Haiti: Construção de um Estado Soberano Latino-Americano

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RIPE | Relações Internacionais para Educadores issn: 2318-9398 | v.1, 2014| p. 249-263

ANEXO I Haiti: Construção de um Estado Soberano Latino-Americano Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi1

Resumo O presente trabalho procura visualizar a inserção do Haiti como Estadonação no sistema internacional e os impactos externos atuais na estrutura política e social. Primeiramente, o trabalho analisa como o Haiti se configurou como a primeira colônia latino-americana a se transformar em um Estado independente e se relacionou com o exterior, após mudanças sociais drásticas. Uma vez introduzidas tais noções sobre a formação do Estado e da sociedade haitiana, procura-se compreender o Haiti contemporâneo. Também são exploradas as conhecidas ditaduras militares de 1957 a 1986 e as suas consequências políticas e sociais. O impacto das Missões da ONU também é explorado, com o propósito de determinar sua importância na construção do Estado haitiano, principalmente após o terremoto em 2010. Por fim, procura-se averiguar o processo de desenvolvimento recente do Haiti em um período de globalização intensa, com o propósito de desmistificar certas premissas sobre a situação atual do país. Palavras-Chave: Haiti; Construçao de Estado; América Latina; América Central.

1 Graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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O Haiti é um importante exemplo latino-americano, principalmente no que concerne à cultura e à sua formação histórica de dominação e luta. A mistificação de sua história gera um senso comum que deprecia a sua formação histórica e cultural. Conhecido como “África latino-americana” pela grande mídia, não pelo enraizamento da cultura africana no país, mas sim pela “incapacidade”, política e econômica, de gestão do Estado. Dessa forma, é interessante abordar o Haiti de um ponto de vista das Relações Internacionais e compreender assim sua estruturação como Estado-nação e as recentes intervenções no país. Cabe destacar que sua formação como uma sociedade distinta das demais em seu tempo acaba por envolver peculiaridades e desafios que permanecem até hoje, como é o caso dos altos índices de pobreza e da presença humanitária, que por mais salvacionista que sejam seus discursos, não consegue reestruturar as instituições haitianas, mesmo após o abalo sísmico de 2010. Situado no Caribe ocidental, o país corresponde a um terço da ilha de Hispaniola, entre o Mar do Caribe e o Oceano Atlântico, a oeste da República Dominicana. O terreno acidentado e montanhoso acaba tendo uma forte concentração demográfica em suas poucas cidades, principalmente a capital Porto Príncipe. Todavia, cabe perceber que de uma população de quase 10 milhões, cuja idade média é de 22 anos, somente 52% é urbana (CIA, 2013), indicando assim um país agrário com cidades de alta densidade urbana. Com um PIB de 13 bilhões (2012), a República do Haiti acaba localizando-se entre os países com a menor renda per capita. A ilha era povoada por diferentes tribos indígenas que dividiam os territórios até a chegada de Cristovão Colombo em 1492, o qual se iniciou o típico processo colonial na agora chamada ilha Hispaniola. Por um certo tempo, a ilha chegou a ser a maior produtora de cana-de-açúcar do mundo, cujo trabalho escravo africano foi intensivamente usado. Sua alta produtividade representou um fator decisivo para os interesses das outras metrópoles na ilha. Cabe ressaltar que a divisão da ilha ocorreu devido aos acordos de 1697 entre França e Espanha após a Guerra dos Nove Anos, no qual a França obteve o domínio sobre o atual território do Haiti (GOULART, 2011). Com a divisão da ilha, inicia-se uma grande disputa entre as metrópoles

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pelo seu domínio total. Dessa forma, o domínio efetivo da França sobre o Haiti (então chamado de Saint-Domingue) deve ser visto como importante fator constitutivo da história do país. A decorrente intensificação do número de escravos e do sistema de monocultura, transformam Saint-Domingue na segunda colônia mais rica da França e, mais do que isso, permite a trajetória que resultou na sua futura independência. A história do Haiti se insere na formação das sociedades e dos Estados latino-americanos como economias capitalistas dependentes do centro econômico (primeiramente Europa e, no começo do século XX, dos Estados Unidos), a partir da ruptura da situação colonial até o ano de 1825 (com exceção das independências tardias de Cuba, Porto Rico e as demais colônias francesas). Haiti, ou Saint-Domingue, foi pioneira nas independências latinoamericanas, a qual se concretizou em 1804, sendo que a revolução se iniciou em 1791 sob os princípios filosóficos do iluminismo da Revolução Francesa, a sua metrópole. A sua independência teve impacto direto sobre os grupos dominantes espanhóis e efeito multiplicador nas outras colônias latinoamericanas, estimulando rebeliões de escravos em outros territórios. SaintDomingue era no período a maior economia açucareira do mundo e o mais valioso domínio francês (MATIJASCIC, 2010). Dessa forma, o Haiti é a mais significante junção da historia europeia/francesa com a latino-americana, visto que convergiram ao mesmo tempo a guerra de independência, a guerra civil e a guerra internacional pelo domínio da economia açucareira. Havia uma economia paralela escravista que formou um mercado local, o que se mostra como fator decisivo para a formação das rebeliões posteriores. A economia açucareira cresceu a um ritmo vertiginoso, criando uma estrutura social muito complexa e com características bem singulares quanto às relações entre as etnias - em 1789, durante a Revolução Francesa, Saint-Domingue era uma trama de relações e contradições muito explosivas. Por isso que se converteu em um movimento antiescravista precursor: entre 80% e 90% (quase 500 mil) da população eram escravos; os affranchis (mulatos e negros livres com costumes franceses) eram 30 mil, os quais conseguiram alcançar posições de poder, principalmente terras e escravos; e os brancos eram 40 mil (ANSALDI & GIORDANO, 2012). No começo da colonização,

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a população branca era tão pequena que então foram os negros libertos que ocuparam posições de poder, sendo a existência de negros e mulatos proprietários de plantações um dado excepcional e chave para entender o processo de independência. Os brancos percebiam os affranchis como uma ameaça crescente e, por isso, reclamavam da alta burocracia colonial que consideravam corrupta e muito inclinada em favor dos affranchis. Já os affranchis reclamavam acesso a espaços que lhes eram negados, mas que se sentiam legitimados pela condição econômica. Os mulatos exigiam que a França reconhecesse seus direitos civis e políticos em igualdade com os outros homens livres os princípios da Revolução Francesa não se aplicavam a escravos, mulatos e negros livres e nenhum dos grupos considerava a possibilidade de aplicação desses princípios aos escravos. Na medida em que se aprofundou o perfil democrático da Revolução Francesa, o conflito na ilha passou a ser focado entre os brancos e os affranchis (ANSALDI & GIORDANO, 2012). Contudo, os escravos que assistiam passivamente à propagação dos princípios revolucionários franceses nos distintos grupos foram os primeiros a acender a chama triunfal. Em pouco tempo, grupos de libertos se uniram à luta e também houve mais revoltas de escravos que buscaram apoio nos espanhóis do vizinho Santo Domingo. Os líderes rebeldes queriam um acordo com os plantadores. Em 1792, foi aprovada uma lei que concedeu direitos civis aos mulatos, reforçando as forças metropolitanas, visto que rompeu as barreiras do racismo e ampliou a cidadania somente para evitar reconhecer a liberdade e a igualdade dos escravos. Os brancos recorreram às forças da Inglaterra na Jamaica em busca de apoio para a independência - o que caracteriza a internacionalização do conflito como decisiva. Em 1793, foi decretada a abolição da escravatura pelo governo francês e os mulatos ficaram divididos entre os franceses e os plantadores escravistas brancos. O período de 1794-97 foi marcado pela consolidação do Estado, com a intenção de garantir a abolição da escravatura (GOULART, 2011). É nesse contexto que surge a figura de Touissaint L’Overture, a única autoridade que abriu caminho para a independência e soube controlar com

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astúcia e habilidade a guerra civil. Assim decorreu guerra no sul, ocupação no leste, expulsão dos últimos representantes metropolitanos e aprovação de uma constituição. Em 1800, Touissaint implementou mudanças para recuperar os níveis econômicos de produtividade agrícola, com importante relação com os EUA para apoio mercantil e de armas. Dessa forma se constituiu um Estado nacional, com autonomia e poder de decisão, principalmente devido ao domínio do exército. Os cultivadores e os independentistas reivindicavam terras sob o novo conteúdo de liberdade geral, quebrando o consenso em torno de Touissaint. Em 1802 ocorre o desembarque de uma poderosa frota francesa na ilha, comandada pelo general Leclerc e com colaboração dos proprietários espanhóis do leste, os quais não queriam ser governados por ex-escravos negros. Dessa forma, Touissaint foi derrotado e a escravidão retomada, mas a luta continuou. Em 1804, o general Jean Jacques Dessalines declara independência depois da capitulação das tropas francesas pela febre amarela e a morte de Leclerc. Dessalines se autoproclamou imperador (Jacques I) e em 1805 é aprovada uma nova constituição (a segunda, mas a primeira independente), ratificando a abolição da escravatura para sempre, com a vigência dos princípios de liberdade, igualdade, fraternidade e sacralidade da propriedade: “Nenhuma pessoa branca de qualquer nacionalidade porá os pés aqui com o título de amo ou proprietário [...] todas as distinções de cor desapareceram entre os filhos de uma mesma família na qual o chefe de Estado é o pai; os haitianos serão conhecidos agora pela denominação genérica de negros [...] todos somos negros.” (ANSALDI & GIORDANO, 2012)

Dessa forma, pode-se entender que emerge uma tentativa de homogeneização, ou universalismo particularista dos ex-escravos. Essa caracterização acabará evoluindo a ponto de se tornar uma distinção clara não só entre brancos, como também entre mulatos. A Revolução Haitiana teve um caráter transformador em sua estrutura econômica e social. Os sucessivos governos não conseguiram rearticular a economia da plantação de cana-de-açúcar. A conjunção entre a subdivisão da terra, a abolição do trabalho forçado e a escassez de capitais e de força

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de trabalho acabou obstruindo o desenvolvimento econômico. A formação de uma estrutura agrária minifundista, familiar e de subsistência é uma importante causa para a miséria que condiciona o país até hoje. Assim, a revolução terminou com o modelo de plantação escravista, mas não com os latifúndios: passou dos brancos para os negros e mulatos haitianos, então generais dos exércitos. Com a passagem da economia açucareira para o café houve uma polarização entre o setor mulato agroexportador e mais urbanizado (com mais propriedades e poder econômico) e o setor negro latifundiário (com influência no exército e nas massas). Os brancos como classe já não existiam mais no país após os turbulentos conflitos da Revolução (MATIJASCIC, 2010). Dessa forma, o conflito de projetos de país se transfere os mulatos e negros, polarizando assim a sua rivalidade. Uma importante consequência foi o isolamento internacional do Haiti por ser governado por ex-escravos e também porque deveria pagar uma indenização à França (dívida que só foi paga em 1947), caracterizando um quadro de constante instabilidade política. Apesar do seu fracasso no plano social, o Haiti foi o primeiro país independente, a primeira república latinoamericana e, também, a primeira república negra do mundo (ANSALDI & GIORDANO, 2012). É importante compreender a diferença que a ocupação francesa na Europa gerou: no continente europeu, as guerras de independência cobravam a condição pré-existente dos Estados, elas foram de libertação nacional (GOULART, 2011). A revolução política triunfou, mas a sua extensão para o resto da América Latina demorou quase todo o século para se consolidar. Já na América Latina, as guerras de independência foram anticoloniais para alcançar a condição de independência e construir um Estado nacional: não foram de libertação nacional porque não havia nação. Ainda, é importante reconhecer o papel central da luta dos afroamericanos para a efetiva universalização dos direitos do homem, visto que não pediam apenas liberdade, afirmavam de forma radical convicção de terem nascido livres e com a prerrogativa de organizar sua própria existência. Portanto, foi uma revolução porque acelerou o tempo histórico, de forma que a Revolução Haitiana é considerada “mais francesa do que a Francesa” (ANSALDI &

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GIORDANO, 2012). Por isso, pode-se entender a Revolução Haitiana ao mesmo tempo ser uma guerra civil e internacional. As implicações desta inibição ao acúmulo primitivo de capital na rápida expansão do capitalismo serão um grande fator para frágil estrutura produtiva do país nos próximos períodos. Não obstante, isso se deve à súbita rearticulação social que ocorre na ilha em um período bastante curto, dificultando a sua inserção pós-colonial no sistema internacional (GORENDER, 2004). Não que as outras colônias latino-americanas não tenham passado por choques após suas independências, mas devido ao fato do Haiti almejar uma compatibilização entre a liberdade universal de toda população e a sua estrutura produtiva acaba por criar uma instabilidade política, não uma harmonia. O processo revolucionário do país não consegue alterar o seu quadro colonial e até o século XX as sucessões presidenciais serão por assassinatos ou golpes. De fato, no período de expansão imperial estadunidense, o Haiti será englobado na política americana. As intervenções no período de 1915 a 1934 provocarão fortes mudanças na estrutura social. A elite mulata será escolhida para gerenciar o país e se consolida as Gendarmerie d’Haïti, uma polícia nacional que será a principal forma de manter a ordem interna. Os investimentos estadunidenses favorecerão a concentração de riqueza na capital, mas também para a construção de uma infraestrutura nacional (GILBERT, 2004). Controlando a elite dirigente e mantendo assim o país associado aos seus interesses, os Estados Unidos consolidam uma elite política e econômica no país. No entanto, isso ainda não impede que o conflito racial entre mulatos e negros desapareça no país, pois entre 1934 e 1956 as disputas políticas serão intensas, com constante atuação da Gendarmerie. O desenvolvimento do país, mesmo que associado, possibilita a ascensão de uma classe média haitiana nesse período. É também nesse momento que surge a figura pública de François Duvalier, ministro do presidente Dumarsais Estimé, que será deposto em 1954 por meio de um golpe da junta militar (GOULART, 2011). Com a renúncia do general, Duvalier participa dos seis diferentes governos nos próximos 10 meses, até ganhar as eleições, defendendo

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um programa de reformas populares e do nacionalismo negro em 1957. Importantes alterações no começo de seu governo foram a organização de uma guarda presidencial forte, constituída pelo nome de Voluntários da Segurança Nacional (VSN) em 1959, mas que ficará conhecida popularmente como os Tontons Macoutes. O seu caráter voluntário desta força paramilitar fará com que o seu funcionamento ocorra por meio de atividades ilegais. Com isso, Duvalier adquire um grande poder de coerção, podendo por meio de um plebiscito atribuir a si o cargo de presidente vitalício em 1964. O caráter autoritário e violento da sua ditadura é comumente conhecido, porém cabe destacar a estabilidade interna que se promove na estrutura política haitiana. Duvalier consegue a estabilidade por meio do apoio da classe média e dos setores empresariais negros. Também se deve destacar o seu caráter nacionalista, pois Duvalier intensifica o negrismo (nacionalismo negro) no país (MATIJASCIC, 2010). Em 1971, morre Duvalier e o poder é transferido para o seu filho, Jean Claude Duvalier, popularmente conhecido por Baby Doc. Sua pouca habilidade política de manter as alianças com a classe média e a Igreja agravam a sua legitimidade política. Cabe destacar que a situação política e econômica degrada bastante com a eclosão da crise mundial, aumentando os índices de pobreza e de desigualdade econômica. Em fevereiro de 1986, frente à perda política de seus setores apoiadores, Baby Doc renuncia e se exila na França. Com a sua queda, um novo período de instabilidade política emerge, com a virada do VSN em um grupo ilegal e com a tentativa da Gendarmerie de tomar o poder. Mesmo com uma junta militar no poder, as revoltas populares se intensificavam as tentativas de eleições falhavam e sucessões de golpes militares ocorriam (SEITENFUS, 1994). Isso é percebido pelo fato de que entre 1986 e 1990, há mais de seis sucessões presidenciais. Em 1990, Jean-Bertrand Aristide vence as eleições presidenciais e promove políticas que acabam por diferir dos interesses estadunidenses, ao indicar um caráter contra presença externa. Frente a esse cenário político, há uma reorientação dos Estados Unidos, os quais retiram a ajuda que prestavam ao governo e começam a apoiar financeiramente a oposição. Isso se evidencia pelo crescente fortalecimento desta, que em outubro de 1991 promove um

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golpe e retira Aristide do poder. Com a queda de Aristide, os Estados Unidos impõem sanções econômicas ao Haiti, exigindo a volta de Aristide ao poder. Em setembro de 1994, uma força composta por vários países, liderada pelos EUA e legitimada pela resolução do Conselho de Segurança da ONU, entra no Haiti para reempossar Aristide. Com a iminente invasão, os chefes militares haitianos renunciaram a seus postos e foram anistiados. Aristide reassume o País com a economia destroçada pelo bloqueio comercial e por convulsões internas e com mais de 10 mil soldados estadunidenses. Em seu novo governo, toma medidas liberalizantes e faz com que o Haiti se tornasse uma das economias mais abertas da região (GILBERT, 2004). As consequências de uma rápida abertura de um país economicamente frágil acabam tendo um forte impacto na sociedade, mantendo assim a instabilidade política. Em 1996 o Conselho de Segurança da ONU decide autorizar uma nova intervenção no país para manter a ordem interna. Novamente, tratase de uma forma de legitimar a presença externa no país. Cabe perceber que a intenção política de colocar Aristide no poder está muito vinculada aos interesses externos e tal fato se evidencia com René Préval ganhando as eleições presidenciais e governando entre 1995 e 2000, sendo depois sucedido por Aristide, mesmo com várias irregularidades apontadas pela OEA durante as eleições. O governo de Aristide foi bastante conturbado, sendo que seu mandato não alcançou o seu fim. Reivindicações, protestos e manifestações ocorriam por meio do Grupo de 184, organizado por jornalistas, estudantes, comerciantes e outras organizações civis, partidos políticos se organizavam como oposição com o nome de Convergência Democrática e também havia a conspiração de forças paramilitares, que almejavam atacar a capital Porto Príncipe (CORREA, 2009). O avanço de forças rebeldes obrigou Aristide a deixar o país em fevereiro de 2004, deixando o com que o presidente da Suprema Corte Haitiana, Boniface Alexandre assumisse o cargo de presidente interino. Entre suas medidas, requereu assistência internacional, autorizando a entrada de tropas militares no Haiti. Assim, a Força Interina Multinacional (MIF) composta por estadunidenses, chilenos e canadenses, presente desde a queda de Aristide, continuou no país durante o período de seu sucessor (GILBERT,

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2004). O conflito entre as forças rebeldes e as forças do governo/externas permaneceu bastante violento em sua permanência como presidente interino, principalmente no que tange às forças policiais, que se caracterizaram pelo seu caráter extrajudicial. Tais seriam os antecedentes da formação da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), criada a partir da resolução 1542 do Conselho de Segurança da ONU, que serviria como uma operação de estabilização multidimensional e não apenas militar. A MINUSTAH, sob comando brasileiro, conta com tropas de vários países latino-americanos, como Argentina, Bolívia, Equador e Guatemala e garante apoio operacional à Policia Nacional do Haiti (ONU, 2004). Dentro de seu mandato, seus objetivos são a reforma da justiça e das instituições policiais do país. A profissionalização da polícia é essencial para que os casos de irregularidades e de corrupção vigentes sejam diminuídos e que haja uma nova relação entre a sociedade civil e o Estado. Em 2006, René Préval e eleito novamente contando com forte apoio internacional avançou em matérias como segurança, planejamento e construção institucional. No seu governo ocorre a aprovação das reformas à Constituição de 1987, votada no Parlamento haitiano em setembro de 2009 (MATIJASCIC, 2010). Tal avanço foi fundamental para a consolidação institucional do Estado, sem contar que neste período houve uma melhoria nos indicadores econômicos, destacando-se o crescimento da agricultura, fundamental para um país com altos números de problemas alimentares. A MINUSTAH tinha, de acordo com a resolução 1542, de abril de 2004, a previsão de se manter no Haiti por período determinado de seis meses. No entanto, seu mandato foi continuamente prorrogado e, inclusive, ajustado aos diferentes momentos que vive o país. Após o terremoto de janeiro de 2010 e uma nova resolução (de 10 de outubro de 2010), o Conselho de Segurança da ONU decidiu aumentar o nível das forças globais da MINUSTAH, para apoiar a reconstrução e a estabilidade do Haiti, com tarefas especiais no esforço humanitário de recuperação e para encorajar os demais atores a se engajar nos esforços de planejamento conjunto de ações em nível nacional e local. O objetivo era reforçar a o apoio logístico e técnico especializado para

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que o Governo do Haiti pudesse recompor suas forças e aparatos de gestão, além de contribuir na preparação e condução das eleições que se realizaram naquele ano (ONU, 2010). O terremoto, além de matar cerca de 230 mil haitianos, também atingiu a base principal de operações da MINUSTAH, o Hotel Cristophe, matando vários soldados. Os relatos mostram a total ausência de assistência das tropas da ONU no período pós-catástrofe, pois o foco da Missão estava voltado para os escombros do Hotel (THOMAZ, 2010). O que se evidencia é a falta de contato da MINUSTAH com os outros setores organizados da sociedade haitiana, principais fornecedores de água e comida neste período. Com cerca de 300 organizações não governamentais (ONGs) oficialmente reconhecidas (SCHULLER 2007), para as quais a maioria dos recursos de apoio ao desenvolvimento era dirigida, cabe perceber o fato de que muitos dos recursos internacionais vão diretamente para as ONGs, que não têm mandato público, diminuindo a governança estatal e tornando fracas as instituições. Dessa forma, as ONGs acabam por promover a entrada do Haiti na globalização ao legitimar um discurso de preencher lacunas nas quais o Estado não exerce sua função. Essa forma de entrada ao neoliberalismo não só fragiliza o governo, como também enfraquece a relação entre Estado e sociedade. Esse último ponto é ainda reforçado pela oferta de trabalho remunerado comparativamente alto que as ONGs propiciam, acabando por reproduzir desigualdades e se tornando uma forma de barreira institucional às prioridades de ação e planejamento econômico e social do governo (HARVEY, 2005). Desse modo, percebe-se que o Haiti se insere forçadamente no modelo neoliberal e no mundo globalizado. Cabe lembrar que não se trata da eliminação da atuação das ONGs, afinal estas tem um caráter essencial e de alívio imediato nos processos de reconstrução estatal, como seria o caso pós-terremoto. Todavia, cabe perceber que se trata de um processo e não uma resposta humanitária pontual, de curta intensidade. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) atuou com programas de subsistência e de reconstrução, como o cash-for-work (CARVALHO 2010). Os objetivos deste programa são injetar dinheiro na economia local, ao dar trabalho relacionado à (re)construção aos

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habitantes e, consequentemente, reconstruir a infraestrutura haitiana. Dessa forma, programas como esse são apropriados para dar uma resposta que tenha um impacto rápido em uma sociedade que vive em momentos de crise. Em novembro de 2010 foram realizadas as eleições presidenciais e parlamentares, em meio a denúncias de fraude de ambos os lados, e em 14 de maio de 2011 Joseph Michel Martelly tomou posse como Presidente do Haiti. Uma das questões interessantes neste período é a vontade do Haiti de aderir como membro à União Africana, visando não só a questões comerciais, mas também como forma de intensificar o seu intercâmbio cultural (ACENTO, 2012). Tal tendência indicaria um tipo de alternativa frente aos últimos eventos de inserção mundial dos quais o Haiti participou, mostrando que a “ONGização” não é o único caminho no qual uma Nação precisa tomar para se desenvolver. O Haiti é um dos países mais superpovoados e com o menor IDH da América Latina e o terremoto de 2010 acabou por ter graves consequências migratórias. Os haitianos que moram fora do país enviaram remessas que, em 2012, corresponderam a 22% do Produto Interno Bruto (PIB) anual do Haiti, sendo que antes do terremoto, o impacto das remessas no PIB não chegava a 16% (FARMER, 2006). Cabe salientar o fato de que muitos dos haitianos que migraram, legal ou ilegalmente, para o Brasil foi devido às grandes oportunidades e eventos, como a Copa e as Olimpíadas. O governo brasileiro decidiu ampliar a concessão de vistos permanentes especiais para os haitianos, como forma de valorizar a migração legal e impedir o tráfico humano (ALESSI, 2013). Estas medidas de apoio migratório, assim como outras de investimento infraestrutural na reconstrução do país no valor de 350 milhões (AMORIM, 2010), mostram que também para o Brasil existem alternativas para a sua legitimidade como líder na cooperação Sul-Sul e na América Latina. Tendo em vista os últimos acontecimentos no Haiti, é necessário indicar que com a falta de um planejamento interno de reconstrução do país acaba mantendo o país com seus baixos indicadores econômicos e sociais. Todavia, para tal planejamento, o Estado haitiano e suas instituições devem ser os principais agentes. Como bem indica Thomaz:

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Que o Estado no Haiti oscila, na atualidade, entre a ausência e a força bruta da atuação policial (percebida pela população muitas vezes como qualquer gangue com a diferença que conta com o apoio das Nações Unidas), isso não é novidade para os haitianos. Mas traduzir a precariedade do aparato estatal numa guerra de todos contra todos, num estado de caos permanente, constitui uma liberdade retórica que não resiste a uma observação mais atenta da realidade de Porto Príncipe — observação que os sujeitos da “comunidade internacional”, há anos estabelecidos neste país estariam obrigados a realizar. (THOMAZ, 2010)

Claramente, percebe-se que a população haitiana tem consciência do aparato estatal como mantedor de ordem, que cobra impostos e que investe em obras públicas, com todas possíveis limitações que um Estado da região possui. A relação de exterioridade, da falta de relação, entre a população e o Estado é uma das principais retóricas das organizações internacionais, que usam tal discurso para legitimar sua ação de consolidar o aparato estatal sob presença externa. Dessa forma, é essencial a construção de um Estado com a participação da sociedade haitiana. A cooperação econômica e social que vem ocorrendo acaba sendo vital para que o Haiti se insira nas relações internacionais como um Estado soberano e independente. Dessa forma, o problema fundamental que está presente desde seu nascimento como Estado-nação, a pobreza generalizada, acaba sendo o objetivo fundamental para o desenvolvimento e, nesse cenário pós-terremoto, de reconstrução das instituições e da governabilidade haitiana.

Referências Bibliográficas AMORIM, Celso. Brasil-Haiti, uma Parceria de Longo Prazo na Busca do Desenvolvimento Autônomo e Sustentável. Em Brasil-Haiti Programa de Cooperação Sul-Sul. Brasília. Out. 2010. ACENTO. Haití quiere sumarse a la Unión Africana por afinidades en historia y cultura. Disponível em: http://www.acento.com.do/index.php/

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news/22927/56/Haiti-quiere-sumarse-a-la-Union-Africana-por-afinidadesen-historia-y-cultura.html. Acessado em 9 de nov. 2013 ANSALDI, Waldo, GIORDANO, Verônica. América Latina. La construcción del orden. Tomo I. De la colonia a la disolución de la dominación oligárquica. Buenos Aires, Ariel, 2012. ALESSI, Mariana Longhi Batista. A Migração de Haitianos para o Brasil. Conjuntura Global, Curitiba, Vol. 2, n.2, abr./jun., 2013, p. 82-86. CARVALHO, Carlo. A Segurança Humana e a Reconstrução Pós-Crise: O Caso do Haiti. Em Segurança Humana e Reconstrução Pós-Crise. Observatório de Segurança Humana. 2010. CIA. The World Factbook: Haiti. Disponível em: https://www.cia.gov/library/ publications/the-world-factbook/geos/ha.html. Acessado em: 9 de nov. de 2013 CORREA, Paulo Gustavo Pellegrino. MINUSTAH e Diplomacia Solidária: de um novo paradigma nas operações de paz? São Carlos, UFSCAR, 2009. FARMER, Paul. The Uses of Haiti. Monroe: Common Courage Press, 2006. GILBERT, Randolph. Haití: antecedentes económicos y sociales. CEPAL. 2004 GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados n. 18. 2004. GOULART, Sueli. Contextualização Histórica do Haiti. Porto Alegre: UFRGS. 2011. HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. Oxford: OUP, 2005. SEITENFUS, Ricardo. Haiti: a soberania dos ditadores. Porto Alegre: Sólivros, 1994. MATIJASCIC, Vanessa Braga. Haiti: Uma Historia de Instabilidade Política. Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/ SP – UNESP-Franca. Setembro de 2010. ONU. Conselho de Segurança. Resolution 1944 (2010) on the question

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concerning Haiti. Documento da ONU S/RES/1944 (2010), 14 de out. de 2010. ____. Conselho de Segurança. Resolution 1542 (2004) on the question concerning Haiti. Documento da ONU S/RES/1542 (204), 30 de abr. de 2004. SCHULLER, M. Invasion or infusion? Understanding the role of NGOs in Contemporary Haiti. The Journal of Haitian Studies, v. 13, n. 2, p. 96-119, 2007. THOMAZ, Omar Ribeiro. O terremoto no Haiti, o mundo dos brancos e o Lougawou. Novos Estudos n. 86. Março 2010

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