Gravação multipista em campo: Desenvolvendo uma abordagem para música de tradição oral

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GRAVAÇÃO MULTIPISTA EM CAMPO: DESENVOLVENDO UMA ABORDAGEM PARA MÚSICA DE TRADIÇÃO ORAL José Guilherme Allen Lima [email protected]

Resumo: O presente trabalho é uma avaliação dos procedimentos utilizados durante as gravações em campo para o disco "Responde a Roda Outra Vez", produzido pelo Núcleo de Etnomusicologia da UFPE sob coordenação geral do Prof. Carlos Sandroni e coordenação técnica do autor. As gravações foram realizadas no período de Janeiro a Março de 2003 em cidades do interior dos estados de Pernambuco e da Paraíba. A maior parte do material presente no disco foi captada em um sistema móvel de gravação multipista, em uma experiência inédita na região, e dessa forma, um processo de adaptação do equipamento às necessidades e limitações do campo se fez necessário. Posteriormente, houve também o desenvolvimento de uma abordagem específica para a finalização do material de áudio, condizente com o contexto em que o trabalho foi desenvolvido e os objetivos da pesquisa como um todo. O processo é descrito de acordo com suas diferentes etapas, desde o planejamento das gravações até a finalização, destacando-se os problemas encontrados e suas respectivas soluções à medida que o trabalho foi realizado. Na parte relativa à finalização há também uma discussão das vantagens e desvantagens do equipamento multipista em relação ao equipamento convencional em dois canais.

O presente trabalho descreve os processos de gravação, edição e mixagem envolvidos na produção do CD “Responde a Roda outra vez”, produzido em 2004 pelo Núcleo de Etnomusicologia da UFPE. O projeto foi desenvolvido entre junho de 2003 e maio de 2004, nos estados de Pernambuco e da Paraíba, em cidades e regiões previamente visitadas pela Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Etapas e processos de uma produção fonográfica Os diversos processos envolvidos na gravação de sons desde a captação inicial até a reprodução final para o ouvinte podem ser simplificados de acordo da seguinte maneira: 1. Captação: •

Pré-produção



Gravação

2. Manipulação: •

Edição



Mixagem



Masterização

3. Reprodução: •

Duplicação

Nas etapas do primeiro item, estão os procedimentos relativos à captação do material sonoro. Normalmente, esse trabalho inicia-se com uma pré-produção, onde os detalhes da gravação em si são discutidos e acordados entre as partes. Estes detalhes envolvem desde questões de logística, como acertar locais e horários, até discussões sobre repertório e formação instrumental. No contexto de gravações em campo, essa etapa envolve uma sondagem dos possíveis locais que podem ser utilizados para gravação, no caso de existirem opções diversas. Tanto na pré-produção quanto na gravação são tomadas decisões que vão influenciar todas as etapas subseqüentes. As propriedades acústicas da sala da gravação, assim como a performance do grupo, por exemplo, vão definir a sonoridade da gravação como um todo. No segundo item, é comum se intercalar as etapas de edição e mixagem, especialmente em se tratando de áudio digital. Na edição escolhem-se os trechos que vão ser mixados, e é possível corrigir eventuais falhas na gravação, reduzir ruídos indesejáveis e até mesmo corrigir erros de execução. É nesse estágio também em que as diversas pistas gravadas são misturadas e transformadas em duas pistas – em uma mixagem stereo, ou uma pista só – em uma mixagem mono. A partir das mixagens – mono ou stereo, é feita a masterização, o último estágio em que o áudio é realmente manipulado, e de onde o material finalizado segue para a duplicação. Na masterização são compensadas as diferenças de volume entre as diversas faixas, e também são trabalhados alguns aspectos timbrísticos. Caso o processo de duplicação seja industrial, na geração da matriz também é necessária a inclusão do ISRC1. Para a duplicação em CD ou DVD, existem basicamente duas alternativas. Uma é a produção industrial, em que as cópias são feitas em série a partir de uma matriz, num processo semelhante à fabricação de discos em Vinil. Essa opção é usada normalmente para um número maior de cópias – dado que a maioria das fábricas produz no mínimo quinhentas 1

A sigla ISRC significa International Standard Recording Code ou Código Internacional de Normatização de Gravações, e é um código atribuído a uma gravação pelo primeiro titular dos direitos desta, utilizado para controle internacional de vendas e difusão. No Brasil, substitui o código anterior, conhecido por GRA.

unidades – e oferece um custo mais baixo da unidade final. Já a produção em pequena escala, feita a partir de gravadores de CD-R ou DVD-R, é mais viável quando o número de cópias desejado é menor, ou quando não é financeiramente possível produzir grandes quantidades de uma só vez. Multipista x stereo – prós e contras Um sistema de gravação multipista permite a gravação, simultânea ou não, de fontes sonoras distintas, e a posterior manipulação do material gravado, em conjunto ou independentemente. Em relação a um sistema de gravação stereo ou mono, pode-se enumerar as seguintes vantagens: •

Maior possibilidade de controle da imagem sonora – Apesar de gravar-se em diversas pistas separadas, o material gravado eventualmente será reproduzido em um sistema stereo ou mono convencional. Dessa forma, as pistas independentes permitem destacar elementos específicos em uma mixagem, o que não é possível em uma gravação stereo.



Uso das pistas em separado – Como cada fonte sonora é gravada em uma pista independente, posteriormente a audição das pistas em separado é possível. Essa possibilidade é uma ferramenta de estudo e pesquisa extremamente útil, especialmente no tocante à notação e transcrição de vozes e instrumentos. É importante notar, entretanto, que os resultados obtidos com uma gravação

multipista não serão necessariamente melhores do que gravações feitas diretamente em um equipamento stereo. No caso específico do projeto “Responde a Roda Outra Vez”, a gravação do áudio foi feita tanto em multipista como em stereo, utilizando-se gravadores de DAT2 portáteis. A sonoridade obtida pelos pesquisadores nas gravações em DAT escolhidas não deixou a desejar em relação às demais faixas, e o objetivo de transpor para o disco a imagem sonora do grupo ou informante gravados foi devidamente alcançado. Além disso, dois outros pontos devem ser levados em conta na escolha entre um equipamento multipista e um equipamento stereo:

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DAT – Digital Audio Tape, ou fita de áudio digital. Formato de fita digital introduzido durante os anos 80 para gravação e finalização em stereo.



Por várias pistas subentende-se vários microfones, cabos, pedestais, e em geral uma quantidade de equipamento maior e conseqüentemente menos portátil do que a maioria dos sistemas de gravação em stereo – o que impede gravações em movimento, por exemplo, além das diversas questões que envolvem o deslocamento de uma unidade móvel.



O processo de montagem e desmontagem de um sistema multipista consome mais tempo, e exige determinadas condições – fornecimento de energia elétrica estável, abrigo do sol ou chuva, espaço físico – que nem sempre são oferecidas no campo.

Responde a Roda Outra Vez 1.

Filosofia de trabalho

O planejamento para a captação do áudio no sistema multipista teve como objetivo principal criar uma imagem sonora, na mixagem final, que estivesse bem próxima do contexto em que as gravações foram realizadas. Para tanto, escolhemos gravar sempre utilizando um par de canais para microfones de ambiência posicionados em uma configuração stereo, resultando em uma disposição das fontes sonoras fiel àquela encontrada no campo. 2.

Unidade Móvel

A unidade móvel do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE é um sistema multipista de gravação não-linear, montado a partir de um computador portátil e uma interface de áudio que comporta até dezesseis canais simultâneos. O planejamento e a escolha dos equipamentos foram feitos pelo autor e por Pablo Lopes, técnico do estúdio Fábrica em Recife, tendo como base experiências anteriores de gravação em campo, e levando em conta a necessidade de se ter uma configuração adaptável a contextos diversos. A possibilidade de variação no número de pistas usadas simultaneamente também foi levada em conta. Em gravações como a do Côco de Tebêi3 foram usadas somente quatro pistas, duas para a ambiência, e duas outras para a captação da marcação dos pés. Já em grupos como o Reisado das Caraíbas4, que apresentavam fontes sonoras diversas – neste caso

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Caraibeiras, PE. Caraíbas, PE.

vozes, instrumentos de corda, percussão e um acordeom – algo entre oito até dez pistas foram utilizadas. 3.

Pré - Produção

A etapa de pré-produção destas gravações confunde-se com o trabalho de pesquisa e levantamento realizado nas regiões de Pernambuco e da Paraíba. A partir deste trabalho quatro períodos de gravação foram acordados com os grupos selecionados pelos pesquisadores, cada período cobrindo uma determinada região pesquisada. A escolha de quais informantes e grupos seriam gravados pela unidade móvel foi feita pelos pesquisadores e pelo coordenador do projeto, Carlos Sandroni, professor do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE. Em caso de grupos que já haviam sido gravados, buscou-se atingir uma sonoridade diferente daquela obtida nas experiências anteriores. Outros grupos já possuíam alguma experiência de gravação em estúdio, como o Samba de Côco Raízes do Arcoverde5. Para contrastar com a sonoridade ‘de estúdio’, captamos o grupo tocando junto como em uma performance ao vivo. 4.

Captação

Microfonação A abordagem utilizada na microfonação dos grupos gravados consiste na utilização de um par de microfones – ou de um microfone stereo – captando a sonoridade do grupo como um todo, associado a microfones adicionais captando instrumentos ou vozes específicos dentro do grupo. Essa é uma abordagem comum na gravação de conjuntos de câmara e orquestras6, onde a prioridade é captar uma performance em conjunto, e não a execução dos membros em separado. Para auxiliar na escolha dos elementos que poderiam ser captados com os microfones mais próximos, antes de cada gravação a equipe conversava com alguns membros do grupo para esclarecer alguns detalhes relativos ao papel de cada instrumento ou cantor. Durante a montagem e durante as primeiras tomadas também era feita uma audição crítica, visando otimizar o posicionamento dos microfones utilizados. 5 6

Arcoverde, PE. Essa foi a abordagem utilizada pelo autor ao gravar grupos de câmara como o Sexteto Capibaribe, a Orquestra de Cordas Dedilhadas Retratos do Nordeste, o SaGrama e também a Orquestra Sinfônica do Recife.

Em casos onde o número de instrumentistas excedia o número de microfones de detalhe disponíveis, a experiência prática mostrou que alguns instrumentos, especialmente de percussão com transientes rápidos de ataque, como o triângulo e o ganzá, não precisam necessariamente ser captados de perto, uma vez que a sua sonoridade sendo captados pelos microfones de ambiência já é satisfatória. Já para instrumentos mais graves, como bombos e alguns instrumentos de corda, a captação próxima se mostrou mais necessária, por apresentar uma riqueza harmônica maior, privilegiando detalhes de execução que não aparecem normalmente nos microfones de ambiência. Repertório Na maioria dos casos, o repertório executado foi escolhido pelos próprios grupos, e a equipe de gravação eventualmente solicitava a repetição de uma ou outra peça caso a primeira tomada não tivesse sido satisfatória – normalmente por detalhes técnicos, e não da performance em si. À época da gravação com a unidade móvel, alguns grupos já apresentavam uma proximidade maior com o pesquisador, e este requisitou a apresentação de algumas peças em especial – que já haviam sido mencionadas nas etapas anteriores da pesquisa, como por exemplo, cantigas da época da Revolução de 1930 ou da Segunda Guerra Mundial apresentadas pelo Reisado das Caraíbas, ou o ‘Côco do Tamanqueiro’, executado por Seu Mane de Bia7. Um caso a parte foi o dos grupos de côco em Arcoverde, em que questões contratuais do grupo Raízes do Arcoverde, e divergências deste grupo com outro grupo local, o Côco das Irmãs Lopes, impuseram algumas limitações ao repertório que poderia ser gravado. Em outro extremo, podemos citar situações onde o grupo ou o informante não sabia exatamente o que apresentar, em que foi necessário um certo estímulo por parte da equipe, como na gravação da Banda de Pífanos do Sítio Umburanas8, que apresentou principalmente benditos e marchas.

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Santa Luzia, PB. Localidade próxima a Arcoverde, PE.

5.

Pré-mixagem e seleção

Após a gravação, uma mixagem preliminar foi feita com todo o material gravado utilizando-se a própria unidade móvel, para que uma primeira seleção fosse feita pela equipe. Nessa etapa, não foi utilizado nenhum tipo de processamento, e a edição resumiu-se à separação do material em faixas independentes. Na seleção feita para os dois CDs a serem industrializados, foram levados em conta fatores diversos, como qualidade da gravação, aspectos diversos da performance em si – como ritmo e afinação das vozes e instrumentos, e repertório, dado que algumas peças apareceram diversas vezes durante a pesquisa. 6.

Edição e Mixagem

O material pré-selecionado foi então editado e mixado em uma sala de um estúdio de gravação convencional, o estúdio Fábrica em Recife. Como nosso objetivo era oferecer uma representação sonora a mais fiel possível, a edição se resumiu a retirar eventuais ruídos indesejáveis, e o processamento se limitou à equalização corretiva, e à otimização da banda dinâmica de alguns canais através do uso de compressores. Este último processo se mostrou necessário, entre outras razões, devido às ligeiras variações na posição dos músicos e cantores em relação aos microfones posicionados para a gravação. Também foram feitas edições no tamanho das faixas, uma vez que um dos objetivos nos CDs finais era apresentar a maior quantidade possível de grupos diversos dos dois estados em que as gravações aconteceram. 7.

Masterização

Os dois CDs foram masterizados no estúdio Classic Master, em São Paulo, especializado no processo de masterização de CDs e DVDs. Nesta etapa foi necessário equalizar as diferenças de volume e de timbre não só das gravações multipista entre si, mas também das gravações stereo feitas pelos pesquisadores. No caso das gravações em DAT, em alguns casos foi necessário compensar diferenças de volume entre os dois canais de gravação, provenientes do posicionamento dos microfones no momento da gravação. Ainda nesta etapa algumas edições foram feitas no tamanho das faixas.

Conclusão Em um estúdio de gravação convencional, existe um nível de controle sobre as variáveis envolvidas em uma produção fonográfica de que o pesquisador e o técnico de gravação não vão dispor no campo. Por outro lado, optando por gravar em campo, o ambiente de gravação é mais convidativo para grupos que não possuem experiências anteriores. O campo também exige do técnico de gravação, e de seu eventual auxiliar, uma capacidade maior de adaptação, assim como um conhecimento maior do próprio processo de captação de som. Interferências são muito mais freqüentes, e em determinados momentos impossíveis de serem eliminadas. Em outros casos, soluções rápidas tem que ser encontradas para viabilizar a gravação em um determinado momento, uma vez que a mobilização da equipe e do grupo a ser gravado envolve um número grande de pessoas, e dificilmente poderia ser passada para um outro dia. Em relação à abordagem, percebemos a importância de atenuar o caráter invasivo de uma gravação com diversos microfones, visando deixar os grupos e informantes mais à vontade. A prática de, sempre que possível, reproduzir para os presentes trechos das gravações mostrou resultados interessantes no que diz respeito à interação entre os grupos e a equipe, além de proporcionar uma oportunidade de discussão sobre o processo de captação.

Equipe • • • • • •

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Idealização e Coordenação do Projeto – Carlos Sandroni Coordenação na Paraíba – Maria Ignez Novaes Ayala e Marcos Ayala Pesquisadores em Pernambuco – Gustavo Vilar (Tacaratu) e Cristina Barbosa (Arcoverde) Pesquisadores na Paraíba – Vlader Nobre Leite e Henrique Sampaio Gravação com a Unidade Móvel e Mixagem – Zé Guilherme Lima Gravações em DAT – Gustavo Vilar (Tacaratu e Santa Brígida), André Sonoda (Pontões, Burrinhas e Reisado de Pombal; Jaboatão), Paulo Dias (Congos de Pombal), Vlader Nobre Leite (Patos, Aparecida e S. José de Piranhas) e Carlos Sandroni (Areia, Recife e Tacaratu). Masterização - Carlos Freitas / Classic Master Fotógrafos – Luca Barreto (PE e PB), Maria Acselrad, Mateus Sá (PE), Maria Ignez Novaes Ayala e Elisa Toledo Todd (PB) Projeto Gráfico – Mônica Lira Secretária do Núcleo de Etnomusicologia-UFPE – Anita Holanda Freitas Apoio no Núcleo de Etnomusicologia-UFPE – Lucas Pereira Guerra (bolsista PIBICCNPq) e José Reginaldo Sant’Anna Gomes (apoio à pesquisa em Areia)

Equipamento Gravação: • Computador – Macintosh Powerbook G4. • Software – MOTU AudioDesk. • Interface de Áudio – MOTU 828 • Preamplificador – Digimax PreSonus • Microfones – 2 Audio-Technica 4010, 2 AKG C3000B, 3 AKG D112, 4 Shure SM57, Røde NT4 (Stereo) Mixagem: • Computador – Macintosh PowerPC G4 • Software – Pro-Tools LE 5.1 • Interface de Áudio – Digidesign Digi001 • Monitor de referência – Alesis Monitor One

Referências bibliográficas CHANAN, Michael (2000). Repeated Takes – A short history of Recording and its effects on Music. Verso, London. DAY, Timothy (2002). A Century of Recorded Music: Listening to Musical History. Yale University, London. EVEREST, F. Alton (2001). Master Handbook of Acoustics. McGraw Hill, New York. Watkinson, John (1998). The Art of Sound Reproduction. Focal, Oxford.

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