação do que uma ação. A retaliação cada vez maior aos representantes das grandes corporações de comunicação, tem forçado o mainstream midiático a novos movimentos/táticas, ao mesmo tempo em que volta e meia se veem obrigados a “pedir desculpas”, como o fez o jornalista Arnaldo Jabor, comentarista de política do Jornal da Globo, que taxou de vândalos os manifestantes que em todo o país lutavam pela redução da tarifa dos ônibus129. Pouco tempo depois de vociferar contra as vozes que vinham das ruas de todo o país, o mesmo Jabor veio a público – sob pressão das ruas e de seus patrões, preocupados com a legitimidade de seu jornalismo – dizer que havia “errado”130. Os gritos de “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”, presentes em diversas cidades do país, lograram uma vitória substantiva: no dia 31 de agosto de 2013, O GLOBO, jornal que apoiou abertamente o Golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart em 1964, soltou um edito129. Crítica de Arnaldo Jabor às Manifestações. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013. 130. Retratação de Jabor na Rádio CBN. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013. 112

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

rial (bem diferente daquele publicizado em 1964, logo após o putsch) realizando uma “autocrítica” (extremamente oportunista e rasa) em relação à participação nos acontecimentos da época, e assumindo que errou ao apoiar a autointitulada “Revolução de 1964”. Não se pode deixar passar despercebido que este é um fato extremamente novo na vida social brasileira: os pedidos de desculpas, as autocríticas dos representantes dos grandes meios de comunicação, em questão de dias, após o início das manifestações. Impossível não lembrar do direito de resposta concedido à Leonel Brizola, pela Justiça, contra a Rede Globo, em 1994131. Felizmente, hoje não é mais preciso uma decisão judicial para que os porta-vozes do poder midiático “corram” para suas telas, páginas e áudios para tentar manter o consenso que costuram diariamente e que hoje vem sendo duramente questionado pelas ruas, em sintonia com as redes sociais. Todavia, é importante frisar que, a despeito de sua enorme força, as redes sociais não destituíram os monopólios de comunicação de seu lugar de dominância, tampouco foram as únicas responsáveis por articular/difundir demandas diversas. Como afirma Secco, Apesar de a maioria dos jovens manifestantes usar a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação. A internet é ‘também’ um espaço de interação entre indivíduos mediada pelo mercado de consumo e vigiada pela ‘inteligência’ dos governos132.

131. Direito de Resposta de Leonel Brizola. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013. 132. SECCO (2013). Op. Cit. p. 72-73. 113

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

É importante frisar que não entendo as redes sociais como “boas” ou “más” em si, mas como poderosas ferramentas da contemporaneidade que, ainda que controladas e monopolizadas por alguns grupos, permitem “pontos de fuga” vigorosos, que em conjunturas de tensão social, aglutinam pessoas e difundem concepções de mundo, que ainda que heterogêneas, desafiam o poder dos grandes meios de comunicação, uma vez que um simples blog ou página do Facebook pode atingir mais pessoas que a tiragem de um jornal de grande circulação. E muito mais rápido. Considerações finais Este artigo foi escrito enquanto ocorria o sete de setembro de 2013 e suas comemorações, marcadas pelo enfrentamento do poder constituído com a voz das ruas. As datas históricas, cívicas, representam importantes “lugares de memória”133, onde sentidos diferentes entram em choque, objetivando forjar sínteses históricas a respeito de um determinado período, fato. Mais uma vez, enfatizo que é fundamental entender que nas Jornadas de Junho, mais do que disputas materiais, concretas, por direitos e pela retomada do caráter público da cidade, do espaço urbano, que “nos faz” enquanto indivíduos sociais – sendo a retomada das praças (Taksim na Turquia, Tahrir no Egiro, Sol na Espanha, Syntagma na Grécia etc.) um elemento de extrema significância política – tivemos (e ainda temos) ferrenhas lutas simbólicas em torno do (s) sig-

133. Conceito elaborado pelo historiador francês Pierre Nora (1993), que faz referência a lugares (edifícios, praças, cidades...), datas (comemorações, revoluções, golpes...) e objetos (livros, filmes, fotografias...). 114

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

nificado (a) destes processos hodiernos. Como afirma Rolnik, “como em outros snapshots da guerra de significados, a ocupação da cidade foi disputada por diferentes sentidos”134. Após as reflexões aqui esboçadas, construídas na tessitura do real e no “calor” do momento, não considero receio demasiado recomendar olhares atentos para novos/velhos processos de revolução passiva e transformismo, em andamento ou por vir, uma vez que presenciamos as maiores manifestações de massa de nossa breve e conflituosa história, manifestações que já forçaram o bloco hegemônico de poder a acenar com algumas “renúncias”, com a outorga de alguns “anéis” para se preservar os “dedos”. Hoje, em junho de 2014, um ano após os “levantes” e em meio ao maior evento esportivo já realizado no país – a Copa do Mundo de Futebol –, são muitas as perguntas a serem elaboradas e difíceis os balanços a serem apresentados. Conforme explicitado na primeira nota deste artigo, minhas considerações foram costuradas “em cima dos fatos”, três meses após os episódios de junho de 2013. A despeito do tempo já existente entre as manifestações de massa do ano passado e o agora, entendo que são (e serão) imprescindíveis os debates entre distintos setores da sociedade brasileira, acerca do país que temos e do Brasil que queremos. E se comecei com Emicida e sua música de protesto, terminarei com ele também (em trecho da canção Milionário do Sonho), na defesa intransigente de que a História é sempre um campo aberto de possibilidades: “há sempre um mundo, apesar de já começado, há sempre um mundo pra gente fazer, um mundo não acabado, um mundo filho nosso”.

134. ROLNIK (2013). Op. Cit. p. 10. 115

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Referências Bibliográficas ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. ALMEIDA, Jorge. A relação entre mídia e sociedade civil em Gramsci. Compolítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 120-132, março-abril 2011. BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. BRAGA, Ruy. A economia e seus impactos na população. Le Monde, maio de 2013a. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2013. _______. Sob a sombra do precariado. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013b. p. 79-82. COUTINHO, Carlos Nelson. O significado de Lima Barreto em nossa literatura. In: ______. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. Belo Horizonte: Oficina do Livro, 1990, p. 69-116. ______. Notas sobre cidadania e modernidade. Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social, ano 2, n. 3, p. 1-21, dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2013. 116

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

______. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006. ______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. ______. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: UNESP; Boitempo, 1997. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. JESUS, Antonio Tavares de. Educação e hegemonia no pensamento de Antonio Gramsci. São Paulo: Cortez, 1989. LIGUORI, Guido. Estado e sociedade civil: ler Gramsci para entender a realidade. In: COUTINHO, Carlos Nelson e TEIXEIRA, Andréa de Paula. (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 173-188. ______. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. MOCHCOVITCH, Luna G. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1992. 117

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

MORAES, Denis de. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009. NOGUEIRA, Marco Aurélio. As desventuras do liberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. ______. Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 185-202, jun. 2003. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, São Paulo: Departamento de História da PUC-SP, n. 10, p. 7-28, 1993. ROLNIK, Raquel. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. p. 7-12. SECCO, Lincoln. As jornadas de junho. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. p. 71-78. WERNECK VIANNA, Luiz. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. ŽIŽEK, Slavoj. Problemas no paraíso. In: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que to-

118

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

maram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. p. 101-108.

Sites Crítica de Arnaldo Jabor às Manifestações. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fdjw00-2nyo. Acesso em: 10 out. 2013. Retratação de Jabor na Rádio CBN. Disponível em: http:// www.youtube.com/watch?v=0h5x8YCFxDI. Acesso em: 10 out. 2013. Direito de Resposta de Leonel Brizola. Disponível em: http:// www.youtube.com/watch?v=ObW0kYAXh-8. Acesso em: 10 out. 2013. Greves no país nos últimos anos. Disponível em: http://resistir.info/brasil/jornada_lutas_30jul13.html. Acesso em: 10 out. 2013.

119

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

O primeiro “desembarque” de Gramsci no Brasil: o homem certo na hora errada? AIMAN FRANCO

Introdução Antonio Gramsci é hoje em dia, talvez o pensador marxista mais “conhecido” – ainda que não necessariamente compreendido – em terras tupiniquins. Para além do universo acadêmico, onde as referências a Gramsci vão desde estudos de sua obra até os mais variados empregos de seus conceitos num amplo espectro do conhecimento (passando pela História, a Educação, o Serviço Social etc.), Gramsci aparece até mesmo (de modo amplamente distorcido) no debate da grande imprensa contemporânea, ainda que, na maioria das vezes, como uma espécie de fantasma político que deva ser exorcizado. Em que pese, entretanto, a atual popularidade do marxista sardo, Gramsci é um autor, em perspectiva histórica, de inserção recente no Brasil. Sua real inclusão no debate brasileiro dá-se durante o fim dos anos 1970 e os anos 1980, durante o ciclo agonizante do consulado militar instalado em abril de 1964. Nesta conjuntura, a primazia conferida à dimensão da política em sua obra principal – os Cadernos do Cárcere – aparecerá como uma potencial resposta à necessi120

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

dade do debate político posta pela conjuntura de ascenso das lutas populares então vivida. Não é minha intenção neste breve artigo aprofundar esta análise, mesmo acreditando que a resposta apresentada possa ser satisfatoriamente defendida. Minha abordagem, entretanto, buscará recuperar aquela que foi, faticamente, a primeira inserção de Gramsci no Brasil: aquela que se dá durante o final da década de 1960, no projeto de publicação de suas obras por parte da editora Civilização Brasileira. Quais foram as condições daquele momento? O que conduziu ao interesse por Gramsci? E, finalmente, porque o empreendimento não foi à frente? É para estes questionamentos que pretendo oferecer elementos a partir de uma perspectiva historiográfica135. O marxismo pré-1964: antecedentes do “desembarque” de Gramsci no Brasil Em primeiro lugar, é importante notar que Gramsci é um autor de publicação tardia. Aqui me refiro à publicação original de suas obras. Como se sabe, a produção gramsciana inicia-se nos anos 1920, nos tempos de L’Ordine Nuovo e das ocupações de fábrica no norte da Itália. Sua contribuição intelectual mais densa, no entanto, é aquela que se encontra exposta, de modo fragmentário e assistemático, nos cadernos que ele elabora durante sua permanência nos cárceres do fascismo: os chamados Cadernos do Cárcere136. Cabe notar 135. Não é demasiado assinalar que os méritos da pesquisa realizada residem no trabalho dos autores aqui referenciados. Os eventuais erros de análise, porém, cabem exclusivamente a mim. 136. Vale aqui lembrar que os Cadernos do Cárcere eram anotações de estudo de Gramsci, sem pretensão de publicação. Além disso, as condições nos quais os mes121

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

que não quero aqui negar a existência do trabalho de Gramsci antes da prisão. Seu trabalho nesse período, entretanto, está marcadamente amarrado à sua atuação política, colado assim às condições da luta socialista na Itália do primeiro pós-guerra – o que se coaduna com a posição de destaque que ele ocupa na direção do movimento operário durante este período. Penso assim, que é indevida uma comparação da estatura teórica destes textos, cujo caráter é eminentemente conjuntural, com sua produção do período do cárcere, onde toda sua energia estava voltada para o trabalho intelectual. Ora, os Cadernos não eram uma obra destinada para a publicação: seu conhecimento pelo público em geral e a possibilidade de sua incorporação pelo pensamento marxista deve-se fundamentalmente, ao esforço de publicação realizado por Palmiro Togliatti, secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), que recolheu as anotações de Gramsci, organizou e sistematizou-as, publicando-as após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. A publicação de Gramsci na Itália, portanto, data do fim dos anos 1940 (os Cadernos começam a ser publicados, em sua edição temática, em 1948), mais de uma década após a morte do autor. Em segundo lugar, devemos resgatar o que era o horizonte do pensamento marxista no Brasil até 1956. Durante o período que vai dos anos 1920 até os anos 1950, o marxismo brasileiro constituía-se numa espécie de monopólio por parte de uma sigla política: o PCB. Lembro aqui que, diferente de países europeus ou mesmo de outros países da América Lati-

mos foram produzidos determinariam muitos aspectos de sua exposição: escrito em cadernos escolares, nos quais Gramsci trabalhou na prisão, utilizava-se de uma linguagem maquiada, de modo a escapar aos olhos dos censores fascistas. 122

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

na (como ilustra o caso da Argentina137), no Brasil não havia tradição socialista anterior à fundação do partido comunista – o socialismo reformista ao estilo da II Internacional nunca fincou bases por aqui, sendo o próprio PCB o resultado do deslocamento de lideranças historicamente identificadas com o anarquismo: A necessidade de se superar as debilidades e a incapacidade política e ideológica daqueles que davam a direção ao movimento operário e de abrir perspectivas favoráveis às transformações radicais na sociedade brasileira faz com que comecem a surgir – principalmente a partir das repercussões da Revolução Russa no Brasil –, no seio das direções operárias, originárias do anarquismo, a discussão e a formação dos primeiros grupos comunistas que, em março de 1922, realizam um congresso e fundam o PCB 138.

Desse modo, a influência marxista no Brasil está intimamente vinculada ao desenvolvimento do PCB e de suas condições de atuação e reflexão. Como parte do movimento comunista internacional, o PCB – após um breve período de experimentação política que vai da sua fundação até 1928/1929139 – enquadrou-se nas formulações teórico-políticas emanadas da III Internacional, que vão constituir aquilo 137. Fundado em 1896, o Partido Socialista Obrero Argentino teve como principal figura fundadora Juan B. Justo, responsável pela primeira tradução para o espanhol de O capital, e foi também responsável pela eleição, em 1904, do primeiro deputado socialista da América Latina, Alfredo Palacios. 138. SEGATTO, José Antônio. Breve história do PCB. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989. p. 22. 139. Sobre este período, ver ZAIDAN FILHO, Michel. O PCB (1922-1929): na busca das origens de um marxismo nacional. São Paulo: Global, 1985. 123

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

que viria a ser conhecido como o “marxismo-leninismo”140. Assim, o desenvolvimento de um pensamento marxista original – bem como a possível influência de leituras “heterodoxas” – viram-se tolhidas devido ao enquadramento nos rígidos manuais soviéticos141. Também concorriam para este panorama, as difíceis condições de trabalho do PCB: no período que vai de sua fundação, em 1922, até 1956 – ano do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, cujo impacto abordaremos a seguir – o PCB havia vivido menos de 2 anos de existência legal, entre 1945 e 1947. No restante do período, esteve submetido não só à clandestinidade, mas também à repressão sistemática por parte do Estado e mesmo um período de total desbaratamento durante o Estado Novo142. Em 1956, entretanto, um evento traumático na história do movimento comunista abalroaria definitivamente o mo-

140. O chamado “marxismo-leninismo” é um produto das condições históricas de desenvolvimento e bloqueio da experiência de transição da URSS. Sua afirmação enquanto expressão teórica oficial e autorizada do Estado-Partido soviético esteve intimamente ligada à ascensão do fenômeno stalinista, que atrofiou o desenvolvimento do debate na União Soviética, e às condições do movimento revolucionário europeu no período entreguerras, quando fracassara o ímpeto revolucionário deflagrado pela Revolução de Outubro. Neste sentido, o esgotamento das condições que possibilitaram um desenvolvimento criativo da reflexão marxista na abertura dos anos 1920 (como o provam os escritos de Gramsci sobre os conselho operários de Turim, a obra de Korsch Marxismo e filosofia e, principalmente, a publicação de História e consciência de classe por Lukács) levaram o movimento comunista a reproduzir, de modo ampliado e dogmático, o legado do marxismo da II Internacional: um marxismo influenciado pela voga positivista de fins do século XIX, elevado a uma concepção universal de mundo com um claro viés fatalista – em outras palavras, uma expressão particularmente vulgar do legado marxiano. Sobre este assunto, ver NETTO, José Paulo. O que é stalinismo. São Paulo: Brasiliense, 1981. 141. A título de picardia, recomenda-se ao leitor interessado em conhecer uma versão autorizada deste pensamento a obra de KUUSINEN, O. V. et alli. Fundamentos do Marxismo-Leninismo. Rio de Janeiro: Vitória, 1962. 142. SEGATTO (1989). Op. Cit. 124

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

nolitismo ideológico: o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética: Foi então que uma espécie de bomba explodiu no seio do movimento comunista: os soviéticos, pela voz autorizada de Nikita Kruschev, secretário-geral do partido, reconheceram que, apesar dos seus méritos históricos, o período stalinista (ou, nas palavras dos dirigentes soviéticos, o período do culto à personalidade de Stalin), demarcou uma época em que se cometeram inúmeras e terríveis violações dos princípios comunistas. A partir da denúncia da autocracia stalinista, quebrou-se o silêncio forçado que dava ao movimento comunista a aparência de um bloco monolítico. Nos países em transição socialista, ocorreram sensíveis modificações, tendentes a uma maior democratização da vida social (a desestalinização ou, na famosa expressão do romancista Ilia Ehrenburg, o degelo). Nos partidos comunistas dos países capitalistas, por seu turno, verificaram-se movimentos de crítica e autocrítica por vezes dilacerantes143.

Abria-se assim um período marcado por uma grande crise que se abateu sobre o movimento comunista internacional, cujas repercussões e consequências teriam um efeito definitivo sobre a história posterior desse movimento. Se 1956 é um marco, não foi apenas o XX Congresso que determinou a mudança de panorama no marxismo brasileiro a partir dos anos 1950: também a experiência política do 143. NETTO, José Paulo. O que todo cidadão precisa saber sobre o comunismo. São Paulo: Global, 1986. p. 59-60. 125

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

PCB e as mudanças na conjuntura nacional criavam espaço para uma mudança de perspectivas. Ora, desde 1950 que a linha do PCB estava determinada pelo chamado Manifesto de Agosto, um texto de viés dogmático, onde se afirmava uma visão esquerdista do processo revolucionário brasileiro e que se traduzia numa prática política sectária – como, por exemplo, a tática de investir no racha das entidades sindicais para construir “sindicatos vermelhos” – e a manutenção de uma clandestinidade excessiva do corpo partidário144. O período aberto pelo segundo governo de Getúlio Vargas marcava uma incipiente, porém progressiva organização dos movimentos populares – o que acentuaria o descolamento da realidade da linha comunista. Paulatinamente, assim, a prática cotidiana foi levando o PCB à afastar-se da linha enunciada em seu manifesto programático – o que pode ser atestado pelo abandono da tática rupturista nos sindicatos (a partir da Resolução sindical de 1952) e o envolvimento do Partido na campanha “O Petróleo é nosso” (1953-1954). Adicione-se 144. Após a ilegalidade de 1947, a direção pecebista avaliou, equivocadamente, que se abriria um novo período de repressão sistemática aos comunistas, tal como ocorrera sob o Estado Novo: “jogado na clandestinidade e tendo seus jornais fechados, seus Comitês Democráticos dissolvidos, seus líderes sindicais afastados pelas intervenções, seus parlamentares cassados, seus militantes perseguidos ferozmente, o PCB começa a perceber sua força e influência diminuírem bruscamente. Isso tudo provoca, entre os dirigentes e militantes comunistas, um profundo sentimento de derrota e de descrédito no ‘jogo’ político da ‘democracia burguesa’, tendo como consequência uma revisão radical de sua política” (SEGATTO (1989). Op. Cit. p.71). Deste modo, os comunistas mergulharam numa clandestinidade absoluta, a ponto de seu secretário-geral e mais conhecido líder, Luís Carlos Prestes, não aparecer em público ou mesmo em reuniões da direção partidária durante todo o período que vai até 1956. Foi neste período que a combinação entre a cultura partidária stalinista e as condições de clandestinidade levaram o partido a viver um período no qual a democracia interna reduziu-se à insignificância e onde a direção foi exercida com mão-de-ferro pelo seu secretário de organização, Diógenes de Arruda Câmara. É em referência a este período que surgiu a gíria pecebista do “arrudismo”, para classificar os métodos antidemocráticos de direção. Ver BEZERRA, Gregório. Memórias. Segunda parte: 1946-1969. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979). 126

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

posteriormente o baque de 1954 – quando, diante da grande mobilização popular após o suicídio de Vargas, o PCB retoma uma atuação mais próxima do bloco de forças nacionalistas, apoiando a candidatura de Juscelino Kubitschek e a movimentação legalista do Marechal Lott: A perplexidade em que se encontrou o partido no processo do suicídio de Getúlio e os fracassos verificados nas eleições parlamentares e de governadores de outubro daquele ano evidenciaram que as coisas não podiam continuar do jeito que estavam […] E as repercussões começaram a aparecer em 1955, quando o PCB apoiou a candidatura de Juscelino Kubitschek (PSD-PTB). Eleito presidente com pequena vantagem sobre Juarez Távora (UDN) (Ademar de Barros, candidato do PSP, também teve grande votação) a 3 de outubro, já no dia 11 de novembro o ministro da Guerra de Café Filho, general Lott, se vê na contingência de comandar um ‘golpe antigolpe’ para atalhar a conspiração reacionária em marcha, destinada a impedir a posse de JK e do vice-presidente eleito, João Goulart. […] JK tomou posse e iniciou seu governo sob a vigência do estado de sítio. E começou um novo período na vida brasileira, um período em que a questão democrática continuava colocada de forma crucial – reforçada pelas novas características da inserção das massas populares no processo político e em que as classes dominantes (excluídos os golpistas, que estavam isolados) puderam contar com um governo voltado para o desenvolvimento capitalista (Programa de Metas, “Cinquenta anos em cinco” etc.). Um período 1 27

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

que exigia a elaboração, por parte dos comunistas, de uma nova política145.

Chegamos assim em 1956 com um PCB com uma linha antiquada e descolada de sua prática cotidiana. O impacto do XX Congresso detona o debate interno – debate este que, depois de um período público e de certo desnorteio por parte da direção partidária, será posteriormente contido (não sem antes promover baixas, como a ruptura da corrente crítica liderada por Agildo Barata)146. Suas consequências, porém, seriam sentidas em dois níveis: em primeiro lugar, no plano da política, com o realinhamento geral da linha partidária, calcada numa reavaliação da conjuntura brasileira e na experiência prática acumulada desde 1952, cuja expressão é a Declaração de Março de 1958. Nesse sentido, Marco Aurélio Nogueira assinala que a Declaração de Março e a autocrítica exercida pelo PCB no período significaram: [...] os primeiros ajustes de contas do PCB com o stalinismo, seus dogmas, seu taticismo, suas concepções instrumentalistas, seu sistema mandonista, seu mecânico centralismo, seus dirigentes arrogantes e autossuficientes. A Declaração de Março de 1958, neste sentido, representa o início de uma nova fase na vida do Partido, redefinindo a compreensão que os comunistas tinham do movimento democrático e nacionalista, da política de frente única e do papel da demo145. MALIN, Mauro e FREITAS, Milton. Do Manifesto de Agosto à Declaração de Março. Voz da Unidade. São Paulo, ano I, n. 29, 17 a 23 de outubro de 1980. p. 5. 146. Sobre o processo de debate interno e seu fechamento pela direção partidária, ver KONDER. Leandro. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 128

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

cracia na luta pelo socialismo. E é inegável que, a partir dela, o PCB passou a se inserir de forma mais ativa na sociedade brasileira147.

O segundo impacto é no plano cultural: o Partido abre-se então para leituras diferentes daquela referendada pela doutrina oficial, desde que não se conflitassem com a linha política partidária. E é esta abertura que abrirá os espaços para a entrada de Gramsci no universo de referências teóricas da intelectualidade pecebista. Quanto a este ponto, Secco destaca que: [...] inobstante a tímida alteração introduzida na organização burocrática do partido, a Declaração de Março e o V Congresso levavam o PCB a superar, orgânica e politicamente, a linha considerada esquerdista do Manifesto de Agosto (1950); também abria um espaço de debate intelectual no partido. Uma das publicações animadas pelo partido na época era Estudos Sociais, que no seu corpo trazia o fundador do PCB, Astrojildo Pereira, que também mantinha boas relações com o gramsciano Hector Agosti. No rascunho de uma carta dirigida ao ‘estimado amigo H. Agosti’, encontrada em seu arquivo pessoal, pode-se observar que Astrojildo recebia regularmente os Cadernos de Cultura e, naturalmente, conhecia o pensamento de Gramsci148.

147. NOGUEIRA, Marco Aurélio (org.). PCB: vinte anos de política 1958-1979 (documentos). São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. p. IX. 148. SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas ideias. São Paulo: Cortez, 2002. p. 26. 129

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

É curioso notar que Gramsci não era, até então, um “ilustre desconhecido”. Já nos anos 1930 havia referências ao marxista italiano no Brasil. Estas, porém, não estavam ligadas a sua obra, mas sim à sua trajetória pessoal – Gramsci era apresentado até então como o exemplo de “homem de partido”, que morrera como mártir após anos de sofrimento nas masmorras de Mussolini. As poucas referências a seus escritos detinham-se em algumas polêmicas instrumentais, como por algumas referências a Trotsky. Seria somente com a abertura pós-1958 que os escritos de Gramsci começarão a ingressar no universo de referências dos comunistas – e, portanto, dos marxistas brasileiros. Não por acaso, data de 1962 a primeira tentativa de discussão política da obra de Gramsci por parte de um brasileiro – trata-se no caso do artigo Consciência de classe e partido revolucionário, de Michael Löwy, publicado na Revista Brasiliense149, em que o autor dedica-se ao debate da teoria do partido e no qual resgata, em meio a Lenin, Rosa Luxemburgo e Lukács, o Gramsci dos conselhos de fábrica. O promissor processo de abertura e acumulação do pensamento marxista no pós-1958, intimamente ligado ao período de ascenso das lutas populares nos anos 1950 – no qual, inclusive, o pensamento marxista começa a romper as fronteiras do PCB – não terá contudo vida longa. Em que pese as batalhas travadas pelas forças nacional-populares no período150, especialmente durante a crise e o acirramento das con149. LÖWY, Michael. Consciência de classe e partido revolucionário. Revista Brasiliense, n. 41, p. 138-160. São Paulo: Brasiliense, 1962. 150. Cabe notar aqui que a análise e crítica do papel jogado pelas forças nacional-populares no período tem sido objeto de debates e polêmicas desde então, especialmente quando considerados os significados e consequências políticas dos diferentes balanços realizados a respeito. 130

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

tradições durante o governo João Goulart, o advento do Golpe de abril de 1964 representou uma ruptura nas condições sociopolíticas do país que propiciavam àquele desenvolvimento intelectual espaço para florescer. Afinal, O Golpe, interrompendo um processo democrático, não foi dado apenas para trocar um governo progressista por outro reacionário, mas para substituir um regime representativo da Constituição de 1946 por uma ditadura reacionária de direita, antinacional e antipopular151.

Vejamos, portanto, qual o ambiente no qual virão à tona as primeiras publicações de Gramsci no Brasil. O sentido do Golpe e o ambiente cultural pós-1964 Como vimos acima, o processo de acumulação do pensamento marxista sofreu uma peculiar ruptura com o Golpe de abril de 1964: ora, o ascendente Estado de Segurança Nacional152, cuja implantação iniciara-se com o triunfo da conspiração que derrubou João Goulart, não foi capaz, num primeiro momento, de estabelecer uma hegemonia cultural no país. Apesar de sua vitória política, Yamamoto assinala que “na primeira fase da instituição da ideologia da segurança nacional, não há um correspondente avanço do pensamen151. GOLPE inaugura período mais negro no país. Voz da Unidade. São Paulo, ano I, n. 1, 30 de março a 5 de abril de 1980. p. 9. 152. Para uma análise da gênese da chamada Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento e sua materialização no Estado de Segurança Nacional, implantado a partir do Golpe de abril de 1964, ver ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, RJ: Vozes, 1984. 131

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

to conservador no campo da cultura; ao contrário, conforme Schwarz, apesar da ditadura de direita, existe uma hegemonia cultural relativa da esquerda no país”153. Para compreender melhor esse período, é preciso inicialmente realizar um pequeno apanhado histórico do que representou o ciclo autocrático burguês instalado em 1964 e suas etapas de desenvolvimento. Primeiramente, cabe resgatar que o Estado gerado no pós-1964 fora a resposta encontrada pelas classes dominantes à crise social que se abrira em princípios da década de 1960, – crise esta cujo rebatimento principal dava-se sobre a projeção sócio-histórica do desenvolvimento nacional: O fulcro dos dilemas brasileiros no período 1961-1964 pode ser sintetizado na constatação de uma crise da forma de dominação burguesa no Brasil, gestada fundamentalmente pela contradição entre as demandas derivadas da dinâmica de desenvolvimento embasada na industrialização pesada e a modalidade de intervenção, articulação e representação das classes e camadas sociais no sistema de poder político. O padrão de acumulação suposto pelas primeiras entrava progressivamente em contradição com as requisições democráticas, nacionais e populares que a segunda permitia emergir. O alargamento e o aprofundamento desta contradição, precipitados pelas lutas e tensões sociais no período, erodiam consistentemente o lastro hegemônico da dominação burguesa154. 153. YAMAMOTO, Oswaldo Hajime. A Educação Brasileira e a Tradição Marxista (1970-90). São Paulo: Moraes, 1996. p. 55. 154. NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2007. p. 26. 13 2

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Nesse sentido, o Golpe de abril representara o triunfo de um pacto contrarrevolucionário, arquitetado com o objetivo de frenar a afirmação de uma alternativa de desenvolvimento democrático e independente – alternativa esta representada então pela articulação de atores sociopolíticos que sustentavam a presidência de João Goulart – e afirmando, em seu lugar, um novo pacto com o capital monopolista internacional, cujas exigências chocavam-se com posições tornadas possíveis exatamente pelo jogo democrático e que congelava, por meio da hipertrofia do elemento coativo da sociedade, a disputa por sua hegemonia. Este pacto, entretanto, não tardou a ruir. O Golpe de abril de 1964 fora, essencialmente, um golpe contra Goulart e as forças sociopolíticas que compunham sua base de sustentação. Estava claro, assim, contra o que se colocaram as forças que construíram e apoiaram o Golpe; faltava entretanto, uma base clara de acordo quanto a qual era a alternativa que os golpistas se propunham a construir: Exceto a componente civil-militar que se vinculava à base das projeções nucleadas pela Escola Superior de Guerra (ESG), os outros protagonistas vitoriosos em 1964 compunham um leque tão heterogêneo e contraditório que estava impedida a prévia e/ou imediata definição do regime a ser implantado – a única nitidez referia-se ao seu caráter inicialmente excepcional, mas eram várias as alternativas propostas quanto à extensão e à profundidade do arbítrio necessário155.

155. Ibidem. p. 34. 13 3

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Não quero aqui dizer que não havia programas – e mesmo programas definidos, elaborados durante os anos anteriores ao Golpe. Não há como ignorar, nesse sentido, a atividade do complexo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)/Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o papel da ESG na formulação da chamada Doutrina de Segurança Nacional, que acabaria por servir de base programática ao Estado construído no pós-1964156. Pretendo apenas assinalar que não havia, entre as forças de sustentação do Golpe de abril, um programa único, mas sim um conjunto de interesses comuns que forneceram a base para a unidade em torno da ação golpista. Tomado o poder e estabelecido o novo regime, inevitavelmente afloraram as contradições existentes entre esses setores. O período do consulado militar instalado em abril de 1964 é, portanto, dinâmico e contraditório, atravessado pelas disputas internas no novo bloco de poder e as pressões nele exercidas pelas forças excluídas deste mesmo bloco. Estas disputas, com suas marchas e contramarchas, irão paulatinamente afirmando o caráter do novo regime – caráter este que provocará tensões e descolamentos do bloco dominante, haja vista a contrariedade de interesses nele presentes. É assim que, com a afirmação enquanto força hegemônica do novo regime das forças ligadas ao grande capital monopolista e ao imperialismo, a base de sustentação dos golpistas começa a ruir. O predomínio do grande capital e o processo em marcha de modernização excludente e subordinada ao grande capital internacional – a chamada “modernização conservadora” – vai progressivamente isolando setores que esta156. Para uma avaliação mais detalhada, ver DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. 134

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

vam vinculados ao Golpe, aumentando assim a necessidade do recurso à coação por parte do regime. Neste processo, a resistência amplia-se, até empurrar o regime para a defensiva, até o momento onde não se tratava mais de discutir uma estratégia para sua perpetuação, mas sim de tentar impor os termos nos quais se daria a desarticulação do mesmo. São diversas as caracterizações existentes quanto às várias etapas pela qual passou o regime instalado em 1964. Todas elas, entretanto, tendem a caracterizar uma primeira etapa, que iria de abril de 1964 a dezembro de 1968, marcada pela “inépcia da ditadura em legitimar-se politicamente, em articular uma ampla base social de apoio que sustentasse as suas iniciativas”157 e na qual, após investir sobre os atores em potencial da resistência antiditatorial – apresentando-se, para tal, como um período de excepcionalidade necessário – o regime viu ruir a unidade das forças golpistas. É, portanto, dentro dos marcos desta etapa que se darão as primeiras publicações de Gramsci no Brasil. Esse é um período no qual se vive uma curiosa liberdade cultural, em contraste com o fechamento dos espaços políticos: De fato, se considerarmos o panorama cultural do período em tela, verificaremos que tratava-se de um momento de intensa efervescência. No campo específico das ciências sociais, é o momento em que aparecem as revistas ‘Civilização Brasileira’ e ‘Paz e Terra’; é o tempo em que surge uma considerável produção original, particularmente no âmbito daquele grupo ligado à Universidade de São Paulo e a Florestan Fer157. NETTO (2007). Op. Cit. p. 35. 135

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

nandes; também é, no campo marxista, a época em que inúmeras traduções de autores expressivos, assim como a primeira edição integral de ‘O Capital’ em português são publicadas. Assim, embora em meio às dificuldades já assinaladas com relação à instituição universitária, consolida-se o marxismo no âmbito da academia158.

Analiso mais detidamente, portanto, o aspecto cultural que caracterizou o período que vai do Golpe de abril de 1964 até a instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968. Como visto acima, este período engendrou um paradoxo: ao triunfo de um golpe reacionário não se seguiu um avanço do conservadorismo ou do reacionarismo no chamado “mundo da cultura”, mas antes se verificou “a afirmação de uma tendencial hegemonia cultural – é certo que prenhe de problemas – dos setores democráticos e progressistas”159. Este, porém, é um paradoxo aparente – apenas um sociologismo rasteiro permitiria ignorar as tendências históricas em desenvolvimento no momento do Golpe e ver uma ligação mecânica entre o regime político recém-instaurado e o ambiente cultural do país. Desde a década de 1950 avançavam as tendências - no seio da cultura brasileira - que se direcionavam para a superação do histórico elitismo cultural no país, tendências estas que, em meio à dinâmica sociopolítica vivida pelo país então, potencializavam-se através de sua articulação com os setores avançados da sociedade brasileira. Ora, o significativo desenvolvimento desses vetores, já alcançado à hora do Gol158. YAMAMOTO (1996). Op. Cit. p. 56. 159. NETTO (2007). Op. Cit. p. 72-73. 136

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

pe, não podia ser interrompido a partir de um ato de força: sua evicção demandava uma política dirigida de terrorismo cultural em larga escala e considerável duração. Deve-se também resgatar a abrangência socioeconômica deste fenômeno – ou seja, recuperar a origem de classe dos protagonistas deste: constata-se, então, que os mesmos estão esmagadoramente ligados à pequena burguesia urbana (estudantes, professores, artistas, jovens profissionais liberais), sendo a presença de protagonistas operários ou camponeses absolutamente desprezível. Quando projeta-se este dado sobre a realidade social brasileira da época, percebe-se assim que a amplitude deste fenômeno cultural era parca, sendo sua influência para além do restrito círculo letrado limitada a algumas camadas de trabalhadores dos centros urbanos. Finalmente, cabe analisar a política cultural do novo regime – como este atuou frente ao desafio posto pelas tendências culturais em desenvolvimento? Yamamoto, seguindo Netto, fala na “natureza ambígua da intervenção do Estado de Segurança Nacional, marcada primariamente, no campo cultural, por uma ‘estratégia de contenção’”160. Mas em que consistiria, afinal, essa estratégia? Ora, é fato que, no momento inicial de consolidação do Golpe, houve um assalto frontal também contra a esfera cultural da sociedade – uma espécie de “Operação Limpeza”, que visava àqueles atores mais ativos do movimento social no momento imediatamente anterior ao Golpe. Tem-se como exemplo as medidas tomadas pelo novo governo diante das universidades: A Universidade de São Paulo foi invadida por tropas, e a Faculdade de Filosofia, quase totalmente destruí160. YAMAMOTO (1996). Op. Cit. p. 55. 1 37

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

da, com prejuízos na época estimados em 10 milhões de cruzeiros […] A Universidade de Minas Gerais foi submetida à intervenção militar direta, sendo nomeado um reitor militar por período de um ano […] Mas o caso mais sério de interferência terá sido talvez o da Universidade de Brasília. Durante o governo João Goulart, a Universidade de Brasília tivera ação pioneira no sentido de harmonizar seu currículo às necessidades de uma sociedade em desenvolvimento. Os militares consideraram o currículo subversivo e de inspiração comunista. Por isso, o total desmantelamento da Universidade de Brasília e sua reformulação eram objetivo prioritário dos grupos que tomaram o poder em 1964. Um dia apenas após o Golpe, tropas invadiram a universidade, prendendo professores e todos os membros de organizações estudantis que estavam no prédio161.

Havia, portanto, uma clara componente de terror na atuação imediata do novo regime na frente cultural no momento imediatamente posterior ao Golpe. Essa vaga repressiva, porém, não se conformaria como tendência – sua ocorrência fora um efeito colateral da estratégia, por parte do novo governo, de desmantelamento do movimento operário e democrático e suas organizações: ou seja, a desarticulação daqueles principais atores derrotados em 1964: A frente prioritária a ser atacada pelos que empalmaram o poder era a do movimento operário e sindical e das organizações políticas e sociais a ele vinculadas e 161. ALVES (1984). Op. Cit. p. 67. 13 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

democráticas: a repressão que se seguiu ao 1º de abril concentrou-se naquelas forças que poderiam contrapor-se diretamente à nova ordem. Nesse sentido, a vaga repressiva que atingiu o ‘mundo da cultura’, sem dúvida configurando uma fase intensa e breve de terrorismo, visou desmantelar suas instâncias organizativas e suas instituições mais salitentes. Isto feito, a ditadura empenhou-se em restringir – e, nesse plano, a censura passou a desempenhar um papel central – a difusão cultural para além do circuito letrado162.

Passada essa onda inicial, o regime passou a empregar uma estratégia mais sutil onde, através do emprego basicamente da censura, buscava restringir o impacto das movimentações culturais – tenhamos em mente que, conforme assinalado anteriormente, as manifestações culturais estavam ligadas basicamente à pequena burguesia urbana, cuja relevância sociopolítica no conjunto da sociedade era reduzida. A censura, ao impedir a propagação dos fenômenos culturais para as amplas massas, sufocava assim seu impacto político. Essa estratégia sutil, no entanto, não estava ligada a uma eventual “compaixão” do regime para com o “mundo da cultura”, mas sim atendia a outros objetivos da estratégia de consolidação do mesmo. Netto assinala que a postura de contenção adotada devia-se a: [...] razões de monta: primeiro, porque as tarefas do enquadramento do ‘mundo do trabalho’ exigiam a concentração de suas energias; segundo, porque aspirava a ampliar seus suportes sociopolíticos buscan162. NETTO (2007). Op. Cit. p. 74. 139

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

do neutralizar os segmentos pequeno-burgueses de oposição sem o recurso da repressão; terceiro, porque tinha conhecimento da abrangência efetiva das tendências democráticas e progressistas do/no ‘mundo da cultura’; e, enfim, porque pretendia ganhar alguma legitimidade em face dos segmentos mais ‘tradicionais’ deste ‘mundo’ e, para tanto, uma postura terrorista generalizada e de largo porte seria contraproducente. E ainda – dado não desprezível – porque contava, no seu projeto ‘modernizador’, com um esboço de política de comunicação social que tenderia a contrearrestar, na ‘cultura de massas’, as incidências das vertentes democráticas e progressistas operantes na ‘alta cultura’163.

Os objetivos colocados pelo regime, entretanto, não seriam plenamente alcançados. Se, por um lado, os golpes repressivos atingiram duramente os vínculos existentes entre o “mundo da cultura” e as forças e movimentos sociais populares democráticos, a tentativa de ganhar adesões que possibilitassem construir uma alternativa cultural a partir da própria intelectualidade existente viu-se frustrada – e este fracasso deveu-se à própria dinâmica social posta em movimento a partir de 1964. Como visto anteriormente, as políticas implantadas pelo novo regime detonaram um processo de “modernização conservadora” – processo este que teve um impacto dilacerante sobre a base de sustentação do regime, com o desgarramento de parte das camadas médias urbanas que haviam apoiado o Golpe e mesmo a radicalização de uma parcela 163. Ibidem. p. 74-75. 140

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

da pequena burguesia164. Se, por um lado, o regime fracassava em conseguir adesões significativas no mundo cultural, por outro, os protagonistas deste – sob o impacto decisivo dos acontecimentos pós-1964 – caminhavam em sentido cada vez mais radical. Assim, as tendências de desenvolvimento cultural que se anunciavam no pré-Golpe prosseguem seu desenvolvimento: [...] o panorama cultural dos anos 1965-1968 – nas ciências sociais, no teatro, na poesia, no cinema, na ficção – é inteiramente dominado pelas correntes críticas, democráticas e progressistas, com peso sensível, inclusive, de matrizes intelectuais extraídas da tradição marxista. E, no circuito desta cultura, o que se engendrou não foi apenas um caldo cultural de franca oposição ao regime – foi algo distinto: um caldo cultural anticapitalista165.

A estratégia posta em movimento por parte do regime, na qual não se colocava um contraponto cultural (excetuando-se, é claro, a pressão exercida pela censura), se por um lado permitira o desenvolvimento da hegemonia dos setores populares e democráticos no campo cultural, não deixara entretanto de imprimir sua marca sobre este desenvolvimento: recorda-se, aqui, dos bem-sucedidos golpes empreendidos pelo regime contra as ligações existentes entre o movimento cul164. Quanto a este processo, é interessante recordar o papel assumido por algumas lideranças estudantis da poderosa Juventude Católica – depois transformada em Ação Popular – em 1964 e 1968: citamos como exemplo o caso de Jean-Marc von der Weid, importante liderança da União Nacional dos Estudantes (UNE) nas manifestações de 1968 e que, em 1964, estivera entre aqueles que se dirigiram ao Palácio Guanabara para defender o governador Carlos Lacerda e a articulação golpista. 165. NETTO (2007). Op. Cit. p.77. 141

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

tural e o movimento operário e popular. A interrupção desta ligação, assim, pusera o “mundo da cultura” numa dinâmica política própria – um fato decisivo, na medida em que debilitava essa hegemonia alcançada pelos setores democráticos: “sitiada no ‘mundo da cultura’, a hegemonia cultural do campo democrático não só tendia a esgotar-se em si mesma como, principalmente, tinha debilitada a sua referência no conjunto da sociedade”166. Ora, essa dinâmica só poderia frutificar em sua inter-relação – como ocorrera nos anos anteriores a 1964 – com os setores dinâmicos da sociedade. Isolada, tendia à radicalização irracionalista e ao esvaziamento. Não é por acaso, assim, que o impacto de 1968 e do AI-5 serão devastadores: a mão pesada da repressão abate-se agora sobre os setores sociais que mergulharam nessa dinâmica radicalizada, descolada do conjunto da sociedade – majoritariamente, a pequena burguesia urbana. Eles serão batidos sem maiores repercussões sociais. Consequentemente, a rica dinâmica cultural do período perde-se: ingressa-se na fase do “vazio cultural” pós-1968/1969 – liquidadas as tendências democráticas até então hegemônicas, operarão simultaneamente as pressões irracionalistas e o peso do esforço iniciado pela autocracia burguesa – a base de uma política de terror cultural sistemático – em direcionar a vida cultural do país. O primeiro ciclo gramsciano: as publicações dos anos 1960 É na conjuntura que delineei acima – no intervalo que vai do Golpe de abril de 1964 até a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968 – que serão publicadas, pela primeira 166. Ibidem. p. 79. 142

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

vez, as obras de Gramsci no Brasil. Vamos agora tecer alguns comentários a respeito do destino deste projeto. Conforme discuti acima, especial papel nesta publicação cabe aos intelectuais vinculados ao PCB. Ora, num momento de efervescência cultural, o compromisso tácito que permitira a abertura das perspectivas de debate cultural no Partido permitira a este sintonizar-se com estas tendências avançadas, abrindo espaço para reflexões originais e incursões em pensamentos até então julgados heterodoxos: [...] como efeito da catarse causada no partido pela revelação dos crimes do stalinismo, o marxismo brasileiro inicia um processo, embora ainda tímido, de abertura pluralista. Fazendo sua entrada na universidade e influenciando vários aparelhos culturais (inclusive do governo), a cultura marxista – cujo alcance foi começando a transcender o âmbito do PCB – foi forçado a se diversificar, a abrir-se ao debate com outras correntes de ideias, a romper os limites estreitos do Diamat soviético. Embora a direção do PCB não tenha promovido essa renovação, é um fato que não impediu sua implementação por parte de alguns intelectuais ligados ao partido: a direção parece ter entendido que a renovação do marxismo foi o pré-requisito para que o PCB continuasse a ter influência sobre uma esquerda que se expandia, especialmente entre os jovens intelectuais e estudantes universitários, num contexto em que já estavam presentes – como uma alternativa ao PCB – as primeiras expressões do cristianismo de esquerda [Tradução livre]167. 167. “[...] come effetto della catarsi provocata nel partito dalla rivelazione dei cri143

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Nesse sentido, o interesse por Gramsci aparece não devido às suas reflexões políticas, mas sim em razão do seu papel enquanto um “filósofo da práxis”. Simionatto, a partir de seu diálogo com Carlos Nelson Coutinho, assinala que: [...] neste momento inicial, Gramsci não é tomado, ainda, como o teórico do Estado ‘ampliado’ ou da revolução socialista no Ocidente, mas apenas como o ‘filósofo da práxis’, que propunha uma leitura humanista e historicista do marxismo, radicalmente diversa da ‘vulgata soviética’, que até então dominava nas discussões da esquerda brasileira168.

O próprio Coutinho demarcaria esta mesma peculiaridade, inclusive chamando a atenção para a “divisão do trabalho” no âmbito pecebista, ao afirmar que: Não é uma coincidência que Gramsci, em sua primeira incursão no Brasil, sempre apareça ao lado do Lukács de História e consciência de classe e do Sartre mini staliniani, il marxismo brasiliano inizia un processo, per quanto ancora timido, di paertura pluralistica. Facendo il suo ingresso nell’università e influenzando vari apparati culturali (perfino governativi), la cultura marxista – il cui raggio d’azione cominciava a trascendere l’ambito del PCB – fu costretta a diversificarsi, ad aprirsi al dibattito com altre correnti ideali, a rompere gli angusti limiti del Diamat sovietico. Quantunque la direzione del PCB non abbia promosso questo rinnovamento, è un fatto che non ne abbia ostacolato la attuazione ad opera di alcuni intelletuali legati al partito: la direzione sembrava aver capito che il rinnovamento del marxismo era il presupposto affinché il PCB continuasse ad averre influenza su uma sinistra che si espandeva, soprattutto tra i giovani intellettuali e gli studenti universitari, in un contesto in cui erano già presenti – come alternativa al PCB – le prime espressioni del cristianeismo di sinistra”. COUTINHO, Carlos Nelson. In Brasile. In: HOBSBAWM, Eric J. (org.). Gramsci in Europa e in America. Bari: Editori Laterza, 1995. p. 125. 168. SIMIONATTO, Ivete. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. Florianópolis: UFSC, 1995. p. 99. 144

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

da Crítica da razão dialética: os três são apresentados como autores privilegiados numa batalha certamente antidogmática, mas ainda substancialmente restrita ao campo da cultura. Foi assim criada, talvez inconscientemente, uma tácita ‘divisão do trabalho’, cujos efeitos minaram seriamente o sucesso deste primeiro ciclo gramsciano no Brasil: os intelectuais comunistas poderiam agir mais ou menos livremente na área da cultura, propondo uma renovação filosófica radical do marxismo brasileiro, mas continuou repousando na liderança do partido a última palavra em questões especificamente políticas. Daí surgiu uma ambígua – e, a longo prazo, insustentável – coexistência entre ‘marxismo ocidental’ na cultura e ‘marxismo-leninismo’ na política. [Tradução livre]169.

A partir da iniciativa, portanto, de um grupo de intelectuais marxistas (nomeadamente, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário Gazzaneo170), inicia-se a publicação de Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, em 1966, com as Cartas do Cárcere e A concepção dialética da história. 169. “Non è così un caso se Grasmci, in questa sua prima incursione brasiliana, appaia sempre accanto al Lukács di Storia e coscienza di classe e al Sartre della Critica della ragione dialettica: tutti e tre sono presentati com autori privilegiati in uma battaglia certamente antifogmatica, ma ancora connessa sostanzialmente al campo della cultura. Si creava così, forse inconsapevolmente, uma tacita ‘divisione del lavoro’, i cui effetti hanno seriamente inficiato il successo di questo primo ciclo grasmciano in Brasile: gli intellecttuali comunisti potevano agire più o meno liberamente sul terreno della cultura, proponendo un radicale rinnovamento filosofico del marxismo brasiliano, ma continuava a spettare alla direzione del partito il compito di pronunciare l’ultima parola nelle questioni specificamente politiche. Di qui nasceva un’ambigua – e, a lungo termine, insostenible – coesistenza tra ‘marxismo occidentale’ in cultura e ‘marxismo-leninismo’ in política”. COUTINHO (1995). Op. Cit. p. 126. 170. Ver SIMIONATTO (1995). Op. Cit. p. 98. 145

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Estas serão seguidas, na ordem, por Literatura e vida nacional; Maquiavel, a política e o Estado moderno e Os intelectuais e a organização da cultura, todas essas em 1968. O fechamento do regime a partir do AI-5, no entanto, impede o prosseguimento da publicação, restando dois volumes da edição temática dos Cadernos por publicar171. Qual a relevância, porém, dessa publicação gramsciana? Ora, seu impacto à época será baixíssimo – o próprio empreendimento editorial resultará fracassado, com baixíssima saída dos estoques. Em primeiro lugar, há que se considerar os limites já anteriormente enunciados da publicação por parte da intelectualidade pecebista, que reduzia a amplitude da obra devido aos constrangimentos políticos do partido. Em segundo lugar, deve-se considerar o clima do período: se a abertura cultural pecebista estava sintonizada com as tendências progressistas da cultura da época, a progressiva radicalização dos setores culturais frente ao regime empurra os mesmos para um diálogo cada vez mais próximo das tendências vanguardistas e sua correspondência política – contexto esse no qual o debate de Gramsci, assim como o de Lukács, será considerado um debate conservador, ultrapassado. Mais ainda, a própria dificuldade de leitura posta por estes autores travavam sua circulação pelo grande público, ao mesmo tempo que atraíam o rechaço dos setores que viam a revolução “bater à porta”. Finalmente, o fechamento ensejado pelo AI-5 bloqueia duplamente as portas para Gramsci: de um lado, o regime recrudesce, acabando com o período de relativa tolerância cultural e desencadeando toda a fúria repressiva instigada pelos setores “linha dura” do poder. Por outro lado, a própria 171. Ver SECCO (2002). Op. Cit. p. 28-29. 146

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

esquerda irá sofrer uma profunda inflexão no período – é a época da hegemonia da “esquerda armada”, onde a influência do PCB decai na medida em que sua tática de luta contra o regime parece condenada. Neste período radicalizado, a tônica do debate marxista será dada não por Gramsci, com sua “guerra de posição”, ou por Lukács e seu debate cultural, mas sim por Guevara, Debray, Mao Tsé-Tung – os teóricos da luta armada. Cabe notar, também, que o próprio espaço de reflexão cultural do PCB vê-se reduzido pelo fechamento de seus espaços de atuação – o que leva o Partido a refugiar-se na ortodoxia teórica como repousário fiel de sua flexibilidade tática. Ironicamente, enquanto na prática e na estratégia política o PCB começa a aproximar-se inconscientemente dos delineamentos gramscianos, o espaço teórico ocupado pelo autor no período reduz-se ao silêncio: Com o fechamento institucional de fins de 1968, e o posterior ‘vazio cultural’, a derrota do movimento operário e o fim das mobilizações de massas contra a ditadura, as opções do movimento socialista pareciam limitadas ao radicalismo da esquerda armada e à opção pela oposição dentro da legalidade, feita pelo PCB, que propugnava uma política de ‘acumulação de forças’, onde a referência ao conceito gramsciano de hegemonia se tornaria, com o tempo, cada vez mais frequente. Assim, numa resolução interna de 1973, o PCB propugnava a ‘luta persistente pelos objetivos táticos e estratégicos, consoante o processo de acumulação de forças e da conquista da hegemonia do proletariado’ [...] Com a esquerda política já fraturada por diversas cisões, o interesse por Gramsci, 147

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

mesmo depois da publicação de seus livros, promovida por jovens intelectuais do PCB, repousa em uma ou outra discussão acadêmica, num capítulo de um livro de Leandro Konder, em uma ou outra tese pouco conhecida, num texto mimeografado de um ou outro professor e... no silêncio172.

Considerações finais: o retorno de Gramsci Muitos de nós, ao questionarmos os professores no início de nossas passagens pelos bancos escolares sobre “qual a importância de estudarmos história”, recebíamos dos mesmos a clássica resposta: “estudar o passado para compreender o presente”. Ora, se a História, por si só, não pode explicar todas as dimensões da vida humana, me parece indubitável que o estudo dos processos sociais é condição sine qua non para compreender os fatos com que nos defrontamos. Desse modo, busco – ainda que de maneira breve – demonstrar como a primeira inserção de Gramsci no Brasil esteve profundamente ligada a um momento específico do debate político. Nesse sentido, também o retorno, por assim dizer, do interesse em Gramsci respondeu a uma conjuntura específica – aquela consignada pela débâcle do regime instaurado em 1964. Conforme já havia adiantado no início deste artigo, não é meu propósito desenvolver aqui esta hipótese. Em termos gerais, entretanto, posso afirmar que a crise da autocracia burguesa – na conjuntura da chamada “abertura” – colocará em evidência a problemática da política. E é para responder a essa premência que alguns marxistas iniciarão 172. SECCO (2002). Op. Cit. p. 29. 148

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

uma nova incursão pela obra de Gramsci – um Gramsci com o qual haviam travado contato durante o exílio, que desenvolve uma teoria política original e que, partindo dos princípios leninistas, busca analisar as especificidades do Ocidente desenvolvido, onde o avanço dos mecanismos democráticos resultara na incorporação das massas às instituições da democracia burguesa e na cronificação da revolução proletária. O Brasil que emerge do processo de redemocratização já não é mais o mesmo de 20 anos antes. Trata-se agora de uma sociedade urbano-industrial consolidada, na qual ocorreu uma progressiva socialização da política – o que trouxe novos problemas àqueles que buscam lutar por alternativas à sociedade capitalista. Nesse sentido – e ainda que reconhecendo as diversas leituras, interpretações, e mesmo distorções realizadas a partir da obra gramsciana –cabe a reflexão: se Gramsci ainda hoje está presente é porque suas elaborações continuam contribuindo para enfrentar desafios postos pela realidade. Gramsci, afinal, tem seu trabalhado amarrado a uma questão premente: a de como realizar a revolução nas condições de um capitalismo consolidado, no qual a hegemonia da burguesia na sociedade permite o funcionamento das instituições burguesas e o jogo democrático – questão esta para a qual historicamente ainda não foi possível uma solução satisfatória. A dramaticidade dessa questão, já avançada mais de uma década do século XXI, está na combinação que um refinado analista apontou em artigo recente: Com efeito, o exaurimento de todas as possibilidades civilizatórias do capital alcança hoje um nível tal que a manutenção, ainda que seja por uns poucos decê149

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

nios, da ordem capitalista implica um grau de violência e barbarização que tornará inviável a sobrevivência da humanidade (o desastre ecológico é apenas um signo, embora crucial, das perspectivas horrorosas que se põem a médio, senão a curto, prazo). E isto se dá na quadra histórica, emergente na transição dos anos 1970 aos 1980, em que o projeto revolucionário fundado em Marx (e, de fato, o processo revolucionário real que tomou sua primeira forma na Revolução de Outubro) registrou derrotas históricas de larga incidência. Em poucas palavras: nunca foram tão ameaçadoras as perspectivas imediatas da vida da humanidade e, simultaneamente, nunca o movimento revolucionário inspirado em Marx viu-se diante de tantas dificuldades173.

Cabe ressaltar, entretanto, que o desafio enunciado não pode ser resolvido apenas com releituras e exercícios teóricos. Tal qual assinalaram os clássicos, a relação entre teoria e prática é fundamental – se a prática revolucionária prescinde da teoria, também a elaboração teórica necessita estar colada à prática cotidiana. Felizmente, a recorrência de mobilizações sociais demonstram que, diferente do que quis acreditar Francis Fukuyama, a história não acabou. E se Gramsci, conforme argumentei, ainda tem algo a oferecer, a reflexão por ele inspirada tem que estar intimamente ligada ao movimento real das forças sociais – caso contrário, será incapaz apresentar a vitalidade prometida. 173. NETTO, José Paulo. O déficit da esquerda é organizacional. Socialismo e liberdade, Rio de Janeiro, v. 2, p. 5-12, 2009. p. 5. 15 0

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Referências Bibliográficas ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, RJ: Vozes, 1984. BEZERRA, Gregório. Memórias. Segunda parte: 1946-1969. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. COUTINHO, Carlos Nelson. In Brasile. In: HOBSBAWM, Eric J. (org.). Gramsci in Europa e in America. Bari: Editori Laterza, 1995. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. GOLPE inaugura período mais negro no país. Voz da Unidade. São Paulo, ano I, n. 1, 30 de março a 5 de abril de 1980. HOBSBAWM, Eric J. (org.). Gramsci in Europa e in America. Bari: Editori Laterza, 1995. KONDER. Leandro. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980. KUUSINEN, O. V. et alli. Fundamentos do Marxismo-Leninismo. Rio de Janeiro: Vitória, 1962. LÖWY, Michael. Consciência de classe e Partido Revolucionário. Revista Brasiliense, n. 41, p. 138-160. São Paulo: Brasiliense, 1962. MALIN, Mauro e FREITAS, Milton. Do Manifesto de Agosto à Declaração de Março. Voz da Unidade. São Paulo, ano I, n. 29, 17 a 23 de outubro de 1980. 15 1

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

NETTO, José Paulo. O que é stalinismo. São Paulo: Brasiliense, 1981. ______. O que todo cidadão precisa saber sobre o comunismo. São Paulo: Global, 1986. ______. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2007. ______. O déficit da esquerda é organizacional. Socialismo e liberdade, Rio de Janeiro, v. 2, p. 5-12, 2009. NOGUEIRA, Marco Aurélio (org.). PCB: vinte anos de política 1958-1979 (documentos). São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas ideias. São Paulo: Cortez, 2002. SEGATTO, José Antônio. Breve história do PCB. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989. SIMIONATTO, Ivete. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. Florianópolis: UFSC, 1995. YAMAMOTO, Oswaldo Hajime. A Educação Brasileira e a Tradição Marxista (1970-90). São Paulo: Moraes, 1996. ZAIDAN FILHO, Michel. O PCB (1922-1929): na busca das origens de um marxismo nacional. São Paulo: Global, 1985.

152

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

II A teoria de Gramsci com Lentes Latino-americanas

15 5

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Estado e sociedade civil: entendendo a atualidade da política gramsciana VICTOR L. C. GOMES

Separação da sociedade civil em relação à sociedade política: pôs-se um novo problema de hegemonia, isto é, a base histórica do Estado se deslocou. Tem-se uma forma extrema de sociedade política: ou para lutar contra o novo e conservar o que oscila, fortalecendo-o coercitivamente, ou como expressão do novo para esmagar as resistências que encontra ao desenvolver-se etc. Antonio Gramsci

Introdução Um elemento essencial na determinação da originalidade e da atualidade da filosofia política de Antonio Gramsci é o conceito de sociedade civil. Trata-se de uma arena privilegiada da luta de classes, uma esfera do ser social, onde se processa a intensa e vigorosa batalha pela hegemonia174. E 174. Hegemonia é, sabidamente, um conceito muito importante no pensamento gramsciano. Um movimento hegemônico é um processo social de direção intelectual e moral; de construção de consenso e de um novo bloco histórico. Um grupo social pode e, a rigor, já deve exercer a “liderança” hegemônica antes mesmo da conquista efetiva do poder. Gramsci estendeu a noção de hegemonia a partir de sua aplicação original numa revolução burguesa contra uma ordem feudal para os mecanismos de dominação da burguesia sobre a classe operária numa sociedade ca15 6

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

precisamente por isso, ela não é o “outro” Estado, mas um dos seus indissolúveis momentos constitutivos – juntamente com a “sociedade política” ou “Estado-coerção”. Nesse sentido, o conceito de sociedade civil se tornará cada vez mais denso no decorrer dos Cadernos do Cárcere. A partir do final dos anos 1970, o tema da sociedade civil permaneceu no centro do debate cultural e político. Opondo-se à noção ampliada de Estado, o discurso da chamada “supremacia da sociedade civil” apontava, necessariamente, para uma defesa de sua atuação na esfera econômica, no mercado; bem como para o repúdio de tudo aquilo que fosse “estatal”, com forte oposição ao próprio Estado de Bem-Estar Social. Com a ascensão da ideologia neoliberal, já na segunda metade da década de 1980, instaura-se um discurso apologético de uma sociedade civil dócil, desestruturada, despolitizada e convertida num mítico “terceiro setor”175 falsamente situado para além do Estado e do mercado. Neste contexto, segundo Guido Liguori, o conceito de sociedade civil também foi fundamental para o processo de redefinição, antes de tudo cultural, por parte de uma determinada esquerda, que, por sua conta e risco:

pitalista avançada. 175. De modo bastante simplificado, o “terceiro setor” é composto por: a) organizações não lucrativas e não governamentais (ONGs), movimentos sociais, organizações e associações comunitárias; b) instituições de caridade, religiosas; c) atividades filantrópicas – fundações empresariais, filantropia empresarial, empresa cidadã; d) ações solidárias – consciência solidária, de ajuda mútua e de ajuda ao próximo; e) ações voluntárias e f) atividades pontuais e informais. Tratam-se, assim, de atividades públicas desenvolvidas por entidades privadas, orientadas por valores altruístas de solidariedade, autorresponsabilização, voluntariado e individualização do auxílio. Nesta configuração ideológica há o pressuposto da realidade social setorializada, onde, em tese, o “primeiro setor” seria o Estado e o “segundo” o mercado. MONTAÑO, Carlos e DURIGUETTO, Maria Lúcia. Estado, Classe e Movimento Social. São Paulo: Cortez, 2010. p. 304-309. 1 57

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

[...] demonstrou a necessidade de abandonar o paradigma interpretativo ligado ao conceito de classe. Tais tendências triunfaram no ano de 1989, com a crise dos modelos hiperestatistas e autoritários do socialismo real e com os limites de gestão governamental apresentados pelos países social-democratas do Welfare State. A cultura da política da direita tornou-se preponderante, em forma e conteúdo, sobre a esquerda. Em suma, as concepções que se impõem majoritariamente dentro da ‘esquerda’ são de matrizes liberais e sinteticamente indicamos como sendo a supremacia da sociedade civil sobre o Estado; a superioridade do econômico sobre o político; do privado sobre o público; do mercado sobre a programação estatal. E podemos dizer ainda, conjuntamente com Marx, do burguês sobre o cidadão176.

Na verdade, para fugir do conceito de classe, a ideia de cidadania desde então se tornou central para essa determinada “esquerda liberal”. Na “teoria do indivíduo”, proveniente do liberalismo clássico, o cidadão aparece fortificado enquanto portador de direitos aparentemente iguais e inalienáveis. Segundo essa esquerda liberal, o cidadão está afastado de toda possibilidade de fazer parte de uma subjetividade coletiva. Diante de tal cenário, o objetivo deste artigo é resgatar o conceito genuinamente gramsciano de “sociedade civil” em sua dimensão nitidamente política, mostrando sua articulação dialética com a “sociedade política”. Ou seja, almejo fortalecer a importante noção de “unidade orgânica” 176. LIGUORI, Guido. Estado e Sociedade Civil: de Marx a Gramsci. Novos Rumos, São Paulo, ano 21, n. 46, p. 4-10, 2006. p. 4. 15 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

entre Estado e sociedade civil preconizada pelo intelectual italiano. Pretendo, ainda, contribuir para a desconstrução de uma visão conservadora e insidiosa que tem como base um conceito asséptico e voluntarista de sociedade civil. Leitura que, aliás, nada tem a ver com o pensamento revolucionário de Gramsci. Sociedade civil: um panorama de Hegel a Gramsci Na linhagem alemã – em Hegel e, posteriormente, em Marx – sociedade civil incorpora outras conotações, uma vez que a mesma expressão bürguerliche Gesellschaft pode assumir tanto o significado de sociedade civil (como uma base genérica da vida material e privada) quanto um significado mais preciso, da forma social caraterística da existência burguesa. Esse duplo sentido acaba por promover limitações ao uso genérico ou abstrato do conceito. A sociedade civil hegeliana representa o primeiro momento de formação do Estado, o chamado Estado jurídico-administrativo, cuja tarefa é regular as relações externas, enquanto o Estado propriamente dito representa o momento ético-político, com a função de promover a adesão íntima do cidadão à totalidade da qual faz parte; tanto que poderia ser chamado de “Estado interno ou interior”. Cabe, somente a este, o direito reconhecido de solicitar dos súditos o sacrifício dos seus bens (via impostos) e da própria vida (via guerra)177. O âmbito estatal seria o reino em que se expressaria a vontade universal, e esta seria constituída a partir das vonta177. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 42-44. 159

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

des particulares da sociedade civil. Na ordem estatal, as diferenças sociais e os interesses privados seriam conservados e elevados a um nível superior. Dessa forma, ao contrário dos jusnaturalistas, a sociedade civil é vista como esfera das relações econômicas, jurídicas e administrativas, não mais opondo estado de natureza/estado civil pela conformação de um contrato178. Essa mediação entre o público e o privado, vontade singular e universal encontra uma de suas principais materializações naquilo que Hegel denomina de “corporações”. Estas são compreendidas como uma espécie de “atores coletivos” que tecem as relações do mundo privado civil com o mundo universal estatal. Com isso, Hegel acaba por legitimar a necessidade do pluralismo político-institucional como uma mediação para que os indivíduos singulares passem de massa informada a sujeitos organizados em seus interesses. Ao consagrar que no âmbito estatal existe a integração de todo o conjunto da sociedade, a construção da esfera pública fica subsumida às definições de uma totalidade estabelecida de forma determinista. Ao que parece, na filosofia política hegeliana, há a defesa de um consenso passivo em relação às normas, valores e decisões políticas ditadas

178. A despeito do conceito de vontade geral (tal como formulado por Jean-Jacques Rousseau) e suas relações com a esfera da particularidade ocuparem uma posição central na filosofia política de Hegel, Duriguetto adverte que o pensador alemão apresenta uma tentativa de conciliar a prioridade do universal com a plena expansão do particular. Para compreender o sobrepujamento das vontades particulares na vontade universal, é fundamental recorrer a um conceito essencial da filosofia hegeliana: o de superação dialética. Que significa, ao mesmo tempo, negar algo, aproveitar o conteúdo válido daquilo que está sendo negado e elevá-lo a um nível superior, permitindo, assim, articular no desenvolvimento a continuidade e a ruptura, estabelecendo um processo de conservação/superação. DURIGUETTO, Maria Lúcia. Sociedade Civil e Democracia: um debate necessário. São Paulo: Cortez, 2007. p. 44-47. 16 0

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

pela pretensa vontade universal manifestada no Estado, e tão somente nele. Estabelece-se, portanto, nesta distinção hegeliana, a sociedade civil como uma forma “inferior” de Estado, no conjunto do sistema, e o Estado em si tem a sua importância realçada nas relações que apenas ele pode estabelecer com os demais Estados. Tanto isso é verdade que Hegel proclama o Estado como o sujeito da história universal com o qual se conclui o movimento do espírito objetivo. É a partir dessas alterações promovidas por Hegel nos conceitos de sociedade civil e de Estado que se encontram as referências de abordagem de Marx. Em 1859, no célebre prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx aponta na seguinte direção: Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil’.179

Na obra do jovem Marx, é possível, no entanto, encontrar elementos que indicam uma leitura mais complexa da dicotomia Estado versus sociedade civil. Uma leitura em parte diversa, que não nega o “avesso” operado nas reflexões 179. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 47. 161

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de Hegel, mas problematiza seja o conceito de sociedade civil seja a valorização da separação sociedade-Estado. Além disso, o fato é que Marx, na maturidade, não usará mais “sociedade civil”, preferindo adotar simplesmente o termo “sociedade”180. A grande descoberta de Marx, bem como de Engels, no campo da teoria política foi a afirmação do caráter de classe de todo fenômeno estatal. Esta descoberta os levou – em contraposição a Hegel – a “dessacralizar” o Estado, a desfetichizá-lo, mostrando como a aparente autonomia e superioridade dele encontram sua gênese nas contradições imanentes da sociedade como um todo. Para Marx a dicotomia em questão é típica da modernidade, ou seja, é própria da sociedade burguesa. Esta, paralelamente, também indica a dicotomia entre burguês e cidadão, o que é alvo de críticas em nome de uma síntese e de uma recomposição superior. Exatamente por isso, Marx não se limita a “inverter” a relação hegeliana Estado-sociedade, mas se opõe a tal tese. Critica a dicotomia entre a esfera pública e a privada, refuta o confinamento do político no interior do Estado e do socioeconômico na sociedade. Para Marx, é na esfera da sociedade civil (definida como locus da produção e da reprodução da vida material) que se edifica a natureza estatal, e não o contrário, como supunha Hegel. Ou seja, o Estado não funda a dinâmica da sociedade civil, mas a expressa. No entendimento de Duriguetto, “compreender que a sociedade civil e suas relações sociais concretas é que fundam o Estado implica defender que a eli-

180. LIGUORI, Guido (2006). Op. Cit. p. 7. 16 2

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

minação do individualismo do bourgeois é condição para a eliminação da existência abstrata do citoyen”181. Na leitura filosófica marxiana, a política não se reduz ao Estado. Porém, existe a clareza que, na ordem burguesa, o núcleo do poder político reside no Estado, e exatamente por isso a revolução do proletariado requer a dominação e a extinção do poder estatal. Longe de ser o momento de universalização efetiva, o Estado para Marx (bem como para Engels) expressa a generalização dos interesses dominantes. É a expressão da dominação de uma classe, mas também um momento de equilíbrio jurídico e político, ou seja, um momento de mediação. A sociedade civil burguesa, entendida como o conjunto das relações econômicas, isto é, relações sociais de exploração, imbrica-se no Estado por ser este indissociável das relações sociais de produção. Assim, a questão aqui é salientar que Marx não podia ter experiências históricas muito superiores às de Hegel. A ideia de organização em Marx permanecia ainda presa a elementos condizentes ao século XIX, como organizações profissionais, conspirações secretas de parcos grupos, organização jornalística etc. Por outro lado, Gramsci, como testemunha do século XX, pôde conhecer os grandes sindicatos envolvendo milhões de pessoas, os partidos políticos operários/ populares legais e de massa, os parlamentos eleitos por sufrágio universal secreto, os jornais proletários de vasta tiragem entre outros182. Foi Gramsci o teórico capaz de captar precisamente a dimensão fundamental das relações de poder numa socieda181. DURIGUETTO, Maria Lúcia (2007). Op. Cit. p. 48. 182. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 125. 163

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de capitalista desenvolvida e avançada. Aquilo que o filósofo sardo se refere inicialmente como “trama privada” e mais adiante chamará de “aparelhos privados de hegemonia”, de “sociedade civil”. Ao mesmo tempo, porém, que superava de maneira ousada as características originais do conceito, atualizava, de forma singular diversos dos seus significados, evidenciando os embates por meio dos quais se construiu historicamente a concepção de sociedade civil. Nesse entendimento, Virgínia Fontes afirma que: Antes de Gramsci, o conceito de sociedade civil admitia um sentido mais ou menos comum entre diversos autores – designava, sobretudo, o âmbito dos interesses, do mercado, da concorrência, Para uns, valorizado como instância central a ser preservada, figurando a propriedade acima, inclusive, da vida (por esse viés, a propriedade e o mercado passavam a equiparar-se à própria civilização); para outros, como a expressão do predomínio, numa sociedade histórica precisa e delimitada, da sociedade burguesa moderna, de um individualismo que limitava e reduzia a própria individualidade, fazendo-a perder a consciência de seu pleno sentido, o do pertencimento a um processo histórico e social. O conceito de sociedade civil é, portanto, recriado por Gramsci e, se retoma elementos precedentes, o faz de maneira radicalmente modificada183.

183. FONTES, Virgínia. Sociedade Civil no Brasil Contemporâneo: lutas sociais e luta teórica na década de 1980. In: LIMA, Júlio César França e NEVES, Lúcia Maria Wanderley (orgs.). Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006. p. 201-239. p. 210. 16 4

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

A filosofia política gramsciana empreenderá um desenvolvimento novo e abrangente a partir dos conceitos básicos de Marx, Engels e Lenin, mas não se pode esquecer que toda a sua obra filia-se a essa tradição revolucionária. Ainda que não seja fundador, Gramsci é quem mais aprofundou a filosofia da práxis184. Em sua concepção não há realidade “objetiva” sem que venha acompanhada pela atividade consciente dos homens, não há uma economia que não seja compreensível dentro de um “mercado determinado”. Rompendo com as leituras mecanicistas, Gramsci soube reinterpretar o sentido antideterminístico da relação estrutura-superestrutura na obra marxiana. Fazia notar que as condições econômicas não demarcavam automaticamente a orientação política do processo revolucionário. A experiência da revolução russa, ao contrário, mostrava que o elemento determinante na história não são os fatos econômicos brutos, mas o homem, as sociedades humanas. Gramsci: uma concepção dialética de sociedade civil É plausível, pois, supor que a filosofia política de Gramsci promove uma recriação do conceito de sociedade civil:

184. O termo filosofia da práxis não é um expediente linguístico, mas uma concepção que Gramsci assimila como unidade entre teoria e prática. Esta unidade serve para o filósofo italiano delinear uma série de conceitos científicos capazes de interpretar o mundo que lhe era contemporâneo. Em suas próprias palavras, “a filosofia da práxis ‘basta a si mesma’, contendo em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e integral concepção de mundo”. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 152. 16 5

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

É preciso distinguir a sociedade civil tal como é entendida por Hegel e no sentido em que é muitas vezes usada nestas notas (isto é, no sentido da hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado) do sentido que lhe dão os católicos, para os quais a sociedade civil, ao contrário, é a sociedade política ou o Estado, em oposição à sociedade familiar e à Igreja185.

A sociedade civil gramsciana é um conjunto complexo. Seu campo é muito extenso e sua vocação para dirigir o bloco histórico186 implica em uma adaptação de seu conteúdo, segundo as categorias sociais que atinge. Os portadores materiais da sociedade civil são o que Gramsci chama de “aparelhos privados de hegemonia”, ou seja, organismos sociais coletivos voluntários e relativamente autônomos em face da ordem estatal; enquanto a sociedade política tem seus portadores materiais nos aparelhos repressivos de Estado. Gramsci registra aqui o fato novo de que a esfera ideológica, nas sociedades capitalistas avançadas (mais complexas) ganhou uma autonomia material em relação ao Estado. Em outras palavras, a necessidade de conquistar o consenso ativo e or185. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 225. 186. O conceito de bloco histórico se refere à questão teórica central do marxismo: a relação entre estrutura e superestrutura, entre teoria e prática, entre forças materiais e ideologia. Gramsci rejeita toda visão determinista e mecanicista desta relação. Não existe uma estrutura que mova de modo unilateral o mundo superestrutural das ideias, não há uma simples conexão de causa e efeito, mas um conjunto de relações e reações recíprocas, que devem ser estudadas em seu concreto desenvolvimento histórico. Nas palavras do filósofo sardo: “a estrutura e as superestruturas formam um ‘bloco histórico’, isto é, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção”. GRAMSCI, Antonio (2001). Op. Cit. p. 250. 16 6

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ganizado como base para a dominação criou e/ou renovou determinadas instituições sociais, que passaram a funcionar como portadores materiais específicos das relações sociais de hegemonia. E é essa independência material que funda ontologicamente a sociedade civil como uma esfera própria e que funciona como mediação necessária entre a estrutura econômica e o Estado-coerção187. Percebe-se que no entendimento gramsciano não há hegemonia, ou direção política e ideológica, sem o conjunto de organizações materiais que compõem a sociedade civil enquanto esfera específica do ser social. O campo que a sociedade civil abrange é extremamente vasto, na medida em que constitui o domínio da ideologia. Sem a pretensão de esgotar aqui a concepção gramsciana de ideologia, cabe observar que esta se trata do “significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas”188. Nesse contexto, fica expresso que a ideologia – bem como a sociedade civil – englobam quase todas as atividades da classe dirigente e, portanto, da superestrutura. Gramsci aprofunda o tema das formas de organização, e se sua reflexão incide diretamente sobre a organização da dominação, o faz já incorporado ao processo de luta de classes e de conquistas populares no âmbito do Estado capitalista. A originalidade conceitual gramsciana é desvendada, em minúcias, por Virgínia Fontes:

187. COUTINHO, Carlos Nelson (1999). Op. Cit. p. 129. 188. GRAMSCI, Antonio (2001). Op. Cit. p. 98-99. 167

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Ainda que o uso do mesmo termo possa induzir algumas dificuldades, o conteúdo conceitual da sociedade civil, em Gramsci, se afasta resolutamente de sua origem, quando era contraposto ao Estado ou centrado no terreno do interesse, da propriedade e do mercado. Em Gramsci, o conceito de sociedade civil procura dar conta dos fundamentos da ‘produção social, da organização das vontades coletivas e de sua conversão em aceitação da dominação, através do Estado’. O fulcro do conceito gramsciano de sociedade civil – e dos aparelhos privados de hegemonia – remete para a organização (produção coletiva) de visões de mundo, da consciência social, de ‘formas de ser’ adequadas aos interesses do mundo burguês (a hegemonia) ou, ao contrário, capazes de opor-se resolutamente a esse terreno dos interesses (corporativo), em direção a uma sociedade igualitária (‘regulada’) na qual a eticidade prevaleceria (o momento ético-político da contra-hegemonia)189.

Não há isolamento da sociedade civil com relação ao mundo da produção. A sociedade civil é o momento organizativo a mediar as relações de produção e a ordenação do Estado, produzindo organização e convencimento. Por meio de sua imbricação estatal, a sociedade civil é o local da formulação e da reflexão, da consolidação dos projetos sociais e das vontades coletivas. Tendo o pensamento como arma, Gramsci lutou incansavelmente contra os defensores da separação efetiva (“orgânica”) entre Estado e sociedade civil. Na realidade, para ele, a 189. FONTES, Virgínia (2006). Op. Cit. p. 211. 16 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

relação é dialética, indicando uma referência e uma influência recíprocas entre as duas esferas. Correspondem, pois, as duas faces de uma só moeda. Na verdade, em todos os casos, Estado “propriamente dito” e “sociedade civil” são dois momentos distintos, não se identificam, mas estão em relação dialética, constituindo, em conjunto, o “Estado ampliado”. A leitura contemporânea de sociedade civil De maneira direta, em Gramsci, simplesmente não há oposição entre sociedade civil e Estado. No entanto, o cientista político italiano Norberto Bobbio190 apresenta uma interpretação particular (e célebre) a respeito da relação entre Marx, Gramsci e sociedade civil. A despeito de indicar corretamente diferenças essenciais entre as reflexões gramsciana e marxiana no que tange ao conceito de sociedade civil, a análise de Bobbio parece conduzir para conclusões teóricas pouco esclarecedoras. Não obstante a manutenção semântica do conceito, Bobbio não argumenta de forma profunda as razões da “autonomia” interpretativa gramsciana no que diz respeito às tradições marxianas. Para o cientista político, a estrutura e a superestrutura parecem determinar uma a outra. Só que para Marx a estrutura determina a superestrutura e, em Gramsci, o processo se dá de maneira inversa. Que fique claro, para Bobbio, Gramsci soube atualizar Marx. Contudo, as esferas estruturais e superestruturais não são concebidas como momento de unidade (e de autonomia), de ações recíprocas

190. BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 169

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

entre os diversos níveis da realidade, próprias da concepção dialética191. Dessa forma, Bobbio acaba por sustentar como central no pensamento gramsciano a dicotomia Estado-sociedade civil, negando por completo o que para o autor dos Cadernos é o mais importante, ou seja, a unidade dialética entre política e sociedade, entre economia e Estado. Hoje, pode-se dizer que o conceito de sociedade civil tem outra acepção, que guarda um enorme distanciamento do que encontramos na obra de Gramsci. O que Bobbio e outros intérpretes parecem não notar é que pouco ou nada adianta examinar o vínculo recíproco entre estrutura e superestrutura, sem perceber que o conceito de sociedade civil se refere, na verdade, à questão do Estado. A ampliação do conceito de Estado em Gramsci é o que possibilita o enriquecimento e a redefinição de uma teoria política marxista. Como salienta Coutinho, “Gramsci não inverte nem nega as descobertas essenciais de Marx, mas ‘apenas’ as enriquece, amplia e concretiza, no quadro de uma aceitação plena do método do materialismo histórico”192. Para que não haja qualquer margem de dúvida, o próprio Gramsci esclarece que: [...] por ‘Estado’ deve-se entender, além do parelho de governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil. Deve-se notar que, desta crítica ao ‘Estado’ que não intervém, que está a reboque dos acontecimentos etc., nasce a corrente ide-

191. LIGUORI, Guido (2006). Op. Cit. p. 8. 192. COUTINHO, Carlos Nelson (1999). Op. Cit. p. 123. 170

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ológica ditatorial de direita com seu fortalecimento do Executivo193. Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente, uma representação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)194.

É por isso que Gramsci faz inúmeras referências em seus Cadernos sobre a “unidade orgânica” entre Estado e sociedade civil. Se há uma distinção entre ambos, esta é de natureza meramente metodológica, mas nunca orgânica195. Já para uma esquerda liberal contemporânea, como já mencionado, a sociedade civil é qualquer coisa, necessariamente, distante tanto da economia como do Estado. Não é justo, pois, que essa leitura conceitual indevida recaia sobre o filósofo sardo. Considerações finais Uma forte tendência do pensamento liberal é alternar-se entre o ponto de vista da sociedade civil (os interesses priva193. GRAMSCI, Antonio (2000). Op. Cit. p. 254-255. 194. Ibidem. p. 244. 195. Gramsci, claramente, afirma que “a distinção entre sociedade política e sociedade civil [...] é uma distinção metodológica [e não] uma distinção orgânica. [...] Dado que sociedade civil e Estado se identificam na realidade dos fatos”. GRAMSCI, Antonio (2000). Op. Cit. p. 47. 17 1

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

dos) e o da sociedade política (o Estado). A rigor, a maioria das reflexões de cunho liberal toma a primeira questão como axioma e se dedica a organizar as formas de governo e de Estado, as instituições, para que exerçam a função proposta – garantia da vida e da propriedade. Desse modo, os intelectuais liberais dedicam-se cada vez mais a prescrever razões técnicas para o funcionamento do Estado, instaurando o que Poulantzas denuncia como uma espécie de prevalência estatal opressora196. Nas últimas décadas do século XX, falar em sociedade civil é reportar-se ao contexto de ofensiva neoliberal e apreender a dinâmica que esta realidade revela. Tendo como uma das referências a apropriação ideológica do conceito, cujo significado passa a ser o da harmonia, da coesão social idílica estabelecida pelo mito da cidadania na pressuposição de que “somos todos iguais perante a lei”. Perde-se, portanto, a capacidade de se pensar a conflitualidade da trama social e se reduz, tudo e todos, à institucionalidade vigente. Nesse sentido, como adverte Amaral, “a recorrência à sociedade civil corresponde à necessidade de envolver a sociedade nas ações estatais, conferindo legitimidade aos ajustes e reformas requeridos pelo processo de reestruturação capitalista”197. Esvaziadas de conteúdos classistas, estas novas configurações impressas à sociedade civil apresentam-se saturadas 196. “O Estado não comporta nenhum limite de princípio e de direito a suas usurpações no privado: por mais paradoxal que pareça, é a separação público-privado, por ele instituída, que lhe abre perspectivas ilimitadas de poder”. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 79-80. 197. AMARAL, Ângela Santana do. A Categoria Sociedade Civil na Tradição Liberal e Marxista. In: MOTA, Ana Elizabete (org.). O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 58-92. p. 60-61. 172

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de um intenso debate genérico sobre democracia e cidadania. Num momento em que se opera uma reforma radical do Estado – num claro movimento de retirada e de redução do seu papel e atribuições históricas no sentido de atender às demandas populares – engendra-se um discurso justificador das iniciativas de ajuste estatal às funções da “nova economia” e, com isso, a necessidade de mobilização da sociedade civil para articular interesses gerais e particulares. Nesta perspectiva, o pensamento neoliberal busca recuperar o conceito de sociedade civil, imprimindo uma outra direção que evidencia a dimensão universalizadora, voluntarista e despolitizada da sociedade civil, em contraposição às referências classistas que marcam a sociedade capitalista e que devem ser abandonadas. A história da sociedade civil, para Gramsci, é a história do domínio de alguns grupos sociais sobre os outros, é a trama da hegemonia, da subordinação e da exclusão do poder; melhor dizendo, é a história da luta de classes. Propor uma ideia de sociedade civil que se afasta drasticamente do conceito de classe – que acena para a possibilidade de compor uma subjetividade coletiva – para abraçar uma noção de cidadania fortificada e voluntarista, não nos faz caminhar em direção a um horizonte auspicioso e transformador. A sociedade civil gramsciana é, pois, uma arena estratégica do conflito entre classes. A partir do seu surgimento, é sobretudo nela que as classes digladiam-se pela conquista da hegemonia, ou seja, pela direção política fundada no consenso, capacitando-se assim para a obtenção e o exercício efetivo do poder governamental. Nesta linha de reflexão, “sociedade civil”, em Gramsci, nada tem a ver com essa coisa

173

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

amorfa que hoje chamam de “terceiro setor” pretensamente situado para além do Estado e do mercado. Buscar hegemonia, lutar pelo consenso, tentar legitimar-se: tudo isso significa que o Estado deve levar em conta outros anseios que não os restritos interesses da classe dominante. Com sua teoria política vigorosa e atual, Gramsci habilitou-se a entender o tipo de Estado e de sociedade próprios dos regimes liberal-democráticos. A atualidade do pensamento gramsciano reside no aspecto de que a sua concepção de estatização e de política compreende a sociedade. Nesse sentido, não há uma negação, uma separação entre essas instâncias, muito pelo contrário. Com sua percepção de “Estado ampliado”, Gramsci redefiniu não somente os conceitos de Estado e de sociedade civil, mas também revigorou, e muito, o próprio ideário de política. Referências Bibiográficas AMARAL, Ângela Santana do. A Categoria Sociedade Civil na Tradição Liberal e Marxista. In: MOTA, Ana Elizabete (org.). O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 58-92. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ______. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

174

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ______ e TEIXEIRA, Andréa de Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ______. O Conceito de Sociedade Civil em Gramsci e a Luta Ideológica no Brasil de Hoje. In: ______. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006. p. 29-55. DURIGUETTO, Maria Lúcia. Sociedade Civil e Democracia: um debate necessário. São Paulo: Cortez, 2007. FONTES, Virgínia. Sociedade Civil no Brasil Contemporâneo: lutas sociais e luta teórica na década de 1980. In: LIMA, Júlio César França e NEVES, Lúcia Maria Wanderley (orgs.). Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006. p. 201-239. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. LIGUORI, Guido. Estado e Sociedade Civil: de Marx a Gramsci. Novos Rumos, São Paulo, ano 21, n. 46, p. 4-10, 2006.

1 75

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MONTAÑO, Carlos e DURIGUETTO, Maria Lúcia. Estado, Classe e Movimento Social. São Paulo: Cortez, 2010. PORTELLI, Hugo. Gramsci e o Bloco Histórico. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a Sociedade Civil: cultura e educação para a democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

176

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Cultura e arte na obra de Antonio Gramsci: disputa de hegemonia e transformação de consciências MARCIO MALTA

Introdução Diversos foram os pensadores marxistas que refletiram sobre a relação entre cultura e arte, notadamente no século XX. A proposta em tela visa percorrer as considerações de Gramsci acerca do papel da cultura e da arte no processo de formação de consciências críticas, ou a “elevação cultural das massas populares”, nos dizeres do autor sardo. Subjacente ao debate está a questão da hegemonia e a sua disputa no interior da sociedade. Os esforços se concentrarão na obra de Antonio Gramsci, fazendo o levantamento do tema em questão nos Cadernos do Cárcere, assim como o levantamento bibliográfico e o cotejo reflexivo dos trabalhos que abordaram tal contribuição. Por último, na medida do possível e das limitações de espaço, percorrerei a literatura marxista, bem como a concepção da relação arte e sociedade nos mais diversos teóricos, como por exemplo, Plekhanov e Trotsky, identificando proximidades e divergências nessas abordagens. O objetivo exposto não é registrar Gramsci apenas como um “teórico da cultura”, afinal, isso seria um reducionismo 17 7

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

de sua contribuição não só acadêmica, como biográfica. O que se apresenta é um esforço em compreender a importância de tal dinâmica no conjunto de suas proposições acerca da esfera política e social. Alguns aspectos biográficos de Antonio Gramsci Nascido em 22 de janeiro de 1891, na Sardenha, Antonio Gramsci teve os primeiros contatos com a imprensa operária por conta de um irmão que era dirigente do movimento fabril e que lhe enviava com frequência os jornais sindicais e partidários. Por conta da prisão de seu pai devido a atividades suspeitas no exercício do funcionalismo público, o “pequeno sardo” teve uma infância pobre, tendo que trabalhar desde a mais tenra idade. Some-se a isso a saúde frágil e os problemas de coluna decorrentes de uma doença que o acometeu quando contava apenas dois anos de idade. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Turim. Contudo, os problemas de saúde e a dificuldade financeira para garantir o seu sustento fizeram com que abandonasse os estudos no último ano. Na juventude, Gramsci aproximou-se da militância política, a princípio como periodista, redigindo artigos para o jornal Avanti, do Partido Socialista Italiano (PSI). Neste tocante, pode-se aferir a primeira aproximação com o objeto do presente trabalho, pois o trabalho na imprensa acabou por lhe conferir o reconhecimento da dinâmica cultural e da informação para o desenvolvimento social e o estabelecimento de uma consciência crítica através da leitura. Como exemplo de tal aproximação pode ser citada a fundação por sua parte, em 1919, do semanário socialista L’Ordine Nuovo, um jornal de cultura, 178

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

depois transformado em jornal diário, que cumpria a função de “porta-voz” dos conselhos de fábrica. Em 1921, com destacada contribuição, participou da fundação do Partido Comunista Italiano (PCI), tendo sido eleito para o seu primeiro comitê central. Esteve presente ainda na edição do jornal L’Unità, pertencente à sigla comunista. De personalidade tímida, Gramsci evitava as tarefas e postos de direção no PCI e, por conseguinte, os de maior responsabilidade. Acrescida à sua timidez cabe destacar os empecilhos que sua saúde debilitada lhe impunha. Porém, devido à agudização dos conflitos entre capital e trabalho na Itália – que se modernizava a passos rápidos – mesmo contra a sua vontade, Gramsci foi galgando postos na burocracia partidária. Cabe salientar também que muitos de seus companheiros haviam sido presos, afinal, o contexto histórico analisado coincide com a ascensão dos “fascis” ao poder. No ano de 1924, Gramsci foi eleito para o parlamento italiano, porém o cerco aos militantes de esquerda fechava-se a cada dia, tendo inclusive ocorrido diversos casos de sequestro de personalidades que se opunham ao novo regime e o posterior assassinato de um dos colegas de plenário de Antonio. Na sequência dos acontecimentos, mesmo na condição de deputado e dotado de imunidade parlamentar, em oito de novembro de 1926, ocorre a prisão do pensador sardo em Roma. Associado a esse episódio é atribuída a um dos promotores a famosa frase de que era necessário deixar aquele cérebro vinte anos sem pensar. No entanto, a história nos demonstra que ocorrera exatamente o inverso. O franzino e corcunda Gramsci ocupou-se de escrever, memórias e escritos teórico-políticos, nas diversas cadeias pelas quais passou, num verdadeiro périplo de angústias e sofrimento que 179

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

somente terminaria em 1937, quando, em 27 de abril, veio a falecer. O resultado de tais anotações foi reunido e publicado dez anos após a sua morte, ganhando a denominação de Cadernos do Cárcere. Estes livros servirão de base para a reflexão acerca da importância da cultura e da arte no seio da obra do pensador. Cultura e arte na obra gramsciana A partir da prisão, a relação de Gramsci com a obra de Karl Marx, antes marginal, foi aprofundada. As releituras de alguns conceitos do pensamento marxiano vão permitir a instalação de novas perspectivas, como, dentre outras, a central discussão acerca da importância da “sociedade civil”, além das noções de “hegemonia” e da conformação de um “bloco histórico”. Gramsci amealhou uma importância tal no campo dos estudos da cultura popular, ou subalterna, como o autor preferia, que acabou por gerar quase uma obrigatoriedade nos estudiosos do tema em referenciar as suas abordagens no leque de elementos trabalhados pelo autor italiano. Quem assinalou com maestria tal discussão foi Eric Hobsbawm, em seu último livro publicado em vida: “na realidade, hoje em dia talvez seja difícil ou impossível para um historiador discutir os problemas da cultura popular, ou de qualquer cultura, sem aproximar-se de Gramsci, ou sem fazer um uso mais explícito de suas ideias [...]”198. Um dos debates que interessam ao plano de trabalho aqui exposto é a categoria de “intelectuais orgânicos”, ou 198. HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 310. 180

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

seja, indivíduos que estariam comprometidos integralmente com as suas respectivas classes sociais. Nesse tocante, é vital a compreensão dos artistas como integrados a essa lógica. Ou seja, como bem já havia analisado o russo Plekhanov, os indivíduos não podem ser compreendidos como átomos desprendidos de seu tempo e de suas condições concretas. Afinal, as ações dos indivíduos no decorrer da história são frutos das relações sociais199. Ainda acerca da discussão gramsciana sobre os intelectuais, Michael Löwy reconhece que: “exceto Gramsci, raros foram os intelectuais marxistas que tentaram explicar este fenômeno, não obstante decisivo para o movimento operário e cada vez mais importante e frequente no curso do século XX”200. Gramsci soube alargar a definição proposta por Marx, onde os intelectuais estavam restritos à burguesia, com alguns de seus setores, em casos específicos, passando para o “lado” dos proletários. A partir de Gramsci (mas não somente), podemos vislumbrar a defesa, por parte de alguns intelectuais, da tomada de uma posição político-ideológica em prol de uma cultura proletária. Justiça seja feita, outro autor que também apontou a relação ético-cultural dos intelectuais e uma tendência dos artistas a radicalizarem-se foi Lukács. O filósofo húngaro demonstrou que existia uma insatisfação dos intelectuais pequeno-burgueses para com o capitalismo, pois o mesmo reificava os elementos de sua produção, convertendo os mesmos em meras peças mercadológicas, com a estrita preocupação monetária. 199. PLEKHANOV, Guiorgui Valentinovitch. O papel do indivíduo na história. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 200. LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. p. X. 181

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Próximo a esse debate estão as ideias expostas por Adolfo Sánchez Vázquez em que pondera: Esse conteúdo determinado do trabalho é próprio de todo trabalho verdadeiramente criador e, mediante ele, assemelha-se à arte. Disto resulta que, ao perder essa determinabilidade nas condições do trabalho assalariado, o trabalho e a arte se divorciam, isto é, o trabalho perde o caráter artístico que ainda possuía na Idade Média no ofício do artesão. a relação de estranhamento e oposição do capitalista e do operário, bem como entre seus produtos, traduz-se assim na separação e oposição entre a arte e o trabalho, na medida em que este não mais se revela num princípio criador, artístico201.

Retomando as proposições de Gramsci, nele encontra-se, de modo claro, a definição do papel estratégico da cultura e da arte: o processo de formação de consciências críticas, ou nos seus dizeres, a “elevação cultural das massas populares”202. Assim, a discussão sobre a arte está sempre engendrada na perspectiva de uma transformação da sociedade. As massas populares deveriam ser retiradas da posição de subalternidade cultural em que se encontram, buscando iniciativas para a sua elevação intelectual e moral. Nesse sentido, ao discutir formas de disputa de hegemonia, Gramsci recomenda a criação por parte das classes subalternas de mecanismos e organismos próprios de difusão cultural e, por con201. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 192. 202. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 6: literatura, folclore, gramática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 182

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

seguinte, o esvaziamento dos órgãos das classes dominantes. Pode-se reconhecer em tal ponto uma coerência explícita na conduta de Gramsci, que sempre esteve à frente em projetos de tal monta, como os já citados L’Ordine Nuovo e L’Unità. Para aflorar a perspectiva do conceito de hegemonia trabalhado por Gramsci, pode ser citada a seguinte passagem da pesquisadora Rosemary Dore: Os grupos dominantes se utilizam de múltiplos e complexos meios na sociedade civil para tornar o seu pensamento hegemônico. Constroem na sociedade civil o que Gramsci chama de complexo de ‘trincheiras e fortificações’, do qual participam os mais diferentes organismos e procedimentos para compor um ‘clima cultural’, voltado para produzir e manter concepções de mundo que garantam sua expansão e direção sobre a sociedade. São formas de conceber o mundo e de agir no mundo que envolvem o senso comum, as crenças populares, a religião, os comportamentos, os costumes, os projetos e os ideais das comunidades, os conteúdos e as intenções de anedotas, a música, a literatura, a formação do ‘gosto’ cultural [...]203.

Mais adiante, Dore afirma que a tarefa filosófica de formação da mentalidade popular seria concebida em Gramsci como uma verdadeira “luta cultural”, na qual a filosofia cumpre o papel de crítica ao “senso comum”. Esse processo seria lento e gradual, pois a cultura na perspectiva gramscia-

203. DORE, Rosemary. Linguagem e técnica de pensar em Gramsci: elevação cultural das massas populares e conquista da hegemonia civil. In: SEMERARO, Giovanni et alli (orgs.). Gramsci e os movimentos populares. Niterói: EdUFF, 2011. p. 84. 183

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

na seria o produto de uma complexa elaboração, haja vista a infindável lista de elementos que a compõem e influenciam. A complexidade do processo acima listado seria ainda mais árdua devido à necessidade da capacidade de abstração que está presumida no questionamento do “senso comum”. Estaria em pauta o desenvolvimento de “técnicas de pensar”, aspecto este que somente seria impulsionado a partir da educação, posto que tais mudanças não se dão de forma espontânea, mas sim a partir do “marxismo na batalha das ideias”, para usurpar um termo utilizado por Leandro Konder no título de uma de suas obras. No tocante à forma com a classe dominante consegue reproduzir a sua estrutura ideológica, Gramsci aponta três aparatos fundamentais: a imprensa, a editora e a escola. Destes, a imprensa seria o polo mais dinâmico da produção de ideologia e opinião pública. Acrescidos aos aparatos acima listados, estariam ainda o rádio, o cinema e os meios de comunicação de massa que colaboram para difundir a hegemonia dominante na sociedade civil. Segundo Mário Maestri e Luigi Candreva: “na sociedade capitalista madura, a difusão do ‘material cultural’ da ideologia seria um processo capital que se aprofunda crescentemente”204. Ao discorrer sobre a literatura popular, um de seus temas mais abordados, Gramsci assevera que a determinada produção artística, não basta ser bela. É necessário ainda, um profundo conteúdo ideológico e moral. Porém, o autor italiano não incorre no mesmo erro que os superficialistas realistas soviéticos reproduziram, e reconhece um caráter específico da arte, não somente como uma derivação política. 204. MAESTRI, Mario e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 242. 18 4

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

O que está em pauta é a defesa gramsciana de que a arte cumpra a função de estar coadunada com os interesses do povo, estando circunscrita a uma determinada fase histórica. Vázquez define com precisão ao comentar esse posicionamento, o afastando do reducionismo acima elencado: “o critério político pode ser aplicado a uma obra de arte contanto que não esperemos desta mais do que ela pode dar”205. Vázquez dialoga com as questões de Gramsci e aponta ainda para uma problemática dialética, ao indicar que “a arte popular é a verdadeira arte de seu tempo, mas, também, por isso, é a arte capaz de vencê-lo, de superá-lo”206. Outro que se aproxima de Gramsci quando a discussão é o conteúdo das obras de arte é Leon Trotsky, que chegou a trocar correspondências com o italiano, a título de solicitar informações sobre o movimento futurista italiano. Trotsky defendia que: [...] não significa [...] o desejo de dominar a arte por meio de decretos e prescrições. É falso que só consideramos nova e revolucionária a arte que fala do operário. Não passa de absurdo dizer que exigimos dos poetas apenas obras sobre chaminés de fábricas ou sobre uma insurreição contra o capital207.

Ao discorrer sobre a literatura e ao definir as concepções de mundo distintas que dissociam o político e o artista, o pensador se revela de extrema sensibilidade ao dispor o dilema da seguinte maneira: 205. SÁNCHEZ VÁZQUEZ (2010). Op. Cit. p. 252. 206. Ibidem. p. 253. 207. TROTSKY, Leon apud BANDEIRA, Moniz. Prefácio. In: TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 12. 18 5

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

[...] sobre a relação entre literatura e a política, deve-se ter presente o seguinte critério: o literato deve ter perspectivas necessariamente menos precisas e definidas do que o político, deve ser menos ‘sectário’, se assim se pode dizer, mas de um modo ‘contraditório’. Para o político, toda imagem ‘fixada’ a priori é reacionária: o político considera todo o movimento em seu devir. O artista, ao contrário, deve ter imagens ‘fixadas’ e filtradas em sua forma definitiva. O político imagina o homem como ele é e, ao mesmo tempo, como deveria ser, para atingir um determinado objetivo; seu trabalho consiste precisamente em fazer com que os homens se movam, saiam de seu estado presente para se tornarem capazes coletivamente de alcançar o objetivo proposto, isto é, de se ‘conformarem’ ao objetivo. O artista apresenta necessariamente ‘o que é’ em certo momento (de pessoal, de não conformista et.), de modo realista. Por isso, do ponto de vista político, o político jamais estará contente com o artista e não poderá estar: sempre o julgará em atraso com relação ao tempo, sempre anacrônico, sempre superado pelo movimento real208.

Acerca das diferenças entre os papéis protagonizados por artistas e políticos, outro autor que também pensou em marcos próximos aos de Gramsci é o já citado Plekhanov, que delimitou as seguintes esferas: O artista expressa seu pensamento por meio de imagens, enquanto o publicista comprova suas ideias 208. GRAMSCI (2002). Op. Cit. p. 262-263. 18 6

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

com argumentos lógicos. Se um escritor emprega argumentos lógicos em lugar de imagens, ou se as imagens que criou lhe servem para demonstrar tal ou qual assunto, não se trata de um artista, mas de um publicista, mesmo que escreva, em vez de ensaios e artigos, romances, contos ou peças de teatro209.

Desenvolvendo a questão, pode-se recorrer à noção de “reforma intelectual e moral” defendida por Gramsci. Como se daria essa transformação é o fio da discussão a ser feita. Uma nova concepção de mundo somente seria possível a partir do momento que novas correlações sociais estivessem postas. E mesmo sendo uma composição avant la lettre, com segurança pode-se afirmar que Gramsci compreendia a importância dos elementos simbólicos na disputa de hegemonia do proletariado. Aqui entra a noção de cultura, intimamente relacionada às questões dos intelectuais socialmente engajados. Segundo Gramsci, seria um equívoco falar numa “nova arte”, mas o que deveria ser defendido seria uma “nova cultura”. Novos artistas não poderiam ser criados artificialmente. Daí sim, surgiriam novos artistas, com outras preocupações, com novas intuições da vida e novas formas de sentir e ver a realidade. Uma das passagens que corroboram tal ponto de vista seria a constatação de que: [...] a arte é sempre ligada a uma determinada cultura ou civilização e que, lutando- se para reformar a cultura, consegue-se modificar o ‘conteúdo’ da arte, trabalha-se para criar uma nova arte, não a partir de 209. PLEKHANOV, Guiorgui Valentinovitch apud BANDEIRA (2007). Op. Cit. p. 24. 187

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

fora (pretendendo-se uma arte didática, de tese, moralista), mas de dentro, já que o homem inteiro é modificado na medida em que são modificados seus sentimentos, suas concepções e as relações das quais o homem é a expressão necessária210.

Existiria, assim, uma unidade cultural-social, onde a vontade coletiva poderia interferir para transformar o momento cultural através da atividade prática. A ampliação do número de artistas numa sociedade pós-revolução também foi abordada por Gramsci. A existência de novos artistas seria uma consequência aberta pelas novas formas de pensar o mundo. Aqui pode se observar o uso do conceito de hegemonia: Um novo grupo social que ingressa na vida histórica com postura hegemônica, com uma segurança de si que antes não possuía, não pode deixar de gerar, a partir de seu interior, personalidades que, antes, não teriam encontrado força suficiente para se expressar completamente num certo sentido211.

Contudo, como salientou Bianchi, não cumpre enxergar Gramsci tão somente como um estudioso das culturas. Como foi dito anteriormente, não seria condizente com a realidade sintetizá-lo como um indivíduo preocupado com as belas-letras ou algo que o valha. Tal conjunto de reflexões deve estar intimamente associado às suas propugnações no campo da política. A esse respeito, o próprio Bianchi adverte:

210. GRAMSCI (2002). Op. Cit. p. 35. 211. GRAMSCI (2002). Op. Cit. p. 70. 18 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

É absolutamente surpreendente que Antonio Gramsci tenha sido apresentado ao público italiano do pós-guerra primeiramente como um ‘teórico da cultura’. E mais surpreendente é a persistência dessa imagem. Certamente há nos Quaderni uma abordagem consistente da cultura e, particularmente, da cultura italiana. Nos diversos planos de trabalho que antecederam o início da redação dos Quaderni essa questão aparecia de modo persistente. E mesmo após o início da redação ela permanece. Mas a questão que a partir de determinado momento passou a organizar o empenho gramsciano era outra: a política212.

Em Gramsci, encontra-se bem definido que a preocupação com esses termos não se dá num cenário vazio e de preocupações meramente estéticas ou morais, mas sim a partir de uma concepção sólida e definida do protagonismo de tais elementos na formação daquilo que Che Guevara chamou alhures da constituição do “novo homem”. A opção acima apontada pode ser observada na definição feita por Eric Hobsbawm do comportamento explícito do autor italiano ao abordar temas culturais. De tão pujante, a passagem pode servir perfeitamente à guisa de conclusão da presente seção: Contudo, a força da atividade intelectual de Gramsci nesse campo, como em todos os outros sobre os quais refletiu e escreveu, está no fato de ele nunca ser puramente acadêmico. A práxis estimulou e fertilizou sua teoria, e foi a finalidade dela. A influência de Grams212. BIANCHI, Álvaro. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. p. 143. 189

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ci sobre os estudiosos da ideologia e da cultura tem sido tão acentuada porque, para todos aqueles envolvidos com a cultura popular, o interesse também não é puramente acadêmico. O objetivo de quase todos os que realizam esses estudos não é, basicamente, escrever teses e livros. Como Gramsci, eles estão profundamente interessados no futuro, tanto quanto no passado: no futuro das pessoas comuns que formam a maior parte da humanidade, inclusive a classe operária e seus movimentos, no futuro das nações e da civilização213.

Considerações finais Distante de buscar conclusões, os apontamentos aqui expostos constituem-se como um exercício primeiro de analisar algumas questões acerca da cultura e da arte na obra de Gramsci. Buscou-se ainda relacionar todo o manancial de elementos presentes na contribuição deste autor com um diálogo aberto entre as ideias não só do inspirador, Marx, como também daqueles pensadores que beberam nessa mesma fonte e também aludiram à mesma problemática aqui inscrita. Pensar o aspecto cultural e artístico inserido dentro de uma lógica política permite aprofundar o debate e discutir de que maneira tais elementos podem estar a serviço de uma nova concepção de sociedade. Para além da reprodução de um discurso que enxerga as dinâmicas cultural e artística como um mero instrumento para viabilizar determinada estratégia, é fundamental compreender a autonomia de tais 213. HOBSBAWM (2011). Op. Cit. p. 310. 19 0

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

campos. Afinal, existiria subjacente uma relação dialética, em que arte e sociedade estão imbricadas, sendo que qualquer afastamento nos conduziria, necessariamente, a uma análise comprometida. Muito mais profícuo é compreender as suas derivações, nunca de forma excludente ou subordinada, mas, na verdade, orgânica. Avanços nesse campo são inegáveis e novas perspectivas estão abertas na tentativa de compreender a importância capital do elemento simbólico que constituem a cultura e a arte no seio das transformações sociais. A arte, a propósito, por sua dicotômica constituição entre abstração e prática, é escorregadia e fluida, no entanto cada vez mais fundamental na formação de novas formas de pensar e, não obstante, de agir. Referências Bibliográficas BIANCHI, Álvaro. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. BANDEIRA, Moniz. Prefácio. In: TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DORE, Rosemary. Linguagem e técnica de pensar em Gramsci: elevação cultural das massas populares e conquista da hegemonia civil. In: SEMERARO, Giovanni et alli (orgs.). Gramsci e os movimentos populares. Niterói: EdUFF, 2011. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 6: literatura, folclore, gramática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

19 1

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. MAESTRI, Mario e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2007. PLEKHANOV, Guiorgui Valentinovitch. O papel do indivíduo na história. São Paulo: Expressão Popular, 2008. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

192

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Gramsci: o vigor de seu pensamento político ANA LOLE

Meu estado de espírito sintetiza estes dois sentimentos [otimismo e pessimismo] e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas otimista com a vontade. Em cada circunstância, penso na hipótese pior, para pôr em movimento todas as reservas de vontade e ser capaz de abater o obstáculo. Antonio Gramsci

Introdução Em tempos de crise no Brasil e na América Latina, tanto da política quanto da esquerda, é pertinente um diálogo mais profícuo com o pensamento de Antonio Gramsci. Vivenciamos o apogeu da fragmentação pós-moderna, onde buscamos solução para o caos e acabamos por causar novos transtornos. O capitalismo contemporâneo apresenta-se com um forte poder ideológico, diluindo/enfraquecendo as lutas de classes, focalizando as políticas sociais, privatizando o que ainda resta de público, enfim, contribuindo para a construção de uma “esquerda liberal”. Diante de tal conjuntura, Gramsci continua imprescindível para fazer a leitura da realidade. Dessa forma, o objetivo deste artigo é resgatar a im193

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

portância do pensamento gramsciano na construção de um horizonte contemporâneo transformador. Para tanto é necessário: uma apresentação do cenário atual, com o debate de sua fragmentação e a proposta de unidade orgânica cunhada pelo filósofo sardo no plano teórico-prático. A opção por Gramsci não é uma forma de fugir do marxismo, mas por considerar seu pensamento político uma possibilidade de transformação social. Muitas apropriações do pensamento gramsciano acontecem como alternativa para atravessar a turbulência sem alterar a rota. Gramsci projetou-se para além de seu tempo, por isso estudar essa temática a partir da teoria gramsciana é reconhecer a importância de seu pensamento, o qual permanece vivo e contribui para a compreensão da complexa dinâmica da sociedade capitalista contemporânea. Minha intenção é mostrar o quanto é atual o seu pensamento e importante para analisar os processos que vivemos na contemporaneidade, sempre no intuito de transformação social e política da realidade. As novas condições (im)postas pelo capitalismo colocam em xeque a própria ideia de esquerda, considerando a conjuntura brasileira e latino-americana. Para Liguori, as esquerdas nos dias atuais são pressionadas a abandonarem o conceito de classe devido “[...] a crise dos modelos hiperestatistas e autoritários do socialismo real e com os limites de gestão governamental apresentados pelos países socialdemocratas do Welfare State. A cultura da política da direita tornou-se preponderante, em forma e conteúdo, sobre a esquerda”214.

214. LIGUORI, Guido. Estado e sociedade civil de Marx a Gramsci. Novos Rumos, São Paulo, ano 21, n. 46, p. 4-10, 2006. p. 4. 19 4

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Ainda de acordo o autor, as percepções incorporadas pelas esquerdas são de origens liberais cujo interesse é “[...] a supremacia da sociedade civil sobre o Estado; a superioridade do econômico sobre o político; do privado sobre o público; do mercado sobre a programação estatal. E podemos dizer ainda, conjuntamente com Marx, do burguês sobre o cidadão”215. Diante deste quadro, a ideia de cidadania passou a substituir assim o conceito de classe social para essa “esquerda liberal”. Segundo Liguori, essa noção não mais compactua com a realidade dos fatos, uma vez que o indivíduo, o cidadão, “[...] está afastado de toda possibilidade de fazer parte de uma subjetividade coletiva – que, frequentemente, aparece privada de todas as defesas e dos direitos provindos dos últimos duzentos anos de luta de classe”216. É possível, desta maneira, apontar que a ofensiva neoliberal ocasiona o desmonte das classes, transformando-as num mero grupo social subalterno – na concepção gramsciana, aquele coletivo que ainda não se tornou classe. Tal ofensiva, a propósito, representa uma etapa fundamental para a fragmentação pós-moderna, bem como uma forma de explicitar essa investida. A fragmentação é um desafio para todos nós, por compor o nosso tempo histórico e, simultaneamente, viabilizar uma inconcebível “gestão da barbárie”. Carlos Nelson Coutinho coloca que se a sociedade brasileira não for capaz de enfrentar essa agenda perversa do neoliberalismo chegaremos ao “desmonte da nação”, um dos aspectos pertinentes à crise do capital. O grande desafio para todos hoje é o de organizar a classe. Por meio da organização 215. Ibidem. p. 4. 216. Ibidem. p. 4. 195

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

política da classe alcança-se um novo momento ético-político, pois através da práxis revolucionária emerge uma possibilidade de enfrentar a crise217. Fragmentação versus unidade A fragmentação pós-moderna posta no atual cenário provoca um “mal-estar” na academia e também nas lutas coletivas. Observo essa fragmentação, essa polaridade, esse desencontro nas manifestações realizadas no mês de junho de 2013 no Brasil218. A busca de um sentido coletivo, melhor dizendo, de uma unidade orgânica de acordo com o pensamento gramsciano. Fica então o questionamento: como a sociedade civil rompe com a fragmentação dos movimentos? Sabe-se que na ausência de um partido que nos represente, outras organizações tomarão seu lugar. Desta forma, como alcançar o desafio que Carlos Nelson Coutinho nos propõe, que é o de organizar a classe, se o partido toma várias formas, inclusive de não-partido e de a-partido? Almejamos um momento ético-político em que outra sociabilidade se imponha. Marco Aurélio Nogueira resgata que esse cenário fragmentado nos leva a busca de um porto seguro, o qual não encontramos no presente e, por não encontrarmos, buscamos referencial do passado219. Fazendo referência a Koselleck, te217. COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. In: ______. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 49-70. 218. Para maiores informações sobre os eventos de junho de 2013, ver: MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. 219. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Modernidade e pós-modernidade: em busca do sentido da vida real. Emancipação, Ponta Grossa, v. 12, n. 1, p. 9-19, 2012. Disponível em: 19 6

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

mos as categorias que auxiliam na compreensão histórica do tempo denominadas “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”. Ou seja, não há expectativa sem experiência, portanto não há experiência sem expectativa. Por meio delas, passado e futuro se encontram. O que se almeja para o futuro está condicionado pelo que se conhece do passado220. Gramsci em suas notas sobre passado-presente coloca que o passado “[...] não é menos rico de experiência; porque toda a história é testemunha do presente”221. Para o filósofo: [...] toda fase histórica deixa os seus traços nas fases posteriores; e estes traços, em certo sentido, tornam-se o seu melhor documento. O processo de desenvolvimento histórico é uma unidade no tempo, pelo qual o presente contém todo o passado e o passado realiza no presente o que é ‘essencial’, sem resíduo de um ‘incognoscível’ que seria a verdadeira ‘essência’222.

Na concepção gramsciana, a história é um processo dialético, o que pode levar ao conservadorismo ou à renovação. O filósofo italiano reconstrói a história real [no caso, do movimento operário] e aponta para a inovação, sem abandonar o que de positivo está contido na história. O autor dos Cader-

. Acesso em: 11 out. 2013. 220. KOSELLECK, R. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, duas categorias históricas. In: ______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006. p. 305-327. 221. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011c. p. 355. 222. Idem. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedito Croce. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011a. p. 240. 197

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

nos do Cárcere realiza um empreendimento de renovação, de superação dialética, consegue “ir além”. Com base nessas observações, passo a pautar o debate a partir da década de 1990, quando, no Brasil, é implementado o chamado projeto neoliberal. Leda Paulani resgata que o neoliberalismo no contexto brasileiro teve uma dinâmica e impasses particulares. Segundo a autora, desde a eleição de Collor tentam imprimir a lógica da redução do Estado, da privatização do que é público, de controle dos gastos estatais, da abertura da economia, entre outros, no intuito de tornar o Brasil um país mais competitivo223. Porém, a autora chama a atenção para o seguinte: o Estado não se tornou fraco, pelo contrário, ele é forte para atender as demandas do grande capital, no limite até violento na condução do processo. Posso citar, novamente, a forma como o Estado reagiu diante das manifestações de junho de 2013. Ao mesmo tempo, o poder estatal é fraco para os investimentos nas áreas sociais. Os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso trouxeram um sentimento prolixo de “emergência financeira”. Para Paulani “[...] tudo se passa como se aos poucos estivesse sendo decretado um estado de exceção econômica, o que justifica qualquer barbaridade em nome da necessidade de salvar o país, ora do retorno da inflação, ora da perda de credibilidade, ora da perda do bonde da história... [...]”224.

223. PAULANI, Leda Maria. O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses. In: LIMA, Júlio César França; NEVES, Lúcia Maria Wanderley (orgs.). Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006. p. 67-107. 224. Ibidem. p. 90-91. 19 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

O discurso neoliberal cumpriu com sua agenda. No governo Lula, o estado de emergência transforma-se em necessidade. Paulani nos alerta para esse estado de exceção: Mas o estado de exceção é justamente o oposto do estado de direito. Sob seus auspícios, uma espécie de vale-tudo toma o lugar do espaço marcado por regras, normas e direitos. Trata-se da suspensão da normalidade, da suspensão da ‘racionalidade’. São puras medidas de força justificadas pelo estado de emergência e pela necessidade de ‘salvar’ a sociedade (neste caso, em que a emergência se tornou norma, trata-se de salvar a sociedade do eterno perigo da inflação e do inaceitável pecado da perda de credibilidade). A armação do estado de emergência econômico que presenciamos foi, assim, condição de possibilidade para que nossa relação com o centro passasse da dependência tecnológica típica da acumulação industrial à subserviência financeira típica do capitalismo rentista [...]225.

Com base nesta afirmação, me remeto a Gramsci quando o mesmo coloca que a crise não acontece somente pelo viés da dinâmica econômica, fruto das relações contraditórias da acumulação capitalista, mas se dá através de um processo mais amplo, ou seja, através de uma “crise orgânica”, uma “crise de hegemonia”, como o filósofo sardo registrou nos Cadernos. Já que o meu recorte temporal é o contexto da pós-modernidade com o objetivo de entender os mecanismos que 225. Ibidem. p. 96. 19 9

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

levam a fragmentação generalizada em tempo de capitalismo tardio226 e o quanto essa fragmentação pós-moderna enfraquece as lutas sociais pela emancipação, faz-se necessário algumas colocações sobre o fenômeno da pós-modernidade. O que se convencionou chamar de pós-modernidade nasce no bojo do esgotamento do socialismo real, ou seja, a partir da crise da chamada esquerda tradicional buscou-se constituir na pós-modernidade uma alternativa à modernidade, numa tentativa de demonstrar que as “grandes promessas da modernidade” (igualdade, liberdade e fraternidade) não foram cumpridas. Segundo Harvey “uma das condições principais da pós-modernidade é o fato de ninguém poder ou dever discuti-la como condição histórica-geográfica”227. Na pós-modernidade o prefixo “pós” deve ser pensado como deslocamento e não como o que vem depois. Não podemos falar em pós-modernidade em oposição à modernidade, pois não é um par antagônico. Modernidade e pós-modernidade são mais expressões que categorias. Para Jameson, É mais seguro entender o conceito do pós-moderno como uma tentativa de pensar historicamente o presente em uma época que já esqueceu como pensar

226. Expressão cunhada pelo economista belga Ernest Mandel, que entendia o modo de produção capitalista como três grandes momentos: capitalismo de mercado (séculos XVII, XVIII e XIX: período dos motores a vapor); capitalismo monopolista (séculos XIX e XX até os anos 1960: período dos motores elétricos/à explosão) e capitalismo tardio (pós-1960 até hoje: período dos motores eletrônicos/nucleares). Tal período seria marcado pela expansão das grandes corporações nacionais; globalização dos mercados e do trabalho; consumo de massa; aumento dos fluxos internacionais do capital e terceirização (serviços) da economia. KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 181. 227. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 19 ed. São Paulo: Loyola, 2010. p. 301. 20 0

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

desta maneira. Nessas condições, o conceito ou ‘exprime’ (não importa se de modo distorcido) um irreprimível impulso histórico mais profundo ou efetivamente o ‘reprime’ e desvia, dependendo de que lado da ambiguidade nos colocamos228.

Na obra As origens da pós-modernidade, Perry Anderson apresenta a explicação da noção, tipicamente pós-moderna, de índole mais histórica. Neste contexto, o autor afirma que esse debate começa a circular primeiramente no campo da literatura, pois a “[...] noção de pós-moderno não adquiriu qualquer difusão mais ampla até os anos setenta”229. Ainda segundo Anderson, “o pós-modernismo pode olhar-se como um campo cultural triangulado [...], por três novas coordenadas históricas”230. A primeira coordenada reside no destino da própria classe governante – “o pós-modernismo é o que acontece quando, sem qualquer vitória, esse adversário desaparece”231. A segunda se pode fazer remontar à evolução da tecnologia – destaque para os anos 1970 com o surgimento da TV em cores. Por fim, a terceira residia, naturalmente, nas mudanças políticas da época – Guerra Fria, alterações no mundo do trabalho etc.232 Diante do exposto, é possível perceber que a pós-modernidade não é uma evolução da modernidade. Enquanto a modernidade possui características como: crítica, emancipa228. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2 ed. São Paulo: Ática, 2007. p. 13. 229. ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Lisboa: Edições 70, 2005. p. 24. 230. Ibidem. p. 113. 231. Ibidem. p. 116. 232. Ibidem. p. 113-124. 201

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

ção, transformação, construção de uma utopia, entre outras, a pós-modernidade traz consigo o efêmero, o não compromisso político, as subjetividades múltiplas, a fragmentação etc. “Tudo o que existe estaria marcado pela efemeridade, pela fragmentação, pela indeterminação, pela descontinuidade, pelo ecletismo das diferenças e pelo caos paradoxal”233. Importa dizer que no modo de produção do capitalismo tardio tudo tornou-se mercadoria, ou seja, “o pós-modernismo caracterizou-se pelo consumo da própria produção de mercadorias”234. Percebe-se o reflexo dessa mudança nas políticas de garantia de direitos, as quais devem atender as prescrições neoliberais: privatização, focalização associada à seletividade e descentralização. As políticas sociais transformam-se em ações pontuais e compensatórias. Para Mészáros, a ordem perversa do capital na contemporaneidade materializada em globalização faz com que percamos a capacidade civilizatória, além de tornar os direitos cada vez mais destrutivos235: As tendências dominantes no mundo da cultura apontam para uma situação em que a razão encontra-se desconfortavelmente na berlinda. Há uma suspeição generalizada em relação às promessas civilizatórias encarnadas pela razão moderna. Chega-se a proclamar que estaríamos no reino da razão cínica236.

233. EVANGELISTA, João Emmanuel. Teoria social pós-moderna: introdução crítica. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 77. 234. JAMESON, Fredric (2007). Op. Cit. p. 14. 235. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. 236. EVANGELISTA, João Emmanuel (2007). Op. Cit. p. 75. 202

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Na pós-modernidade o tempo se resume ao presente, há uma dimensão gradual entre passado e futuro. Ocorre uma suplantação do tempo pelo espaço pós-moderno. O tempo e o espaço são novas formas de se relacionar com o pós-modernismo. Para Jameson, o período do modernismo é marcado pelo crescimento desigual e, com o pós-modernismo, chegamos/alcançamos a modernização mais completa. Hoje tem-se uma nova política espacial de ocupação. Segundo Harvey: A experiência do tempo e do espaço se transformou, a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político-econômicos e passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autônomas237.

Este processo de fragmentação pós-moderna conduz à reflexão sobre a produção de conhecimento e a importância da teoria enquanto ferramenta específica de apreensão da realidade, forma de conhecer o objeto em sua essência própria.

237. HARVEY, David (2010). Op. Cit. p. 283. 203

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Atualidade da filosofia da práxis Para se alcançar a emancipação humana e política, o campo privilegiado de lutas e disputas é a sociedade civil238. Antes de avançar neste aspecto, cabe aqui pontuar meu entendimento sobre emancipação humana. Assim, falar em emancipação é resgatar um conjunto de elementos que se tinha deixado para trás, como, por exemplo, restabelecer o primado do sujeito na teoria social. Discutir a emancipação humana, portanto, requer explicitar as ideias em torno do projeto de libertação humana, que se inscreve na perspectiva do materialismo histórico e dialético, sendo a liberdade uma luta pela humanização e contra a coisificação. Investidas teóricas deste porte apresentam-se como necessárias, marcadamente na contemporaneidade, que, como expressão filosófica e estética do culto ao individualismo, vem buscando desqualificar todas as perspectivas coletivas, através do argumento do subjetivismo e as novas demandas sociais, atingindo frontalmente conceitos como o de emancipação239. Assim, Stampa, com base em Engels240, afirma: Emancipar-se, em primeira instância, pensamos, passa pelo referencial econômico, pelo gerenciamento da própria existência. Posteriormente, mas estritamente relacionados e não hierarquicamente, teremos de con238. Para um maior aprofundamento acerca do debate de sociedade civil, ver: SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a Sociedade Civil: cultura e educação para a democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 239. STAMPA, Inez. Compromisso de classe por uma sociedade emancipada – notas para reflexão. Temporalis, Brasília, ano 11, n. 22, p. 159-190, jul./dez. 2011. 240. ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 1880. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2011. 20 4

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

siderar as significações sociais: emancipação como plenitude da ação política, afetivo-emocional e social. O processo emancipatório constitui-se em uma totalidade de aspectos [...] Engels e a maioria dos autores marxistas tratam a emancipação sempre como um processo coletivo [...]. Nesse contexto, quais as possibilidades de analisarmos as lutas por emancipação na atualidade? A formação desta nova condição humana emancipatória deve estar na base de uma atitude crítica, comprometida com o tornar homens e mulheres atuais à sua época, observando o processo de luta para essa transformação. Expressa está, portanto, a concepção política na ideia de construção de novos homens e mulheres, rompendo com o individualismo e com as apologias reformistas, propondo a condição humana emancipatória241.

Daí a importância da reflexão sobre a construção de espaços públicos democráticos no Brasil, que não pode prescindir do campo de debates da sociedade civil, importante arena de lutas. É nessa arena que as classes lutam para conquistar a hegemonia, ou seja, a direção política para a construção do projeto societário que almejam242. A práxis não é apenas um novo conceito filosófico e político, mas carrega consigo um “princípio teórico-prático da hegemonia” e uma conotação epistemológica: “a compreensão crítica de si mesmos, acontece através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, antes no

241. STAMPA, Inez (2011). Op. Cit. p. 175-176. 242. GRAMSCI, Antonio (2011c). Op. Cit. 20 5

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

campo da ética, depois da política, para chegar a uma elaboração superior da própria concepção do real”243: A inovação fundamental introduzida pela filosofia da práxis na ciência da política e da história é a demonstração de que não existe uma ‘natureza humana’ abstrata, fixa e imutável [...], mas que a natureza humana é o conjunto das relações sociais historicamente determinadas, ou seja, um fato histórico verificável, dentro de certos limites, com os métodos da filologia e da crítica244.

Gramsci nos ensina a ver além do que está escrito nas leis e nos discursos: “[...] formas e ideias são também expressão condensada de constelações sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as contradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las”245. Porém, há uma tendência no debate atual em que as formas coletivas de organização vêm sendo progressivamente esvaziadas e, sobretudo, fragmentadas. Eles incorporam os discursos particularistas e são, sorrateiramente, destituídos da construção de uma “vontade coletiva”. Neste contexto, [...] o ‘pertencimento’ de classe cede lugar ao individualismo, ao ‘desencantamento utópico’, à proliferação de teorias do fragmentário, de heterogeneidade,

243. Idem. (2011a). Op. Cit. p. 103. 244. Idem. (2011c). Op. Cit. p. 56. 245. COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 9. 20 6

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

do aleatório, reforçando a ‘alienação e reificação do presente’ e provocando um estilhaçamento dos nossos modos de representação246.

Essa lógica remete à sociedade civil em sentido contrário ao proposto por Gramsci, ou seja, a sociedade civil é desarticulada do Estado e atravessada pela lógica do mercado. Esse processo se dá no cenário onde os interesses universais são substituídos por preocupações grupais e específicas, gerando políticas pontuais e compensatórias. Desaguando numa espécie de cidadania diferenciada e não universal. Segundo Varikas, em vez de “[...] um processo sempre aberto às particularidades que o compõem, o universal tendeu a se identificar com o mais forte, rejeitando o fraco como particular e até mesmo como particularismo”247. Considero, em consonância com a referida autora, que o debate do universalismo e do particularismo está ligado ao da democracia: [...] é uma questão de democracia, porque exige essa interação recíproca e frequentemente conflituosa pela qual se busca o interesse geral na expressão autônoma, na confrontação e na reformulação dos pontos de vista e dos desejos de cada um. A afirmação de demandas ‘particulares’ constitui assim um momento

246. SIMIONATTO, Ivete. A cultura do capitalismo globalizado. Novos consensos e novas subalternidades. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 275-289. p. 283. 247. VARIKAS, Eleni. Universalismo e particularismo. In: HIRATA, Helena et alli (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. p. 266-271. p. 267. 207

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

necessário da construção de qualquer objetivo político com desígnio universal248.

Neste sentido, a democracia é “concebida como a construção coletiva do espaço público, como a plena participação consciente de todos na gestação e no controle da esfera política”249. Para o autor, a ideia de democracia e cidadania, em última instância, quer dizer a mesma coisa. E um dos conceitos que melhor proclama a conquista dos bens sociais pelo conjunto dos cidadãos é o de cidadania. Cidadania, para Coutinho, é a propriedade conquistada pelos indivíduos “[...] de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado”250. Para a dialética marxista, “[...] o conhecimento é totalizante e a atividade humana, em geral, é um processo de totalização, que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada”251. No que se refere à totalidade, a dialética indica que temos que enxergar as contradições e mediações concretas da realidade que nos cerca, ou seja, “[...] a contradição é reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. A dialética não se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica, desbravando um espaço que a lógica não consegue ocupar”252.

248. Ibidem. p. 270. 249. COUTINHO, Carlos Nelson (2008). Op. Cit. p. 50. 250. Ibidem. p. 50-51. 251. KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 35. 252. Ibidem. p. 47. 20 8

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Dessa forma, pelo desenvolvimento da criticidade e da criatividade, é necessário que não se caia no determinismo crasso. De acordo com Kosik “[...] a consciência humana é reflexo e projeção, registra e constrói, toma nota e planeja, reflete e antecipa, é ao mesmo tempo receptiva e ativa”253. Reportando-me mais uma vez ao pensamento gramsciano, o filósofo sardo “não se colocava jamais problemas abstratos separados e isolados da vida dos homens”, o que revela sua capacidade de estabelecer a necessária relação dialética entre teoria e prática254. Para Marx, fundador desta filosofia, a práxis é uma atividade humana sensível255. O autor defende a indissociabilidade entre o agir e o pensar, entre a filosofia e o trabalho, entre o mundo objetivo e o subjetivo, a partir do conceito de práxis. Marx fala em “práxis revolucionária”, aquela que movimenta, transforma. Gramsci recupera o conceito, usando-o na perspectiva de: a) resgatar o marxismo, superando o reducionismo das manipulações idealistas e materialistas vulgares, da redução da prática à teoria, ou da teoria à prática; b) combater as ideologias modernas mais refinadas e hegemônicas; c) instrumentalizar as massas populares na construção de uma concepção própria de mundo256. A filosofia da práxis é um ato totalmente revolucionário, pois abrange mudanças sociais, 253. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 32-33. 254. SIMIONATTO, Ivete. O social e o político no pensamento de Gramsci. In: AGGIO, Alberto (org.). Gramsci: a vitalidade de um pensamento. São Paulo: UNESP, 1998. p. 37-64. p. 41. 255. Ver MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 256. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 4: Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e Fordismo. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011d. p. 31-41. 20 9

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

econômicas e políticas. Nas palavras do autor: “é uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia”257; nesta compreensão, “a filosofia deve se tornar política para tornar-se verdadeira”258. A abordagem da realidade, em Gramsci, é feita através da conjugação inseparável entre o agir e o pensar, para evitar cair no idealismo e no materialismo vulgar; as ações se dão no calor da ação política. Ou seja, Gramsci amplia conceitos do marxismo, embora dele não se afaste. Considerações finais Diante do quadro relatado, cabe ressaltar o papel dos intelectuais no processo de transformação social. A categoria de intelectuais é fundamental no pensamento gramsciano. Para o filósofo “[...] se se pode falar de intelectuais, é impossível falar de não intelectuais. [...] Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens”259. Para Gramsci, são os intelectuais os responsáveis pela organização e difusão de uma nova concepção de mundo, pois cabe aos intelectuais articular, organicamente, os componentes necessários dentro do bloco histórico (totalidade social). Isto é, os intelectuais desempenham um papel fundamental na organização da hegemonia. Nesse sentido, o intelectual tanto pode agir para a transformação quanto para a conservação da sociedade. Pois, 257. Ibidem. p. 37. 258. GRAMSCI, Antonio (2011a). Op. Cit. p. 189. 259. . Idem. Cadernos do Cárcere – Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011b. p. 51-52. 210

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

pensando gramscianamente, o conceito de intelectual privilegia a função organizativa. O filósofo sardo situa as ações contra-hegemônicas como “instrumentos para criar uma nova forma ético-política”, cuja função é denunciar e tentar reverter as condições de subalternidade e exclusão impostas aos estratos sociais pelo modo de produção capitalista260. A contra-hegemonia nos faz ver que a hegemonia não é uma construção monolítica, mas sim o resultado das medições de forças entre blocos de classes em dado contexto histórico. Ela pode ser reelaborada, revertida e modificada, num longo processo de lutas, contestações e vitórias cumulativas. Diante do atual cenário de crise, realça-se a relevância do papel dos intelectuais na alteração da dinâmica societal como também no processo de organização da classe. Para tanto, faz-se necessário uma sensibilidade frente à realidade histórico-social sem perder o compromisso com um novo momento ético-político. O estímulo a essa sensibilidade exige uma postura mais ética, crítica, criativa e comprometida de todos nós. Referências Bibliográficas ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Lisboa: Edições 70, 2005. COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. In: ______. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 49-70.

260. Idem (2011a). Op. Cit. p. 314-315. 211

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

______. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 1880. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2011. EVANGELISTA, João Emmanuel. Teoria social pós-moderna: introdução crítica. Porto Alegre: Sulina, 2007. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedito Croce. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011a. ______. Cadernos do Cárcere – Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011b. ______. Cadernos do Cárcere – Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011c. ______. Cadernos do Cárcere – Volume 4: Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e Fordismo. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011d. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 19 ed. São Paulo: Loyola, 2010.

212

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2 ed. São Paulo: Ática, 2007. KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2008. KOSELLECK, R. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, duas categorias históricas. In: ______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006. p. 305-327. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. LIGUORI, Guido. Estado e sociedade civil de Marx a Gramsci. Novos Rumos, São Paulo, ano 21, n. 46, p. 4-10, 2006. MARICATO, Ermínia et alli. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

213

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Modernidade e pós-modernidade: em busca do sentido da vida real. Emancipação, Ponta Grossa, v. 12, n. 1, p. 9-19, 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2013. PAULANI, Leda Maria. O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses. In: LIMA, Júlio César França; NEVES, Lúcia Maria Wanderley (orgs.). Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006. p. 67-107. SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a Sociedade Civil: cultura e educação para a democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. SIMIONATTO, Ivete. O social e o político no pensamento de Gramsci. In: AGGIO, Alberto (org.). Gramsci: a vitalidade de um pensamento. São Paulo: UNESP, 1998. p. 37-64. ______. A cultura do capitalismo globalizado. Novos consensos e novas subalternidades. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 275-289. STAMPA, Inez. Compromisso de classe por uma sociedade emancipada – notas para reflexão. Temporalis, Brasília, ano 11, n. 22, p. 159-190, jul./dez. 2011. VARIKAS, Eleni. Universalismo e particularismo. In: HIRATA, Helena et alli (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. p. 266-271. 214

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Biografias dos autores Aiman Franco - Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Colégio Militar de Santa Maria, RS. E-mail: [email protected] Ana Lole - Assistente Social e Mestre em Política Social pela UFF. Doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: [email protected] Eduardo Rebuá - Bacharel e Licenciado em História pela UFF. Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorando em Educação pela UFF. Membro do Núcleo de Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NUFIPE/UFF). E-mail: [email protected] Marcio Malta - Cartunista. Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela UFF. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutor em Ciência Política pela UFF. Professor de Ciências Sociais da UFF/Campos e pesquisador do Laboratório de Estudos em Política Internacional (LEPIN/UFF). E-mail: [email protected] Rodrigo Gomes - Bacharel e Licenciado em História pela UFF. Mestre e Doutor em Educação pela UFF. Professor da

215

G R A M S C I

N O S

T R Ó P I C O S

Rede Municipal do Rio de Janeiro. Membro do NUFIPE/UFF. E-mail: [email protected] Rogério Souza - Bacharel em Ciências Econômicas. Mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutor em Ciências Sociais pela UERJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ/UCAM) e coordenador do Laboratório de Estudos da Cidade e da Cultura (LECC/IUPERJ). E-mail: [email protected] Victor L. C. Gomes - Bacharel e Licenciado em História pela UFRJ. Mestre e Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ. Professor do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da UFF e coordenador do LEPIN/UFF. E-mail: [email protected]

216

Este livro foi composto em ITC Slimbach pela Editora Multifoco e impresso em papel pólen soft 80 g/m².

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.