GUSSOLI, Felipe Klein; HAYASHI, Andrei Toshio; OLIVEIRA, Galanni Dorado; SILVA, André Thomazoni Pessoa. A OUTORGA ONEROSA E A CONCESSÃO DE POTENCIAL CONSTRUTIVO: UMA LEITURA A PARTIR DO CASO DO ESTÁDIO DO CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE

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VII CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO OFICINA 4: "APLICABILIDADE DOS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA

A OUTORGA ONEROSA E A CONCESSÃO DE POTENCIAL CONSTRUTIVO: UMA LEITURA A PARTIR DO CASO DO ESTÁDIO DO CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE

André Thomazoni Pessoa Silva Andrei Toshio Hayashi Felipe Klein Gussoli Galanni Dorado de Oliveira

Sumário 1. Introdução............................................................................................................................................................ 2 2. Política Urbana e a divisão de competências constitucionais. ............................................................................. 2 3. Competência Municipal....................................................................................................................................... 3 4. Instrumentos de Politica Urbana no Estatuto da Cidade...................................................................................... 5 5. Copa do Mundo e a Outorga Onerosa ao Clube Atlético Paranaense. .............................................................. 11 6. Conclusões ........................................................................................................................................................ 16 Referências Bibliográficas ..................................................................................................................................... 19

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo estudar o instituto da outorga onerosa de potencial construtivo (natureza jurídica e as finalidades precípuas ao instituto), bem como a sua utilização de maneira indevida pela prefeitura de Curitiba ao financiar as obras de reforma e ampliação do estádio Joaquim Américo (Arena da Baixada). Palavras Chaves: instrumentos de política urbana; outorga onerosa; Copa do Mundo FIFA 2014; estudo do caso Arena da Baixada.

Abstract: The present work aims to study the onerous property and building potential institutes (legal nature and purposes of the institute), as well as its improperly use by the city of Curitiba to finance the renovation and expansion of the soccer stadium Joaquim Américo (Arena da Baixada). Key words: urban policy instruments; onerous property; Fifa World Cup 2014; case study Arena da Baixada.



Acadêmicos do 4º Ano do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná. 1

1. Introdução O presente trabalho possui como objeto central o instituto da outorga onerosa de potencial construtivo. Para isso, atenta-se primeiramente a breve histórico legislativo do instituto do solo criado da divisão de competências constitucionais impostas nesse campo, atentando precipuamente para as competências municipais. Nesse sentido, abrangemos a existência de dispositivos do Estatuto da Cidade que regulam instrumentos disponíveis à consecução de uma política urbana adequada, dentre eles, o instituto da outorga onerosa. Analisa-se a discussão doutrinária em torno da natureza da outorga onerosa e sua relação paradoxal com alguns elementos e conceitos do direito financeiro. O último tópico possui como escopo o estudo de caso referente à concessão de potencial construtivo ao Clube Atlético Paranaense. Analisa-se o plano de fundo legislativo, os possíveis vícios de tal concessão, relacionado, ainda esta situação específica com a teoria anteriormente dissecada, nunca perdendo o foco nos elementos de direito financeiro pertinentes ao trabalho e os objetivos precípuos de uma política urbana séria e comprometida com os ideais democráticos.

2. Política Urbana e a divisão de competências constitucionais. O retrospecto histórico acerca do instituto jurídico do solo criado demonstra que este fora criado e consolidado na prática administrativa e na doutrina antes mesmo do advento de um diploma legal abrangente, com regras claras que o regulamentassem1. O primeiro passo em direção à sua uniformização e regulamentação, não obstante, se deu com a Constituição de 1988. O texto constitucional, além de recepcionar no art. 5º, XXIII2 o moderno conceito de direito de propriedade limitado ao cumprimento de uma função social, prevê em seus artigos 182 e 183 a criação de instrumentos de Políticas de Desenvolvimento Urbano. Contudo, preferiu o poder constituinte originário delegar à legislação infraconstitucional, mediante atribuição de competências legislativas, a tarefa de estabelecer os instrumentos específicos de Política Urbana. Daniela Campos Libório Di Sarno define competência como "a 1

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Adilson Abreu Dallari In: Estatuto da cidade: Comentários à lei federal 10.257/2001. Coord. Adilson Abreu Dallari e Sergio Ferraz. Figuram, ainda, no corpo constitucional os princípios da função social da propriedade e da função social da cidade como ideias centrais que conferem coerência ao sistema de atos normativos e administrativos que visam à organização do espaço urbano (DALLARI, 2001, p. 75).

particularização do poder do Estado em alguma pessoa, que recebe esta responsabilidade através de disposição legal"3. A União recebera competência material para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação de território e de desenvolvimento econômico e social, além de instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano (inclusive habitação, saneamento básico e transporte), conforme disposto no art. 21, IX, XX. Cabe também à União, concorrentemente, legislar sobre direito urbanístico (art. 24, I) estabelecendo normas gerais que poderão ser complementadas pelos Estados e Municípios. “Norma geral”, entretanto, é expressão jurídica aberta cujo conceito é controvertido4. Em outra seara, cabe ao Estado privativamente instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (art. 25, § 3°). Contudo, no entendimento de Di Sarno 5 essa competência só se realizará na justa medida em que os Municípios afetados queiram agir em conjunto, pois é dever do Estado-Membro, e dele apenas, estimular, promover, incentivar e cooperar com medidas que contribuam para a eficácia na solução dos problemas afins. Aos Estados também compete legislar sobre direito urbanístico de formar suplementar e complementar à União; exercerão, contudo, competência plena para estabelecer normas gerais não havendo lei federal. A superveniência da lei federal suspenderá a lei estadual no que lhe for contrária (CF art. 24, § 3º). Fora ao Município, no entanto, que a Constituição Federal conferiu papel essencial na efetivação das Políticas Urbanísticas, dando-lhe competência legislativa de editar normas de interesse local (art. 30, I), competência suplementar (art. 30, II) e competência material para executar políticas urbanas (art. 182, caput).

3. Competência Municipal Tendo em vista a repartição de competência antes mencionada, Dallari defende que os Municípios poderiam criar novos instrumentos de organização urbana. Além disso,

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DI SARNO, Daniela Campos Libório. In: Estatuto da cidade: Comentários à lei federal 10.257/2001. Coord. Adilson Abreu Dallari e Sergio Ferraz. p. 62 José Afonso da Silva critica a definição do termo que se fundamente unicamente no critério da generalidade da aplicação da norma. Para ele, "a combinação do estabelecimento de princípios e diretrizes de ação com critérios de aplicação" juntamente com "a previsão constitucional específica" é que encaminham a ideia fundamental do conceito. Portando, adotando a definição de José Afonso da Silva, normas gerais são leis, ordinárias ou complementares, produzidas pelo legislador federal nas hipóteses previstas na Constituição, que estabelecem princípios e diretrizes da ação legislativa da União, dos Estados e dos Municípios. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico Brasileiro. p. 57. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Idem.

segundo o autor, o Estatuto da Cidade (art. 4°) deixa claro que o rol de instrumentos não é exaustivo, admitindo a possibilidade de advento de outros ali não previstos. Reconhecendo-se a validade de instrumentos urbanísticos preexistentes ao Estatuto da Cidade, afirma o autor, pode-se também admitir a criação e adoção de novos instrumentos posteriormente desenvolvidos por Estados e Municípios (desde que em consonância ao Estatuto). Esse entendimento deve ser recebido com ressalvas. A primeira delas é que o referido Estatuto "trata tão somente, de competências da União6". A competência Municipal advém diretamente da Constituição. Segundo, deve se compreender como se realiza a complexa relação de cooperação entre os entes federativos para só então definir em quais circunstâncias os Municípios, ao legislarem em interesse local, não invadiriam competências de outros Entes. Logo após a promulgação da Constituição de 1988, Fernanda Dias Menezes de Almeida já apontava que a problemática das competências municipais giraria em torno da conceituação do termo interesse local. Segunda a autora, interesse local não significa interesse exclusivo dos Municípios, mas a predominância do Interesse dos Municípios sobre o interesse regional do Estado e do interesse geral representado pela União. Gilmar Mendes aduz que são de interesse local as atividades (e respectiva legislação) pertinentes a transporte coletivo, coleta de lixo, ordenação do solo urbano, fiscalização das condições de higiene de bares e restaures, dentre outras.7 Ainda segundo entendimento de Dallari, corroborado por José Afonso da Silva, a competência Municipal não se restringiria à suplementar as normas gerais federais ou estaduais, pois nem todas as normas Municipais sobre direito urbanístico são criadas com fundamento no art. 30, II. O Município tem competência própria oriunda do texto constitucional. A competência exercia pela União e pelo Estado esbarra na competência que a Constituição reservou aos Municípios, fundada no dito interesse local. Contudo, como bem destaca José Afonso da Silva, a atuação legislativa municipal deve guardar os ditames, diretrizes e objetivos gerais estabelecidos pela União, posto que uma norma Municipal que contrarie tais preceitos estaria eivada de vício, invadindo competência que não lhe cabe.8 Os Municípios podem, portanto, criar novas políticas, tendo em vista o interesse local, porém estas não podem confrontar diretrizes estabelecidas pela União. O interesse local deve representar um interesse cuja preponderância seja municipal, mas que represente

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DI SARNO, Daniela Campos Libório. Ob.Cit. p. 66. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito constitucional. p. 886. SILVA, José Afonso. Ob. Cit. p. 55-56.

também os interesses da União e do Estado, de maneira colateral. O que a Constituição objetiva com a divisão de competências é, em verdade, uma ação coordenadas entres os entes federativos, sendo ilógico falar em competência municipal, interesse local, conflitante com as demais competências (e interesses de Estado e União). Na formula defendida por Hely Lopes Meirelles, "não há assunto de interesse local que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional"9. 4. Instrumentos de Politica Urbana no Estatuto da Cidade

Publicada treze anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Lei 10.257 (Estatuto da Cidade) estabeleceu, como objetivo das Políticas de Urbanização (constitucionalmente previstas), o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. O art. 4° do Estatuto da Cidade prevê um rol não exaustivo de instrumentos urbanísticos colocados à disposição da Administração Pública. Dallari10 classifica esses instrumentos a partir de suas funcionalidades: planejamento; instrumentos tributários e financeiros de política urbana; instrumentos jurídicos e políticos de atuação urbanística; e instrumentos ambientais, destinados a assegurar a preservação do ambiente urbano. Quanto aos instrumentos de planejamento, o art. 4° da Lei 10.257 enumera respectivamente em seus incisos: i) planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; ii) planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; iii) planejamento municipal. A lei destaca, ainda, dentre os instrumentos de planejamento do Município: o plano diretor, disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; zoneamento ambiental; plano plurianual; diretrizes orçamentárias e orçamento anual; gestão participativa; outros. Dentre os instrumentos tributários e financeiros de política urbana destaca-se a outorga onerosa e transferência de potencial construtivo. Tratar-se-á, a partir de agora, do mecanismo especifico da outorga onerosa. Essa atenção especial se explica, pois, tem sido esse o instrumento de política urbana utilizado no Paraná para patrocinar a reforma do Estádio Joaquim Américo (Arena da Baixada). Celso Antônio Pacheco Fiorillo define outorga onerosa como um "instrumento que amplia o direito de construir bem como permite a alteração do uso do solo sempre mediante

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. p. 136 DALLARI, Adilson Abreu. Ob. Cit.

a contrapartida a ser prestada pelo beneficiário".11 Neto Marques acrescenta: "a onerosidade da outorga é, na verdade, uma consequência do estabelecimento do instituto do solo criado"12, afinal, só faz sentido prever a possibilidade de outorga onerosa se preexistir a noção de que a edificação além do coeficiente básico de aproveitamento (solo criado) não corresponde um direito subjetivo do particular. Ao abordar a noção de solo criado, o qual é indenizado por meio do instrumento da outorga onerosa, invariavelmente se adentra o segundo aspecto do zoneamento urbanístico. Este é constituído por dois institutos fundamentais: coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação, “instrumentos básicos para definir uma distribuição equitativa e funcional de densidades (edilícia e populacional) compatíveis com a infraestrutura e equipamentos de cada área considerada”.13 Conforme descrito por Eros Roberto Grau, “o coeficiente de aproveitamento expressa a relação entre a área construída”, ou seja, a soma dos pavimentos, cobertos ou não de uma edificação “e a área total do terreno em que a edificação se situa”. Por outro lado, “a taxa de ocupação expressa a relação entre a área ocupada”, ou seja, a área do solo sob a qual se assenta a construção, projeção horizontal da área construída acima do nível do solo “e a área total do terreno”14. José Afonso da Silva fixa o conceito de coeficiente (taxa) de ocupação máxima como “o fator pelo qual a área do lote deve ser multiplicada para se obter a máxima área de projeção horizontal da edificação permitida naquele lote”15, e descreve coeficiente (taxa) de aproveitamento enquanto “fator pelo qual a área do lote deve ser multiplicada para se obter a área total de edificação máxima permitida nesse mesmo lote16”. Nesse contexto, é competência Municipal estipular, através do Plano Diretor, os coeficientes de aproveitamento básico e máximo para cada região, considerando, sempre, critérios de oportunidade e conveniência, tendo em vista a infraestrutura existente e o aumento da densidade desejada para cada região. Para além desse coeficiente básico permitido até atingir-se o coeficiente máximo, faz-se necessário adquirir direito de construir mediante pagamento de uma contrapartida. A doutrina diverge no que concerne ao modo de prestação de tal contrapartida, mas esta questão persiste sendo pouco explorada. Floriano de Azevedo Neto Marques defende a possibilidade de pagamento da 11

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FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001: lei do meio ambiente artificial. p. 67 NETO MARQUES, Floriano de Azevedo. Ob. Cit. p. 232. Ibidem. p. 250. GRAU, Eros Roberto Op. cit. p. 56. SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 251. Ibidem.

contrapartida em modalidades outras que não apenas em dinheiro, seguindo certos limites: i) o preço não poderia exceder o valor unitário do metro quadrado do terreno, e ii) não poderia exceder, no total, o valor do imóvel, pois sendo o direito de construir acessório ao direito de propriedade não poderia este exceder aquele. Márcia Walquiria Batista dos Santos complementa que "a disciplina da [outorga onerosa] constará de lei ordinária [municipal], a qual disporá a respeito da forma de cálculo para a cobrança da outorga," sendo possível inclusive que a lei preveja "casos passíveis de isenção deste pagamento".17 Embora reconheça a possibilidade de isenção, a autora salienta a necessidade de a Lei Municipal especifica estar em conformidade com a Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), impedindo, assim, o Poder Público de renunciar a qualquer arrecadação sem indicar a corresponde fonte de receita. Dessa forma, deve haver equilíbrio entre o benefício econômico auferido pela concessão onerosa do direito de construir e a contrapartida recebida pelo Município, pois, o direito de construir está limitado a infraestrutura urbana18. Assevera Eros Roberto Grau que "através da outorga onerosa permitir-se-ia que fossem ressarcidos ao setor público encargos que o solo criado acarreta19". Outrossim, o desenvolvimento da capacidade técnica e da demanda pela “criação artificial de área horizontal, sobre ou sob o solo natural”20, passa a atrair o interesse da administração pública, pois acarretar a exigência de mais equipamentos a partir da ocupação e utilização de tais espaços criados. Solo criado depende, relaciona-se e exige, portanto, meios de circulação, fornecimento de água, esgoto, transportes públicos, áreas de lazer, estacionamento, dentre

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SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. In: Estatuto da Cidade: Lei 12.257, de 10.07.2001. comentários/coordenadores Odete Medauar, Fernando Dias Menezes de Almeida. Márcia Walquiria Batista dos Santos parece adotar o mesmo posicionamento de Seabra Fagundes, para quem as receitas oriundas da outorga onerosa tem caráter tributário estando submetidas às regras do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar 101 de 4 de maio de 2000 - Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias; II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. § 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado. § 2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso. GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. p. 82. Ibidem. p. 57.

outras estruturas mais. Por outro lado, ressalva que “a cessão do direito de criar solo não configura nem autorização, nem permissão e nem licença”. Pois, “quanto o setor público negocia direito de criar solo está vendendo determinado bem e não permitindo o exercício de atividade”, não ocupando o poder público posição diversa dos particulares, pois opera “cessão de direito de criar solo – ainda que intervenha sobre todas as operações praticadas, na condição de agente organizador e fiscalizador do mercado de direito de criar solo”21. Discordam os doutrinadores principalmente a respeito da natureza jurídica dos recursos oriundos da outorga onerosa. Para Seabra Fagundes, assim como para Márcia dos Santos, os recursos oriundos da outorga onerosa seriam receitas tributárias cuja natureza jurídica se assemelha à dos impostos: "o gravame lançado sobre os favorecidos pela criação de solo há de resultar em impostos"22. Entretanto, o posicionamento que se tornou dominante no Brasil (a partir da década de 90) é o postulado por Eros Grau, para o qual essas receitas não possuem características tributárias. “Tributos são receitas que encontram sua causa em lei; daí sua definição como receitas legais”. No caso da outorga onerosa “estamos diante de um ato de aquisição de um direito, não compulsório”, portanto ato voluntário, no qual a vontade da partes é o requisito principal. Desse modo “a remuneração correspondente, pois, é contratual e não legal” 23. Floriano de Azevedo Marques Neto defende que as receitas provenientes da outorga onerosa do direito de construir são mero preço público, haja vista a não haver compulsoriedade na aquisição do direito ao solo criado24. Contudo, a doutrina e os tribunais têm encontrado grande dificuldade em definir o que é preço público e diferenciá-lo das taxas. Ricardo Lobo Torres oferta uma conceituação, para o autor preço público é “a prestação pecuniária, que, não sendo dever fundamental nem se vinculando às liberdades fundamentais, é exigida sob a diretiva do principio constitucional do benefício”. Dessa forma, conclui o autor, trata-se de “remuneração de serviços inessenciais, com base no dispositivo constitucional que autoria a intervenção no domínio econômico” 25. Regis Fernandes de Oliveira, ao destacar a contratualidade típica dos preços, esclarece que a cobrança do preço está limitado ao mercado, ou seja, a remunerar as atividades típicas de mercado cuja recepção não é obrigatória e o serviço não é tipicamente 21 22 23 24

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Idem. p. 83. FAGUNDES, Miguel Seabra. Aspectos jurídicos do solo criado. p. 7. Idem. p. 83. NETO, Floriano de Azevedo Marques. Instrumentos de politica urbana, In:Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal n° 10.257/2001. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. p.160.

reservado ao poder público26. Os autores evidenciam, assim, que o preço deve remunerar um bem ou serviço não essencial inserido no domínio econômico, pois parece impossível existir vontade de contratar quando o individuo está impelido a negociar, seja pela essencialidade do bem, ou pela inexistência de alternativa de mercado. Nesse sentido, Regis Fernandes de Oliveira entende ser inconstitucional a cobrança de tarifa nos serviços de água, luz, telefone, transporte, pois “são serviços prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição [em que] só se pode cobrar taxa. A circunstância de criar ou instituir uma sociedade de economia mista ou empresa pública ou fundação não descaracteriza todo o regime jurídico”27 Dessa forma, parece haver certa dificuldade em se enquadrar os recursos oriundos da outorga onerosa na categoria de preços públicos. Não há emanação de vontade quando a única alternativa do contribuinte é adquirir o direito de construir por meio da remuneração do poder público. Atente-se, por óbvio, que há emanação de vontade tão somente quando o sujeito enseja edificar acima do coeficiente de utilização atinente ao seu imóvel e provoca a Administração Pública para conseguir tal outorga, vontade essa, que cessa no momento seguinte, pois tão somente o poder público é capaz de conceder potencial de construção. Por outro lado, a remuneração recebida pelo estado visa remunerar o incremento da estrutura urbana e compensar a exigência de mais equipamentos públicos gerada pela edificação além do coeficiente básico. Dessa forma, a outorga onerosa remunera os encargos oriundos de serviços prestados pelo estado à titulo de serviços públicos, ou seja, serviços que são postos pelo estado à disposição do contribuinte sob regime de direito público. Não deveria, por esse prisma, perdurar o entendimento de Eros Grau, pois não se trata aqui de operações em que particular e estado estão nivelados. Trata-se de operações verticalizadas. Assim, sugere-se que os recursos recebidos pela outorga onerosa do direito construir não constituem preço, pois advém e subsistem de uma relação jurídica verticalizada cujo objetivo é remunerar serviços essenciais oferecidos fora do domínio econômico. Esses recursos se assemelham, em verdade, às taxas. Parafraseando Regis Fernandes de Oliveira, taxa é o tributo vinculado ou dependente de uma ação estatal que só pode ser exigido dos particulares em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou posto a sua disposição (conforme expressamente disposto na Constituição Federal art. 145, III28). Nesse

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OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direto financeiro. p. 165. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. HORVATH, Estevão. Manual de Direito Financeiro. p. 46. Idem. p. 44

sentido, a outorga onerosa é cobrada do contribuinte através do exercício do poder de polícia exercido pelo estado, que estabelece os limites do direito de construir, estipulando coeficientes básicos e máximos, cujo objetivo é remunerar a exigência de incremento da infraestrutura urbana originada pela criação de solo para além do coeficiente básico. Tal posicionamento é coerente com o que dispõe o Estatuto da Cidade, que vincula os recursos arrecadados com a outorga onerosa ao incremento da estrutura urbana. No diploma em questão ficam expressas as finalidades auferidas com a adoção da outorga oneroso do direito de construir, bem como da alteração de uso que serão aplicadas com as seguintes finalidades: 1) regularização fundiária; 2) execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; 3) constituição de reserva fundiária; 4) ordenamento e direcionamento da expansão urbana; 5) implantação de equipamentos urbanos e comunitários; 6) criação de espaços públicos e áreas verdes; 7) criação de unidade de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; e 8) proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico29.

Mais do que elucubrações teóricas, as discussões sobre a definição da natureza jurídica desses recursos tem grande relevância prática. O reconhecimento desses recursos como taxas, ao invés de preços públicos, condicionaria seu regime a princípios legais específicos. Mencione-se ainda, dentre outras consequências práticas, que: i) o caráter orçamentário, em conformidade com o princípio da universalidade, garantiria o melhor controle da aplicação dos recursos às finalidades dispostas em lei; ii) a submissão à LRF quanto a renuncia de receitas, impedindo uma guerra fiscal entre os Municípios, que no intento de atrair a iniciativa privada, pode vir a conceder benefícios através da outorga onerosa; iii) a sujeição ao principio da legalidade, da anterioridade e da universalidade favoreceria a segurança jurídica. Por fim, cabe ressaltar que a atividade urbanizadora realizada pelo poder público está submetida, também, ao principio da isonomia (art. 5º, caput da Constituição Federal e ao art. 2°, XI, do Estatuto da Cidade). Logo, os instrumentos de política urbana não podem servir para perpetuar desigualdades sociais, que obviamente repercutem e se reforçam na própria conformação e produção do espaço urbano, desse modo o cálculo da contrapartida, fundamento da outorga onerosa, deve considerar tais desigualdades, privilegiando aqueles em situação de maior precariedade econômica. 29

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Ob. Cit. p. 68.

5. Copa do Mundo e a Outorga Onerosa ao Clube Atlético Paranaense. Com a notícia, em 2007, de que o Brasil seria sede da Copa do Mundo FIFA 2014, grandes foram as comemorações. Passados 64 anos, o país seria novamente o palco de um dos maiores e mais festejado evento do globo. Curitiba, capital inclusa dentre as doze cidades sede do megaevento, logo recebeu uma série de recomendações - senão imposições – para se adequar ao projeto da FIFA para a Copa, que exigia uma série de requisitos para que as cidades sede possam abrigar os jogos. O Termo de Compromisso assinado pelo Comitê Organizador Brasileiro com a FIFA acertou os pontos restantes para a confirmação do país como sede do evento. Finalmente, concretizou-se a submissão da nação às exigências do capital privado com a promulgação da dita Lei da Copa, que dispunha, inclusive, mandamentos contrários ao ordenamento pátrio. Para o fiel cumprimento do acordo firmado pelo Comitê Organizador com a FIFA, em 13 de janeiro de 2010 a União, o Governo do Estado do Paraná e a Prefeitura Municipal de Curitiba firmaram a Matriz de Responsabilidades. Esta visava a executabilidade de todas as ações necessárias à realização da Copa do Mundo em 2014 e da Copa das Confederações, em 2013. A Matriz de Responsabilidades determina para o sucesso do empreendimento a ser realizado, a conjugação de esforços de todos os entes federativos, entidades participantes e população. Da Matriz assinada, coube ao Estado e ao Município a responsabilidade por todas as obras referentes à mobilidade urbana, ao entorno do aeroporto e terminais turísticos e, primordialmente, ao estádio e seus arredores. Coube à União a reforma e expansão do aeroporto e dos terminais turísticos (Cláusula Terceira da Matriz)30. Mais adiante no texto do documento, mais precisamente na Cláusula Sétima, consta expressamente no § 2º: “A contrapartida ao financiamento oferecido pela União é de responsabilidade exclusiva do Tomador, e não poderá conter recursos oriundos do Orçamento Geral da União.” Deste modo, o acordo assinado percorreu em linhas gerais os modos de aquisição de

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CLÁUSULA TERCEIRA – DAS RESPONSABILIDADES DOS PARTÍCIPES III – A União oferecerá aos entes e proprietários dos estádios a possibilidade de contratar financiamento a intervenções em Estádios e Mobilidade Urbana, nas condições estabelecidas em resolução do Conselho Monetário Nacional, exigindo do tomador de recursos adequação e satisfação com estas e outras condições requeridas para a assinatura do contrato de financiamento. IV – Os Estados e Municípios deverão observar rigorosamente a legislação específica para a contratação de operações de crédito, em especial, mas não se limitando às seguintes normas: LC 101/2000 e Resoluções do Senado Federal nº 40/2001 e nº 43/2001. Os Estados deverão incluir as referidas operações de crédito nos seus respectivos Programas de Reestruturação e Ajuste Fiscal.

recursos para viabilização da Copa na cidade de Curitiba. Dos anexos da Matriz consta, em 2010, previsão de gastos para reforma e ampliação do Estádio Joaquim Américo (Arena da Baixada). Já neste primeiro plano se estimava um total inicial de gastos, a cargo do Governo Municipal, de R$ 46,6 milhões apenas com as obras nos arredores do estádio. Os gastos com a reforma e adequação da Arena propriamente dita beiravam, na estimativa inicial, 138 milhões, a cargo do Governo Federal em parceria com o Clube Atlético Paranaense, mediante financiamento pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES). O prazo máximo para a conclusão do estádio seria dezembro de 2012. Sem perder tempo, já em setembro de 2010 o Estado do Paraná, Município de Curitiba e o Clube Atlético Paranaense (CAP) celebraram - com intervenção Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) - convênio específico para possibilitar no âmbito local a realização da Copa do Mundo FIFA 2014 e Copa das Confederações 2013. O citado convênio entre os entes público e o CAP dispõe já na Cláusula Segunda acerca do rateio do valor total estimado para concretização da ampliação e reforma do Estádio Joaquim Américo Guimarães. Dos 135 milhões estimados para a obra, coube a cada parte o custeio de 1/3. Mais tarde, o valor total da obra sofreu modificação, sendo alterado para 184,6 milhões, mantido o acordo de rateio em 1/3 31. Para concretização do investimento foi estabelecido um complexo projeto de engenharia financeira. O Estado do Paraná, responsável pelo aporte de recursos perante o BNDES, garantiu a capitalização de Agência de Fomento (Agência de Fomento do Paraná S.A.) com recursos provenientes do Fundo de Desenvolvimento Econômico do Estado. O 1/3 de responsabilidade do Estado deve ser repassado ao Município, que ficará responsável pela transferência de sua terça parte devida somada à parte devida pelo Estado, ou seja, 2/3 (R$ 123.066.000,00). Esse valor a ser repassado pelo Município será transferido mediante cotas de potencial construtivo. A concessão de potencial construtivo para garantia do repasse de verbas ao CAP se deu através da Lei Municipal 13.620/10 (regulada pelo Decreto 826/2012). Dita Lei Municipal instituiu “o potencial construtivo especial relativo ao Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014”. O art. 2º da Lei dispunha: “O Programa autoriza a concessão de potencial construtivo de, no máximo, R$ 90 milhões de reais, referentes ao valor previsto para execução das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo 2014”. Projeto de Lei nº 005.00073.2012, recomendado pelo Tribunal de Contas 31

Segundo consta do Relatório 04/2012 da Comissão de Fiscalização da Copa 2014 do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (Relatório TCE nº 04/2012), p. 8.

estadual e de iniciativa do Prefeito Municipal, em tramitação na Câmara de Vereadores de Curitiba, prevê alteração do art. 2º para que conste do texto autorização expressa para concessão de 246.134 cotas de potencial construtivo ao CAP. A redação do PL não dispõe acerca do valor de cada cota, mas sabe-se que o valor atual de mercado - vinculado ao Custo Unitário Básico de Construção (art. 2º § 1º da Lei Municipal 13.620/10) – corresponde a R$500,00. A modificação na Lei concederia, portanto, o equivalente a R$ 123.067.000, 00 ao CAP. As cotas de potencial construtivo concedidas ao CAP correspondem exatamente aos 2/3 do valor total do empreendimento a ser realizado no estádio sede dos jogos da Copa 2014 em Curitiba. Deste modo, a mesma Lei Municipal em questão estabelece, em seu art. 3 e §1º, que O potencial construtivo será calculado no valor de 2/3 (dois terços) do valor total orçado das obras necessárias à conclusão do Estádio, atendidas as especificações da FIFA. Pois bem, possuidor de cotas de potencial construtivo no valor aproximado de 123 milhões de reais, resta o CAP detentor de recursos suficientes para garantia de qualquer empréstimo. E exatamente assim aconteceu. Uma vez que possuidor dos recursos necessários ao empréstimo de 2/3 do valor necessário à reforma, o Clube hipotecou seu Centro de Treinamento e contraiu empréstimo junto ao Fundo de Desenvolvimento do Econômico do Estado (FDE) no montante de 46,1 milhões de reais. O valor restante para completar sua terça parte acordada no convênio antes realizado – 16,2 milhões de reais - foi aplicado com recursos próprios. Para este primeiro empréstimo realizado em prol do CAP pelo Estado (46,1 milhões) – requerimento feito em 04/04/2012 - foi utilizada como recebedora dos valores a Sociedade de Propósito Específico CAP S.A – Arena dos Paranaenses, empresa criada especificamente para administração dos recursos direcionados à reforma e ampliação do Estádio do CAP. O contrato de financiamento tem como caucionante o CAP e como anuente o Município de Curitiba. A Lei Estadual nº 16.733/2010 autorizou o financiamento pelo FDE das obras no Estádio Joaquim Américo, e a Resolução FDE nº 05 de maio de 2012 autorizou o repasse de 30 milhões de reais. O financiamento está atrelado a juros anuais de 1,9%, com data de vencimento em 05 de dezembro de 2013. Como já dito, o que garante esses 30 milhões de reais emprestados junto ao FDE (representado pela Agência de Fomento do Paraná S.A) são as cotas de potencial construtivo32. Esses 30 milhões iniciais emprestados pela CAP S.A equivalem a 60.000 cotas

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Dispõe a Cláusula Décima Quinta do Contrato de Financiamento (abertura de crédito nº 001/12) entre FDE e CAP S.A – Arena dos Paranaenses: “Para assegurar o pagamento da obrigação decorrente deste Contrato de Financiamento, em parcela única (montante principal e demais encargos) na data prevista na Cláusula Sexta,

de potencial construtivo das 246.134 que logo farão parte do patrimônio do CAP, que como já dito, foram por lei municipal concedidas ao Clube. O montante sobre apenas o principal, sendo que como bem observou o Tribunal de Contas do Paraná, não existe garantia suficiente para cobrir os encargos33. A par disso, para evidenciar, desde já, a natureza pública integral dos recursos utilizados no estádio do CAP, transcrevemos o item IV do Anexo I do contrato de empréstimo realizado entre CAP S.A. e Estado do Paraná:

IV. O FDE, a CAP S/A e o CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE, autorizam o MUNICÍPIO DE CURITIBA, a ofertarem para venda do potencial construtivo vinculado, de forma parcial ou total, e, havendo proposta de pagamento de valor mínimo equivalente à cotação vigente, o que desde já concordam com a concretização da venda e do depósito do valor recebido diretamente em conta corrente bancária do FDE que, por sua vez utilizará o montante depositado para a amortização do saldo contrato de financiamento (sic) 34.

Desvirtuação ainda maior do instituto do potencial construtivo, já amplamente caracterizado – bem como demonstrado as condições em que é possível sua transferência e outorga – é apresentada no item seguinte do Anexo I do instrumento contratual citado:

V. Se, após a venda das últimas cotas de Potencial Construtivo e a amortização do financiamento, restar saldo devedor a liquidar junto ao FDE, o MUNICÍPIO DE CURITIBA emitirá potencial construtivo adicional, cujo produto da venda – para a qual a autorização do FDE e CAP S/A, constante do item IV deste anexo, será estendida – seja suficiente para liquidação total do saldo remanescente (grifa-se)35.

Desta feita, de acordo com o contrato acima citado, os próprios recursos provenientes da venda de potencial construtivo pela Prefeitura Municipal é que pagarão a dívida existente entre a CAP S.A. e o Estado do Paraná. Dinheiro público pagando

33 34 35

a CAP S/A e o CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE, vinculam em garantia, em favor do FDE, em caráter irrevogável e irretratável, em caução, POTENCIAL CONSTRUTIVO de série especial emitido pelo Município de Curitiba, previsto na Lei Municipal 13.620 de 09 de novembro de 2010, no valor equivalente a R$ 30.000.000,00 (trinta milhões), de acordo com o exposto no Anexo I, o qual anui neste ato, com a presente vinculação”. Do anexo I do contrato consta: II – A fim de constituir a garantia em caução, procederse-á ao registro junto ao Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de Curitiba, Paraná, ficando o MUNICÍPIO DE CURITIBA, como DEPOSITÁRIO do Potencial Construtivo, responsável pela manutenção do registro e o consequente bloqueio para qualquer cancelamento ou transferência do potencial sem que haja concordância formal do FDE, representado pela FOMENTO PARANÁ”. Relatório TCE nº04/2012, p. 8. Contrato, p. 16. Ibidem.

financiamento com origem em dinheiro público. De outro lado, cabe analisar de onde virão os recursos restantes, uma vez que os 30 milhões de reais constantes do contrato avençado entre CAP S.A e Estado do Paraná correspondem apenas à parcela da terça parte investida pelo CAP na obra. Restam, para a consecução da obra, nesta linha de raciocínio, 154,6 milhões de reais. O Estado do Paraná, responsável pela conclusão do empréstimo com o BNDES já elaborou minuta de contrato para realização do financiamento36. O financiamento só é possível em razão da criação do Programa BNDES de Arenas para a Copa do Mundo de 2014, o qual visa apoiar a construção dos estádios que receberão os jogos da Copa. Da mesma forma, a Lei Estadual 16.733/2010 autorizou o financiamento, sendo que mediante sua abertura está o Estado do Paraná apto a receber até R$ 131.168.000,00, limitados até 75% do valor total da obra. O montante, segundo consta da minuta contratual é composto, “dentre outras fontes, pelos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT (...) e do Fundo de Participação PIS/PASEP"37 . A dívida, a ser paga em 156 prestações (treze anos!) tem como garantia desta vez parcelas do Fundo de Participação dos Estados e o produto de arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados Proporcional às Exportações. Os R$ 131.168.000,00 aportados pelo Estado do Paraná através de sua agência de Fomento, estão condicionados à realização de Contrato de Financiamento entre a CAP S.A e o Estado do Paraná38. Ou seja, a engenharia financeira arquitetada visa tão somente o repasse de recursos por “escala” do BNDES à CAP S.A. O contrato a ser celebrado entre CAP S.A. e o Estado do Paraná, através do FDE administrado pela Agência de Fomento do Paraná, também já tem a minuta pronta. Da minuta é possível depreender, novamente, qual a garantia do contrato: os títulos de potencial construtivo emitidos pela Prefeitura39. A situação até aqui delineada mostra exatamente os contornos tomados para o financiamento público das obras do Estádio Joaquim Américo. Neste sentido, vistas a fiscalizar a utilização das verbas públicas para a adequação do Estádio aos eventos em discussão, o Tribunal de Contas Estadual requereu esclarecimentos à Prefeitura Municipal de

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37 38 39

Minuta enviada ao Tribunal de Contas do Paraná após requerimento deste à Agência de Fomento do Paraná (Oficio PRESI nº1067/2012), acessada através dos anexos do Relatório TCE nº 04/2012, página 74 e seguintes. Relatório TCE nº 04/2012, p.80. Cláusula Décima, item I, “c” da Minuta anexada ao Relatório nº 04/2012 TCE, página 88. Anexo I da minuta do contrato entre a CAP S.A. e o FDE, p. 125 do Relatório nº 04: “GARANTIA DE CAUÇÃO DE POTENCIAL CONSTRUTIVO, item II, ‘b’) Quantidade: 174.891 (cento e setenta e quatro oitocentos e noventa e uma) cotas no valor unitário nominal de R$ 500,00 (quinhentos reais) totalizando, nesta data, R$ 87.445.500,00 (oitenta e sete milhões, quatrocentos e quarenta e cinco mil, quinhentos reais).”

Curitiba40. A resposta encaminhada pode ser encontrada no Ofício nº 031/2012 – SECOPA41. Desta maneira, o que quer a Prefeitura dar a entender é que todo o esquema financeiro arquitetado não passa de um novíssimo instrumento de política urbana, montado para garantir a realização dos eventos esportivos programados para 2013 e 2014. A intenção da citada manobra é desvirtuar o instituto do potencial construtivo, como previsto no Estatuto da Cidade, pois não é possível afetar a manobra às finalidades elencadas no Estatuto, como já dito. O TCE, aceitando a intricada interpretação de um “novo instrumento de política urbana”, no mesmo relatório que avalia o quadro instaurado (Relatório TCE nº 04/2012) conclui pela natureza pública dos recursos, o que dá pouco importância à nomenclatura que vem se dando à manobra. Da página 36 do relatório extraímos: Por ser receita pública, a liberação dos valores ao beneficiário só pode significar dispêndio de recurso público. Caracterizar recursos arrecadados mediante concessão de potencial construtivo como públicos tem por consequência atrair a aplicação do §3º do artigo 4º do Estatuto da Cidade, que resguarda a participação do controle social na fiscalização.

Por assim ser, caracterizada a natureza pública dos recursos para fins eminentemente privados, e que no futuro trarão lucros ao Clube, e não à população, colacionamos o que diz o art. 4º do Estatuto da Cidade42. Entretanto, não se vê é participação popular nos assuntos que tocam a concessão de potencial construtivo ao CAP. A Comissão prevista no art. 8º da Lei Municipal 13.620/2010 apenas determina a presença de representantes do Poder Executivo e Legislativo, deixando a sociedade civil alheia a questões de seu primordial interesse. 6. Conclusões As diversas modificações projetadas com a reforma da Arena da Baixada passam ao 40 41

42

Ofício TCE nº 017/2012. A hipótese em tela diz respeito à transferência do direito de construir, estabelecida no art. 35 do Estatuto da Cidade. Desta forma, não se trata de outorga onerosa (...) A Lei Municipal nº 9.801/2000 já previa este instituto, em seu art. 2, inciso II. Ressalte-se que o parágrafo do art. 2 prevê a adoção de ‘outros instrumentos de política urbana’. Página 32 do Relatório TCE nº 04/2012. Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: V – institutos jurídicos e políticos: n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; o) transferência do direito de construir; § 3o Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil.

léu dos interesses reais da sociedade, que em breve verá o entorno do estádio congestionado, inchado e desapropriado indevidamente. A venda futura do potencial construtivo criado pela Câmara Municipal distorce a finalidade de controle urbano do instituto, a qual será, ao fim, ignorada. Assim, das explicações deste artigo e da breve narrativa aqui disposta, não vislumbramos uma solução para o desvirtuamento do instituto do potencial construtivo em Curitiba, mas sim um alerta, haja vista a preeminente necessidade de participação popular na questão, que, com o passar dos dias, além de modificar o cenário da cidade, modifica a vida de seus habitantes. A complexa engenharia financeira desenvolvida para viabilizar estes repasses dificulta o diagnóstico da própria natureza de tais recursos, mesmo para juristas e profissionais do urbanismo, não obstante, pode-se dizer com clareza que a natureza dos recursos que financiarão a reforma do Estádio do Clube Atlético Paranaense é pública. Sequer é correto denominar o montante de recursos de “potencial construtivo”, conforme faz a Lei Municipal nº 13.620 de 2010 (modificada pela recente Lei Municipal nº 14.219 de 2012). A atual redação do artigo 2º da referida Lei é claro: “O Programa autoriza a concessão de potencial construtivo de, no máximo, R$ 123.066.666,67, referente ao valor previsto para execução das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo - FIFA 2014”. Noticia-se modernamente que este valor fora majorado. O que se fez, em realidade, fora utilizar o nome de um instrumento de política urbanística expresso no Estatuto da Cidade para batizar uma manobra de repasse de recursos públicos para uma empreitada da iniciativa privada, cujas finalidades são avessas às anunciadas pelo artigo 34 do Estatuto da Cidade que delimita expressamente que o Certificado de Potencial Adicional Construtivo (CEPAC) é exclusivo de operações urbanas consorciadas, não sendo este o caso (nem material, nem formalmente)43. Tais previsões normativas não impediram, conforme demonstram experiências concretas diversas, que o uso do CEPAC fosse deturpado, de maneira similar ao que agora ocorre com o financiamento das obras da Arena da Baixada. Conforme descreve Márcia Walquiria Batista dos Santos, “podemos encarar o Cepac como moeda corrente para financiar projetos municipais, a exemplo dos títulos da dívida pública e da dívida pública agrária, que, com o passar dos anos, se tornaram desacreditados e pouco valor possuem no mercado

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Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão pelo Município de quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construção, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação.

financeiro”44. É o problema, portanto, da financeirização dos instrumentos de política urbanística, que ocorre, muitas vezes, de maneira extremamente problemática (como é o caso da reforma do estádio do Clube Atlético Paranaense). Já mencionamos, consonante ao entendimento do TCE-PR, que não se trata, no caso em tela, de outorga onerosa de direito de construir, e agora refutamos o rótulo de novo instrumento de política urbana.

O que configura, portanto, tal repasse, que o TCE-PR

considera um “novo instrumento de política urbanística”? A despeito da dificuldade para se responder a tal questionamento, definitivamente refutamos o caráter instrumental desta medida no que concerne à política urbanística estabelecido em lei federal. Embora as municipalidades tenham competência constitucional para criar instrumentos novos de política urbana, estes não podem conflitar com as diretrizes estabelecidas pela Lei nº 10.257/2001 e com a natureza jurídica desses recursos que os vincula a determinada finalidade. Denominar de 'instrumento novo' o repasse de verbas públicas para uma empresa privada dispender em uma obra particular, que resultará em acréscimo de patrimônio a esta mesma empresa, é uma tentativa de legitimar uma prática totalmente contrária às finanças públicas45, às diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Cidade, ao princípio da isonomia e a própria natureza desses recursos. O argumento é reiterado, mas o reproduziremos por ser de completa pertinência ao debate aqui levantado, e, principalmente, por ser também uma questão atinente à atividade financeira do Estado: há uma gama enorme de necessidades públicas a serem supridas, e os administradores públicos optaram por dispender somas milionárias em uma empreitada que beneficiará, em última análise, exclusivamente os organizadores da Copa do Mundo - FIFA 2014 e os proprietários dos estádios que sediarão partidas do megaevento (dada a iminente valorização pecuniária).Conforme Aliomar Baleeiro denotara, no âmago da discussão sobre necessidades públicas residem privações, desejos ou estados de insatisfação que somente em e mediante uma coletividade podem ser satisfeitos; por outro lado, continua o autor, a necessidade torna-se pública por uma decisão de órgãos públicos46. Há que se pensar, finalmente, se todo o esforço e dispêndio dirigido à realização da Copa do Mundo - FIFA 2014 representa, de fato o interesse da coletividade, e se vem a satisfazer em qualquer escala as necessidades infinitas que se apresentam cotidianamente a atuação positiva do Estado. 44 45

46

SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Ob. Cit. p. 220. Finanças públicas entendida como a atividade voltada “aos dinheiros públicos, e, por extensão, à sua aquisição, administração e emprego” (JUNIOR, L. E. F., 2003. p.2). BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à ciência das finanças.p.3-4.

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Comissão de Fiscalização dos Recursos Públicos Aplicados para a Realização das Obras da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Relatório nº04/2012. Curitiba (PR): Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCEPR); 09/2012. Relatório nº 04. Protocolo TC-PR nº 22904-7/12.

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