Guerra do Iraque - Uma Análise Baseada no Pensamento do Bellum Justum

September 10, 2017 | Autor: Matheus Borém | Categoria: War Studies, International Politics, Just War Theory, Iraq War
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Guerra do Iraque: Uma Análise Baseada na Teoria do Bellum Justum

Introdução A Guerra do Iraque, também conhecida como Segunda Guerra do Golfo, pode facilmente ser considerada um dos conflitos militares mais importantes do século XXI. Ela representa uma mudança na política externa dos EUA, que passou a adotar uma visão pré-emptiva e unilateral em relação aos interesses do país. Representa também uma mudança na condução geoestratégica dos interesses dos EUA no Oriente Médio. Além disso, provocou consequências problemáticas para inúmeros atores envolvidos. Para a população do Iraque e para as forças armadas da coalizão, por exemplo, é possível citar o número considerável de mortes. Entre o início da Operação Iraque Livre em 2003 e o fim oficial da guerra em agosto de 2010, as forças armadas dos EUA perderam cerca de 4490 militares. A Grã-Bretanha perdeu 179 militares. Outros países da coalizão perderam 139 membros. No que diz respeito aos civis iraquianos, não existe um número confiável. Segundo a organização Iraq Body Count, entre março de 2003 e julho de 2010 morreram entre 97461 e 106348 civis. A Pesquisa Sobre a Saúde da Família Iraquiana estima o número de mortes em 151000 civis. Por outro lado, a revista The Lancet possui uma estimativa de aproximadamente 654956 mortes de civis. (BBC Brasil, 2011) Outra consequência importante foram as complicações nas relações diplomáticas dos EUA com alguns países europeus, em especial, a França e a Alemanha e o início de um processo de insurgência que ameaçou deflagrar uma guerra civil no Iraque. Esses são apenas alguns exemplos de muitos e importantes fatos relacionados a essa guerra. Outro aspecto importante sobre a guerra foram as justificativas para iniciar o conflito. George W. Bush, e outros membros da sua administração afirmaram que a Guerra do Iraque era uma guerra justa e era uma guerra que deveria ser travada, na medida em que existiria uma disputa entre “as forças civilizadas da democracia e liberdade humana, de um lado, e as forças barbaras da opressão do outro” (Fink, 2004, 26 – tradução minha). Nesse sentido, a justiça da guerra era um elemento legitimador e foi usado, junto de vários outros métodos, com o intuito de garantir o apoio da

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população dos EUA em relação à invasão do Iraque. Assim, este trabalho parte dessa problemática e busca tratar e embasar essa discussão sobre a justiça da Guerra do Iraque fundamentando-se na teoria do Bellum Justum, cujo significado é guerra justa. A teoria ou tradição do Bellum Justum se baseia em dois ou três momentos de análise. O primeiro momento diz respeito aos motivos de se ir à guerra. O segundo momento trata da conduta durante a guerra. O terceiro momento, por sua vez, trata da conduta após a guerra. A análise feita nesse trabalho se baseará somente nos dois primeiros momentos. Os motivos para utilizar apenas as noções de Jus Ad Bellum e Jus In Bellum estão assentados numa dificuldade em tratar de maneira adequada das três vertentes em um trabalho tão breve e em uma tentativa de manter a análise feita nesse trabalho melhor associada a uma tendência predominante, de acordo com as minhas leituras, de não utilização do Jus Post Bellum nas análises. Em relação a esse ponto, é importante notar, contudo, que abordarei o objeto do trabalho em sua totalidade, ou seja, a não utilização dos critérios do Jus Post Bellum não se traduz, necessariamente, em exclusão de determinados aspectos do conflito. Assim, o texto será dividido da seguinte forma: (1) breve introdução ao trabalho e ao seu objeto e tema. (2) Aprofundamento na explicação do Bellum Justum e explicação dos dois níveis de análise que serão utilizados. (3) Aprofundamento no objeto do trabalho, ou seja, a Guerra do Iraque. Essa parte está subdividida em dois outros momentos que estão em confluência com os níveis de análise da teoria do Bellum Justum. (4) Considerações finais e apresentação da conclusão.

Bellum Justum A teoria da guerra justa possui uma longa história. Partes da Bíblia fazem referência a guerras justas relacionadas à intervenção divina. No entanto, a primeira exposição sistemática do tema no ocidente foi feita por São Tomás de Aquino no século XIII. Foi ele que fundou as bases para a moderna teoria de guerra justa, que estava intimamente relacionada ao cristianismo. Posteriormente, outros autores importantes trataram de expandir o pensamento de Aquino. Entre eles é possível citar Francisco de Vitória, Hugo Grócio, Samuel Putendorf, entre outros. No século XX a tradição teórica da guerra justa foi revigorada por autores contemporâneos que trataram do tema.

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Michael Walzer e Brian Orend são alguns nomes que se destacam. (Guthrie; Quinlan, 2007) (Moseley, 2009). “Em outras palavras, o que hoje é considerado como teoria da guerra justa não é um produto de um ou dois pensadores contemporâneos, ou um século de pensamento sobre guerra, na verdade ela reflete uma tradição que pode ter suas origens traçadas ao primeiro milênio nos trabalhos de Santo Agostinho.” (Romaya, 2010, 29) – tradução minha).

Jus Ad Bellum O primeiro momento está diretamente relacionado aos motivos de se ir à guerra, ou seja, a primeira das proposições está preocupada em esclarecer quais são os termos que definem se as causas de uma guerra são justas ou injustas. Dessa forma, o Jus Ad Bellum se fundamenta em alguns princípios básicos e a partir deles se analisa se as causas de uma guerra são justas ou não. Esses princípios são os seguintes:



Causa justa



Último Recurso



Declarada por uma autoridade apropriada



Possuir intenção correta



Ter chance razoável de sucesso



Proporcionalidade

(Guthrie; Quinlan, 2007) (Moseley, 2009)

O princípio da causa justa tradicionalmente encontra-se atrelado a ideia de que uma agressão inicial é injusta. Ou seja, uma causa justa seria apenas existente quando fosse uma resposta a uma agressão anterior ou como autodefesa. (Guthrie; Quinlan, 2007) (Moseley, 2009) Uma importante discussão para o presente trabalho, e relacionada ao princípio da causa justa, diz respeito aos ataques preventivos e preemptivos. Seriam eles justos ou não? Alguns autores, como Robert Royal (2003), consideram que sim, afinal os ataques preventivos e preemptivos seriam apenas uma adaptação à visão tradicional da causa justa. Segundo eles, atacar preventivamente seria

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apenas uma forma de autodefesa. Ainda assim, para outros autores o problema dessa percepção é que ela é baseada fundamentalmente na possibilidade, desconsiderando assim a inocência presumida do atacado. (Moseley, 2009) (Powers, 2003) O princípio do último recurso diz respeito à noção de que uma guerra só deve ser perpetrada como último recurso. Ou seja, todos os outros meios, como os diplomáticos, devem ter sido esgotados antes de se iniciar uma agressão militar contra outra nação. A noção de que a guerra deve ser declarada por uma autoridade apropriada está associada a uma ideia medieval onde a declaração de uma guerra não poderia ser feita por facções dentro do Estado. (Guthrie; Quinlan, 2007) A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, no entanto, entidades como a ONU e o Conselho de Segurança passaram a ter grande destaque em relação à governança global e a autorização e deliberação sobre conflitos. Dessa forma, existe o argumento de que uma guerra apenas estaria preenchendo o critério de autoridade apropriada caso houvesse uma autorização do Conselho de Segurança ou da ONU. Por outro lado, as regras envolvendo os processos dessas instituições podem produzir resultados “estranhos”. Isso deriva, principalmente, da noção de veto por parte dos membros permanentes do CS. (Guthrie; Quinlan, 2007) O princípio de intenção correta, por sua vez, é significativamente vago. Em grande medida ele se associa ao princípio da causa justa e afirma que, por exemplo, motivos de interesse nacional constituem um motivo injusto para ir à guerra. De qualquer forma, o principal motivo para esse princípio ser vago é devido à dificuldade de definir o que seria correto, ou seja, o que é considerado correto para alguns pode não o ser para outros. Nesse sentido, o princípio de intenção correta esconde muitos problemas filosóficos e de relativismo cultural. (Moseley, 2009) Ainda assim, existe o argumento de que o critério de intenção correta estaria sendo preenchido a partir do momento em que os propósitos para ir à guerra estão associados à geração “de uma paz subsequente melhor do que a que existiria sem o conflito” (Guthrie; Quinlan, 2007, 22 – tradução minha). O penúltimo critério, ter chance razoável de sucesso, está relacionado a um pensamento que afirma que recursos econômicos e humanos não devem ser desperdiçados em uma guerra onde a chance de vitória é nula ou improvável. Um dos

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problemas apontados em relação a esse princípio é o fato de que o calculo referente à chance de sucesso é de difícil execução. Além disso, alguns autores argumentam que esse princípio pode entrar em conflito com outros princípios. Por exemplo, se o país x for atacado por uma força militar muito superior a sua, pelo princípio da causa justa ele estaria correto em combater a força invasora. Por outro lado, pelo princípio da chance razoável de sucesso ele não estaria correto, uma vez que provavelmente o esforço seria em vão e acarretaria perda de vidas e recursos de forma desnecessária. (Moseley, 2009) Por fim, o último critério do Jus Ad Bellum, que afirma a importância da proporcionalidade, é relativo à noção de que seria justo minimizar a destruição causada pela guerra. Segundo Moseley “se uma nação A invade o território de um povo B, o povo B tem o direito a atacar justamente os inimigos da nação A para recuperar o território dominado e não devem avançar sobre o território da nação A.” (Moseley, 2009) Nesse sentido, o justo fim estaria limitado pela autodefesa e pela noção de equilíbrio e conservação de um cenário “inicial”. O fim de B é justo até o momento em que ele reestabelece o estado de coisas anterior, ou seja, retorna as fronteiras ao seu antigo equilíbrio. Outra concepção também importante em relação ao critério da proporcionalidade, conforme afirmam Guthrie e Quinlan, “é entre a situação futura que nós esperamos atingir se tomarmos o caminho das armas e a situação futura que esperamos caso não tomarmos o caminho das armas.” (Guthrie; Quinlan, 2007, 19) Além disso, o critério não diz respeito somente a bens materiais e vidas, mas também pode estar associado a valores, como liberdade ou honra.

Jus In Bellum O Jus In Bellum diz respeito à conduta das forças de combate durante a guerra. Assim, ao contrário do Jus Ad Bellum que se interessa pelos motivos para se ir à guerra, os critérios do Jus In Bellum dizem respeito a conduta adequada durante o conflito ou, em outras palavras, se as forças militares e/ou paramilitares envolvidas atuaram de maneira justa durante os combates. A categoria Jus In Bellum se fundamenta em dois níveis de critérios principais. São eles:



Princípio da Discriminação

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Princípio da Proporcionalidade

(Guthrie; Quinlan, 2007)

O critério da discriminação trata da questão de quem são os alvos legítimos em uma guerra. A base desse critério é que seria injusto atacar indiscriminadamente e que deve haver uma seleção dos alvos, ou seja, os inocentes não devem ser deliberadamente atacados e precisam ser poupados na melhor medida possível. Em relação a esse ponto, é importante determinar o significado de “inocente” e “deliberadamente” para a tradição teórica. De acordo com Guthrie e Quinlan, a palavra inocente faz referência aos indivíduos que “não estão envolvidos em nos prejudicar, ou ajudando a nos prejudicar” (Guthrie; Quinlan, 2007 – tradução minha). Em relação à expressão deliberadamente, a tradição entende que seriam ataques nos quais o objetivo primário seria a destruição dos inocentes ou quando a destruição de inocentes é essencial para atingir o propósito do ataque. Nesse sentido, os únicos alvos inquestionavelmente legítimos numa guerra seriam os próprios combatentes ou soldados. Isso ocorre devido a dois motivos. Primeiro, os soldados possuem armamento e treinamento capazes de colocar em risco a vida dos soldados das forças inimigas. Segundo, os soldados abdicaram do seu direito de não serem atacados ao adentrarem na “arena de combate”. Ainda assim, esse princípio deixa alguns problemas em aberto. Um destes (e este problema é muito importante para o trabalho) está relacionado à situação de guerrilheiros e outros tipos de combatentes irregulares. Como eles devem ser tratados? Afinal, os combatentes irregulares são civis que se associam de maneira mais ou menos voluntária e mais ou menos horizontal com o intuito de combater um determinado inimigo. Portanto, como identificar esses combatentes de maneira clara? Para Walzer, a dificuldade em identificar o inimigo não deve justificar uma perda do princípio de discriminação. No caso de dúvida, o justo seria que não houvesse engagement. (Walzer, 2006) Ainda assim, caso algum civil seja capaz de provocar dano, ele se enquadra no critério de discriminação. Portanto, esse critério se encontra atrelado à noção de uso ou não uso de meios de promoção de violência física por parte dos indivíduos. Outro problema importante, mas não para esse trabalho específico, está relacionado à quando uma população inteira apoia uma guerra injusta e fornecendo recursos para essa guerra. Estaria essa população inclusa no princípio da discriminação? A maioria dos

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argumentos afirma que é importante distinguir o indivíduo do coletivo e que não é possível tratar a população de um país como uma simples massa. (Moseley, 2009) O critério de proporcionalidade, por sua vez, possui uma característica de considerar justo o mínimo dano causado pela guerra e seus combates. Estaria associada, nesse sentido, a noção de que “não devemos fazer coisas que, ainda que legítimas em si mesmas, se em nossa honesta e ponderada opinião o bem que elas atingem é provável de ser suprimido pelo mal que elas infligem naqueles que não devem ser prejudicados.” (Guthrie; Quinlan, 2007, 31 – tradução minha) Portanto, o critério de proporcionalidade no In Bellum está muito próximo do que foi dito sobre o mesmo em relação ao Ad Bellum. De qualquer forma, a noção de proporcionalidade no Jus In Bellum se relaciona a questões de grande importância para o presente trabalho. O já difícil tarefa de avaliação em situações de combate nos termos colocados acima se torna ainda pior quando os combatentes em questão são grupos paramilitares, de guerrilha ou insurgentes. Esse tipo de combatente não pode ser claramente identificado e frequentemente se situa misturado à população civil ou não combatente. (Keegan, 2005) (Guthrie; Quinlan, 2007) (Ehrenberg et al, 2010)

Guerra do Iraque – Um Breve Resumo “Meus caros cidadãos, nesse momento, forças americanas e da coalizão estão nos estágios iniciais da operação militar para desarmar o Iraque, para libertar seu povo e para defender o mundo de um grave perigo.” (Ehrenber et al, 2003) Com essas palavras, George W. Bush, o então presidente dos Estados Unidos, anunciava o início da operação Iraqui Freedom, no dia 19 de março de 2003. Conforme é colocado por Keegan, na Guerra do Iraque, um exército ocidental de proporções relativamente pequenas, mas altamente qualificado derrotou em três semanas um exército iraquiano degradado e enfurecido. Por meio de avanços rápidos, as forças da coalizão foram capazes de controlar a capital do país e derrubar o regime de Saddam de forma rápida e “limpa”. (Keegan, 2005)

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A estratégia adotada pelos EUA e seus aliados foi uma invasão de front único, no qual as forças da coalizão atacariam a partir do sul, vindas do Kuwait. Conforme seria esperado numa situação como essas, houve a tentativa de abertura de um segundo front no norte, mas essa possibilidade esbarrou em dificuldades diplomáticas em relação à Turquia, que preferiu não liberar o seu território para as forças dos EUA. Outro fator importante de se notar no que diz respeito às operações militares foi à opção pela não utilização de uma campanha aérea de grandes proporções - apesar da insistência por parte da USAF (United States Air Force). De acordo com o General Franks, comandante geral das forças da coalizão, adotar tal tática poderia provocar problemas relativos a danos colaterais em excesso, perda da capacidade de promover um blitzkrieg (tática militar baseada em avanços rápidos e ataques surpresa) terrestre, colocar as forças iraquianas em alerta e facilitação do uso de armas de destruição em massa por parte do Iraque. (Keegan, 2005) A opção pela não utilização de uma campanha aérea ampla fará diferença na análise do Jus In Bellum, posteriormente. Com essa estratégia, as forças dos EUA chegaram à cidade de Bagdá com relativa rapidez e foram capazes de derrubar o regime de Saddam Hussein. No entanto, a maior parte dos problemas relativos à Guerra do Iraque surgiu após a queda de Saddam e o início da ocupação do país pelos EUA e seus aliados. O Iraque saiu da primeira parte do conflito (até a derrubada de Saddam) com fortes indícios de instabilidade social, econômica e política. As autoridades dos EUA, que não haviam se preparado adequadamente (Diamond, 2004) (Ehrenberg et al, 2010), não foram capazes de impedir o surgimento de um movimento de insurgência no país, assim como não foram capazes de criar uma democracia de cima para baixo da forma como havia sido pensado (Ehrenberg et al, 2010). Isso fez com que o Iraque passasse anos com altos níveis de violência, assim como diversas dificuldades políticas e econômicas. Esse período de extrema instabilidade no país apenas começou a melhorar a partir de meados de 2007. Os motivos para essa melhora ainda são controversos. A explicação mais comum associada a essa melhora é a escalada de tropas dos EUA no período. Outro motivo apresentado seria o efetivo início de uma operação de contra insurgência de larga escala baseada no manual COIN. Há ainda o debate sobre em que medida os projetos e serviços de caráter econômico e social promovidos pelas forças armadas dos EUA foram importantes para reduzir ou eliminar focos de insurgência no país. (Collier, 2011)

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De qualquer forma, é importante notar que a Guerra do Iraque pode ser descrita em três momentos. O primeiro deles diz respeito à criação ou formação do Casus Belli para o conflito. O segundo está associado diretamente à operação Iraqui Freedom e a derrubada do regime de Saddam. O terceiro momento, por sua vez, se encontra após a derrubada de Saddam, durante a ocupação do Iraque pelos EUA e forças da coalizão.

Análise – Jus Ad Bellum

Para se desenvolver a análise referente ao Jus Ad Bellum, é importante, primeiramente, definir qual foi o Casus Belli para o conflito. Nesse sentido, analisarei os motivos apresentados pela administração Bush para a invasão e, posteriormente, colocarei em destaque a doutrina de política externa adotada pela administração naquele momento. A administração Bush apontou como motivos para a invasão dois aspectos principais, a saber, a existência de uma associação entre o regime de Saddam Hussein e Al Qaeda e a existência de armas de destruição em massa sob posse do Iraque. Em relação ao primeiro motivo, existem inconsistências e tal conexão carece de evidências. O segundo motivo, por sua vez, provou-se falso após a invasão do Iraque. Em relação a esse ponto, há quem aponte a existência de uma contradição inerente quando um ou mais países possuidores de armas em destruição em massa exigem que outros países se abdiquem desse “direito” ou condição. Não pretendo aprofundar nessa questão, mas é certo que boa parte dessa questão está relacionada a tratados e acordos internacionais, mas também a dinâmica de poder entre os países. De qualquer forma, em relação a esse segundo motivo, é importante que voltar aos anos de 2001,2002 e 2003 e pensar nesses motivos a partir da perspectiva daquele momento. A noção de que Saddam Hussein e seu regime estariam conectados a Al Qaeda foi fortemente difundido pela administração Bush, como parte de um preparo ideológico para a invasão do Iraque. Pesquisas daquele período indicavam que 66% da população dos EUA acreditava na conexão entre Saddam e Al Qaeda e no envolvimento de Saddam nos atentados de 11/09. (Hunsinger, 2003) Contudo, essa conexão jamais foi

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provada e evidências no sentido de suportá-la são escassas. Por outro lado, é menos problemático argumentar que essa associação simplesmente não fazia sentido. Osama bin Laden e a Al Qaeda vinham de um tipo de corrente do mundo muçulmano chamada de salafismo. Essa corrente, proferida em grande medida na atualidade por Sayyid Qutb, era a favor de uma jihad contra o ocidente e argumentava que tomar parte nessa jihad seria uma obrigação para os muçulmanos. Essa visão entra em confluência com uma noção de mundo muçulmano sem instituições políticas, o que motivou o assassinato de líderes muçulmanos secularistas, como o presidente do Egito, Sadat. Saddam Hussein era justamente o tipo de muçulmano secularista que os salafistas tanto desprezavam. (Keegan, 2005) Portanto, devido à falta de evidência a favor, e a antítese existente entre a Al Qaeda e Saddam Hussein, esse motivo apontado pela administração Bush fica extremamente comprometido. O segundo motivo, embora a princípio mais complicado de aceitar ou rejeitar naquele período, é na verdade mais simples de se rejeitar. Essa maior simplicidade advêm do acesso posterior ao documento que ficou conhecido como The Downing Street Memo, de 23 de julho de 2002. Nesse documento está, basicamente, o relato de uma reunião de pessoas chave do governo britânico, inclusive Sir Richard Dearlove, então chefe do MI6 (agencia de inteligência britânica), também conhecido como “C”. De acordo com o relato de “C”, em encontros com George Tenet (chefe da CIA) e outros atores chave do governo dos EUA, ficou claro que a administração Bush tinha a intenção de invadir o Iraque, e que tinha a intenção de justificar a invasão por meio da conexão entre terrorismo e armas de destruição em massa do Iraque. Também é possível encontrar no memorando reservas por parte dos britânicos em relação à legalidade do conflito, argumentando inclusive que “the intelligence and facts were being fixed around the policy”. Além disso, também pode ser importante notar que as evidências apresentadas pelo governo dos EUA em relação as armas de destruição em massa, evidencias essas que foram oficialmente apresentadas durante o discurso de Colin Powell nas Nações Unidas, eram falsas e foram obtidas por meio do uso de tortura. (Ehrenberg et al, 2010) Portanto, sendo os motivos principais apresentados para ir a guerra falsos ou questionáveis, não é possível analisar a justiça dessa guerra a partir deles. Assim sendo, quais seriam os reais motivos para essa invasão? Grosso modo, o motivo para a invasão era garantir a predominância ou hegemonia dos EUA. Para isso seria necessário um

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remodelamento do Oriente Médio em favor de interesses americanos. O pensamento predominante era de que um Iraque pró-ocidente poderia garantir o acesso dos EUA as reservas de petróleo do Golfo Pérsico, difundir “valores universais americanos, norteamericanos ou estadunidenses” pelo Oriente Médio, conter o Irã e promover uma grande vantagem geopolítica para os EUA. De qualquer forma, o mais importante para a análise a ser extraído de tudo isso é a base doutrinária que fundamentou a invasão do Iraque, assim como a visão de política externa proferida pela administração Bush. Como é colocado claramente em alguns documentos, em especial, no The National Security of the United States of America, os princípios fundamentais da política externa do governo Bush eram unilateralismo, superioridade militar, guerra preemptiva e difusão de instituições ocidentais/EUA como democracia e livre-mercado. (Ehrenberg et al, 2010) Com isso em vista, é possível argumentar que essa doutrina encontra sérios problemas em relação aos preceitos de causa justa, último recurso, intenção correta e chance razoável de sucesso e autoridade apropriada. Em relação ao princípio de causa justa, a guerra preemptiva é o grande fator. Como já foi dito, os teóricos da guerra justa se dividem em relação a essa questão. Ainda assim, como é colocado por Powers (2003), creio que para uma argumentação frutífera a favor da justiça de ataques preemptivos precede a existência de um risco real e presente que preceda esses ataques. Esse não é o caso do Iraque. O país sofreu, a partir de 1992, uma política de contenção por parte dos EUA e seus aliados que minou a capacidade militar do Iraque, assim como sua economia que perdeu 75% do PIB, de acordo com um relatório da UNICEF de 1999. (Ehrenberg et al, 2010) Dessa forma, o Iraque não parecia representar uma ameaça presente e real aos EUA. Portanto, não é possível considerar que a Guerra do Iraque possuiu causa justa dentro dos critérios acima dispostos. É possível argumentar, por outro lado, que o princípio de causa justa deve ser adaptado à realidade atual, como é sugerido por Robert Royal (2003). De acordo com esse pensamento, não é possível identificar uma ameaça real e presente de maneira óbvia, segundo ele “contemporary weapons, technologies and communications abilities have changed things from the days when you could optically see the adversary´s troops massing over your border”(Royal, 2003, p. 9) Quando Royal faz esse argumento, ele se refere a possibilidade das armas de destruição em massa iraquianas acabarem nas mãos

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de terroristas. No entanto, o argumento não procede no caso da Guerra do Iraque pelo fato de que uma conexão entre o regime de Saddam ser improvável e pela inexistência de armas de destruição em massa sob posse do governo iraquiano. O princípio do último recurso também traz problemas para a justiça da Guerra do Iraque. Os EUA e a Grã-Bretanha propuseram a Resolução 1441 no Conselho de Segurança da ONU que exigia a comprovação da não existência das armas de destruição em massa por parte do Iraque. O regime de Saddam de fato enviou uma enorme quantidade de documentos para a ONU e permitiu a entrada dos inspetores da UNMOVIC no país. No entanto, o processo se mostrou lento e os EUA declararam em dezembro de 2002 que o Iraque estava em “flagrante descumprimento” da Resolução 1441. (Keegan, 2005) Apesar da lentidão inicial, o responsável pelos inspetores no Iraque, Hans Blix, afirmou para o Conselho de Segurança no dia 7 de março de 2003 que os objetivos exigidos pela Resolução 1441 poderiam ser atingidos em meses. (Ehrenberg et al, 2010) Após essa declaração que, a administração Bush, ao invés de aguardar alguns meses e evitar a guerra, fez um ultimatum no dia 17 de março para que Saddam Hussein e seus filhos deixassem o Iraque em 48 horas. O que esse processo demonstra é basicamente que: os EUA estavam dispostos a levar a cabo as relações diplomáticas em relação à Guerra do Iraque com o intuito principal de angariar legitimidade para a guerra, ainda que fundamentados em argumentos frágeis. Quando essas mesmas relações passaram a ameaçar o andamento dos planos de Washington, Bush deu o ultimatum e seguiu em frente com a invasão. Isso está em direta concordância com o Memorando de Downing Street. Portanto, os EUA e seus aliados não esgotaram todos os meios antes de prosseguir com a invasão, estando em discordância com o princípio do último recurso. O princípio da intenção correta também não é satisfeito no caso da Guerra do Iraque. Esse princípio, como já foi colocado, esconde problemas filosóficos e morais mais ou menos profundos relativos ao que poderia ser considerado correto ou não. De qualquer forma, tradicionalmente não se considera motivos de interesse nacional como sendo corretos, quando se inicia uma guerra. (Moseley, 2009) Como já foi descrito, a Guerra do Iraque, ainda que recheada de noções idealistas relativas à difusão da democracia, era em grande medida fundamentada no que seria o interesse nacional dos

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EUA. Dessa forma, não é possível afirmar que existia uma intenção correta nesse conflito. Em penúltimo lugar, o princípio de chance razoável de sucesso, também pode ser considerado problemático. Hunsinger (2003) argumenta que esse critério não estaria sendo satisfeito na medida em que o resultado de uma invasão ao Iraque seria “a long drawn-out bloody war.” (Hunsinger, 2003, p. 12) De acordo com essa visão, uma invasão do Iraque acabaria gerando uma ocupação longa e improdutiva, além de gerar problemas humanitários. Embora esse não fosse nem de perto o resultado esperado pela administração Bush, foi o que ocorreu e cenários como esse haviam sido previstos por figuras como James Webb (Ex-secretário da Marinha) e James A. Baker (Ex-secretário do Tesouro, na administração Reagan e Ex-secretário de Estado, na administração Bush pai). Portanto, a Guerra do Iraque também não preenchia os requisitos de chance razoável de sucesso. Um último princípio que pode não ter sido suprido na Guerra do Iraque é o de que a guerra deve ser declarada por uma autoridade apropriada. Embora o princípio de autoridade apropriada remeta a um passado medieval, onde basicamente a autoridade apropriada seriam os monarcas, esse princípio foi alterado após a Segunda Guerra Mundial, em confluência com a Carta das Nações Unidas, que afirma que os países possuem o direito de proferir ações militares em autodefesa, mas qualquer ação que esteja para além disso deve ser aprovada pelo Conselho de Segurança. (Gunthrie; Quinlan, 2007) A invasão ao Iraque, conforme já foi determinado não pode ser considerado um ato de autodefesa, ainda que nos princípios da preempção. Então, seria necessária uma autorização do Conselho de Segurança para tal empreitada, o que não ocorreu. Dessa forma, não existiu uma legitimação por parte do Conselho de Segurança e da ONU para a invasão, deixando-a em claro descumprimento do princípio em questão. Portanto, a partir da análise desenvolvida, é possível afirmar que os motivos para os EUA irem à guerra não foram justos, ao menos dentro dos critérios filosófico-morais que sustentam a ideia de guerra justa. Esses motivos possuíam um forte caráter de interesse nacional, o que contradiz os princípios de intenção correta. A doutrina que fundamentou a invasão, baseada no unilateralismo e em ataques preemptivos e a realidade da situação do Iraque, contradiz o princípio da causa justa nos critérios da

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filosofia moral do Bellum Justum. A guerra não pode, nesse caso, ser considerada como sendo último recurso, devido à insistência da administração Bush no conflito, como fica claro no Memorando de Downing Street. Também não é possível argumentar que havia nos meses anteriores a guerra uma chance razoável de sucesso. Isso fica claro devido à falta de preparo da administração Bush para os eventos após a queda de Saddam e devido às inúmeras advertências proferidas por figuras importantes de Washington. Assim, a Guerra do Iraque não supriu os princípios do Jus Ad Bellum.

Análise – Jus In Bellum Como já foi mencionado antes, o Jus In Bellum se divide em três critérios: discriminação, proporcionalidade e responsabilidade. Nessa parte do trabalho buscarei verificar em que medida esses critérios se associam a conduta das forças dos EUA e seus aliados durante a Guerra do Iraque. Em relação ao critério de discriminação, o importante é buscar compreender, como já foi dito, em que medida, os inocentes não foram atacados de forma deliberada. No segundo momento do conflito (conforme classificado anteriormente), a tendência é imaginar um cumprimento do critério de discriminação. Um exemplo disso seria a opção feita pelo General Franks pela não utilização de uma campanha aérea de grandes proporções (Keegan, 2005) Um dos motivos pela não utilização dessa opção seria um excesso de danos colaterais ou, em outras palavras, mortes de inocentes. Keegan apresenta outra situação que, de acordo com ele, seria representativa do modus operandi do comando militar dos EUA durante a segunda parte da guerra. A situação segue, resumidamente, da seguinte maneira: a inteligência dos EUA possuía fortes motivos para acreditar que o nº 1 e nº 2 do partido Baath na região fronteiriça com a Arábia Saudita haviam se reunido em um local específico. O comando responsável planejava uma operação com o intuito de eliminar ambos os alvos. O problema, no entanto, é que havia duas escolas próximas ao prédio-alvo. A distância era de cerca de 130 e 200 metros, respectivamente. Nesse sentido, apresentaram-se duas opções: (a) utilizar aviões de assalto e despejar bombas de 500 libras ou (b) helicópteros de combate que atacariam com mísseis Hellfire de 18 libras. A primeira opção possuía uma maior chance de sucesso em relação à operação, mas também uma maior chance de afetar as escolas (que se acreditava estar vazias naquele momento). Após discussões de cerca de 30 min

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referentes ao tema, optou-se pelos mísseis Hellfire. Assim, caso Keegan esteja correto, esse exemplo demonstra uma preocupação por parte dos militares dos EUA em minimizar os danos a inocentes de forma deliberada. Ainda assim, ainda existem aspectos importantes a serem considerados. Um deles diz respeito aos ataques executados contra instalações de “caráter duplo” – refinarias, estações de energia, pontes, etc – que possuem uso militar e civil. De acordo com Guthrie e Quinlan, é preciso verificar em que medida esse tipo de instalação vai afetar as forças militares do inimigo e a população. Em casos como na Guerra do Golfo, os autores argumentam que seria justificável, na medida em que reduziria a capacidade de resistência pelas forças inimigas, minimizando o tempo da guerra e a quantidade de perdas gerais. (Guthrie; Quinlan, 2007) A racionalidade por trás desse tipo de ataque durante a Guerra do Iraque não é, necessariamente, a mesma. O objetivo dos EUA na Guerra do Iraque não era somente enfraquecer as forças do inimigo, mas derrubar um regime. Assim, é possível argumentar que um dos motivos para se atacar as instalações de “caráter duplo” estavam associadas à promoção de um contexto de descontentamento em relação ao governo então vigente por parte da população nativa. Como não era possível saber que Saddam seria derrubado rapidamente no início do conflito, é possível argumentar que existe coerência nesse argumento. Além disso, é possível complementar o argumento pelo fato de que esse tipo de tática foi utilizada durante a campanha aérea no conflito nos Balcãs em 1999 (Guthrie; Quinlan, 2007) Ainda assim, deixo essa questão em aberto, uma vez que não me deparei com documentos que comprovem ou não essa afirmação. Um terceiro ponto importante diz respeito a mortes de civis ou inocentes de forma aparentemente deliberada pelas tropas dos EUA. Quinlan e Guthrie propõem a seguinte situação – frequente durante o conflito (Keegan, 2005): um grupo de soldados guarda um checkpoint quando avistam um veículo não identificado. Após tiros de advertência, o veículo continua a se aproximar. O que o grupo de soldados deveria fazer? Assumir o pior e engajar o veículo e talvez descobrir que haviam eliminado uma família inocente ou esperar e correr o risco de um ataque suicida com carro-bomba? Esse tipo de situação merece ser tratada com cuidado. É certo que qualquer tipo de calculo de probabilidade executado no momento em questão não é fácil e pode ser bem falível. Guthrie e Quinlan sugerem que o ideal seria verificar em que medida foi ofertado o treinamento necessário para esses soldados poderem enfrentar situações

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como essa. Nesse sentido, é possível afirmar que sim, o treinamento foi ofertado e as forças de combate dos EUA e, certamente, da Grã-Bretanha estiveram em contato com ele em um nível maior ou menor. As forças armadas dos EUA, tradicionalmente, prezam pela qualidade de seus soldados em campo. Além disso, os EUA já possuíam experiência em operações de combate urbano, com grande probabilidade de danos a civis e inocentes. Essa experiência foi adquirida em operações no Haiti, Bósnia, Somália, Panamá, etc. (Press, 1999) Portanto, ainda que seja possível encontrar eventos nos quais seja possível afirmar a ocorrência de um ataque deliberado contra inocentes durante a segunda parte do conflito, esses acontecimentos estão fortemente sujeitos às circunstancias do momento. O critério de proporcionalidade, assim como o de discriminação, pode ser observado em algumas situações já apresentadas. No caso em que o comando responsável por decidir pela utilização de bombas de 500 libras ou 18 libras para atacar líderes do partido Baath próximos a uma escola, é possível perceber uma preocupação em relação a não se estar utilizando mais força do que o necessário, colocando vidas de não-combatentes em risco. Outra situação já mencionada na qual é possível observar o critério da proporcionalidade diz respeito aos soldados que devem decidir se atacam um carro suspeito, correndo o risco de eliminar inocentes ou aguardam e correm o risco de serem mortos por um ataque suicida. Em relação a esse ponto, é importante notar que o critério de proporcionalidade não se aplica apenas a civis e não combatentes, mas também às tropas envolvidas no conflito. (Guthrie; Quinlan, 2007) De qualquer forma, há também questões importantes envolvendo o critério da proporcionalidade no terceiro momento do conflito (após a queda de Saddam). Com o início de um movimento de insurgência no Iraque, os EUA são forçados a adotar táticas de contra insurgência. No entanto, por não estarem preparados para uma situação desse tipo, não havia planos específicos e os EUA adotaram métodos controversos de contra insurgência. (Ehrenberg et al, 2010) A “Opção Salvador” – referência a “estratégia informada por doze anos de experiência em treinamento de paramilitares que atuavam como esquadrões da morte em El Salvador durante os anos 1980” (Ehrenberg et al, 2010, p. 215) – colocada em prática no início do movimento de insurgência, de acordo com o site Wikileaks, era fortemente pautada por técnicas ilegais como a suspensão de habeas corpus e, nesse sentido, problemática nos termos do Bellum Justum. As práticas sustentadas pela “Opção Salvador” se tornam ainda mais contraditórias em relação ao

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critério da proporcionalidade quando se tem noção de que não existiam fortes evidências de que elas poderiam funcionar e a administração Bush sabia disso. Com a necessidade de um plano de contra insurgência, buscou-se nos arquivos da CIA operações parecidas do passado. As opções mais próximas encontradas estavam associadas à “Opção Salvador” e ao Programa Phoenix utilizado durante a Guerra do Vietnã. O Pentágono havia concluído que a grande maioria dos detentos advindos desses programas era de pouco valor para a inteligência e que seus resultados práticos eram questionáveis. (Ehrenberg et al, 2010) Outra questão importante referente ao terceiro momento do conflito e ao critério de proporcionalidade diz respeito a práticas coercitivas utilizadas nas prisões das forças armadas dos EUA, sendo o caso mais famoso o da prisão de Abu Ghraib. Esse tipo de prática era relativamente difundida e o seu intuito era, a princípio, produzir informação para a inteligência das forças armadas. Essa noção é fortemente problemática em relação ao critério de proporcionalidade na medida em que, como já foi dito, o real valor, em termos de geração de inteligência, da maior parte dos prisioneiros era fortemente questionável. Além disso, os métodos para se adquirir essa informação também eram questionáveis. O uso de tortura durante a administração Bush já não é fato novo e, embora seja possível justificar a tortura com base no critério de proporcionalidade, me parece que essa tarefa não é tão fácil. Afinal, “muitos especialistas em interrogação afirmam que tortura não produz informação confiável, uma vez que o torturado frequente vai dizer qualquer coisa para parar a dor.” (Ehrenberg et al, 2010, p. 406 e 407) Portanto, embora seja possível afirmar que os EUA possuíram uma conduta que, em grande medida se ajustou ao critério de discriminação, o mesmo não pode ser dito sobre o critério de proporcionalidade. As condutas de contra insurgência adotadas no início da ocupação, antes de se adotar o novo manual (COIN), apresentam um caráter de abusos de civis sem boa probabilidade de uma contrapartida alta o suficiente para justificar tais atos. Considerando que para algo ser classificado justo para a tradição do Bellum Justum é necessário que todos os critérios sejam preenchidos (Guthrie; Quinlan, 2007) é possível afirmar que a conduta dos EUA durante a Guerra do Iraque não pode ser considerada justa, de acordo com os critérios dessa tradição teórica.

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Conclusão e Considerações Finais A conclusão principal desse trabalho é simples: a Guerra do Iraque não pode ser considerada justa a partir dos critérios da tradição do Bellum Justum. Conforme foi visto, os critérios do Jus Ad Bellum não foram satisfeitos na medida em que a guerra possuía forte caráter de interesse nacional, estava pautada numa agenda unilateral, foi fruto de uma insistência por parte da administração Bush pelo conflito e não foi bem planejada. Os critérios do Jus In Bellum, por sua vez, também não foram completamente preenchidos. A segunda parte do conflito pode ser considerada relativamente limpa e de acordo com o critério da discriminação. A terceira parte do conflito, contudo, foi fortemente marcada por operações de contra insurgência de cunho questionável e por métodos de interrogação que beiravam ou literalmente se constituíam em tortura. Nesse sentido, o critério de proporcionalidade não foi cumprido. Dessa forma, a guerra que foi considerada pela administração Bush e por muitos de seus compatriotas e simpatizantes como sendo o baluarte da civilização ocidental contra a barbárie de um país controlado por um ditador se provou uma guerra injusta, de acordo com os critérios filosófico-morais da tradição do Bellum Justum. Ainda assim, um fato importante a ser destacado é que a tradição do Bellum Justum se apresenta como mais uma concepção de justiça e moral entre muitas. Essa tradição considera que a guerra é algo inerentemente negativo, mas aceita que em determinadas situações o conflito pode ser justo e necessário. (Guthrie; Quinlan, 2007). Outra perspectiva importante está associada ao realismo. Essa perspectiva tradicionalmente desqualifica análises sobre acontecimentos políticos e afins que se fundamentam em concepções morais, como a tradição do Bellum Justum. De acordo com os realistas – que tem em suas fileiras autores como Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Kissinger e muitos outros – a política e matérias relacionadas como a guerra operam em outra lógica, fora da moral. A racionalidade para esse tipo de afirmação perpassa dois níveis principais. Em primeiro lugar, não seria possível afirmar que existe uma verdadeira moralidade capaz de guiar os indivíduos para o certo. De acordo com essa noção, a “moral deriva sua legitimidade da perspectiva do agente.” (Walzer, 2003, p.13) Assim, o realismo se aproxima muito do relativismo moral. Para essa corrente de pensamento, a moral e a justiça estão diretamente associadas a uma sociedade e um tempo específicas e, nesse sentido, esses conceitos seriam fortemente relativos. Ora, se a

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moral é relativa e deriva sua legitimidade da perspectiva do agente, então não faz sentido se preocupar com essa questão e devemos simplesmente atuar de acordo com os nossos interesses pragmáticos, diriam os realistas. Em segundo lugar, essa corrente de pensamento questiona se em um contexto de conflito e morte, onde há vidas e interesses importantes em jogo, haveria espaço para considerações de moralidade e justiça. Ora, deveriam os EUA optar por não bombardear o Japão com bombas nucleares na Segunda Guerra Mundial para satisfazer o critério de discriminação e, nesse sentido, correr o risco de prolongar a guerra e precisar invadir o Japão com tropas terrestres, arriscando milhares ou milhões de vidas de militares dos EUA? Os realistas, confrontados com essa escolha específica, certamente responderiam que não. Mas também há perspectivas completamente inversas as do realismo e que repudiam a guerra ainda mais que a própria tradição do Bellum Justum. Pode ser afirmado que uma delas é a perspectiva Kantiana de moralidade, fundamentada nos chamados imperativos categóricos. De acordo com Kant, a moralidade é fundamentada em deveres. Esses deveres estão associados a universalizações de determinados imperativos. Assim, somente imperativos categóricos que pudessem ser universalizados poderiam ser considerados morais. Nesse sentido, é possível afirmar que um dos imperativos em questão poderia ser “não matar outro ser humano”. (Warburton, 2008) Nesse sentido, seria completamente imoral qualquer tipo de guerra (considerando que nas guerras uns matam a outros). Outra concepção de moral possível de ser colocada como totalmente contrária à guerra seria o próprio cristianismo – apesar do fato de que a própria tradição do Bellum Justum surgiu a partir dos escritos da bíblia. Liev Tolstói defende que o cristianismo em suas regras mais básicas, também fundamentadas no dever, não permitiria qualquer tipo de mal no mundo. (Tolstói, 2011) De qualquer forma, o importante a se notar aqui é que existem concepções das mais diversas no que diz respeito a moral e como a moral se associa a guerra. No final das contas, conforme é apontado por Nagel, “o mundo pode nos apresentar situações em que não há nenhuma atitude honrosa ou ética que um homem possa tomar, nenhum procedimento isento de culpa e responsabilidade pelo mal provocado.” (apud Walzer, 2003, p. 555). Talvez a guerra invariavelmente se encontre nesse dilema e por mais que se busque uma justificativa moral para embasar ou criar qualquer tipo de ordem, em última análise, não há atitude honrosa ou ética.

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Por fim, resta ressaltar que o objetivo desse trabalho foi apresentar brevemente a tradição do Bellum Justum e buscar responder a pergunta referente à justiça da Guerra do Iraque a partir dessa perspectiva. É importante notar que o trabalho possui um caráter breve e não se propõe como palavra final sobre o assunto, sendo inclusive falho em abordar todas as questões que se apresentaram referentes à análise do tema. Além disso, outro objetivo do trabalho foi demonstrar de maneira muito resumida a existência de diferentes concepções sobre o tema e, nesse sentido, querendo ou não, um relativismo no que tange as concepções de moral e justiça.

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Bibliografia WALZER, Michael. Guerras Justas e Injustas: uma argumentação moral com exemplos históricos. Tradução: Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. WARBURTON, Nigel. O Básico da Filosofia. Tradução: Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. EHRENBERG, John et al. The Iraq Papers. Nova York: Oxford University Press, 2010. KEEGAN, John. A Guerra do Iraque. Tradução: Lais Andrade. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2005. GUTHRIE, Charles; QUINLAN, Michael. Just War: just war tradition - ethics in modern warfare. Londres: Bloomsbury Publishing, 2007. Em Números: Guerra do Iraque custou bilhões e deixou milhares de mortos. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111215_eua_iraque_numeros_fn.shtml.

Acesso em 05 de jan. de 2013. FINK, Susan D. The Trouble With Mixed Motives: debating the political, legal, and moral dimensions of intervention. Naval War College Review. Newport, ADA523240, p. 19-32, 2004. MOSELEY, Alexander. Just War Theory. Disponível em: http://www.iep.utm.edu/justwar/. Acesso em 08 de fev. de 2013. ROMAYA, Bassam. Philosophizing War: arguments in the War On Iraq. Temple University, 2010. UNITED STATES INSTITUTE OF PEACE. Social Report 98. Washington, 2003. DIAMOND, Larry. What Went Wrong In Iraq. Foreign Affairs. Vol. 83, p. 34-56, 2004. COLLIER, Craig E. Agora que Estamos Saindo do Iraque, o que aprendemos? Military Review. Fort Levenworth, p. 2-7, 2011. PRESS, Daryl G. Urban Warfare: options, problems and the future. MIT Security Studies Program. Massachusetts, 1999. TOLSTÓI, Liev. O Reino de Deus Está Em Vós. Tradução: Celina Portocarrero. Best Bolso, 2011.

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