Gustavo Dahl e O Bravo Guerreiro: Trajetórias e paralelos

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Gustavo Dahl e O Bravo Guerreiro: Trajetórias e paralelos Cayo Candido Rosa1*

Parte de uma pesquisa mais abrangente que busca estudar o discurso e a prática de Gustavo Dahl nos anos 1960 e 1970, este trabalho propõe uma breve análise do filme “O Bravo Guerreiro” (1968), cotejando-o com a trajetória profissional de seu diretor que transitou entre as esferas da crítica, realização e gestão cinematográfica. Fazendo uso de fontes de época, posteriores análises de conjuntura e apontando principalmente características correspondentes ao contexto de produção da obra, o texto busca delinear paralelos entre a trajetória do protagonista do filme e de seu realizador, contextualizando-os em seus devidos recortes narrativos e históricos. Ambas figuras optam pela aliança com o poder então vigente a fim de implantar seus projetos e, ainda que no filme a mensagem final seja pessimista, na vida real, Dahl embarca numa bemsucedida aliança com o Estado atuando como gestor da Embrafilme nos anos 1970. Ao longo do texto apresentaremos uma análise do filme e um breve contexto dado lançamento do filme com análise de fontes primárias como críticas de variados autores. A seguir faremos um paralelo da narrativa da obra com a vida de Gustavo Dahl, traçaremos brevemente alguns aspectos da biografia do diretor apontando para seu discurso durante o período recortado assim como os rumos profissionais tomados por ele, apontando então para algumas hipóteses sobre seu discurso e sua prática durante os anos 1960 e 1970. Pensado em 1966 e produzido no ano de 1968 em apenas um mês, “O bravo guerreiro” era um dos filmes cotados para levar o prêmio principal do IV Festival de Brasília de Cinema Brasileiro em 1968. “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla) sairia como o grande vencedor, entretanto, “O bravo...” levaria um prêmio especial do júri pela “pela contribuição à evolução do moderno cinema brasileiro”. Se “O bandido...” viria a ser um marco do cinema nacional longa e devida e longamente estudado e analisado, “O bravo...” não teria o mesmo destino, tornando-se apenas mais um título, talvez um dos menos lembrados, no conjunto de obras do Cinema Novo como “O desafio” (1965) de Paulo César Saraceni, “Terra em transe” (1967) de Glauber Rocha, entre outras, diretamente relacionadas ao golpe de 1964 e à crise de consciência do movimento cinematográfico. Fracasso de público e sucesso de crítica, “O * Mestrando pelo Programa de História Social do Departamento de História da Universidade de São Paulo (DHUSP) com pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

2 bravo...” pode não carregar a potência fílmica e alegórica de “Terra em transe” ou “O bandido...”, porém através de diálogos bem trabalhados nas interpretação de Paulo Cesar Pereio, Mario Lago, entre outros, e uma elogiada fotografia de Affonso Beato em preto e branco valorizando planos fixos, canaliza o clima que acometeu aqueles que desejavam pensar o país em que viviam e, subitamente, foram tomados por uma realidade adversa, além de apontar um destino pessimista àqueles que decidissem ceder ao governo em nome de um “bem comum”. A narrativa do filme gira em torno da figura do jovem deputado Miguel Horta que, logo no início do filme, resolve deixar seu partido de origem, de caráter radical, para se unir ao partido no poder e que, pela boca de seus membros, se autodenomina de centro. A mudança se dá com o intuito de alterar as estruturas do poder por dentro e não à margem dele. Após diversos debates e conchavos que se dão em saunas, no plenário ou em visitas a obras, Miguel se vê traído pelo partido ao tentar aprovar um pacote de benefícios aos trabalhadores e busca apoio do outro partido de esquerda, menos radical. Encontra-se, portanto, num beco sem saída e, aproveitando último suspiro de radicalidade, o protagonista profere um longo discurso durante uma assembleia de um sindicato chamando-os à greve geral. Ao final, a tela escurece logo após vermos um Miguel abatido fitando o espelho de seu quarto com o cano de uma arma na boca. Podemos dividir o filme de uma hora e vinte minutos em três curtos blocos narrativos que indicam uma linha que sai da esquerda radical, passa pela centro-direita, flerta com a esquerda moderada e retorna à radicalidade. Os blocos seriam a adesão ao partido no poder, acompanhando as negociações travadas em diferentes ambientes, a ruptura com tal partido demonstrada na busca por uma nova aliança com o partido de esquerda moderada e a tentativa de retorno às origens, retratada em seu discurso final. No primeiro bloco somos apresentados à uma frase de Nietzsche de “Assim Falou Zaratustra” (Eu amo o que quer criar algo melhor que si mesmo e dessa arte sucumbe) e vemos Miguel Horta, o jovem deputado, acompanhado do velho deputado Augusto (Mário Lago) indo à casa do governador, membro do Partido Nacional para indicar sua vontade de se unir a eles. A reunião se dá um uma sauna e após discussão com o próprio governador Miguel explicita que ambos “trabalham pelo bem da causa pública”. A seguir somos apresentados ao cotidiano do protagonista, pai e marido ausente, sempre ocupado com reuniões. Dentre elas aquela quando anuncia a seus colegas que está deixando o Partido Radical. Miguel quer implantar uma lei que

3 defende os interesses dos trabalhadores e acredita só ser possível tal ato dentro do partido majoritário, onde encontra resistência devido às “dívidas” que os políticos têm com as indústrias, contrárias à lei. Em determinado momento, um escândalo está prestes a estourar e um político do Partido do Povo, de esquerda moderada, Conrado (Ítalo Rossi) diz ter em mãos documentos que comprovam o escândalo. Em meio às negociações para aprovar a lei de Miguel, Augusto pede que ele vá falar com Conrado para convencê-lo de não soltar tais documentos em troca de favores políticos. A reunião se dá durante a visita de um senador americano a uma indústria e, após intervenções de grupos radicais apontando ao senador os atos do governo como prisões e uma “democracia de fachada”, numa clara alusão ao contexto histórico da produção do filme, a cena é intercalada entre a conversa de Miguel e Conrado com o diálogo de Augusto com o governador. Um dos poucos momentos em que a câmera está em movimento, podemos perceber a cadência dos diálogos sempre pendendo entre um discurso conservador, na boca do governador, e um discurso de oposição, com Conrado. Este último avisa a Miguel que não mudará de ideia e que o jovem deputado não deve se iludir ao achar que sua lei será aprovada, algo que já percebemos pela conversa de Augusto com o governador. Vemos então a cena em que Augusto tenta explicar ao protagonista os motivos das mudanças na lei, que perdeu toda a sua ideia original, por conta dos compromissos do governador. “Não se vai pra frente com tantas concessões” diz Miguel a Augusto, que responde “E no entanto é só assim que se vai para frente. Concedendo toda vez que for necessário. E quando não for mais possível conceder, concedendo ainda.” Miguel se irrita e diz que vai atrás de Conrado, sendo chamado de “profissional da traição” pelo velho e conformado deputado. O plano final dessa cena é fixo. Miguel está de costas para a câmera e Augusto cabisbaixo. Arcos acompanham o caminho por onde os dois políticos caminhavam dando-nos a sensação de perspectiva. Inicia-se um melancólico piano em off com a obra “Gymnopédie nº 1” de Erik Satie enquanto Miguel caminha para o final do caminho à esquerda. No segundo bloco, o deputado vai em busca de Conrado. Entra em sua casa, onde vemos um quadro que parece representar Maquiavel, numa possível mensagem que permeia o filme de que os fins, talvez, justifiquem os meios. Miguel o encontra num bar, e lá Conrado indica a impossibilidade de o primeiro se juntar a ele, uma vez que ele estaria rompendo mais uma vez com algum partido. A cena se dá num bar e, se no bloco anterior sentimos certo apreço por

4 Conrado, que dá dicas a Miguel e parece não ceder ao Partido Nacional, nesse segundo bloco vemos um Conrado que parece tão negociador quanto seus inimigos políticos, além de termos aqui um elemento conjugal. O deputado do Partido do Povo está acompanhado por sua mulher (Isabella), citada anteriormente por outros políticos como uma mulher afeita ao adultério. Conrado também não parece se importar em dirigir olhares interessados às mulheres que se sentam à mesa. O próprio Miguel se vê seduzido pela mulher de Conrado, que o leva para o quarto. A traição é posta aqui nos planos da política, mas também no âmbito conjugal. No terceiro bloco, Miguel volta para casa e é recebido por uma esposa indignada (Maria Lucia Dahl) que diz que ele esqueceu daquilo que construíram juntos em nome dos conchavos políticos. Uma briga entre marido e mulher que parece banal, mas que cabe na narrativa do filme uma vez que esposa retoma o passado do marido quando ele ainda era idealista e quis entrar na política e ela não se opôs, no entanto, aquele com quem ela conversava não era mais o mesmo homem. Miguel se irrita criticando os desejos pequeno-burgueses da mulher, mas mesmo assim parece dividido entre o homem do passado e o homem de agora. Em seguida, o protagonista é avisado que há uma manobra no sindicato orquestrada pelo governo a fim de desqualificá-lo e vai até a assembleia geral onde temos umas das últimas cenas do filme. Após discurso de um operário (Hugo Carvana) criticando a diretoria do sindicato, a mesa tenta fechar a assembleia, porém Miguel decide dar uma última palavra. Caminhando entre os operários tendo faixas ao fundo com os dizeres “Democracia e Liberdade” e “Trabalho e Pão”. Ele discursa fazendo um mea culpa e chama os operários para a greve geral, causando tumulto entre eles. Da perspectiva de um automóvel, vemos a paisagem de uma estrada acompanhada pelo gritos em off do tumulto deixado para trás. No plano seguinte, Miguel está sozinho no quarto, de costas para a câmera e fitando a cama vazia, num outro plano sua silhueta observa o mar de uma varanda e então vemos o protagonista encarando o espelho com uma arma empunhada na boca. O espelho aqui pode ser entendido como representante da ambiguidade da personagem principal que, ao transitar pelos dois mundos, encontrou seu fim com uma arma na boca, silenciando-se e prenunciando sua possível morte, uma morte política. Ainda com a arma, temos um plano em close em que Miguel nos observa por alguns segundo e a tela escurece finalizando o filme. Formalmente, o filme se assemelha mais a “O desafio” do que “Terra em transe” apesar de seguirem a mesma tríade temática, como aponta Fernão Ramos ao analisar diferentes fases do

5 Cinema Novo (RAMOS, 1987:363), ainda que “O bravo...” não cite clara ou alegoricamente o golpe, vai mais fundo na questão da adesão à política tradicional. Temos talvez um meio termo. Enquanto o filme de Saraceni se passa claramente num Brasil do pós-golpe, tendo até notícias de rádio citando-o e inserções documentais do show “Opinião”, o filme de Glauber assume o teor completamente alegórico aludindo ao golpe através de Eldorado, alegoria em maior parte de Brasil, mas também de América Latina. O filme de Dahl, porém, não alude aos fatos nem direta nem alegoricamente. Ele fala do Brasil sem citar o Brasil, remete à repressão sem falar em ditadura. Mesmo formalmente, possui um caráter conciliador, característica do seu diretor que iremos trabalhar mais a frente. Prioriza planos fixos, sem esquecer dos planos em movimento e propõe uma narrativa clássica, com começo, meio e fim, sem abrir mão das ambiguidades do cinema moderno, como o final em aberto. Apesar do fracasso de público, podemos notar que na ocasião do lançamento do filme, tanto a crítica, pelo menos dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, quanto o campo cinematográfico, à época encarnado na figura de Glauber Rocha, elogiaram o filme por variados aspectos, sempre destacando sua temática, retomando os assuntos de “O Desafio” e “Terra em Transe” referentes ao golpe de 1964, sua fotografia em preto e branco e seu elenco. A Ilustrada da Folha de São Paulo o recebe muito bem e o aponta como “um filme para ser ouvido” (02/05/1969) destacando comentários de Glauber Rocha e do próprio Gustavo Dahl explicando os motivos de o filme priorizar diálogos tomando cuidado para não ser um “teatro filmado”. Glauber elogia a obra em diversas ocasiões, sendo a mais completa uma crítica de 1968 em que resume “O bravo...” como “um filme sólido” ou seja “sua construção é montada peça por peça e o filme mantém um ritmo permanente da ação que prende o espectador sem fazer concessões à vulgaridade” (ROCHA, 2004:259). Além de também elogiar o trabalho de Affonso Beato, jovem fotógrafo ganhador do prêmio de melhor fotografia por “Cara a Cara” (Julio Bressane, 1967), Glauber cita numa entrevista a Federico de Cárdenas e René Capriles de 1969, seu apreço pelo filme justamente por seguir uma estética mais clássica e não barroca, como lhe convinha em seus filmes dizendo que “por isso me agrada o filme de Gustavo Dahl O bravo guerreiro, perfeita expressão do pensamento: racional, seco. Não me agrada o cinema barroco, como eu o faço, mas gosto de filmes diferentes do meu.” (ROCHA, 2004:181).

6 Ainda no contexto de lançamento Ida Laura aponta em sua crítica para O Estado de São Paulo que o filme por ser “antibarroco (e portanto antiglauberiano) na concepção formal, condiciona sua força a uma extrema simplicidade de linguagem.” (18/05/1969). A autora toma a narrativa do filme como tentativa de reprodução da realidade e equivoca-se ao considerar a temática da produção “ultrapassada” por remeter a um tempo anterior à “Revolução de 1964” quando “elementos conservadores, misturados a corruptos, viviam a sombra do Senado e da Câmara contrapondo-se às figuras talhadas dentro de uma ideologia marxista, todos fixamente obstinados em conseguir seus objetivos.” O filme não está necessariamente preocupado em retratar a realidade, seja ela anterior ou posterior ao golpe, mas justamente refletir sobre a possibilidade de adesão ao poder vigente na intenção de mudá-lo por dentro, e o possível fracasso nessa estratégia. Ainda assim, o título da crítica parece bastante elogioso, “Um avanço do cinema novo”, demonstrando o caráter ambíguo, para não dizer contraditório, do texto. Carlos M. Motta, em o Estado, ainda comenta seu lançamento dentre tantas outras produções, estampando a coluna com uma cena do filme em 11 de maio de 1969. No dia seguinte, também estampando a matéria com um foto do filme, a Folha aponta-o como “destaque numa semana de muitos policiais”. Outros trechos dos jornais expõem o filme em menor medida. No dia 26 de maio, a Folha indica a volta do filme “elogiado pela crítica” ao Bretagne. Nos dias 14 e 19, vemos dois pequenos anúncios patrocinados no mesmo jornal, sendo o primeiro com os dizeres “A política, o poder, o dever, a luta, o amor, o sexo num filme brasileiro que vai dar muito o que falar”. Vale um destaque para Orlando Lopes Fassoni ao fazer um balanço dos novos filmes brasileiros, num comentário posterior à exibição no Festival de Brasília, porém anterior ao lançamento em circuito: “Já exibido em Brasília, inédito em São Paulo. Dirigido por Gustavo Dahl, enfoca uma problemática política através de um jovem deputado que decide mudar de partido porque a solução para ele, era estar o lado do poder. Assumindo compromissos, ele logo se verá dominado pela máquina do sistema vigente. Não pode recuar, não consegue mais comunicar-se com suas bases eleitorais e acaba suicidando-se.” (FASSONI, 1968)

Encontramos aqui a única menção ao final do filme em que o protagonista empunha um cano de revolver em sua boca. Apesar de remeter ao suicídio, não fica explícito o ato como

7 Fassoni imagina. O caráter ambíguo e metafórico é justamente o que dá a riqueza ao plano final diante da falta de opções da personagem principal. Miguel percebe que foi calado pelo próprio sistema onde tentou se infiltrar e a arma, acompanhada pelo espelho, sinônimo imagético de ambiguidade, demonstram suas saídas, que, para o protagonista, são quase inexistentes. Fica quase impossível não associar a trajetória de Miguel à de Gustavo Dahl. Em uma nota em sua tese de doutorado, posteriormente editada em livro, Arthur Autran aponta como curioso o fato de o filme narrar “a história de um político de esquerda que entra num partido conservador para dali poder alavancar sua carreira e realizar seus ideais, entretanto, termina por fazer muitas concessões e fracassa nos seus objetivos originais” (AUTRAN, 2004:109). Em outra tese de doutorado, André Gatti dedica nota generosa à Dahl resumindo seu caráter conciliador:

A figura de Gustavo Dahl dispensa apresentações, afinal ninguém desconhece a sua defesa em relação ao Cinema Novo, a sua participação na formação da política cinematográfica brasileira onde passou pela Embrafilme, Abraci, Concine entre outros, e a sua posição conciliadora entre Estado e mercado. Na condição de Superintendente de Comercialização da Embrafilme, talvez a sua maior participação política e mercadológica, consagrou a estatal como a segunda maior empresa atuando no mercado cinematográfico brasileiro Gustavo aqui encarna todo este processo que a exemplo dos filmes, buscam inspiração no ideário cinemanovista. Além disso, trata-se de uma figura com trânsito na área política e cinematográfica […] (GATTI, 2005:37)

Nascido em Buenos Aires em 1938, veio para o Brasil logo cedo, em 1947, trazido pela mãe brasileira. Dividido entre São Paulo e Rio ao longo da vida, encontrou seu fim na Bahia, dentro de uma sala de cinema, local sagrado para a cinefilia. Em depoimento à edição 55 da revista Filme Cultura de 2011, Jean-Claude Bernardet afirma que escrevendo sobre cinema no jornal do colégio Paes Leme, Dahl se aproximou de Rubem Biáfora, o famoso e polêmico crítico de cinema da época, responsável pela ponte entre ele e Rudá de Andrade. Em fins dos anos 1950, Rudá convidou Gustavo para presidir o cineclube do Centro Dom Vital e na breve biografia do crítico na mesma edição da revista, Sheila Schvarzman conta que “ele é o programador e também animador do cineclube, chamando a atenção de Paulo Emílio Salles Gomes para os seus dotes críticos” convidando-o assim a escrever para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo,

8 afirmando que Dahl “entre os jovens é o que melhor escreve” e seu “método de trabalho consiste essencialmente na identificação pela simpatia” (GOMES, 1982:133). Com o apoio do crítico veterano, o jovem crítico trabalha por dois anos como arquivista da Cinemateca Brasileira e logo em seguida ganha uma bolsa para estudar cinema na Itália na primeira metade dos anos 1960. Após quatro anos

na Europa, Dahl retorna e dedica-se tanto à crítica quanto à produção

cinematográfica, produzindo “O bravo...” seu primeiro longa. Gustavo Dahl enquadrou-se na fase do Cinema Novo do pós-golpe que atingiu o cinema brasileiro “no momento de sua plena ascensão, de sua explosão criativa" (XAVIER, 2007:47) e a partir desse momento o Cinema Novo começa a entrar em uma crise de consciência. Marcelo Ridenti, analisa o impasse no qual o movimento se encontrou:

Depois do impacto da derrota de 1964, permaneceu na maioria dos cineastas do Cinema Novo a busca da identidade nacional do brasileiro. Mas foram mudando as características desse romantismo, que ia deixando de ser revolucionário para encontrar seu lugar dentro da nova ordem estabelecida. (RIDENTI, 2000:94)

Dahl representa bem essa mudança. Em 1966 ele coloca como responsabilidade do artista “resolver o conflito entre o homem e a natureza” e aponta que “quando a divisão do trabalho e a propriedade particular vem dissociar a sociedade em classes em luta, mais uma vez tenta o artista restaurar a unidade perdida”, ou seja, “em ambos os casos sua função é eminentemente social” (DAHL, 1966:33). No mesmo ano, ele publica na Revista Civilização Brasileira (RCB) o texto “Cinema Novo e Estruturas Econômicas tradicionais” em que começa a rever as ideias anti-industriais defendidas em “A Solução Única” (1961), por exemplo. Em 1970, entrevistado por José Carlos Monteiro para a Revista de Cultura Vozes, ele já defende ser melhor "dizer pouco a muita gente do que muito a pouca gente" ressonância, talvez, das ideias perfiladas na RCB em 1966/67 com o texto “Cinema Novo e Seu Público” onde decreta o “divórcio das massas”, ou seja, o hermetismo do Cinema Novo. Na revista Filme Cultura de 1971 ele critica a posição tomada pelos realizadores do chamado Cinema do Lixo ou Cinema Marginal, que substituíram as preocupações sociais por um "pan-anarquismo ora radical ora difuso". Dahl, no entanto, saúda no mesmo artigo a conservação da atitude autoral desses cineastas e propõe a projeção de suas obras pública e gratuitamente, configurando um ato "mais

9 libertário, porque concreto, que a representação estetizante de assassinatos, violações, castrações, desvios sexuais e demais fantasias de agressividade." (DAHL, 1971:34). Vemos aqui ainda um certo apreço pelo cinema independente, configurando o caráter conciliador do autor. Referindo-se ao texto “Cinema Novo e Estruturas...”, Ismail diz que Dahl já quando lança “O bravo...” é um "teórico da conquista do mercado" (XAVIER, 2007:62) e diante dessa crise intensificada em meados dos anos 1970, Roberto Farias, diretor da Embrafilme desde 1974 e já considerado por Paulo Emílio um exemplo de cineasta que consegue intermediar "filmes artisticamente mais ambiciosos e aqueles endereçados ao público das antigas chanchadas" (GOMES, 1986:78), convida Gustavo Dahl para a superintendência de comercialização da Embrafilme. É possível sugerir que as atitudes tomadas por ele dali em diante em relação à distribuição dos filmes brasileiros condizem com o novo âmbito político e social onde se encontra. Arthur Autran alega que Dahl demonstra uma “coerência interna na teoria e na prática” (AUTRAN, 2013:325) ao publicar o famoso ensaio “Mercado é Cultura” em 1977 dizendo que “o espectador quer ver-se na tela de seus cinemas, reencontrar-se, decifrar-se” e “para que o país tenha um cinema que fale sua língua é indispensável que ele conheça o terreno onde essa linguagem vai-se exercitar. Esse terreno é realmente o seu mercado.” (DAHL, 1977:125). Durante a segunda metade dos anos 1970, fase quando Dahl trabalhou na Embrafilme, o cinema brasileiro vivenciou um apogeu, sendo um terço do mercado cinematográfico do país dominado por filmes nacionais. Era o auge de uma fase em que o cinema brasileiro conseguiu unir um certo cinema autoral a um estrondoso sucesso comercial. Já em finais dos anos 1960, alguns diretores se esforçavam, com variados graus de sucesso, em combinar “o cultural e o comercial, fazendo filmes que falassem ao povo brasileiro em termos culturalmente relevantes e que também fossem bem-sucedidos na bilheteria” (JOHNSON, 1993:40). Grande parte desse apogeu se dá não só pelo forte financiamento estatal, materializado pela Embrafilme, mas também por este mesmo órgão ficar responsável pela distribuição e comercialização dos filmes.2

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A empresa foi fundada em 1969 como um braço do Instituto Nacional de Cinema (INC), mas ganhou força nos contextos dos governos Geisel e Figueiredo. Em 1972, no entanto, durante o governo Médici, acontece o I Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira (ICICB) onde a classe apresentou ao INC o Projeto Brasileiro do Cinema (PBC), que dava os rumos para o que a Embrafilme viria a se tornar. Vemos que a aproximação com o Estado já se dá antes dos períodos convencionados pela historiografia como “distensão” e “abertura”.

10 Assim como o protagonista do filme que analisamos, Dahl busca no poder a possibilidade de colocar seus projetos em prática. Sai de uma posição radical no início dos anos 1960 e adere à estatal a fim de proteger o cinema brasileiro. Falando de um contexto ditatorial podemos tomar emprestada a ideia recentemente elaborada do “jogo de acomodações” do historiador Rodrigo Patto Sá Motta em que, ao estudar as universidade no regime militar explica a tomada de posição e define aqueles que optam pela acomodação: “Pessoas que não desejavam aderir, por não partilhar os valores dominantes, mas que também não tinham intenção de resistir frontalmente ao Estado autoritário – por medo de punição ou por achar inútil – buscaram estratégias de conviver com ele, inclusive como forma de reduzir os efeitos da repressão.” (MOTTA, 2014:310)

Como o próprio autor sugere em seu livro, tal equação pode ser empregada em outras áreas durante a ditadura e procuramos entender Gustavo Dahl como um exemplo desse jogo, atuando em dois campos a fim de defender o cinema nacional ou o “bem comum”. Se por um lado, a personagem principal se vê sem saída ao longo da narrativa, Dahl cumpre seu papel com relativo sucesso, fruto de sua capacidade de se “acomodar” e transitar entre posições opostas num mesmo campo, fosse com críticos cineastas ou militares. É bom lembrar também que o sucesso o acompanhará somente até 1978, quando sai da Embrafilme justamente por divergências com Roberto Farias e não consegue assumir a diretoria da empresa. Ele só voltaria com força ao quadros de gestão de politica cinematográfica num contexto democrático da criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) no início dos anos 2000, onde ocuparia o cargo de diretor até 2006. Faz-se necessária análises mais longas e detalhadas sobre a figura de Dahl, como se propõe a pesquisa da qual esta apresentação faz parte tendo como foco os anos 1960 e 1970 e sua produção escrita. Entretanto, com o recente recolhimento e atual processamento dos Arquivos da Embrafilme e de Gustavo Dahl junto à Cinemateca Brasileira, uma série de pesquisas podem ser iniciadas ou enriquecidas através da análise objetiva de fontes acerca da pessoa de Gustavo Dahl, ainda pouco estudado, e do período da Embrafilme que, por se enquadrar numa das conjunturas do Brasil contemporâneo mais estudadas, merece total atenção.

11 Bibliografia:

AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Tese de Doutorado em Multimeios, Unicamp, 2004. _______________. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo: Hucitec Editora, 2013 CAJUEIRO, Marcelo (ed.). Filme Cultura, n. 55, p. 9, dez. 2011. CRÍTICA. Um filme para ser ouvido. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 mai. 1969. Ilustrada. CRÍTICA. Liz Taylor e Mia Farrow em cerimônia secreta. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 mai. 1969. Ilustrada. DAHL, Gustavo. A solução única. In: Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 21.10.61 _______________. Mercado é Cultura In: Cultura, Brasília, v. VI, n. 24, pp. 125-127, jan. mar.1977. _______________.Uma reinvenção do cinema? In: Filme Cultura, v. 4, n. 18, pp. 34-39, jan./fev. 1971. _______________.Cinema Novo e seu público In: Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, v. I, n.12-12, dez. 1966 / mar. 1967. _______________.Premissas a um projeto de cinema brasileiro. In: Filme Cultura, v. 6, n. 20, pp. 50-52, maio/jun. 1972 _______________.Sobre o argumento cinematográfico: começo de conversa In: COSTA, Flávio Moreira da (org.). Cinema moderno cinema novo. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1966. FASSONI, Orlando Lopes. Os novos filmes nacionais – conclusão – muita ficção, pouco nudismo e vários projetos. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 dez. 1968. Ilustrada. G., N. “O bravo guerreiro” é o destaque numa semana de muitos policiais. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 mai. 1969. GATTI, André Piero, Distribuição e Exibição na Indústria Cinematográfica Brasileira (19932003). Tese de doutorado em Mutimeios, UNICAMP, 2005. GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

12 ________________________. Crítica de Cinema no Suplemento Literário - Volume II. São Paulo: Paz e Terra, 1982. LAURA, Ida. Um avanço do cinema novo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 18 mai. 1969. Geral. MONTEIRO, José Carlos. “Gustavo Dahl: um cineasta em dois ‘fronts’” (Entrevista) Revista de Cultura Vozes, v. 64, n. 5, pp. 37-40, jun.-jul. 1970. MOTTA, Carlos M. O Bravo Guerreiro e Adorado John. O Estado de São Paulo, São Paulo, 11 mai. 1969. Geral. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. São Paulo: Zahar, 2014. PROPAGANDA. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 mai. 1969. Ilustrada ______________. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 mai. 1969. Ilustrada.

RAMOS, F. P. (Org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro /São Paulo, Editora Record, 2000. ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004 XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

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