HABERMAS E BOURDIEU: A ESFERA PÚBLICA COMO CAMPO DE LUTAS

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Revista Habitus – IFCS/UFRJ

Vol. 9 – N. 2 – Ano 2011

HABERMAS E BOURDIEU: A ESFERA PÚBLICA COMO CAMPO DE LUTAS Bruno Lucas Saliba de Paula* Eduardo Henrique Carvalho Ferreira**

Cite este artigo: PAULA, Bruno Lucas Saliba de; FERREIRA, Eduardo Henrique Carvalho. Habermas e Bourdieu: a esfera pública como campo de lutas. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais - IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 9, n.2 , p. 133 - 140, dezembro. 2011. Semestral. Disponível em: www.habitus.ifcs.ufrj.br. Acesso em: 30 de dezembro de. 2011. Resumo: O objetivo deste artigo é realizar um diálogo entre os pensamento de Jürgen Habermas e Pierre Bourdieu, de modo a identificar pontos de afinidade e de conflito entre as elaborações teóricas de ambos quanto à questão da produção de consensos através da deliberação na esfera pública. Legitimadas pela racionalidade universal habermasiana, essas decisões apareceriam para Bourdieu como resultantes de lutas simbólicas pelo monopólio das classificações que compõem e colaboram para a reprodução do mundo social. Palavras-chave: Habermas, esfera pública, Teoria da Ação Comunicativa, democracia deliberativa, Bourdieu, lutas simbólicas, espaço social

1. Introdução

N

osso trabalho pretende discutir as idéias do filósofo alemão Jürgen Habermas a respeito da democracia deliberativa sob a luz do pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Para isso, nos debruçamos não só sobre os conceitos-chave da teoria

política de Habermas, como também sobre suas idéias expostas na obra Teoria da Ação Comunicativa, as quais julgamos imprescindíveis para o entendimento da democracia deliberativa. Dessa obra extraímos alguns conceitos como o de razão instrumental, razão comunicativa, agir estratégico e agir comunicativo. Todos eles se relacionam com os que nós selecionamos de sua teoria política: mundo sistêmico, mundo da vida, consenso, esfera pública, etc. Do pensamento de Bourdieu, trabalhamos as idéias de espaço social, lutas simbólicas, campo, habitus, e dos capitais cultural, econômico, social e simbólico. Na primeira parte do estudo, apresentamos as idéias de Habermas. Seguindo os passos do autor, primeiramente caracterizamos a modernidade, dividindo-a em mundo sistêmico – associado ao agir estratégico e à racionalidade instrumental – e em mundo da vida – relacionado ao agir comunicativo e à racionalidade comunicativa. Em seguida mostramos como ele pensa a formação de

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consensos nas esferas públicas de discussão. Na segunda parte, expomos sucintamente as idéias de Bourdieu, ao mesmo tempo em que explicitamos os possíveis pontos de contato entre as teorias dos dois autores. Comparamos a colonização do mundo da vida pelas estruturas sistêmicas presente em Habermas com a observação de Bourdieu de que os campos econômico e do poder estão a se expandir e a invadir as áreas de atuação dos outros campos. Após essa aproximação, tentamos fazer um paralelo entre a concepção de racionalidade do filósofo alemão e o que deduzimos que Bourdieu pensaria a respeito do assunto tendo em vista seu programa metodológico para uma “sociologia reflexiva”. Por fim, buscamos medir o impacto que algumas idéias de Bourdieu (como capital cultural, simbólico e habitus) têm sobre os processos democráticos de tomada de decisão. A discussão da teoria política habermasiana a partir da sociologia de Bourdieu é importante, principalmente, para relativizarmos o caráter de universalidade atribuído por Habermas à racionalidade. Ao raciocinarmos bourdiesianamente, percebemos que não existe uma racionalidade inata, única e universal, mas sim várias racionalidades, as quais variam conforme a posição que o indivíduo que a detém ocupa no espaço social. Essa abordagem implica numa certa desconfiança em relação à racionalidade comunicativa e, conseqüentemente, numa visão crítica dos consensos produzidos nos fóruns de discussão da vida pública.

2. Da “força dos argumentos” aos “argumentos da força” A teoria de Jürgen Habermas sobre a razão se diferencia tanto da produzida pelo positivismo iluminista quanto da concebida pela primeira geração de filósofos frankfurtianos, formuladores da Teoria Crítica. Como herdeiro dessa tradição, já que fora orientado por Theodor Adorno, Habermas continuou a discutir o assunto. Entretanto, sua abordagem se baseia na ruptura com alguns elementos – como o pessimismo e a descrença na modernidade – e na introdução de um novo tipo de razão, a comunicativa, motor dos consensos que viabilizariam a sua teoria procedimental da democracia. Segundo Habermas, o mundo moderno ocidental é marcado por um processo de diferenciação de duas estruturas de racionalidade: a sistêmica e o mundo da vida. A primeira está associada à racionalidade instrumental, cujas ações são orientadas para o êxito, manifestando a existência de procedimentos técnicos de ação que têm em vista a maximização da eficiência dessas intervenções no contexto em que são aplicadas. O mundo da vida, por sua vez, está vinculado à racionalidade comunicativa. O resultado desse processo não consistiu em uma dupla forma de diferenciação, tal como supõem as teorias dualistas da diferenciação entre Estado e sociedade, mas sim numa forma múltipla de diferenciação. De um lado, surgem estruturas sistêmicas econômicas e administrativas que não só se diferenciam do mundo da vida, mas se diferenciam entre si. (AVRITZER, 1993:28)

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O subsistema econômico, marcado pela lógica estratégica do intercâmbio, faz-se presente na economia, perpassando as leis do mercado através do dinheiro; já o subsistema administrativo, marcado pela lógica estratégica do poder, pode ser observado nas relações burocráticas. No mundo da vida, por outro lado, encontram-se as relações estabelecidas entre os atores sociais mediadas pela racionalidade comunicativa, que visa ao entendimento por meio da linguagem verbal. Ele é constituído pela cultura e pela língua, as quais transmitem, através da fala, as tradições e os valores. HABERMAS (1987:367) chama de [...] ações comunicativas as situações em que os planos de ação dos atores envolvidos não se orientam através de um cálculo egocêntrico de resultados, mas sim por atos de entendimento. Na ação comunicativa, os participantes não se orientam prioritariamente para o próprio êxito; perseguem, antes, seus fins individuais sob a condição de que seus planos de ação possam harmonizar-se com uma base de definição comum da situação.

As ações comunicativas racionais estão ao alcance de todos e possibilitam o consenso através do processo de substituição, por parte dos agentes, de sua subjetividade e pontos de vista individuais por convicções comunitárias e objetivas. Para Habermas, esta racionalidade diz respeito mais à maneira com que os sujeitos dotados de linguagem e ação utilizam o conhecimento, ou seja, ao uso de falas argumentativas, do que ao conhecimento propriamente dito ou seu processo de aquisição, o que confere o caráter de universalidade à racionalidade. Essa visão multifacetada da sociedade apresenta a possibilidade de que os subsistemas econômico e administrativo penetrem no mundo da vida, o que resulta na corrupção de meios que antes não eram regidos pelo dinheiro e pelo poder. Esse processo, por Habermas denominado “colonização do mundo da vida”, apresenta um risco para a efetividade dos processos democráticos de tomada de decisão via entendimento mútuo e se enquadraria naquilo que o autor considera, na Teoria da Ação Comunicativa, como uma ação estratégica, ou seja, uma ação social orientada para o êxito individual. Deve-se ressaltar, entretanto, que as ações estratégicas, assim como as guiadas para o entendimento, se valem do mundo da vida, pois dependem das relações simbólicas presentes nesse último. A democracia se funda como uma tática defensiva à colonização mundo da vida. Isso se manifesta, por exemplo, quando as estruturas interativas do mundo da vida se organizam em movimentos sociais e em fóruns de deliberação coletiva. A esfera pública é concebida pelo filósofo alemão como local de constantes debates, em que os agentes fazem uso de seu potencial argumentativo por meio da utilização de suas habilidades comunicativas não em busca de liberdades individuais, mas sim de um “uso público da razão”, capaz de gerar acordos políticos que virão a ser implementados no subsistema administrativo. Nesse sentido, enquanto o princípio legitimador da democracia procedimental emana do consenso produzido nas redes de comunicação existentes na esfera pública, o das teorias competitivas provém da regra da maioria.

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*** Pierre Bourdieu pensa a sociedade a partir do conceito de espaço social, por ele explicado a partir de uma comparação com o espaço geográfico. Para Bourdieu, quanto maior a proximidade entre dois grupos ou instituições no espaço social, maior o grau de semelhança de suas propriedades. Esse espaço está dividido no que o autor chama de “campos”, subdivisões autônomas com limites bem definidos de atuação na produção simbólica, ainda que, às vezes, haja interpenetração e interferência de um campo sobre outro. Como essa relação de forças é desigual, um campo passa a influenciar o outro, a ponto de impor sua lógica de funcionamento. É o que acontece com o campo econômico e o do poder, que vêm invadindo outras esferas. Exemplificam isso a indústria cultural e as pesquisas científicas encomendadas por grandes empresas para legitimar ações que possuem certo grau de nocividade. No primeiro caso, esses dois campos tornados hegemônicos invadem o da arte e, no segundo, eles penetram o da ciência. Nesse ponto, há uma sutil semelhança entre as visões de Bourdieu e Habermas em relação à modernidade, não obstante os pressupostos teóricos utilizados por cada um tenham sido diferentes. Para o filósofo alemão, a modernidade é caracterizada pela colonização do mundo da vida pelas estruturas sistêmicas. A diferença surge na medida em que, para Habermas, esse processo seria conseqüência do antagonismo entre a razão comunicativa e a razão instrumental, enquanto que, para Bourdieu, o crescimento de alguns campos em detrimento de outros seria o resultado de lutas simbólicas, que correspondem às disputas pelo monopólio da dominação legítima, pela produção do senso comum. Lutas que nunca seriam baseadas em um princípio justo, já que os agentes lançam mão do capital simbólico que adquiriram em lutas anteriores, tais como títulos escolares, de nobreza, de pertencimento a uma instituição, etc. Essas lutas simbólicas, tanto as lutas individuais da existência cotidiana como as lutas coletivas e organizadas da vida política, têm uma lógica específica [...]. As relações de força tendem a reproduzir e reforçar as relações de força que constituem a estrutura do espaço social. Em termos mais concretos, a legitimação da ordem social não é produto, como alguns acreditam, de uma ação deliberadamente orientada de propaganda ou de imposição simbólica; ela resulta do fato de que os agentes aplicam às estruturas objetivas do mundo social estruturas de percepção e apreciação que são provenientes destas estruturas objetivas e tendem por isso a perceberem por isso o mundo como evidente. (BOURDIEU, 1990:163)

Antes de prosseguir, devemos fazer algumas observações sobre o já mencionado postulado habermasiano de que a racionalidade comunicativa se refere menos ao conhecimento ou a sua aquisição do que à forma com que os sujeitos dotados de linguagem e ação fazem uso do conhecimento (HABERMAS, 1987:24). Acreditamos que sua escolha teórica não é necessariamente a única maneira fértil de se compreender a racionalidade, mas sim fruto de um arbitrário cultural. Por isso, preferimos pensar essa racionalidade de modo relativista – ou relacional, ao invés de

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substancialista, como diria BOURDIEU (2007:16) –, submetendo-a à posição que se ocupa no espaço social e ao habitus que lhe corresponde. [...] Dado que nós construímos o espaço social, sabemos que esses pontos de vista são, como a própria palavra diz, visões tomadas a partir de um ponto, isto é, a partir de uma determinada posição no espaço social. E sabemos também que haverá pontos de vista diferentes, e mesmo antagônicos, já que os pontos de vista dependem do ponto a partir do qual são tomados, já que a visão que cada agente tem do espaço depende de sua posição nesse espaço. (BOURDIEU, 1990:157)

Assim, é possível não somente contrastar o pensamento dos dois autores a partir da abordagem tornada relevante por Habermas (a forma como os sujeitos fazem uso do conhecimento), como também pela abordagem pouco desenvolvida por ele (a relação dos sujeitos com o conhecimento e o processo de aquisição do mesmo). Pouco importa, para Habermas, a maneira como o conhecimento é transmitido, pois seu pensamento concebe a racionalidade como um conceito descolado da história e indissociável da natureza humana. Podemos chamar de racionais os homens e as mulheres, as crianças e os adultos, os ministros e os cobradores de ônibus, mas não os peixes, as árvores, as montanhas, as ruas e as cadeiras. Podemos chamar de irracionais as desculpas, os atrasos, as intervenções cirúrgicas, as declarações de guerra, as conciliações, os planos de construção ou as resoluções tomadas em uma reunião, mas não o mau tempo, um acidente, um prêmio de loteria ou uma doença. (HABERMAS, 1987:24)

Bourdieu, ao contrário, se concentra no estudo da aquisição e da reprodução do conhecimento e, com base em seus pressupostos teóricos e em suas estratégias metodológicas, não tomaria a racionalidade como algo dado. Contrário a qualquer tipo de “fetichismo da razão” ou “fanatismo do universal” (BOURDIEU, 2001:95), sua busca seria, assim como fez com os demais objetos de estudo que abordou ao longo de sua trajetória, por uma desnaturalização e por uma ruptura com a idéia de racionalidade universal, tomando-a como um produto de lutas históricas nas quais os agentes se envolvem de acordo com sua posição ocupada no espaço social e com as estruturas mentais através das quais apreendem esse espaço. Logo, segundo BOURDIEU (2001), as situações ideais de discurso, tais como descritas por Habermas, não seriam reguladas por uma milagrosa “ética comunicacional” (e pela racionalidade a ela associada), cuja concepção nada mais seria que uma reformulação do princípio kantiano da universalidade do juízo moral. Da mesma forma como refuta o universalismo estético e um suposto uso transcendental da sensibilidade, não haveria, para Bourdieu, moralidade ou racionalidade comuns a todos os indivíduos. Em vez disso, esses atributos seriam sempre relativos a determinados lugares sociais e situações históricas. Nesse sentido, a simples menção das condições sociais de emergência dos universos onde se engendra o universal impede a sujeição ao otimismo ingenuamente universalista da primeira Aufklärung: o advento da

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razão é inseparável da autonomização progressiva de microcosmos sociais fundados no privilégio, onde aos poucos foram sendo inventados modos de pensamento e de ação teoricamente universais mas de fato monopolizados por alguns. (BOURDIEU, 2001:95)

Todas essas considerações, então, parecem inviabilizar a possibilidade de uma produção racional de ações voltadas para o entendimento, como pretendia Habermas. Empreitada que se torna ainda mais complexa devido, sobretudo, a dois motivos. O primeiro deles seria a distribuição desigual do capital cultural, que, principalmente em razão de seu aspecto lingüístico, resultaria em diferentes performances argumentativas dos sujeitos envolvidos no processo de deliberação, gerando a distinção de alguns. O segundo seria a iniqüidade da distribuição de capital simbólico, que, além de conferir um status maior às visões dos grupos dominantes, facilitaria a acumulação de capital social. Este, por sua vez, seria utilizado para mobilização de uma rede durável de relações, da qual esses grupos se valeriam para obter benefícios e favores na esfera pública. Esses fatores acabariam por legitimar os esquemas de classificações das classes dominantes e, conseqüentemente, suas demandas políticas, pois não haveria uma distinção clara nesse discurso entre uma fala ilocucionária e uma perlocucionária. Devido à veracidade que se supõe entre os participantes da interação, o conteúdo imperativo e estratégico das falas seria omitido. Além disso, essas percepções, estruturadas a partir da reprodução social operada pela cultura dominante, conduziriam os agentes a uma desqualificação do saber prático produzido por ações associadas às classes dominadas e, dessa forma, negariam a racionalidade comunicativa como um atributo universal. Assim, esvaziar-se-iam a esfera pública e os fóruns deliberativos para se tornarem meros palcos onde são representadas (não no sentido político, mas no teatral do termo, já que as classes dominantes sempre se impõem), em menor escala, as lutas simbólicas da sociedade.

3. Conclusão Pensar as condições em que se desenrola o jogo político é essencial para compreensão da modernidade e para almejar um convívio mais harmonioso entre os agentes sociais. Esse foi o desafio aceito por Habermas, ciente da necessidade de uma síntese teórica criativa que tivesse afinidade com a filosofia contemporânea e que confrontasse as teorias políticas modernas. A política caminhava para o fortalecimento crescente de teorias elitistas liberais que haviam abandonado os pressupostos republicanos, tidos agora como utópicos, já que eles não mais correspondiam às condições sociais das sociedades complexas. Seu destino estava selado a um desdobramento histórico do pensamento político. Para elaboração da teoria procedimental da democracia, Habermas não somente se apoiou no paradigma da intersubjetividade dos filósofos lingüistas, como também recorreu à influência da sociologia clássica, à Teoria Crítica, às teorias sistêmicas de Parsons e à tradição hermenêutica, oferecendo assim uma espécie de argumentação totalizadora. Dessa forma, Habermas consegue, através de um amálgama de diversas correntes do pensamento social, dar um novo impulso à necessidade da participação dos agentes sociais nos processos de

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deliberação como única e intransferível fonte de legitimação do poder. Na tentativa de discutir brechas que todas as teorias, mesmo as mais sufocantes, possuem, tomamos como objetivo neste trabalho a busca por uma associação entre idéias que a princípio se mostram distantes e sem ligação alguma, já que se baseiam em correntes de pensamento um tanto distintas. Durante nossas discussões, ao pensarmos nas possíveis intersecções entre os pensamentos dos dois autores, uma pergunta nos era onipresente e jamais falhava em vir à tona em momentos críticos: “sim, o entendimento será produzido entre os agentes ao agirem comunicativamente, mas de que forma se dá esse processo?”. Os agentes jamais interagem num vácuo social, consideração que nos leva a pensar em outras dimensões que durante a ação não se manifestam via linguagem verbal, permanecendo, até mesmo, invisíveis durante determinadas ações. Bastante potente, devido aos traços que carrega de diversas tradições da filosofia, da sociologia e da antropologia, o pensamento de Bourdieu se nos fez muito útil tanto por problematizar quanto por contribuir para nossas indagações. Revelounos que, longe de detalhes insignificantes, a disparidade na distribuição de capital simbólico, as relações de poder presentes nas lutas simbólicas e, principalmente, a correspondência entre os pontos de vista utilizados por cada agente durante a argumentação e sua posição no espaço social, constituem relevantes fatores dos quais não se pode prescindir a fim de alcançar uma compreensão mais efetiva dos processos de deliberação. Caso contrário, corre-se o risco de incorrer no erro, cometido por Habermas, de submeter as relações sociais a uma dupla redução ou, o que dá no mesmo, a uma dupla despolitização, fazendo com que a política se desloque, sem dar disso impressão, para o terreno da ética: ele [Habermas] reduz as relações de força políticas a relações de comunicação [...], isto é, a relações de “diálogo” donde ele esvaziou praticamente as relações de força que aí se realizam sob uma forma transfigurada. A análise de essência da linguagem, e da “intercompreensão” entendida como telos que lhe seria logicamente imanente, se realiza assim numa teoria dita “sociológica” da comunicação “não violenta” [...] e numa “ética comunicativa” que [...] não tem mais nada a ver com o que descobre uma sociologia das relações de poder simbólico. (BOURDIEU, 2001:81)

A simples percepção do espaço público real, com suas condições desiguais – que variam de acordo com o sexo, a instrução e os rendimentos – de acesso ao campo político, é suficiente, conforme Bourdieu (2001:82), para invalidar a “ilusão epistemocêntrica” que se ampara na possível existência de interesses universalizáveis capazes de promover consensos racionais. É verdade que o espaço social, ou melhor, o homem que o produz, parece sempre um refém com os membros atados a uma estrutura de poder inerente às representações que elabora do mundo. Portanto, as respostas que Bourdieu oferece aos fenômenos sociais soam, às vezes, como um lugar comum e seguro que repetidamente recorre no percurso de sua obra. Mas, ainda assim, essa ordem social que aparece como inabalável em seu pensamento, sendo reproduzida até mesmo em tentativas de ruptura, é incontornável para se pensar as relações que os agentes

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travam entre si, estando diretamente interligadas com o esquema habermasiano de análise das situações das ações e das orientações das ações. É uma pena não ter havido um debate mais intenso entre os autores, que foram contemporâneos, o qual certamente resultaria numa colaboração intelectual entre duas importantes elaborações teóricas do século XX. Do diálogo entre eles poderia ter emanado, quiçá, uma resposta positiva que defendesse a sociedade civil do que Habermas chama de penetração das estruturas sistêmicas no mundo da vida e do que Bourdieu identificou como a expansão do campo do poder e do campo econômico sobre a lógica de funcionamento de outros campos.

NOTAS * Aluno do último semestre da graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail para contato: [email protected] ** Recém-graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail para contato: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996. AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 2007. BOURDIEU, Pierre; NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1987. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Lua Nova, 2000. MATTOS, Patrícia Castro. As visões de Weber e Habermas sobre direito e política. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2002.

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