Gustavo Liberato - Sistema de Freios e Contrapesos, Judicialização da Política e o STF - Revista ACMP

June 29, 2017 | Autor: Gustavo Liberato | Categoria: Supremo Tribunal Federal, Separação de Poderes, Judicialization of Politics
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SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS, JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UMA TESE PARA A ATUAL POSTURA DO STF CHECKS AND BALANCES SYSTEM, JUDICIALIZATION OF POLITICS AND THE BRAZILIAN SUPREME COURT: A TESIS FOR THE ACTUAL POSITION OF THE STF Sumário: Introdução. I – A Teoria da Separação de Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos. II – O Sistema de Freios e Contrapesos e a Judicialização da Política: O caso brasileiro na atual jurisprudência do STF. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato

RESUMO O presente trabalho objetiva analisar o contexto teórico dentro do qual a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do seu papel enquanto Corte Constitucional sofre uma significativa alteração, com a opção por uma atuação positiva do tribunal, como verdadeiro “Legislador Positivo”. Para tanto examinar-se-á a relação entre a Teoria da Separação de Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos no cenário atual da Judicialização da Política, como forma de se observar uma transformação no Sistema de Freios e Contrapesos (fruto de um processo mundial) – bem como as condições necessárias para a sua ocorrência – de sorte a viabilizar esta postura do STF. A guisa de conclusão pode-se apontar que, com o aumento da apresentação de aspectos vários das relações sociais para o âmbito judiciário, notadamente após o período de redemocratização, deu-se vazão a uma demanda reprimida de acesso à justiça, fazendo com que questões novas, dinâmicas e ainda não normatizadas (e outras de tratamento legislativo deficiente, para dizer o mínimo) suscitassem uma acelerada transformação do STF, o qual – já a partir de 1988, mas especialmente após as leis que regulamentaram a ADIn, ADC e a ADPF, bem como depois da EC nº 45/04 – deixa de ser visto (e de se ver) apenas como “Órgão de Cúpula do Poder Judiciário” e passa a assumir a condição de “Corte Constitucional”. Palavras-Chave: Sistema de Freios e Contrapesos. Judicialização da Política. Supremo Tribunal Federal.

ABSTRACT The present work points to the analysis of the theoretical context in which the precedents of the brazilian Supreme Court about its role as a Constitutional Court suffers a relevant change, with the option for a positive acting of the court, as a true “Positive Legislator”. For this, it will be examined the relation between the Theory of the Separation of Powers and the Checks and Balances System in the actual scene of the Judicialization of Politics, as a way to observe a transformation in the Checks and Balances System (as the result of a global process) – as well as the necessary conditions to it – in the breeding of this position in the STF. As a conclusion, it can be pointed out that, with the increasing presentation of multiples aspects of the social relations in the courts, specially after the redemocratization, it took place a torrent of a repressed demand for access to justice, causing new, dynamic and yet non-legislated issues (and others of a deficient legislative treatment, to say the least) raised an accelerated transformation of the STF, which – already starting from 1988, but specially after the laws that regulated the ADIn, ADC and the ADPF, as well after the Constitutional Amendment nº 45/04 – leaves the role of (and its own image of) only a “„Top Organ‟ of the Judiciary Power” and assumes the role of a “Constitutional Court”. Keywords: Checks and Balances System. Judicialization of Politics. Supremo Tribunal Federal.

Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato, Advogado, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Coordenador da Especialização em Direito e Processo Constitucionais da mesma Universidade e Professor de Direito Constitucional nesta instituição. Para Referenciação: LIBERATO, Gustavo Tavares Cavalcanti. Sistema de Freios e Contrapesos, Judicialização da Política e o Supremo Tribunal Federal: Uma tese para a atual postura do STF. Revista Científica da Associação Cearense do Ministério Público – ACMP. Vol. I, nº 1. Fortaleza: ACMP-CE, junho de 2010, pp. 36-49.

Introdução Muito se tem discutido até o momento sobre a novel postura do Supremo Tribunal Federal acerca de seu papel como Corte Constitucional, notadamente no que diz respeito às interpretações adotadas em casos mais recentes, especialmente em matéria de Mandados de Injunção (vejam-se os MI‟s nº s 670-ES; 721-DF e, 758-DF, dentre outros), nos quais se perfilou uma opção por uma atuação positiva do tribunal, no sentido de determinar ora a aplicação da legislação de regência do direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada aos servidores públicos civis, ora pela aplicação das regras do Regime Geral de Previdência Social aos mesmos servidores, para fins de concessão de aposentadoria especial, casos em que as dificuldades de adaptação (especialmente nos de greve no serviço público) não tardarão a surgir e suscitar a intervenção judiciária cada vez mais específica, clarificando a atuação do STF como “Legislador Positivo”. Para analisar essa questão faz-se necessário, de início, observar a relação entre a Teoria da Separação de Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos, passando em seguida à clarificação acerca do que se deve entender por Judicialização da Política, para, ao fim, verificar como tais ideias repercutem sobre a realidade em questão.

I – A Teoria da Separação de Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos Tida por uma das características básicas do Estado de Direito (SUNDFELD, p. 38-39), a Teoria da Separação de Poderes pode ser vista como de formação ancestral, a se considerarem verdadeiras as palavras de Plutarco (2001, p. 15) sobre Teseu, o qual teria, como fundador da cidade de Atenas, estabelecido um regime democrático e esboçado uma rudimentar distinção de funções, uma vez que a ele caberia apenas a condição de “comandante na guerra” e “protetor das leis”, ao passo que, tendo dividido a Pólis ateniense em três ordens distintas (nobreza, agricultores e artífices) teria atribuído, nas palavras do autor: “To the nobility he committed the care of religion, the choice of magistrates, the teaching and dispensing of the laws, and interpretation and direction in all sacred matters [...] ” dividindo assim tarefas que antes se concentravam na figura do monarca entre si mesmo e a ordem da nobreza. É importante registrar, no entanto, que Plutarco (ca. 50-125 d.C.), de fato, passou a história não com a fama de um

historiador preciso, mas de um moralista de idealismo arrebatado, o que se evidencia com elegância nas linhas de suas “Vidas Paralelas”. Além disso, deve-se notar que Plutarco estaria a mais de nove séculos dos eventos narrados – ainda considerando-se que Teseu tenha, de fato, existido –, o que contribuiria sensivelmente para o embotamento dos fatos e sua conseqüente mistificação. Assim observa-se o marco inicial mais preciso com a figura de Aristóteles (ca. 350 a.C.), para quem, em qualquer Constituição “bem ordenada” devem existir 3 funções, sendo uma relacionada à deliberação de assuntos públicos (dir-se-ia hoje, função legislativa), outra relacionada às funções públicas – dir-se-ia, função executiva, voltada à estruturação administrativa dos serviços de interesse público, como os cargos de embaixadores, fiscais, superintendentes, etc. – e a função judiciária (1997, p. 151). Ressalte-se, contudo, que a Pólis grega àquele tempo possuía como órgão soberano a assembléia dos cidadãos, com amplas atribuições em matéria de guerra e paz, nos tratados, nas finanças, na legislação, nas obras públicas, enfim, na totalidade das atividades governamentais, tal como lembra Finley (1988, p. 31).

No período de predomínio romano da antiguidade, como diz Tabosa (1999, p. 106): “[...] era nítida a preocupação de distinguir as funções do governo e de confiá-las a órgãos diferentes”. O citado romanista assinala que a função Executiva, na realeza, fora exercida de maneira unipessoal, passando a ser confiada, na fase republicana a um colegiado de magistrados e retornando à prática unipessoal na fase imperial. No que toca à função Legislativa, destaca o autor (1999, p. 107): Eram os comícios que, tanto na realeza, quanto na república, exerciam o poder de legislar, participando do momento decisivo do processo legislativo, que é a votação. Como as funções do governo nunca foram estanques, cabia aos magistrados, na república, a iniciativa da lei, a elaboração do projeto, como ainda ocorre hoje, nas repúblicas contemporâneas. Ao senado competia, com sua auctoritas, a interferência final no processo legislativo, sancionando as leis. [...] No império, a função se distribui entre o imperador e o senado, principalmente na fase da monarquia constitucional. (grifo do original).

Sobre a função jurisdicional, Tabosa (1999, pp. 107-108) esclarece que em Roma a função Judiciária sempre esteve atrelada à função Executiva, pois, na fase monárquica, quem julgava eram o rei e seus prepostos; na república constata-se o aparecimento do pretor, o qual, no entanto, não figurava como um juiz profissional, senão como ocupante transitório de uma função pública, a qual lhe conferia atribuições

judicativas ou de nomeação de um cidadão comum que deveria julgar a controvérsia (o judex). Novamente, com a crescente concentração do poder nas mãos de um único indivíduo na fase imperial, vê-se um evidente controle do Executivo sobre o Judiciário.

Relativamente ao medievo, ainda que de forma perfunctória, faz-se imprescindível a menção à obra de Marsílio de Pádua, “O Defensor da Paz” (1324), na qual, retornando aos escritos aristotélicos, defende-se a necessidade de se distinguir, pelo menos, as atribuições de legislar e executar (na qual também se incluiria a função judicativa). Buscava ele uma construção que trabalhasse, tanto quanto possível para aquele momento histórico, uma distinção de funções entre o povo e o monarca, cabendo ao primeiro a função legislativa e ao segundo a governança geral, sendo ele vinculado à lei quanto à distribuição da justiça (função judiciária) como forma de se evitar a arbitrariedade nos julgamentos procedidos por uma só pessoa (1995, p. 111, 124-128, 130 e 133).

Com o iluminismo inglês tem-se a presença marcante da releitura da distinção de funções dos antigos e sua formulação como Teoria da Separação de Poderes, encontrando em John Locke (ca. 1688) uma primeira formulação moderna, à medida que distingue as funções (já chamadas “poderes”) legislativa, executiva e federativa (1998, p. 459, 499-500, 502-517). Em suma, para ele: “O poder legislativo é aquele que tem o direito de fixar as diretrizes de como a força da sociedade política será empregada para preservá-la e a seus membros” (1998, p. 514), sempre com vistas ao bem comum. Já o poder executivo estaria vocacionado a ser um poder permanente que cuidaria da execução das leis vigentes (1998, p. 515). Por fim encontrar-se-ia um poder correspondente ao do homem no estado de natureza, qual seja, o de firmar alianças, por Locke chamado de “federativo” (1998, p. 515-516). As ideias de Locke encontraram eco mais tarde, na conhecida formulação de Charles Louis de Secondat, Barão de Brède e de Montesquieu (ca. 1747), o qual, a pretexto de analisar a Constituição da Inglaterra, procedeu à sua leitura sobre a Teoria da Separação de Poderes, estabelecendo o marco moderno desta construção. Apontava Montesquieu a existência de três poderes, quais sejam, o legislativo, o executivo e o judiciário (1996, p. 167-168). Deve-se destacar, de imediato, que Montesquieu, afastando-se de Locke, imputa o “poder federativo” deste às atribuições de seu poder executivo, dando azo à ascensão do poder judiciário à tripartição de funções. Além disso, para Montesquieu este “poder de julgar” não poderia

ser exercido por um senado permanente, mas por pessoas tiradas do seio do povo, em certos momentos do ano e apenas para o período de tempo necessário para o desempenho de suas funções (1996, p. 169). Procurava ele fortalecer o respeito (e o temor) pela magistratura, a qual não estaria ligada nem a certo estado, nem a certa profissão, fazendo-se invisível e nulo, politicamente (1996, p. 169 e 172). Nesta mesma linha, ele caracterizará a judicatura como sendo apenas: “[...] a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor” (1996, p. 175).

Eis aqui um ponto crucial das leituras que são feitas sobre Montesquieu, uma vez que, como homem de seu tempo, não se poderia exigir que antecipasse – em um estado absolutista como a França do século XVIII – a dinâmica política da interação das funções estatais nos séculos vindouros. Contudo, o que era avanço no século XVIII, passou a retrocesso no século XX. Se o juiz nulo politicamente e desprovido de anima (de vontade própria) era “garantia de justiça” na transição do Estado absolutista para o Estado liberal, pela aplicação linear da lei posta, nos séculos seguintes (e especialmente a partir da segunda metade do século XX) essa ideologia foi posta a duras provas, conducentes a uma reflexão sobre o papel dos juízes e, particularmente das Cortes Constitucionais, já agora sem os arroubos de fins do século XIX e início do século XX, marcados que foram pela Escola do Direito Livre e o temor da “ditadura dos juízes”. Destaque-se, ainda, que Montesquieu, dando coerente seguimento à sua máxima de que “quem tem o poder é levado a dele abusar”, devendo o poder conter o poder (1996, p. 166-167) já desenhara um sistema interferências recíprocas entre os poderes – perfeitamente similar, em sua estruturação, ao sistema de freios e contrapesos que seria apresentado pelos federalistas americanos tempos mais tarde – no qual se encontram as interferências entre legislativo, executivo e judiciário, sendo este último, em razão de sua inércia, pouco lembrado pelo autor (1996, p. 173-178) como forma de viabilizar um controle recíproco tendente ao equilíbrio e harmonia entre poderes. Com efeito, diz ele: “Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente” (196, p. 176). Contudo, vários intérpretes revolucionários conferiram uma interpretação deficiente à teoria de Montesquieu, apresentando-a como consagradora de uma Separação Estanque de Poderes, impedindo qualquer sorte de controle ou interferência entre os poderes (HAMON, TROPER, BURDEAU, 2005, p.

90-91), o que fez grassar a tese de que os federalistas americanos seriam os “inventores” do Sistema de Freios e Contrapesos.

Na verdade, os próprios americanos, a começar por James Madison (1993, p. 332-334 e 338) reconhecem a iniciativa de Montesquieu sobre o tema, dando-lhe esclarecimento e desenvolvimento apropriados, à medida que explicitam seu entendimento e aprofundam sua preocupação inicial com uma perspectiva realista e pragmática da natureza humana. Com efeito, Madison (1993, p. 349 e 350) expõe: A que expediente, então, devemos finalmente recorrer para manter na prática a necessária divisão do poder entre os vários braços do governo, como estabelecido na Constituição? A única resposta que pode ser dada é que, uma vez que todas essas medidas externas se mostram inadequadas, deve-se sanar a falha arquitetando de tal modo a estrutura interna do governo que suas várias partes constituintes possam ser, por suas relações mútuas, instrumentos para a manutenção umas das outras em seus devidos lugares.

Após apresentar as razões da necessidade do Sistema de Freios e Contrapesos, Madison (1993, p. 350) pondera com acerto sobre as possíveis alegações de aviltamento da natureza humana decorrente do constante estado de vigilância deflagrado por este sistema: A grande garantia contra uma concentração gradual dos vários poderes no mesmo braço, porém, consiste em dar aos que administram cada poder os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir aos abusos dos outros. As medidas de defesa devem, neste caso como em todos os outros, ser proporcionais ao perigo de ataque. A ambição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo. Talvez não seja lisonjeiro para a natureza humana considerar que tais estratagemas poderiam ser necessários para o controle dos abusos do governo. Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos. Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: é preciso capacitar o governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a se controlar a si próprio. A dependência para com o povo é, sem dúvida, o controle primordial sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade que precauções auxiliares são necessárias.

Vê-se, então, a gênese do Sistema de Freios e Contrapesos enquanto garantia do (e contra o) mundo político a partir da Teoria da Separação de Poderes. Mas como esse Sistema se relaciona com a Judicialização da Política? É o que se procura esclarecer a seguir.

II – O Sistema de Freios e Contrapesos e a Judicialização da Política: O caso brasileiro na atual jurisprudência do STF Como grande contribuição americana à questão do Sistema de Freios e Contrapesos deve-se registrar a apresentação da Judicial Review (especialmente no tocante ao Controle de Constitucionalidade) como forma de controle a ser exercido pelo Judiciário sobre os outros poderes, particularmente o legislativo. De fato, Alexander Hamilton (1993, p. 481) acentua a relação entre eleitor e eleito perante a Constituição: É muito mais sensato supor que os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre o povo e o legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu poder. A interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais. Uma Constituição é de fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto, definir seu significado tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo legislativo. Caso ocorra uma divergência irreconciliável entre ambos, aquele que tem maior obrigatoriedade e validade deve ser preferido. Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção do povo à intenção de seus agentes.

Com isso em vistas devem ser observadas as profundas alterações nas realidades social, política e econômica que se verificam ao redor do mundo na passagem do século XVIII ao século XX, particularmente após o segundo pós-guerra, quando a ampla difusão do Welfare State trouxe uma série de questões que levaram o EstadoAdministrador a superar as funções tradicionais de vigilância e segurança, passando-se ao “Estado-Providência”, vinculado que se faz à promoção de políticas públicas de pleno emprego, promoção e assistência social, como lembra Cappelletti (1993, p. 41). Como consequência, o Estado-Legislador encerrou-se em tarefas tão variadas como numerosas, transferindo parcela significativa de sua produção normativa para uma burocracia especializada, limitando-se às disputas político-partidárias e de representação local e regional, como no caso brasileiro (CAPPELLETTI, 1993, p. 43). Esse fato, com simetria em vários países do mundo, despertou a questão do papel do poder judiciário, notadamente das Cortes Constitucionais, acerca da perda de sua influência no controle dos demais poderes, à medida que se restringissem à postura de “juiz boca da lei” de Montesquieu. Assim, aponta Cappelletti (1993, p. 46-47): Mas a dura realidade da história moderna logo demonstrou que os tribunais – tanto que confrontados pelas duas formas acima mencionadas do gigantismo estatal, o legislativo e o administrativo – não podem fugir de uma inflexível alternativa. Eles devem de fato escolher uma das duas possibilidades seguintes: a) permanecer fiéis, com pertinácia, à concepção tradicional, tipicamente do século XIX, dos limites da função jurisdicional, ou b) elevar-

se ao nível dos outros poderes, tornar-se enfim o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador.

O citado autor não tem dúvidas da escolha a ser feita, especialmente ao considerar os riscos do “Ativismo Judicial” perante os exemplos históricos de danos decorrentes de suas omissões (CAPPELLETTI, 1993, p. 53-54). Assim, aponta: A verdade é que apenas um sistema equilibrado de controles recíprocos pode, sem perigo para a liberdade, fazer coexistir um legislativo forte, com um executivo forte e um judiciário forte. Justamente este equilíbrio de forças, de contrapesos e controles recíprocos, constitui o grande segredo do inegável sucesso do sistema constitucional americano.

Neste contexto ganha relevo destacar o papel da “Judicialização da Política”. Por “Judicialização da Política” pode-se adotar a definição de Tate, amparado em Vallinder (1995, p. 28): For clarity and consistency, I follow Vallinder‟s conceptual survey of the judicialization of politics (chap. 2 of this volume), which suggests two core meanings for the term: 1. the process by which courts and judges come to make or increasingly to dominate the making of public policies that had previously been made (or it is widely believed, ought to be made) by other governmental agencies, especially legislatures and executives, and 2. the process by which nonjudicial negotiating and decision-making forums come to be dominated by quasi-judicial (legalistic) rules and procedures.

Assim, parece ter curso, segundo Vallinder (1995, p. 5), uma notável expansão global do poder judicial, tanto para o bem como para o mal vindo a se tornar uma das mais significativas tendências governamentais de fins do século XX e começo do século XXI. Para que tal processo tenha lugar faz-se necessária a presença de alguns elementos configuradores, quais sejam, conforme Tate (1995, p. 28-33): I – Um Regime Democrático; II – A Separação de Poderes; III – Uma Política de Proteção de Direitos Fundamentais; IV – Grupos de Interesse com Acesso aos Tribunais; V – Acesso ao Judiciário pela Oposição Política; VI – Inefetividade das Instituições Majoritárias; VII – A Percepção das Instâncias Formadoras de Opinião acerca das Limitações das Instituições de Produção de Políticas Públicas perante o Judiciário; VIII – A Delegação (voluntária ou involuntária) das Instituições Majoritárias para o Judiciário quanto à tomada de Decisões.

É exatamente nesta linha de consideração que se insere a questão atinente à mudança de postura do STF na utilização do instrumento do Mandado de Injunção, nos casos já citados. Com efeito, no caso do MI nº 670-ES, versando sobre o direito de

greve dos servidores públicos civis, constatam-se a presença de todos estes elementos, inclusive a delegação voluntária do poder legislativo por via tácita, ao remanescer inerte por mais de 18 anos na regulamentação da matéria, em visível afronta aos direitos sociais destes servidores, o que parece ter conduzido a Corte Constitucional brasileira à adoção de decisão “manipulativa-aditiva”, de forma similar ao que ocorre na Corte Constitucional Italiana. De fato, diz Oscar Vilhena Vieira sobre a atuação deste Tribunal Constitucional (2002, p. 59): Encarregado de zelar pela eficácia da Constituição, o Tribunal passou a decidir de forma inovadora, emitindo sentenças „normativas‟, a partir da manipulação de textos legais, buscando assegurar efetividade àqueles direitos entendidos como meramente programáticos. Alterando o paradigma kelseniano, pelo qual aos tribunais constitucionais incumbiria a função de legisladores negativos, o Tribunal italiano iniciou a produzir decisões positivas, que inovaram a ordem jurídica.

Explanando o procedimento deste tribunal, Vieira (2002, p. 59) registra: Este modelo de atuação positiva do tribunal aparece de forma mais flagrante nos casos de omissão legislativa. Nesses casos o indivíduo busca, a partir da prestação jurisdicional, dar eficácia – no sentido material – a um direito constitucional, que por falta de complementação ou regulamentação infraconstitucional fica sem efetividade real. Não havendo determinação constitucional clara autorizando o Tribunal a exercer esse poder quase legislativo, a jurisprudência do Tribunal foi encontrar no art. 700 do Código de Processo Civil, um dispositivo que autoriza o juiz a tomar medidas de urgência para garantir provisoriamente direitos que se encontrem em risco iminente e irreparável. Estas sentenças passaram a ser chamadas de manipulativas-aditivas e demonstram uma opção ativa do Tribunal na procura de instrumentos jurídicos capazes de dar maior efetividade ao texto constitucional.

Registre-se ainda que, de forma seminal, o STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADPF nº 4-DF), já firmou (em votação dividida [6 a 5]), inclusive, a possibilidade de utilização de ADPF para o caso de omissão legislativa, dada a ineficácia da decisão na ADIn por Omissão (particularmente quando a omissão advenha de Poder – v. art. 103, § 2º, CF), pelo que não se vulneraria o princípio da subsidiariedade da ADPF, em razão da eficácia diversa e mais intensa das decisões na Arguição (v. arts. 4º, § 1º e 10, caput e § 3º, da Lei 9882/99). Sobre a questão, vejam-se Barroso (2006, p. 270-271) e Paulo e Alexandrino (2009, p. 137).

Conclusão

Como visto, com a abertura democrática consolidada pela Constituição de 1988, tem-se, no dizer de Vianna, Carvalho, Melo e Burgos (1999, p. 43) a descoberta, por parte da sociedade civil, da obra dos constituintes de 1988, acarretando assim a vazão de uma demanda represada de acesso à justiça que viu no poder judiciário um novo espaço público para a discussão da realidade social, gerando o processo de Judicialização da Política dantes mencionado. Neste sentido, observou-se que o STF, ao mudar seu entendimento sobre o seu papel no Mandado de Injunção deu marco à consolidação deste processo de Judicialização da Política, o qual pressupôs um “rebalanceamento” do Sistema de Freios e Contrapesos, como forma de sua concretização. Conclui-se, destarte, que o processo de Judicialização da Política no Brasil tem simetria com as experiências internacionais, apresentando as características peculiares ao tema e viabilizando a releitura do papel do STF como Corte Constitucional a partir da transformação do Sistema de Freios e Contrapesos no sentido de sua adaptação à realidade sócio-político-econômica do século XXI.

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