HALL, S. - Raça, articulação e sociedades estruturadas com dominante [trecho] - tradução

September 7, 2017 | Autor: Pedro Davoglio | Categoria: Race and Racism, Race and Ethnicity
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE DIREITO GRUPO DE ESTUDOS PERMANENTE DE DIREITO, ESTADO E RACISMO

RAÇA, ARTICULAÇÃO E SOCIEDADES ESTRUTURADAS COM DOMINANTE Stuart Hall1

O objetivo deste artigo é destacar uma série de questões e problemas emergentes no estudo das formações sociais estruturadas racialmente, e indicar onde algumas novas e importantes iniciativas estão sendo desenvolvidas. Para fazer isso é necessário situar as rupturas que esses estudos representam em relação ao campo de estudos estabelecido; isso, por sua vez, requer uma caracterização geral do campo. Começo com uma esquematização um pouco grosseira, em um nível de abstração muito geral – oferecendo apenas de passagem desculpas pela necessária simplificação envolvida. As tentativas de lidar com a questão da “raça” diretamente ou de analisar aquelas formações sociais nas quais ela é um aspecto saliente constituem, hoje, uma formidável, imensa e variada literatura, que seria impossível resumir integral e adequadamente. Nenhuma justiça pode ser feita aqui a essa complexidade e a esse empreendimento extraordinário. Poderá ser proveitoso para o nosso objetivo dividir aqui as variadas tendências representadas no interior desse campo de investigação em duas grandes tendências dominantes. Cada uma gerou uma grande variedade de estudos e abordagens. Apesar de esquemática, a seleção dessas duas tendências não é completamente arbitrária. De muitos modos, elas têm sido compreendidas como opostas entre si. E, como é frequente no caso de oposições teóricas como essa, elas também podem ser compreendidas, em muitos aspectos, como imagens espelhadas uma da outra. Cada uma tenta suprir a fraqueza do paradigma oposto enfatizando os seus, assim chamados, “elementos negligenciados”. Ao fazê-lo, elas apontam para fragilidades reais na conceituação e indicam, sintomaticamente, importantes pontos de partida para teorizações mais adequadas. Cada uma, no entanto, me parece, é inadequada no que tange aos termos 1

Traduzido por Pedro Eduardo Zini Davoglio.

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operativos da sua própria teorização. A ruptura de que falo, portanto, constitui uma ruptura teórica, em parte ou em todo, com cada uma dessas tendências dominantes, e uma possível reestruturação do campo teórico, bem como poderia significar trabalhos importantes de um novo tipo a serem iniciados. A título de simplificação, as duas tendências podem ser chamadas de “econômica” e “sociológica”. Vamos começar pela primeira – a econômica. Uma grande variedade de estudos deve, por conveniência, ser agrupada sob esse título um pouco grosseiro. Ele inclui tanto diferenças de ênfase quanto diferenças de conceituação. Assim, alguns estudos dessa tendência concentram-se em estruturas econômicas internas, no interior de formações sociais específicas (análises da economia e das estruturas raciais da África do Sul seriam um bom exemplo). Outros estão mais preocupados com relações entre aspectos econômicos internos e externos, independentemente do modo como são caracterizados

(desenvolvido/subdesenvolvido;

imperialista/colonizado;

metrópole/periferia, etc.). Há também diferentes modos de conceituação do “econômico”, baseados em premissas econômicas e sistemas teóricos radicalmente diferentes. Para os propósitos deste artigo, serei obrigado a agrupar nesta tendência uma série de diferenças pertinentes e com as quais teremos que lidar mais tarde, que vão desde a economia neoclássica do “desenvolvimento” (i.e., a análise de setores duais – setores capitalista e de subsistência); àqueles que adotam um modelo de modernização ou industrialização (i.e., baseado em algo como a teoria de Rostow dos “estágios de crescimento”); àqueles que, como os teóricos da “dependência” da escola da ECLA utilizam uma teoria radical da economia do mundo subdesenvolvido; até àqueles como Baran ou Gunder Frank, que têm empregado uma orientação marxista (o quão clássica ela permanece, como veremos, é uma questão de contínua controvérsia). O que permite a caracterização dessas abordagens tão diferentes como pertencentes a uma única tendência é isso: elas tomam relações e estruturas econômicas como tendo um efeito de determinação esmagadoramente grande nas estruturas sociais dessas formações. Mais especificamente, as divisões sociais que assumem uma característica distintiva racial ou étnica podem ser atribuídas ou explicadas principalmente com referência a processos e estruturas econômicas. Denominei a segunda abordagem de sociológica. Aqui novamente – talvez tendenciosamente – uma grande variedade de abordagens são localizadas sob uma única rubrica. Algumas se concentram em relações sociais entre diferentes estratos raciais ou 2

étnicos. Algumas lidam mais exclusivamente com diferenças culturais (etnicidade), de que a raça é apenas um caso extremo. Algumas propõem uma teoria mais rigorosamente plural, derivada de Furnivall e M. G. Smith e outros dessa escola. Algumas estão preocupadas exclusivamente com formas de dominação ou desvantagens políticas baseadas na exploração de distinções raciais. Na grande maioria desses estudos, a raça é tratada como uma categoria social. Concepções biológicas da raça têm recuado muito em importância, embora elas nunca tenham desaparecido totalmente (por exemplo: o renascimento da biossociologia, e a reintrodução de teorias biologicamente baseadas em princípios genéticos, nos trabalhos recentes de Jensen e Eysenck). A principal ênfase desta segunda tendência é dada sobre a raça ou a etnicidade enquanto características exclusivamente sociais ou culturais da formação social em discussão. Novamente, o que distingue os contribuintes dessa escola como pertencendo a uma única escola – apenas para os nossos propósitos aqui – é o seguinte: embora eles difiram internamente, os autores da tendência sociológica concordam com a autonomia, a não redutibilidade, da raça e da etnicidade como características sociais. Elas exibem, afirmam esses autores, suas próprias formas de estruturação, têm seus próprios efeitos específicos, que não podem ser explicados como meras formas superficiais e aparentes das relações econômicas, nem teorizados adequadamente pela sua redução ao nível econômico de determinação. Aqui se pode ver como os dois paradigmas têm se contraposto um ao outro, cada um corrigindo a fraqueza do seu oposto. A primeira tendência, seja ela marxista ou não, dá ao nível econômico um papel de determinação total. Isso, diz-se, fornece um núcleo sólido – uma base materialista – contra as teorizações aguadas ou culturalistas dos estudos étnicos. A ênfase nos aspectos sociológicos presente na segunda tendência é, então, um tipo de resposta direta à primeira ênfase. Ela pretende introduzir uma complexidade necessária nos esquemas simplistas de uma explicação econômica, e corrigir a tendência dos primeiros a um reducionismo econômico. As formações sociais, argumenta a segunda tendência, são totalidades complexas, compostas por várias estruturas diferentes, em que nenhuma delas é redutível a outra. Assim, enquanto a primeira tende a ser monocausal na forma, a segunda tende a ser pluralista na ênfase, mesmo quando ela não é explicitamente plural em sentido teórico.

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Veremos que esse debate reproduz, in micro, os debates estratégicos maiores que têm marcado o campo das ciências sociais em geral nos últimos anos. Consequentemente, desenvolvimentos neste campo maior – que toma as formações sociais racialmente estruturadas como seus objetos de investigação – terão necessariamente efeito teóricos para aquela região de estudos. Daí as consequências advindas de rupturas nesses campos sobre os paradigmas das “teorias sociológicas da raça”. O debate não é, entretanto, exclusivamente teórico. Diferenças de análise e abordagem teóricas têm efeitos reais sobre as estratégias de transformação política nessas sociedades. Se a primeira tendência estiver, no geral, correta, então o que é frequentemente experimentado e analisado como conflitos étnicos ou raciais são na verdade manifestações de contradições econômicas mais profundas. É, portanto, contra estas últimas que as políticas de transformação devem essencialmente ser endereçadas. A segunda tendência chama a atenção para as formas e dinâmicas atuais dos conflitos e tensões políticas nas sociedades – que frequentemente assumem um caráter étnico ou racial. Ela aponta para a dificuldade empírica de subsumir diretamente essas questões a conflitos econômicos nos moldes clássicos. Mas se relações étnicas não são redutíveis a relações econômicas, então elas não necessariamente mudarão quando estas últimas mudarem. Consequentemente, em uma luta política, deve-se dar à “raça” a sua devida especificidade e peso como fatores autônomos. A teoria aqui, como sempre, tem consequências práticas diretas ou indiretas. Circunstâncias políticas – embora não sejam suficientes para avaliar o valor científico dessas teorias – também fornecem uma das condições de existência da teoria, e têm efeitos na sua implementação e apropriação. Esse tem sido claramente o caso, mesmo que possa estar restrito (conforme vários trabalhos analisados neste artigo) numa primeira abordagem, à América Latina e ao Caribe. O modelo do setor dual – baseado num desenvolvimento econômico voltado para a exportação, na substituição de importações e em investimentos estrangeiros – patrocinou um longo e desastroso período do desenvolvimento econômico nacional, que comprometeu ainda mais a posição dos países mais pobres da região em relação aos outros. A teoria da modernização foi por um longo tempo o principal ponto de apoio das estratégias de “aliança para o progresso” no continente.

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(...)

O que Marx estava descrevendo na ocasião era algo radicalmente diferente da interpretação de Frank: nomeadamente, uma articulação entre dois modos de produção, um “capitalista” em sentido real, e outro apenas “formalmente”: os dois combinados por meio de um princípio de articulação, mecanismo ou conjunto de relações, já que, como Marx observou, “os seus beneficiários participam de um mercado no qual os setores produtivos dominantes já são capitalistas”. Ou seja, o objeto de investigação deve ser tratado como uma estrutura articulada complexa que é, ela própria, “estruturada com dominância”. Os senhores de escravo das plantations, assim, participavam de um movimento geral do sistema mundial capitalista: mas na base de um modo de produção interno – escravidão na sua forma moderna e de plantation – de caráter ainda não propriamente “capitalista”. Esta é uma proposição revolucionária em sentido teórico, uma vez que ela se afasta daquela leitura extremamente teleológica de Marx que produziu a tese absolutamente indefensável de Frank de que a América Latina é capitalista desde a Conquista. O que nós temos agora, em oposição à tese da “transformação inevitável” dos modos pré-capitalistas e da sua dissolução pelas relações capitalistas, é o problema teórico emergente de uma articulação entre diferentes modos de produção, estruturados em alguma relação de dominância. Isso nos leva à definição de uma formação social que, em seu nível econômico, pode ser composta por muitos modos de produção, “estruturados com dominância” (cf., Althusser e Balibar, 1970; Hindess e Hirst, 1975, 1977; Poulantzas, 1973). Isso forneceu a base teórica para uma imensa quantidade de trabalhos pioneiros, especialmente sobre os “modos de produção pré-capitalistas”, oferecendo uma abordagem mais rigorosa em relação àquela leitura de Marx, corretamente criticada – neste ponto exato – por Rex, ao passo que mantém os termos sistemáticos de uma análise marxista. Esse trabalho, claro, focou principalmente o nível das relações econômicas. Embora ele tenha consequências claras sobre os outros níveis da estrutura das formações sociais (formações de classe, alianças estruturas política e ideológica, etc.), elas não têm sido explicitadas. Ele tem, por exemplo, efeitos muito pertinentes sobre qualquer análise do modo como essa combinação articulada de modos de produção insere os agentes econômicos provenientes de diferentes grupos étnicos em diferentes conjuntos de relações econômicas que, ao passo que estão

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articuladas em uma unidade complexa, precisam ser conceituadas como nem necessariamente as mesmas, e nem destinadas a ser como são. Essa problemática emergente constitui talvez o desenvolvimento teórico mais fértil neste campo, afetando a análise de formações sociais racialmente estruturadas. A posição teórica emergente é sustentada por seus propositores como uma certa “releitura” da literatura marxista clássica. Ela é parte de uma imensa revolução teórica constituída pelo sofisticado retorno à “leitura” do Capital de Marx, que teve um impacto muito grande na formação intelectual da última década. Ela está sendo desenvolvida ao mesmo tempo em diferentes campos teóricos. Laclau põe seu argumento essencial de maneira forte: “o caráter pré-capitalista das relações de produção dominantes na América Latina não apenas era compatível com a produção para o mercado mundial, mas foi na verdade intensificado pela sua expansão”. Marx, em uma passagem bem menos conhecida do que aquelas do Manifesto comunista que citamos anteriormente, falou do fato de que “o circuito do capital industrial... entrecruza-se com a circulação de mercadorias dos mais diferentes modos sociais de produção... Pouco importa se as mercadorias são o produto de um sistema de produção baseado na escravidão, ou do trabalho de camponeses... ou da produção estatal... ou de povos caçadores semisselvagens... elas se confrontam, como com o dinheiro e as mercadorias em que se representa o capital industrial e entram no ciclo deste último. O caráter do processo de produção de onde elas surgem é indiferente... Mas sua reprodução continua a ser necessária para sua reposição e, nesse sentido, o modo de produção capitalista é condicionado por modos de produção situados fora de suas fases de desenvolvimento” (Marx, 1956, p.109 [2014, p.188-9]) Bettelheim que pode parecer partidário de uma visão mais “clássica”, argumenta que a tendência dominante vai no sentido de uma dissolução dos outros modos pelo modo de produção capitalista. Mas isso está frequentemente combinado com uma tendência secundária – a da “conservaçãodissolução”: na qual os modos não-capitalistas, “antes de desaparecerem, são ‘reestruturados’ (parcialmente dissolvidos) e, assim, subordinados às relações capitalistas predominantes (e então conservados)” (Bettelheim, 1972). Usando esse esquema, Wolpe mostra que certos problemas da formação social sul africana mencionados anteriormente, que não poderiam ser explicados satisfatoriamente no interior da leitura anterior, e que Rex, entre outros, criticou com razão, começam a se tornar resolvíveis pelo uso desses novos instrumentos teóricos e de uma maneira que 6

lança uma luz significativa sobre as fraturas raciais das relações de classe na África do Sul. Embora o quadro detalhado dessa tentativa de “solução” não possa ser abordado aqui (Wolpe, 1975), vale citar as suas principais consequências. Wolpe sugere, por exemplo, que a dependência do setor capitalista da África Sul em relação a setores nãocapitalistas da África, devido à oferta de força de trabalho barata e à reprodução de subsistência, permite ao capital pagar à força de trabalho um valor inferior ao custo da sua reprodução, enquanto continua sempre tendo uma plena oferta de trabalho com cujo custo de subsistência ele não arca integralmente (Wolpe, 1972). Ele emprega variantes tanto da tese da “articulação” quanto da “dissolução-conservação”. Na África do Sul, a tendência da acumulação de capital em dissolver outros modos de produção se entrecruza e é bloqueada por tendências contrárias, de conservação das economias nãocapitalistas – na base de que estas são articuladas em uma posição subordinada à principal, que é capitalista. Onde o capitalismo desenvolve-se, em parte, por meio de uma articulação com modos de produção não-capitalistas, “o modo de dominação política e o conteúdo das ideologias de legitimação assumem formas raciais, étnicas e culturais pela mesma razão que a dominação política imperialista assume uma forma colonial” (Wolpe, 1975). Ele complementa: “a conservação de modos de produção nãocapitalistas requer necessariamente o desenvolvimento de ideologias e de mecanismos políticos que orbitam em torno da segregação e da preservação e controle das “sociedades ‘tribais’” africanas – isto é, as relações tomam a forma de ideologias construídas em torno de elementos ideológicos étnicos, raciais, nacionais e culturais. Sinteticamente, a teoria emergente da “articulação dos diferentes modos de produção” começa a render certos efeitos teóricos pertinentes a uma análise do racismo nos níveis social, político e ideológico. Ela começa a render tais efeitos – e esse é o ponto crucial – não ao abandonar o nível de análise das relações econômicas (i.e., do modo de produção), mas ao propô-lo de maneira correta, respeitando a sua necessária complexidade. Evidentemente, este pode ser um ponto de partida necessário, mas não suficiente. A esse respeito, as “exigências” de Wolpe podem ir longe demais, sugerindo uma correspondência necessária, de teor excessivamente funcionalista, entre a estrutura dos modos de produção e as formas específicas de dominação política e legitimação ideológica. O nível da análise econômica, ora redefinido, pode em si mesmo não fornecer condições suficientes para uma explicação da emergência e operação do racismo. Mas, ao menos, ele nos dá um ponto de partida melhor do que aquelas 7

abordagens que são obrigadas a abandonar o nível econômico para produzirem “fatores adicionais” que explicam a origem e a aparência da estruturação racial a partir de outros níveis da formação social. A esse respeito, ao menos, os avanços teóricos brevemente destacados aqui têm o mérito de respeitar o que nós chamaríamos de as duas premissas cardinais do “método” de Marx. A premissa materialista – de que a análise das estruturas política e ideológica devem estar baseadas nas suas condições de existência; e a premissa histórica – de que as formas específicas dessas relações não podem ser deduzidas, a priori, desses níveis, mas devem ser especificadas historicamente “por meio da demonstração das determinações subsequentes que explicam a sua differentiae sp”. Essas duas premissas estão bem expressas em uma das passagens mais famosas de O capital: “A forma econômica específica em que se suga mais-trabalho não pago dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta surge diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage de forma determinante sobre ela. Mas nisso é que se baseia toda a estrutura da entidade comunitária autônoma, oriunda das próprias relações de produção e, com isso, ao mesmo tempo sua própria estrutura política peculiar...” (a premissa materialista). Mas “Isso não impede que a mesma base econômica – a mesma quanto às condições principais – possa, devido a inúmeras circunstâncias empíricas distintas, condições naturais, relações raciais, influências históricas externas etc., exibir infinitas variações e graduações em sua manifestação, que só podem ser entendidas mediante análise dessas circunstâncias empiricamente dadas” (a premissa histórica), (Marx, 1974, p.791-2 [1985, p.251-252]). Para que se encontre as condições de adequação teórica, ambas as premissas precisam de fato estar presentes: cada uma, por si mesma, não é suficiente. A primeira sem a segunda, pode nos levar de volta ao impasse do reducionismo econômico; a segunda sem a primeira, nos condena às armadilhas do relativismo histórico. O método de Marx compreendido e aplicado propriamente nos fornece as condições – embora, obviamente, não nos forneça qualquer garantia – necessárias para evitar os dois. (Para uma melhor elaboração das “premissas básicas” do método de Marx, ver Johnson, et al., 1978; para uma versão condensada do argumento desenvolvido por Wolpe, conforme aplicado às formações sociais Latino Americanas e Caribenhas, ver, Hall, 1978). A aplicação da tese da “articulação”, brevemente desenvolvida aqui, tem tido consequências teóricas revolucionárias em outros campos de investigação, os quais não 8

podem ser brevemente indicados aqui uma vez que estão muito longe da nossa preocupação principal. Eles podem ser encontrados, no contexto inglês, no trabalho sobre “modos pré-capitalistas” e formações sociais de Hindess e Hirst (1975, 1977); em Banaji (1977); nos trabalhos recentes sobre “modos de produção coloniais” (Alavi, 1975); nas edições recentes de The review of African political economy, Critique of anthropology e Economy and society; e também, de forma relacionada, no novo debate sobre a “transição”, desencadeado pela reedição dos ensaios sobre A transição do feudalismo para o capitalismo [The transition from feudalismo to capitalism] (Hilton, 1976); e no trabalho em curso de Post sobre a Jamaica. Na França, o que é mais digno de nota é o contexto de um interesse renovado na nova “antropologia econômica” para a qual escritores como Godelier, Meillassoux, Terray, Rey e Dupré têm dado contribuições extraordinárias (cf., a seleção feita por Seddon, 1978). (Para resenhas e críticas em inglês ver, inter alia: Clammer, 1975; Bradby, 1975; Foster-Carter, 1978; Seddon, 1978; Wolpe, 1978). Meillassoux lida principalmente com as formações sociais agrícolas “autossustentáveis” e a sua dissolução-transformação, quando nelas se enxertou a produção para os mercados externos “capitalistas”. Isso tem certas consequências teóricas para aquelas formações sociais articuladas em que o setor nãocapitalista é “capaz de cumprir funções que o capitalismo prefere não assumir em países subdesenvolvidos” (cf. acima, o desenvolvimento desse argumento por Wolpe) – e assim para sociedades como a sul-africana, onde (como Clammer extrapola) “as pessoas são obrigas a tornarem-se trabalhadores assalariados e numa situação neo- e quasecolonial são forçadas a voltar para o setor “tradicional” para obter precisamente aqueles serviços que o setor capitalista não oferece”. Clammer aponta corretamente que isso revive a análise de “setores duais” – mesmo que numa forma radicalmente nova; uma vez que (argumenta Meillassoux) as teorias dos “setores duais” têm a função ideológica específica de “conciliar a exploração da comunidade rural, integrada como um componente orgânico da produção capitalista” (Meillassoux, 1972, 1974; para uma crítica mais extensa, ver Clammer, 1975). O trabalho de Rey lida principalmente com sociedades de “linhagem” e, como Meillassoux, deriva do campo de trabalho africano; mas extrapolações mais amplas de natureza teórica têm sido feitas a partir desse terreno (Rey, 1971, 1973, 1975; Rey e Dupré, 1973). Ele se diferencia de outros trabalhos da tradição francesa da “antropologia econômica” por se preocupar, em parte, com os problemas de se estender 9

o argumento da “articulação” – como o título do seu segundo livro indica – à questão das alianças de classe e, assim, ao nível político. Rey também rejeita alguns elementos da problemática da “articulação”. Ele está preocupado com a homoficiência [homoficence] do capitalismo – o que Foster-Carter chama de o problema do “paralelismo de ação” do capitalismo (cf. Foster-Carter, 1978; e também, para uma revisão crítica mais substantiva de Rey e da literatura sobre “articulação”). Uma das principais singularidades do trabalho de Rey é, contudo, a tentativa de periodizar esse “paralelismo de ação” como um processo contendo três estágios principais, marcados pelo caráter de articulação em cada um deles. Eles são: (i) o período do comércio de escravos, no qual o mercado europeu adquire provisões por meio de relações de troca, “essencialmente por jogar com as contradições internas das sociedades de linhagem”; (ii) uma fase de transição – colonialismo em sentido estrito – em que o capitalismo se enraíza, baseando-se nos modos pré-capitalistas e gradualmente subordinando-os; (iii) um novo tipo de formação social, com o modo de produção capitalista ocupando internamente o papel dominante; frequentemente, portanto, dependente de um capitalismo metropolitano (neo-colonialismo). A cada uma dessas fases corresponde um conjunto diferente de alianças de classe. Rey está também muito preocupado com o modo como as sociedades de linhagem são interrompidas e desarticuladas pela força exterior do capital – frequentemente através de violência e do que Marx chamou de “o fato da conquista” (Foster-Carter, 1978). Rey vê o “enraizamento” do capitalismo nesses modos pré-capitalistas como possível apenas com a implantação de “modos de transição” – precisamente a função do período colonial. Ao dar a essa fase um papel seminal que normalmente não se lhe atribui, e mesmo observando-o separadamente, a abordagem de Rey deixa a história do capital e o mecanismo de transição como amplamente “fora dessas formações sociais” e tende a tratar as relações de troca como componente central de articulação (para uma crítica mais ampla ver Clammer, 1975; Foster-Carter, 1978, Terray, 1972; Bradby, 1975). O termo articulação é complexo, empregado e definido de forma variada na literatura a que nos referimos aqui. Não se pode apontar que tenha surgido, até agora, qualquer consenso a respeito de sua definição conceitual. Ele ainda permanece o lugar de uma ruptura (coupure) teórica e de intervenção significativas. Esta intervenção está principalmente associada ao trabalho de Althusser e da “escola” do marxismo estruturalista. O termo amplamente empregado, em uma gama de contextos, 10

especialmente nos ensaios de A favor de Marx e no volume que a ele se seguiu, com Balibar, Ler O capital (1965, 1970). Ao menos duas aplicações diferentes são particularmente relevantes para o que nos interessa aqui (mesmo que, curiosamente, o termo não esteja definido no “Glossário” preparado por Ben Brewster e revisado pelo próprio Althusser, que apareceu nas edições inglesas de ambos os livros). Para além desses usos particulares, o termo tem uma referência mais ampla tanto de natureza teórica quanto de natureza metodológica. Foster-Carter sugere corretamente que se trata de uma metáfora utilizada para “indicar relações de ligação e efetividade entre diferentes níveis de todos os tipos de coisas” – embora ele possa ter complementado que essas coisas precisam estar ligadas porque, conectadas, elas não são as mesmas que seriam sem tal conexão. A unidade que elas formam é, assim, não aquela da identidade, em que uma estrutura reitera ou reproduz perfeitamente ou mesmo “expressa” a outra; ou em que uma é redutível à outra; ou em que cada uma é definida pelas mesmas determinações ou tem as mesmas condições de existência, ou ainda em que cada uma se desenvolve de acordo com a efetividade das mesmas condições de existência; ou ainda em que cada uma se desenvolve de acordo com a efetividade da mesma contradição (i.e., a tão querida “contradição principal”, como justificação e garantia de todos os argumentos, pelo dito marxismo “ortodoxo”). A unidade formada por essa combinação ou articulação é sempre, necessariamente, uma “estrutura complexa”: uma estrutura na qual as coisas estão relacionadas, tanto por suas diferenças como por suas similaridades. Isso requer que os mecanismos que conectam características diversas devam ser demonstrados – já que nenhuma “correspondência necessária” ou homóloga expressiva pode ser pressuposta como dada. Isso também significa – uma vez que a combinação é uma estrutura (uma combinação articulada) e não uma associação aleatória – que há uma relação estruturada entre as suas partes, i.e., relações de dominância e de subordinação. Daí, na frase obscura de Althusser, uma “unidade complexa, estruturada com dominância”. Muitos dos temas clássicos da intervenção althusseriana são resumidos nos e através dos vários usos desse termo: por exemplo, o seu argumento de que a “unidade” de Marx não é uma “unidade expressiva” essencialista como aquela encontrada em Hegel, e que, portanto, a dialética de Marx não é meramente uma inversão, mas um avanço teórico em relação a Hegel. Essa crítica contra a concepção de que a “totalidade” de Marx é uma “totalidade expressiva”, é a base das primeiras críticas de Althusser às tentativas de 11

resgatar o trabalho de Marx do “materialismo vulgar” por meio de um estudo do pensamento de Hegel (ver A favor de Marx de Althusser, especialmente o capítulo Sobre a dialética marxista). Aí também está fundada a crítica de Althusser às tentativas de ler Marx como se ele afirmasse que todas as estruturas da formação social poderiam ser reduzidas a uma “expressão” da base econômica; ou como se todas as instâncias de qualquer conjuntura histórica se movessem em relação de correspondência direta com os termos da “contradição principal” (aquela da “base”, entre forças e relações de produção) – esta é a crítica de Althusser (o oposto daquela contra o idealismo hegeliano) contra o “reducionismo econômico”. A “unidade complexa” de Marx, argumenta Althusser, não é nem aquela na qual tudo expressa ou corresponde perfeitamente a alguma outra coisa; nem aquela em que tudo é redutível a uma expressão do “Econômico”. Ela opera, em vez disso, no terreno da articulação. O que nós encontramos, em qualquer conjuntura histórica particular (o seu exemplo em Contradição e sobredeterminação em A favor de Marx é a Russia de 1917) não é o desenrolar da “contradição principal”, uniformemente, sobre todos os outros níveis da formação social, mas, nos termos de Lênin, “fusão”, “ruptura”, condensação de contradições, cada uma com sua própria especificidade e periodização – “correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos, aspirações sociais e políticas absolutamente contraditórias” – que se “fundiram... de uma maneira supreendentemente ‘harmoniosa’” (Lênin, Letters from afar, n. 1). Tais conjunturas não são apenas “determinadas”, mas sobredeterminadas, i.e., elas são o produto de uma articulação de contradições, não diretamente redutíveis umas às outras. Althusser e Balibar, então, empregam esse conceito teórico geral em uma variedade de contextos. Eles concebem uma formação social como composta por um número de instâncias – cada uma com um grau de “autonomia relativa” em relação às outras – articuladas no interior de uma unidade (contraditória). A instância ou nível econômico, em si mesmo, é o resultado de tal “combinação”: a articulação entre forças e relações de produção. Nas formações sociais particulares, especialmente nos períodos de “transição”, as próprias formações sociais podem ser uma “combinação articulada” de diferentes modos com termos específicos e variados de ordenação hierárquica entre si. O termo também figura na epistemologia althusseriana, que insiste que o conhecimento e a produção do conhecimento não são diretamente produzidos, como num reflexo empirista do real “no pensamento”, mas têm uma autonomia própria e específica – 12

embora esteja “estabelecido e articulado no e com o mundo real de uma sociedade historicamente dada” (Althusser e Balibar, 1970, p.42). A análise científica de qualquer formação social específica depende da correta identificação do seu princípio de articulação: o “encaixe” entre as diferentes instâncias, diferentes períodos e épocas, diferentes periodicidades, i.e., tempos, histórias. O mesmo princípio é aplicado, não apenas sincronicamente, entre instâncias e periodizações no interior de cada “momento” de uma estrutura, mas também, diacronicamente, entre diferentes “momentos”. Isso está ligado com as objeções de Althusser à noção de uma sequência dada de estágios históricos pré-estabelecidos, com um progresso necessário programado no seu interior. Ele insiste em uma leitura não-teleológica de Marx, na noção de uma “sucessão descontínua de modos de produção” (Althusser e Balibar, 1970, p.204), cuja sucessão combinada – i.e., a articulação através do tempo – deve ser demonstrada. De fato, a própria “cientificidade” está associada com “o problema das formas de variação da articulação” das instâncias em cada estrutura social (Althusser e Balibar, 1970, p.207). O mesmo é dito das relações entre a forma econômica e as formas política e ideológica da sua aparência. Isso, também, é pensado na analogia de uma articulação entre estruturas que não expressam diretamente ou espelham uma a outra. Consequentemente, o problema clássico do marxismo – o problema da determinação da estrutura, a “determinação em última instância pelo econômico” (que distingue o marxismo dos outros tipos de explicação científica da sociedade) – é, ele próprio, redefinido como um problema de “articulação”. O que é “determinado” não é a forma interior ou aparente de cada nível, mas o modo de combinação e a localização de cada instância em uma relação articulada com os outros elementos. Essa “articulação da estrutura” como efeito global da própria estrutura – ou o que foi chamado por Balibar de papel matricial do modo de produção – define o conceito althusseriano de determinação: como uma causalidade estrutural (Althusser e Balibar, 1970, p.220). Esta concepção, por outro lado, forneceu a base para a crítica de Hirst e Hindess (1975) da “determinação da articulação pela estrutura” de Althusser como sendo, ela própria, uma “totalidade expressiva” – uma eternidade em sentido spinozista. Lidando com o exemplo da relação entre renda da terra feudal e a relação feudal de senhorio e servidão, Balibar trata-o como uma instância reduzida da articulação de duas diferentes instâncias, uma instância “econômica” e uma instância “política”. Do mesmo modo, Balibar define o conceito de modo de produção como, ele próprio, o resultado de uma combinação variável de elementos (objeto de trabalho, meios de produção, força de trabalho). O que muda, em 13

cada época, não são os elementos, que são invariáveis (no sentido de sua definição), mas o modo como eles são combinados: a sua articulação. Uma vez que não é possível “narrar” o todo da intervenção althusseriana por meio de um único conceito, como o de articulação, ao menos deve ter ficado aparente que ele tem uma ampla e extensa referência nos trabalhos dos marxistas estruturalistas. Embora não possamos abordar o pano de fundo teórico e metodológico da emergência do conceito, nós podemos ao menos mencionar de passagem duas das suas raízes. A primeira é a da linguística estruturalista, que fornece um modelo-mestre de uma parte substancial da aventura “estruturalista”. Saussure, o “fundador” dessa escola, que argumentou que a linguagem não é um reflexo do mundo, mas produz significado por meio da articulação entre os sistemas linguísticos e as relações reais, insiste que o significado não é mera “correlação entre significante e significado, mas talvez mais essencialmente um ato de simultaneamente cortar duas massas amorfas, dois ‘reinos flutuantes’... a linguagem é o domínio das articulações” (Barthes, 1967). Mais pertinente, talvez, seja o fundamento que Althusser e outros encontraram no texto “metodológico” mais longo de Marx – a Introdução de 1857 aos Grundrisse – para uma teoria das formações sociais como o que o próprio Marx chamou de “hierarquicamente articuladas” (Gliederung) – ou, como Althusser traduziu, “um todo orgânico hierarquizado”. “Em todas as formas de sociedade” escreveu Marx, “se encontra uma produção determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua posição e sua influência sobre as outras” (Marx, 1973 [2008, p.266]). Se isso representa um mandamento sutil à construção de um todo que seja um edifício estruturalista, está claro que, naquele texto, Marx estava opondo-se decisivamente a toda noção de uma identidade simples entre as diferentes relações de capital (produção, circulação, troca, consumo). Ele fala, exaustivamente, da complexidade das determinações entre essas relações, cuja soma das articulações, não obstante, deram a ele (nesse texto) o objeto de sua investigação (adequadamente construído em um sentido teórico); e, em O capital, a chave para desvendar a natureza necessariamente complexa das relações entre os diferentes circuitos operando no interior do modo capitalista (cf., Hall, 1973). Esse é o verdadeiro fardo das críticas extensivas de Marx na Introdução de 1857 contra tratar as diferentes relações que compõem o modo capitalista como um “silogismo regular” – uma “identidade imediata”. “Encarar a sociedade como um sujeito único é encará-la de forma falsa, especulativa”. “A conclusão a que chegamos não é de que a produção, a 14

distribuição, a troca e o consumo são idênticos; concluímos, sim, que cada um deles é um elemento de um todo, e representa diversidade no seio da unidade.” (Marx, 1973) Do mesmo modo, parece haver uma clara advertência emitida contra qualquer noção simples de uma sequência evolucionária ou sucessão de estágios de desenvolvimento: “A sua ordem, pelo contrário, é determinada pelas relações que mantêm entre si na moderna sociedade burguesa, ordem essa que é exatamente a inversa da que parece ser a sua ordem natural ou a do seu desenvolvimento histórico. Não está em causa a posição que as relações econômicas ocupam historicamente na sucessão das diferentes formas de sociedade”. Este último ponto indica o que nós gostaríamos de chamar (somando-se àquelas já assinaladas) a terceira premissa do método de Marx: a premissa estrutural. É, acima de tudo, o emprego da premissa estrutural nos trabalhos finais, maduros, de Marx, e a maneira como isso foi apropriado e desenvolvido por Althusser e pelos estruturalistas, que produz, como um de seus resultados teóricos, o conceito extensivointensivo de articulação. O termo articulação em si não é isento de problemas, indicando aqui uma certa abordagem, mais do que fornecendo em si uma resolução teórica aos problemas que ele coloca. Ele foi sujeitado a uma pesquisa crítica. Em si mesmo, o termo tem um significado ambíguo. Em inglês ele pode significar tanto “junta” (como nos membros do corpo, uma estrutura anatômica) como “expressar” (cf. Foster-Carter, 1978). No uso althusseriano, é primordialmente o primeiro sentido que prepondera. Há, em todo caso, objeções teóricas à noção de que uma estrutura “expressa” outra: isso seria equivalente a ver a segunda estrutura como um epifenômeno da primeira (i.e., uma concepção reducionista), e envolveria tratar uma formação social como uma “totalidade expressiva” – precisamente o objeto da crítica inicial de Althusser ao hegelianismo. Algumas noções de uma ligação expressiva – quer dizer, ligações entre as estruturas econômica e política de uma sociedade permanecem, mesmo no uso althusseriano, mas isso é elaborado em outros termos que rompem com qualquer sentido residual de uma “correspondência” perfeita e necessária. Assim, além de insistir na especificidade, a não-redutibilidade, a “autonomia relativa” de cada nível da sociedade, Althusser sempre usa termos como “deslizamento”, “deslocamento”, “condensação”, com o intuito de demonstrar que a “unidade” formada por essas diferentes relações não é unívoca, mas repousa sobre uma “sobredeterminação”. Outra crítica é de que o conceito de “articulação” pode simplesmente deixar duas coisas diferentes jungidas, juntas, por uma 15

conexão meramente externa ou arbitrária: o que Marx uma vez chamou de “elementos autônomos, independentes... não apreendidos em sua unidade” (Marx, 1973). Althusser tenta superar essa “mera justaposição” utilizando o conceito de “sobredeterminação” e sempre falando de “articulação” como envolvendo tanto relações hierárquicas quanto laterais, i.e., relações de dominância e subordinação (cf. a discussão de Marx sobre o dinheiro em diferentes épocas históricas, que não “percorre o seu caminho através de todas as relações econômicas”, mas é definido por desempenhar um papel “dominante” ou “subordinado”. Isso, contudo, atrai outras críticas. O esquema, construído em torno da articulação tem, frequentemente de maneira justa, sido descrito como excessivamente “formalista”. Assim, na “causalidade estrutural” plenamente desenvolvida de Ler O capital de Althusser e Balibar, o “econômico” determina “em última instância” não substantivamente, mas principalmente ao “dar o índice de efetividade” da determinação de uma estrutura sobre a outra, i.e., de uma maneira formal. (Mas Althusser recua de alguns desses excessos formalistas (Althusser, 1976).). Enquanto toda a tentativa de desenvolver tal análise é predicada à necessidade de uma abordagem não reducionista, ela tem sido criticada como fazendo surgir uma concepção da “estrutura” que – uma vez que contém no seu próprio interior todas as condições do seu funcionamento – é ela mesma aquela “totalidade expressiva” que Althusser tentou evitar (cf. Hindess e Hirst, 1975; Hirst, 1977). O pano de fundo está também aberto à crítica que deixa os elementos internos de qualquer “combinação estrutural” imutáveis com a mudança ou transição sendo limitada a variações (diferentes articulações) nas quais “elementos invariantes” são combinados. Isso enfraquece a historicidade da abordagem – contradizendo o que nós chamamos de premissa histórica do trabalho de Marx (mas novamente, ver Althusser, 1976). Essa noção de variação entre elementos invariantes resultou num modo muito formalista de definir um “modo de produção” (defendido, especialmente, por Balibar): então alguns dos avanços reais conquistados na tentativa de basear a análise em uma compreensão mais desenvolvida e sofisticada dos modos de produção e da sua combinação podem ser facilmente viciados por um tipo de formalismo contido na ideia de um “modo de produção” separado após o outro. Não obstante, nós continuamos a insistir no potencial criativo do termo e dos seus conceitos correlatos, que nos dão um ponto de partida para pensar a unidade complexa e a differentiae specificae das formações sociais, sem recair num “materialismo vulgar” reducionista e ingênuo de um lado, nem numa forma de pluralismo sociológico de outro. 16

Até aqui eu falei exclusivamente da aplicação do termo articulação à estrutura econômica das formações sociais complexas. Mas eu também disse que a própria formação social pode ser analisada como uma “hierarquia articulada”. No nível econômico, isso pode envolver a articulação de uma formação social em torno de mais de um modo de produção. Alguns dos caracteres políticos e ideológicos dessas sociedades podem ser explicados com referência a essa combinação particular. Mas também é possível conceituar os diferentes níveis de uma formação social como uma hierarquia articulada. Uma vez que tenhamos assumido que não há qualquer “correspondência necessária” – nenhuma replicação perfeita, homologia de estruturas, conexão expressiva – entre esses diferentes níveis, mas que se deve pensar as relações entre eles como um “todo de relações” (marcadas pelo que Marx definiu em sua Introdução de 1857, quando lidou com essas questões, como “a lei do desenvolvimento desigual”) – é, uma vez mais, à natureza da articulação entre eles que devemos nos voltar. A atenção – de um tipo mais detalhado e analítico – à natureza dos modos de produção nos ajuda a basear esses outros aspectos da formação social mais adequadamente no nível das estruturas econômicas (a premissa materialista). No entanto, nós não podemos por esse meio deduzir a priori as relações e mecanismos das estruturas política e ideológica (onde elementos como o racismo fazem uma aparição decisiva) exclusivamente do nível do econômico. O nível econômico é a condição necessária, mas não suficiente para explicar as operações nos outros níveis da sociedade (a premissa do não-reducionismo). Nós não podemos presumir uma relação expressa de “correspondência necessária” entre eles (a premissa da especificidade histórica). Eles são, como propõe Marx, “um produto das relações históricas e possuem sua validade total apenas por e no interior dessas relações”. Essa é uma qualificação importante, mesmo que crítica. Ela requer de nós que demonstremos – em vez de pressupormos, a priori – qual a natureza e o grau de “correspondência” existente em cada caso histórico específico. Assim, por meio dessa abertura, algumas das críticas que, conforme notamos anteriormente, são feitas da perspectiva das explicações “sociológicas” – por exemplo, a exigência de ser historicamente específico – começam a encontrar, neste pano de fundo, a sua revisão seminal. Aqui, entretanto, diferentes posições no interior da problemática geral da “articulação” podem ser identificadas. Alguns teóricos argumentam que tudo o que nós podemos fazer é lidar com cada nível, em termos da sua própria especificidade, e das “condições 17

de existência” que precisam ser preenchidas por ele para funcionar (i.e., as relações econômicas capitalistas requerem, como uma condição de existência, alguns elementos jurídicos, que assegurem o “contrato” entre o comprador e o vendedor da força de trabalho). Mas, argumenta-se, as formas e especificidades internas dos níveis extraeconômicos não podem ser nem prescritas nem identificadas a partir do nível econômico que as “exige”, como uma necessidade formal para o seu funcionamento. Isso é equivalente à teoria da “autonomia” (não da “autonomia relativa”) dos diferentes níveis (Hirst, 1977; Cutler et al., 1977). Isso, no entanto, falha ao tentar lidar com as formações sociais como uma “unidade complexa” (a “unidade de muitas determinações” de Marx). Outras abordagens reconhecem que pode muito bem haver “combinações tendenciais”: cominações que, se não são prescritas de modo completamente determinista, são combinações “preferenciais”, sedimentadas e solidificadas pelo desenvolvimento histórico real no tempo. Assim, como está claro, diz-se, no caso da América Latina, não há “correspondência necessária” entre o desenvolvimento do capitalismo e as formas políticas da democracia parlamentar. O capitalismo pode repousar sobre fundações políticas muito diversas. O próprio Engels mostrou como o capitalismo pode subordinar e adaptar sistemas legais muito diferentes às suas funções. Isso não nos impede de argumentar que o advento do capitalismo tem frequentemente (tendencialmente) sido acompanhado pela formação de regimes democráticos parlamentares burgueses: ou mesmo de aceitar a observação sensível de Lênin de que a democracia parlamentar fornece “a melhor couraça possível ao capitalismo”. Nós devemos, no entanto, ver essas “combinações” como historicamente específicas, em vez de como especificadas a priori: como “leis tendenciais” – que podem ser contrariadas por “tendências contrárias”. Para tomar um exemplo pertinente: na Europa, a ascensão do capitalismo resultou da destruição dos laços feudais e da formação do “trabalho livre” – da “força de trabalho” como uma mercadoria. É difícil pensar em uma formação capitalista na qual não haveria nenhuma forma de força de trabalho livre disponível ao capital na sua forma “livre”. Isso, por outro lado, significa que, qualquer que seja a forma jurídica específica a que o desenvolvimento do capitalismo “corresponda”, deverá ser uma em que o conceito de “contrato” jurídico entre “pessoas livres” apareça, que possa regular legalmente as formas de contrato que o “trabalho livre” requer. Uma vez que saiamos da sociedade europeia rumo a sociedades pós-conquista ou pós-coloniais, essa combinação 18

– trabalho livre e trabalho “não-livre”, na base de uma combinação de diferentes modos de produção – torna-se mais e mais o caso paradigma. Isso faz com que quase tudo que é importante ainda precise ser feito, desenvolvendo uma melhor compreensão das “leis de movimento” das formações que são estruturadas dessa maneira alternativa. Naturalmente, isso tem consequências para as estruturas política e jurídica. Nessas formações sociais “desviantes” (desviantes apenas no sentido de tomarmos o casoparadigma europeu como ponto de partida), haverá estruturas políticas que combinam (ou podem combinar) formas da democracia parlamentar com outras formas de representação política – ou estruturas jurídicas que elaboram mais de uma forma de condição de cidadão. A “articulação” de trabalho “livre” e trabalho “forçado”, a combinação de “igualdade” de direitos e de “restrição” de direitos, a posição das “colônias internas” dos Chefes e dos Bantustans, e os diferentes estatutos legais dos cidadãos “brancos” e “negros” na formação social sul-africana, representam perfeitamente os elementos de tal caso “variante” – que não é de nenhum modo “nãocapitalista” – se nós lermos as “leis de desenvolvimento e movimento” de Marx como leis de tendência (e contratendência) em vez de como leis de necessidade a priori. Onde, então, as relações entre os diferentes níveis de uma formação social estão envolvidas, são necessários conceitos adicionais, i.e., fornecer mais determinações, do que aquelas que têm sido mobilizadas para a análise dos níveis econômicos do “modo de produção”. E deve-se admitir que o nível econômico sozinho não pode prescrever como esses níveis serão e como eles operarão – mesmo que os seus mecanismos não sejam totalmente especificáveis sem referência ao nível econômico. Aqui, o trabalho de Althusser e dos althusserianos – como, por exemplo, o trabalho de Poulantzas sobre “o Estado” – requerem suplementação pelo trabalho de outro teórico marxista cuja elaboração, neste nível, constitui uma contribuição ao desenvolvimento de um marxismo rigorosamente não-reducionista de primeiríssima importância. Esse trabalho é o de Gramsci. O trabalho de Gramsci é mais fragmentário (a maioria dele foi escrito na prisão, sob os olhos do censor, em uma das cadeias de Mussolini), de longe menos “teorizado” do que aquele de Althusser. Gramsci é um dos pontos essenciais ao desenvolvimento da problemática de Althusser: uma vez que alguns caracteres da obra de Gramsci permanecem “historicistas”, a relação entre Althusser e Gramsci é complexa. Em um recente estudo dessa relação, nós a expressamos como se Gramsci

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fornecesse o “caso limite” de historicidade para um marxismo estruturalista (Hall et al., 1977). Não poderemos elaborar com nenhuma profundidade aqui os conceitos de Gramsci (para uma resenha, ver Hall et al., 1977; Anderson, 1977; Mouffe, 1978). O conceito central no seu trabalho é o de hegemonia. Hegemonia é aquele estado de “autoridade social total” que, em certas conjunturas, uma aliança de classes obtém, por uma combinação de “coerção” e “consentimento”, sobre o todo da formação social, e as suas classes dominadas: não apenas no nível econômico, mas também no nível da liderança política e ideológica, na vida civil, intelectual e moral bem como no nível material: sobre o terreno da sociedade civil bem como no e através das relações condensadas no Estado. Essa “autoridade e liderança” é, para Gramsci, não um dado a priori, mas um “momento” histórico específico – de autoridade social incomum. Ela certamente significa um certo domínio na luta de classes, mas também continua sujeita à luta de classes e às “relações entre as forças sociais” na sociedade, cujo “equilíbrio instável” é apenas um resultado provisório. Hegemonia é um estado do jogo da luta de classes que tem, consequentemente, que ser continuamente trabalhado e reconstruído para que seja mantido, e que permanece uma conjuntura contraditória. O ponto importante para Gramsci é aquele em que, sob condições hegemônicas, a organização do consentimento (pelas classes dominantes à “liderança” da aliança de classes dominantes) toma precedência (embora não oblitere) sobre o exercício da dominação através da coerção. Nessas condições a luta de classes tende a assumir a forma, não de um “assalto frontal” aos bastiões do Estado (“guerra de movimento”), mas uma luta mais prolongada, estratégica e tática, explorando e trabalhando sobre um número de contradições diferentes (a “guerra de posições” de Gramsci). A hegemonia do Estado permite à aliança de classes dominante levar a cabo a enorme tarefa de modificar, subordinar, assegurar e elaborar a “superestrutura” da sociedade de acordo com as exigências de longo prazo de desenvolvimento do modo de produção – i.e., a acumulação de capital em escala ampliada. Ela permite que tal aliança de classe empreenda as tarefas educativas e formativas da totalidade da formação social emergente, elevando-a ao que considera um “novo nível de civilização”, favorecendo o regime ampliado do capital. A hegemonia não é uma imposição imediata e direta dos interesses “corporativos”, estreitos, de curto prazo, de uma única classe na sociedade, ela forja a unidade entre objetivos econômicos, políticos e ideológicos, tal que pode localizar “todas as questões 20

em torno das rivalidades e lutas em um nível ‘universal’ e não corporativo, criando por esse meio a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados”. Isso é o que Gramsci chama de o “papel educativo e formativo do Estado... O seu intuito é sempre o de criar tipos novos e superiores de civilização; adaptar a “civilização” e a moralidade das grandes massas populares às necessidades de desenvolvimento econômico contínuo do aparato econômico da produção” – a formação de uma “vontade nacional-popular”, baseada em uma relação particular entre as classes dominantes e dominadas. Isso, então, depende não de uma correspondência presumida, necessária ou a priori, entre a estrutura “econômica” e as “superestruturas” (política e ideológica), mas precisamente daqueles mecanismos historicamente específicos – e da análise concreta daqueles “momentos” históricos – por meio dos quais tal relação formativa entre estrutura e superestrutura é forjada. Para Gramsci, o objeto de análise é sempre a especificidade desse complexo “estrutura-superestrutura” – pensada como uma articulação historicamente concreta. “É o problema das relações entre a estrutura e a superestrutura que deve ser adequadamente postulado, para que as forças ativas na história de um período específico sejam corretamente analisadas e as relações entre elas compreendidas” [Gramsci, 1978, p.177]. Essa é uma concepção rigorosamente nãoreducionista: “Como, em função disso, é possível conceber todo o sistema das superestruturas como distintas da política e, portanto, como se pode justificar a introdução do conceito de distinção numa filosofia da práxis? Mas se pode falar da dialética dos distintos e como se pode entender o conceito de círculo entre os graus da superestrutura? Conceito de “bloco histórico”, isto é... unidade dos contrários e dos distintos. Pode-se introduzir o critério de distinção também na estrutura?” [Gramsci, 2012, p.26-7] Gramsci, claramente, responde a essas questões afirmativamente. Ele é especialmente mordaz contra qualquer forma de economicismo vulgar: “é necessário combater o economicismo não só na teoria da historiografia, mas também e, sobretudo, na teoria e na prática políticas. Neste campo, a luta pode e deve ser conduzida desenvolvendo-se o conceito de hegemonia” (Gramsci, 1971). A contribuição teórica de Gramsci começou a ser reconhecida apenas recentemente – embora o seu papel como um militante extraordinário na política italiana dos anos 1920 e 1930 seja já bastante reverenciado. A sua análise incide, de modo especialmente rico e produtivo, sobre as grandes formações sociais burguesas do capitalismo desenvolvido da Europa Ocidental, onde uma análise econômica reducionista, claramente, não é 21

suficiente para avaliar profundamente as transformações envolvidas. Talvez por essa razão, ele tem sido encarado como, par excellence, o teórico marxista do “capitalismo ocidental”. Entretanto, o seu trabalho dificilmente tem sido aplicado ou empregado na análise de formações não-europeias. Há, contudo, bases muito sólidas para pensar que ele pode ter uma relevância particular para formações sociais não-europeias – por três razões distintas. Primeiro, Gramsci pode ajudar a combater o peso esmagador do economicismo (marxista e não-marxista) que tem caracterizado a análise das sociedades pós-conquista e “coloniais”. Talvez pelo peso das relações econômicas imperialistas serem tão visíveis, essas formações têm sido virtualmente deixadas para serem explicadas por uma aplicação da teoria do “imperialismo” como um processo puramente “econômico”. Segundo, essas sociedades apresentam problemas como a relação no “complexo estrutura-superestrutura” igual em complexidade àquelas sobre as quais Gramsci escreveu. Naturalmente, nenhuma transferência simples de conceitos seria aconselhável aqui: Gramsci seria o primeiro a insistir na especificidade histórica, na diferença. Terceiro, Gramsci observou o problema da “hegemonia” a partir da história específica da formação social italiana. Isso lhe deu uma perspectiva particular e altamente relevante sobre o problema. Por longos períodos a Itália foi marcada precisamente pela ausência de “hegemonia”: por uma aliança das classes dominantes governando através da dominação ao invés da liderança hegemônica de classe (direção). Portanto, o seu trabalho é igualmente relevante para sociedades nas quais, de acordo com o ritmo e a periodização da luta de classes, tenha havido movimentos significativos para dentro e para fora de uma fase de “direção hegemônica”. Mais do que isso, a Itália foi/é uma sociedade brutalmente marcada pela lei do desenvolvimento desigual: com o desenvolvimento industrial capitalista massivo no norte, e com um subdesenvolvimento massivo no sul. Isso provoca a questão de como as contradições na formação social italiana são articuladas através dos diferentes modos de produção (capitalista e feudal), e por meio das alianças de classe que combinam elementos de diferentes ordens sociais. O problema do Estado, e a questão das alianças estratégicas entre o proletariado industrial e o campesinato, o “papel” das ideologias tradicionais e avançadas, e as dificuldades geradas por elas na formação de uma “vontade nacional-popular” fazem a sua análise da Itália especialmente relevante para as sociedades coloniais. O trabalho de Gramsci foi recentemente reabilitado e desenvolvido de uma maneira estruturalista – especialmente no ensaio “Aparelhos Ideológicos de Estado” de 22

Althusser (Althusser, 1971). Esse ensaio seminal diferencia-se do trabalho de Gramsci, especificamente, ao colocar o problema em termos de “reprodução”. Mas as preocupações que subjazem essa abordagem não estão totalmente distantes daquelas de Gramsci. As relações econômicas de produção devem ser elas próprias “reproduzidas”. Essa reprodução não é simplesmente econômica, mas social, técnica e, sobretudo, ideológica. Esse é outro modo de colocar a observação de Gramsci de que, para alcançar o seu desenvolvimento completo, as relações sociais capitalistas precisam estar acopladas a um desenvolvimento e a uma elaboração nos níveis “não-econômicos” da política, da sociedade civil e cultura, por meio da liderança moral, intelectual e ideológica. Althusser compartilha, então, com Gramsci uma preocupação clássica com a maneira como a “hegemonia” de uma aliança de classes dominante é assegurada, nesses outros níveis, por meio de uma liderança ou autoridade formativa e educativa de classe sobre a formação social como um todo. Ambos argumentam que essa hegemonia alargada ou expandida é específica das instituições, aparelhos e relações das chamadas “superestruturas” do Estado e da sociedade civil. Tanto Althusser quanto Gramsci, portanto, insistem que a ideologia, em si mesma um lugar contraditório e uma baliza da luta de classes, tem uma função específica de assegurar as condições para a reprodução expandida do capital. Ela é, por conseguinte, um nível distinto de luta, onde a liderança é assegurada e contestada: com mecanismos e lugares de luta “relativamente autônomos”. Ambos também sustentam que a “ideologia” não é uma simples forma de falsa consciência, a ser explicada como um conjunto de mitos ou construções falsas de nossas cabeças. Todas as sociedades requerem ideologias específicas, que fornecem aqueles sistemas de significação, conceitos, categorias e representações que dão sentido ao mundo, e por meio dos quais o homem “vive” (mesmo que inconscientemente, e através de uma série de “desconhecimentos”), de uma maneira imaginária, a sua relação com as condições materiais, reais, de sua existência (que apenas são representáveis para eles, como modos de consciência, e através da ideologia). Althusser às vezes tende a representar a ideologia como excessivamente ligada à função de assegurar a dominação da classe dominante: como se toda ideologia fosse, por definição, operativa no interior do horizonte das “ideias dominantes” da classe dominante. Em Gramsci, as ideologias são pensadas de modo mais contraditório – de fato, como locais e balizas da luta de classes. O que interessa a Gramsci é como as ideologias existentes – o “senso comum” das classes fundamentais – que são elas próprias o resultado complexo de momentos e resoluções próprias da luta de classes ideológica, podem ser ativamente trabalhadas de 23

modo a se transformarem na base de uma luta mais consciente, e em formas de intervenção no processo histórico. Ambos insistem, contudo, que as ideologias não estão simplesmente “dentro da cabeça”, mas são relações materiais – o que Lênin chamou de “relações sociais ideológicas” – que formatam ações sociais, funcionam por meio de instituições e aparelhos concretos, e são materializadas através de práticas. Gramsci insiste no processo que transforma essas grandes “ideologias práticas” das classes sociais fundamentais. Althusser, por sua parte, diz que as ideologias operam constituindo indivíduos concretos como “sujeitos sociais” dos discursos ideológicos – o processo que, seguindo Laclau, ele chama de “interpelação de sujeitos”. Essas proposições foram recentemente levadas adiante em uma intervenção seminal de Laclau (1977). Nos ensaios sobre “Populismo” e “Fascismo”, Laclau argumenta que os elementos individuais dessas ideologias (i.e., nacionalismo, militarismo, racismo, “o povo”, etc.) não têm, em si mesmos, qualquer pertencimento de classe, “nenhuma conotação de classe necessária”. Nós não podemos supor, a priori, que esses elementos necessariamente “pertencem” a qualquer classe específica, ou de fato, que uma classe, como uma entidade singular homogênea, tem uma “visão de mundo” unitária e sem contradições que, como diz Poulantzas, ela carrega consigo através da história, “como um número de matrícula gravado nas suas costas” (Poulantzas, 1973). As ideologias, como formações discursivas concretas exibem em si mesmas uma “unidade” peculiar. Essa unidade provém, em primeiro lugar, do que Laclau chama de “condensação”: onde cada elemento “cumpre um papel de condensação em relação a outros. Quando uma interpelação familiar, por exemplo, evoca uma interpelação política, ou uma interpelação estética, e quando cada uma dessas interpelações isoladas opera como um símbolo das outras, tem-se um discurso ideológico relativamente unificado”. (Isso foi definido como uma “unidade ideológica” por meio de um processo de condensação conotativa – cf., O’Shea, 1978). Em segundo lugar, a unidade é assegurada por meio “da interpelação específica que forma o eixo e o princípio de organização de toda a ideologia. Tentando analisar o nível ideológico de uma formação social determinada, nossa primeira tarefa deve ser reconstruir as estruturas interpelativas que a constituem”. Se elementos ideológicos separados não têm correspondência de classe necessária, e as classes não têm ideologias paradigmáticas atribuídas ou adstritas a elas, o que é então a relação entre classes e ideologias? Como se deve supor, essa relação é compreendida em termos do modo como a luta de classes articula vários discursos ideológicos. 24

“Articulação requer... a existência de conteúdos não classistas – interpelações e contradições – que constituem a matéria-prima sobre a qual as práticas ideológicas de classe operam”. Isso ocorre na medida em que ela articula “diferentes ideologias ao seu projeto hegemônico eliminando seu caráter antagônico”. Ideologias são, portanto, transformadas “por meio da luta de classes, que é levada a cabo por meio da produção de sujeitos e da articulação/desarticulação de discursos”. Isso segue a linha geral de Gramsci, que argumenta que as ideologias não podem ser reduzidas a “interesses de classe” coerentes e transparentes das classes dos seus sujeitos, e que as ideologias são transformadas não por meio da imposição de uma “visão de mundo” unitária por uma classe sobre as outras, mas por um “Processo de distinção e mudança no peso relativo possuído pelos elementos da velha ideologia... que era secundária ou subordinada ou mesmo incidental e adquire importância primária, tornando-se o núcleo de um novo todo doutrinal e ideológico” (Mouffe, 1978; ver também a elaboração seminal de Mouffe desse argumento em relação a Gramsci). Há problemas com a tentativa de formulação de Laclau: por exemplo, o que são “práticas de classe” que podem operar para transformar as ideologias, mas são, elas próprias, presumivelmente, isentas de quaisquer elementos ideológicos específicos que “pertençam” a elas? Apesar dessas dificuldades, esses teóricos começam a nos dar elementos por meio dos quais nós podemos tentar construir uma teoria não reducionista dos aspectos superestruturais e extraeconômicos das formações sociais – uma vez mais, movidos pelo uso do conceito de articulação. O que eu tentei fazer neste artigo foi documentar a emergência de um novo paradigma teórico, que obtém a sua orientação fundamental a partir da problemática proposta por Marx, mas que procura, por meio de variados meios teóricos, superar algumas das limitações – economicismo, reducionismo, ‘a priorismo’, ausência de especificidade histórica – que têm assediado determinadas apropriações tradicionais do marxismo, que ainda desfiguram as contribuições dadas a esse campo por outros escritores, e que têm deixado o marxismo vulnerável e exposto a duras críticas provenientes de muitas variantes diferentes do monismo economicista e do pluralismo sociológico. Este é o exame de um campo emergente, não um balanço crítico compreensivo. De modo algum se deve supor que as soluções aqui tentadas tenham sido completamente demonstradas, ou que elas já tenham sido adequadamente desenvolvidas e estejam isentas de grandes fraquezas e lacunas. No que tange às formações sociais racialmente estruturas, que são o 25

objeto principal desta investigação, a problemática mal começou a ser aplicada. Assim, tudo que eu tenho sido capaz de fazer é indicar certos pontos de partida estratégicos neste potencial campo de aplicação, certos protocolos de procedimento teórico. Especificamente, ainda não existe uma teoria adequada do racismo que seja capaz de lidar com os caracteres econômicos e superestruturais desse tipo de sociedade, ao mesmo tempo em que fornece avaliação histórico-concreta e sociologicamente específica dos aspectos raciais distintivos. Tal avaliação, suficiente para substituir aquelas versões inadequadas que continuam a dominar o campo, ainda está por ser construída. Não obstante, na esperança de incentivar e promover tal desenvolvimento pode ser útil concluir com um breve resumo de alguns dos protocolos que – a meu ver, necessariamente – devem governar qualquer investigação proposta. Tal investigação deveria partir de uma aplicação rigorosa daquilo que denominei a premissa da especificidade histórica. O racismo não deve ser abordado como uma característica geral das sociedades humanas, mas como racismos historicamente específicos. Deve-se partir das suas diferenças, das suas especificidades, em vez de compreendê-lo como uma estrutura unitária, transistórica ou universal. Isso não significa negar a possibilidade de que se descubra certas características comuns a todos aqueles sistemas sociais a que se poderia querer atribuir a designação de “racialmente estruturados”. Mas – como Marx apontou em relação à natureza “caótica” de todas as abstrações provenientes exclusivamente de um nível “em geral” – uma tal teoria geral do racismo não é a fonte mais favorável para o desenvolvimento teórico e para a investigação: “mesmo as línguas mais desenvolvimentos têm leis e características comuns com as menos desenvolvidas, todavia, apenas as coisas que determinam o seu desenvolvimento, i.e., os elementos que não são gerais e comuns, devem ser separados... de modo que em sua unidade... a sua diferença essencial não seja esquecida”. (Marx, 1973) O racismo em geral é uma “abstração racional” na medida em que “efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição”. Portanto, ela pode nos ajudar a distinguir aqueles aspectos sociais que fixam as diferentes posições dos grupos e classes sociais na base de uma atribuição racial (biologicamente ou socialmente definida) de outros sistemas que têm uma função social similar. Entretanto, “Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a algumas. Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga”. Isto é um alerta contra a extrapolação de uma estrutura comum e 26

universal do racismo, que permaneceria essencialmente o mesmo, fora de sua localização histórica específica. É apenas partindo de como os diferentes racismos são especificados historicamente – em suas diferenças – que se pode compreendê-los propriamente como um “produto de relações históricas que possui validade integral apenas no interior dessas relações”. Daí segue-se que poderia haver mais a ser aprendido se distinguirmos aquilo que, no senso comum, aparece como variantes de uma mesma coisa: por exemplo, o racismo contra o escravo do Sul do racismo da inserção dos negros nas “formas livres” do capitalismo industrial desenvolvido no Norte do pós-guerra; ou o racismo das sociedades escravistas do Caribe daquele das sociedades metropolitanas como a Grã-Bretanha, que teve que absorver trabalhadores negros para a sua produção industrial no século XX. Em parte, isso pode acontecer porque não se pode explicar o racismo fazendo abstração de outras relações sociais – mesmo se, alternativamente, não se possa explica-lo reduzindo-o àquelas relações. Tem-se dito que há racismos que floresceram nas formações sociais pré-capitalistas. Isso só significa que, quando se lida com formações sociais mais recentes, deve-se mostrar minuciosamente como o racismo é reorganizado e rearticulado com as relações dos novos modos de produção. O racismo no interior das sociedades escravistas de plantation na fase mercantilista do mundo capitalista desenvolvido tem um lugar e uma função, significado e mecanismos de sua efetividade específica, que são explicados apenas superficialmente quando transplantados desses contextos históricos específicos para outros totalmente diferentes. Finley (1969), Davis (1969, 1970) e outros têm argumentado que, ainda que a escravidão no mundo antigo fosse articulada por meio de classificações depreciativas que produziam uma distinção entre povos escravizados e povos escravizadores, ela não ocasionava necessariamente o uso de categorias especificamente raciais, coisa que a escravidão de plantation fez em quase todos os lugares. Assim, não se pode supor uma coincidência necessária entre racismo e escravidão enquanto tais. Precisamente as diferenças nos papéis que a escravidão desempenhou nessas épocas e formações sociais tão diferentes podem nos indicar o fundamento necessário para compreender o que essa coincidência específica entre escravidão e racismo deveria assegurar. Onde essa coincidência de fato aparece, os mecanismos e a efetividade do seu funcionamento – incluindo a sua articulação com outras relações – precisa ser demonstrada, não presumida.

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Novamente, a suposição comum de que foram atitudes de superioridade racial que precipitaram a introdução da escravidão de plantation deve ser desafiada. Poder-se-ia muito bem partir do polo oposto – vendo como a escravidão (produto de problemas específicos de escassez de força de trabalho e do modo de organização da agricultura de plantation, suprida, em primeiro lugar, por força de trabalho não-negra e indígena, e apenas depois por força de trabalho branca contratada) produziu aquelas formas de racismo jurídico que distinguiram a época da escravidão de plantation. A elaboração das formas jurídica e de propriedade escravistas, como um conjunto de enclaves no interior de sociedades baseadas em outras formas legais e de propriedade, requereu um trabalho específico e elaborado de trabalho ideológico – como a história da escravidão e da sua abolição dá eloquente testemunho. O mesmo pode ser dito, in extenso, de todas as explicações que atribuem o racismo em geral a algum modo universal de funcionamento da psicologia individual – a “obsessão racial” ou o “instinto de raça” – ou explicam o seu aparecimento em termos de uma psicologia geral do preconceito. A questão não é se o homem-em-geral faz distinções sensíveis [perceptual] entre grupos com características raciais ou étnicas diferentes, mas quais são as condições específicas que tornam essa forma de distinção socialmente pertinente e historicamente ativa. O que dá a essa potencialidade humana abstrata a sua efetividade, a sua força material concreta? Pode-se dizer, por exemplo, que a longa hegemonia imperial da Grã-Bretanha e a íntima relação entre o seu desenvolvimento capitalista doméstico e as conquistas coloniais de além-mar, produziram um rastro de racismo ativo na consciência popular britânica. Entretanto, isso sozinho não pode explicar nem a forma e a função que o racismo assumiu no período do “imperialismo popular”, desde o auge da rivalidade imperialista até o fim do século XIX, tampouco as diferentes formas de racismo contra indígenas, que penetraram profundamente na própria classe trabalhadora, característica decorrente do contato entre trabalhadores negros e brancos nas condições da imigração do pós-guerra. As histórias desses diferentes racismos não podem ser escritas como uma “história geral” (Hall, 1978; Hall, et al., 1978). Apelos à “natureza humana” não são explicações, mas álibis. Deve-se, portanto, partir do “trabalho” histórico concreto que o racismo cumpre sob determinadas condições históricas – como um conjunto de práticas econômicas, políticas e ideológicas de um tipo distintivo, concretamente articuladas com outras práticas em uma formação social. Essas práticas designam lugares e posições para os 28

diferentes grupos sociais uns em relação aos outros no que tange às estruturas elementares da sociedade; fixam e designam posições nas práticas sociais correntes; e legitimam as posições designadas. Sinteticamente, são práticas que asseguram a hegemonia de um grupo dominante sobre uma série de grupos subordinados, de modo a dominar o todo da formação social de uma forma favorável ao desenvolvimento de longo prazo da base econômica produtiva. Embora os aspectos econômicos sejam decisivos, como um ponto de partida, essa forma de hegemonia não pode ser compreendida como se operasse puramente por meio de coerção econômica. O racismo, tão ativo no nível do “núcleo econômico”, onde segundo Gramsci a hegemonia deve ser assegurada em primeiro lugar, precisa elaborar também as suas relações nas outras instâncias – nos níveis político, cultural, ideológico. No entanto, posta dessa maneira (obviamente correta), essa afirmação permanece ainda muito a priori. Como esses mecanismos operam especificamente? Quais outras determinações precisam ser fornecidas? O racismo não está presente, da mesma forma e no mesmo grau, em todas as formações capitalistas: ele não é necessário ao funcionamento concreto de todos os capitalismos. Deve-se demonstrar como e porque o racismo tem sido especificamente sobredeterminado por e articulado com determinados capitalismos em diferentes estágios do seu desenvolvimento. Nem mesmo se pode supor que ele tome uma única forma ou siga um modelo necessário ou lógico, através dos estágios do desenvolvimento capitalista. Isso requer de nós que mostremos a articulação do racismo com as diferentes estruturas da formação social. Por exemplo, a posição do escravo na sociedade de plantation préemancipação não era assegurada exclusivamente através da raça. Ela era assegurada predominantemente por relações produtivas específicas e distintivas de agricultura baseada na escravidão, e por meio de um estatuto distintivo da propriedade do escravo (como uma mercadoria) e da força de trabalho escrava (uma “parte do corpo” daquele que a exercia e que não era nem mesmo o seu “proprietário”), em conjunto com sistemas jurídico, político e ideológico que ancoraram essas relações numa designação racial. Esse acoplamento pode ter fornecido uma racionalidade pré-pronta bem como um estatuto de funcionamento para aquelas estruturas do “racismo informal” que se tornaram operativas quando o trabalho negro “libertado” migrou rumo ao norte dos Estados Unidos ou no interior do sistema de “vilarejos livres” no Caribe pósemancipação. Mas esse acoplamento operou de novas formas, e precisou de seu próprio 29

trabalho ideológico – como na legislação “Jim Crow” das décadas de 1880 e 1890 (Van Woodwart, 1957). A reprodução e designação de um lugar subalterno ao trabalho negro, como uma fração específica das classes trabalhadoras “livres” do capitalismo industrial, foi assegurada – com a ajuda de um racismo transformado, mas também por meio de outros mecanismos, que cumpriram os papéis a ele designados nessa estrutura de acordo com as novas formas e necessidades do capital. Neste caso, muitas lutas se desenvolveram explorando as suas falhas, ou atacaram diretamente as contradições entre designação racial e as ideologias oficiais de “igualdade de oportunidades” que simplesmente não estavam disponíveis aos escravos negros sob o sistema de plantations (Myrdal, 1962). Nós tratamos essas diferenças como “essencialmente as mesmas” por nossa conta e risco. Por outro lado, não é porque o desenvolvimento do capitalismo funciona aqui predominantemente com base no “trabalho livre” que os aspectos raciais das relações sociais podem ser teoricamente submetidos, para propósitos práticos, às suas relações de classe (como faz Cox (1970), apesar de suas muitas observações pertinentes). A raça continua a diferenciar as diferentes frações das classes trabalhadoras em relação ao capital, criando formas específicas de fratura e de fragmentação que são tão importantes pelo modo como interseccionam relações de classe (e dividem a luta de classes, internamente) quanto são meras “expressões” de alguma forma geral da luta de classes. Política e culturalmente, essas relações combinadas e desiguais entre classe e raça são historicamente mais pertinentes do que a sua simples correspondência. No nível econômico, está claro que se deve reconhecer à raça o seu caráter distintivo e a sua efetividade “relativamente autônoma”. Isso não significa que se pode encontrar na economia uma explicação satisfatória de como essas relações funcionam concretamente. É necessário saber como os diferentes grupos étnicos e raciais se inseriram historicamente e as relações que tenderam a corroer e transformar ou a preservar através do tempo essas distinções – não simplesmente como resíduos e traços de modos de produção prévios, mas como princípios ativos de estruturação do modelo presente de organização social. As categorias raciais por si só não são capazes de explicar isso. Quais são as diferentes formas e relações por que essas frações raciais combinaram-se sob o capital? Elas estabelecem relações significativamente diferentes com o capital? Elas estão baseadas na articulação de diferentes modos de produção? Quais são as relações de dissolução/conservação entre elas? Como a raça tem funcionado para 30

preservar e desenvolver essas articulações? Quais são as funções que os modos de produção secundários desempenham na reprodução do modo de produção dominante? Essas funções estão ligadas à reprodução doméstica do trabalho “abaixo do seu valor”, ao fornecimento de força de trabalho barata, à regulação do “exército industrial de reserva”, à oferta de trabalho não-qualificado, à subsistência da agricultura, aos custos ocultos da reprodução social? As “economias naturais” indígenas da América Latina e as formas da produção semidoméstica características das sociedades caribenhas diferem de modo significativo entre si a esse respeito. O mesmo é verdadeiro mesmo onde diferentes frações étnicas estabelecem tipos idênticos de relações com o capital. Por exemplo, a posição da força de trabalho negra no norte industrializado dos Estados Unidos e da imigração negra para a Grã-Bretanha do pós-guerra demonstram modelos de funcionamento extremamente distintos no que tange às demarcações raciais: mesmo assim, nenhuma dessas situações pode ser explicada sem que se recorra ao conceito de “exército industrial de reserva”. Deve ficar claro que a categoria dos “negros” não é a única divisão no interior do “exército de reserva” e, consequentemente, a raça não é único mecanismo por meio do qual o seu tamanho e composição são regulados. Nos Estados Unidos, tanto imigrantes brancos (i.e., europeus e mexicanos) quanto mulheres, e na Grã-Bretanha, tanto mulheres como irlandeses constituíram um elemento alternativo significativo (ver Braverman, 1975; Castle e Kosack, 1973). Consequentemente, as alternativas analisadas no início deste artigo [não contidas nesta tradução, N.T.] estão seriamente fragilizadas no nível teórico, fale-se de formações “metropolitanas” ou “periféricas” e independentemente de se estar analisando as suas formas históricas ou contemporâneas. Como afirmei recentemente (Hall, et al., 1978), as estruturas por meio das quais o trabalho negro é produzido – estruturas que podem ser gerais para um capitalismo em certo estágio de desenvolvimento, qualquer que seja a composição racial do trabalho – não são “coloridas” simplesmente pela raça: elas trabalham através da raça. As relações do capitalismo podem ser pensadas como a articulação das classes de distintos modos em cada nível ou instância da formação social – econômico, político, ideológico. Esses níveis são os “efeitos” da estrutura da produção capitalista moderna, com o necessário deslocamento da autonomia relativa que opera entre eles. Cada nível da formação social requer “meios de representação” próprios e específicos – os meios pelos quais o modo de produção estruturado em classes aparece e adquire efetividade no nível da luta de classes econômica, política e ideológica. A raça é 31

intrínseca ao modo como o as classes trabalhadores negras são complexamente constituídas em cada um desses níveis. Ele penetra no modo como o trabalhador negro, homens e mulheres, são distribuídos como agentes econômicos no nível das práticas econômicas e na luta de classes que resulta disso; e no modo como as frações das classes trabalhadoras negras são reconstituídas por meio da representação política (partidos, organizações, centros de ação comunitárias, publicações e campanhas) como forças políticas no “teatro da política” – e nas lutas políticas daí resultantes; e na maneira como a classe é articulada em “sujeitos” coletivos e individuais de ideologias emergentes – e nas lutas pela ideologia, cultura e consciência daí resultantes. Isso nos dá um quadro da dimensão da raça e do racismo, e da sua centralidade tanto prática quanto teórica em todas as relações que afetam o trabalho negro. A constituição dessa fração como uma classe, e as relações de classe que a designam, funcionam como relações de raça. A raça é assim, também, o modo como a classe é “vivida”, o meio através do qual as relações de classe são experimentadas, a forma na qual ela é apropriada e combatida. Isso tem consequências para todas as classes e não apenas para aqueles segmentos “racialmente definidos”. Isso tem consequências em termos de fracionamento interno e divisão da classe trabalhadora que, dentre outros modos, são articulados em parte por meio da raça. Mas isso não é uma mera conspiração dos “de cima”. O racismo é também um dos modos dominantes da representação ideológica por meio do qual as frações brancas da classe trabalhadora “vivem” as suas relações com as outras frações, e com o próprio capital. Aqueles que procuram, com efeito, desarticular algumas das sintaxes existentes na luta de classes (ainda que de modo corporativista ou socialreformista) e rearticular a experiência de classe por meio de interpelações condensadas de uma sintaxe ideológica racista são, obviamente, agentes chave no trabalho de transformação ideológica – esta é a luta de classes ideológica empreendida precisamente pelas classes dominadas em proveito do capital por meio da articulação das contradições internas da experiência de classe com o racismo. Na Grã-Bretanha, esse processo alcançou um estado raro e generalizado. Mas isso aconteceu porque as suas práticas se dão sobre as contradições no interior e dentro da classe, trabalhando sobre efeitos reais da estrutura (não obstante isso possa ser “distorcido” pelo racismo) – e não porque eles são inteligentes ou demônios conjurados, ou porque eles carregam suásticas e lêem Mein Kampf.

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O racismo é, assim, não apenas um problema para os negros que são obrigados a sofrêlo. Nem um problema apenas para aqueles setores da classe trabalhadora branca e para as organizações “infectadas por ele”. Tampouco ele pode ser superado, como um vírus geral no corpo social, pela inoculação de uma alta dose de remédio liberal. O capital reproduz as classes, inclusive as suas contradições internas, como um todo – estruturado pela raça. Ele domina as classes divididas, em parte, por meio dessas divisões internas que têm o racismo como um dos seus efeitos. Ele contém e mutila as instituições representativas de classe, neutralizando-as – confinando-as a estratégias e lutas que são racialmente específicas, e que não podem superar esses limites, essas barreiras. Por meio do racismo, ele é capaz de derrotar as tentativas de construir meios alternativos de representação que poderiam representar mais adequadamente a classe como um todo, ou que fossem capazes de efetivar a unidade da classe trabalhadora como um resultado: isto é, aquelas alternativas que poderiam representar adequadamente a classe como um todo – contra o capitalismo, contra o racismo. As lutas seccionais, articuladas por meio da raça, em vez disso, continuam a aparecer como estratégias defensivas necessárias de uma classe dividida contra si mesma, face a face com o capital. Elas são, portanto, também o lugar de continuação da hegemonia do capital sobre ela. Isso certamente não é tratar o racismo como o produto de um simples truque ideológico. Não obstante, tal análise precisaria ser complementada por uma análise das formas específicas assumidas pelo racismo em seu funcionamento ideológico. Aqui, teríamos que começar investigando as diferentes maneiras pelas quais as ideologias racistas têm sido construídas e tornadas operativas sob diferentes condições históricas: o racismo da teoria mercantilista e da propriedade de escravos; da conquista e do colonialismo; da troca e do “alto imperialismo”; do “imperialismo popular” e do assim chamado “pósimperialismo”. Em cada caso, em cada formação social específica, o racismo como uma configuração ideológica tem sido reconstituído por relações de classe dominantes, e constantemente retrabalhado por meio delas. Se ele desempenhou a função de cimento ideológico que assegura que o todo da formação social permaneça sob uma classe dominante, suas diferenças pertinentes em relação a outras ideologias hegemônicas precisam ser registradas em detalhe. Aqui, o racismo é particularmente poderoso e o seu carimbo na consciência popular especialmente profundo, porque em características raciais tal como cor, origem étnica, posição geográfica, etc., o racismo descobre o que outras ideologias precisam construir: uma base aparentemente “natural” e universal na 33

própria natureza. Até mesmo porque, apesar de estar aparentemente baseado em dados biológicos, o racismo tem efeitos sobre as outras formações ideológicas no interior de uma mesma sociedade, e o seu desenvolvimento provoca uma transformação de todo o campo ideológico no qual ele torna-se operativo. Nesse sentido, ele pode submeter outros discursos a ele – por exemplo, ele certamente se articula com a estrutura corporativa de consciência de classe – por meio do mecanismo de condensação conotativa anteriormente discutido. Os seus efeitos são similares aos de outras ideologias das quais, em outros aspectos, ele precisa ser diferenciado: o racismo também desistoriciza – traduzindo estruturas historicamente específicas para uma linguagem natural atemporal; decompõe as classes em indivíduos e recompõe esses indivíduos desagregados em unidades reconstruídas, a grande coerência dos “sujeitos” ideológicos: ele traduz “classes” em “negros” e “brancos”, grupos econômicos em “povos”, forças concretas em “raças”. Esse é o processo de constituição de novos “sujeitos históricos” pelos discursos ideológicos – o mecanismo que nós discutimos anteriormente, de formação de novas estruturas de interpelação. Ele produz, como dados naturais, “autores” de uma forma espontânea de percepção racial, o “sujeito racista” naturalizado. Essa não é uma função externa, operativa apenas contra aqueles que ele ordena e desarticula (aqueles que ele silencia). Ela também é pertinente para os sujeitos dominados – aqueles grupos étnicos subordinados ou “raças” que vivem a sua relação com as suas condições reais de existência, e com a dominação das classes dominantes, na e através da representação imaginária de uma interpelação racista, e que vivem eles próprios a experiência de serem “os inferiores”, les autres. Mesmo que esses processos nunca estejam excluídos da luta ideológica de classes. As interpelações racistas podem se tornar, elas mesmas, lugares e balizas da luta ideológica, ocupadas e redefinidas para operarem como formas elementares de uma formação de oposição – como quando o “racismo branco” é vigorosamente contestado por meio das inversões simbólicas do “black power”. As ideologias do racismo permanecem sendo estruturas contraditórias, que podem funcionar tanto como veículos de imposição das ideologias dominantes, quanto como formas elementares para as culturas de resistência. Qualquer tentativa de delinear as políticas e ideologias do racismo que omita o aspecto contínuo de luta e de contradição obtém uma aparente adequação de explicação apenas operando um reducionismo imobilizador.

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Neste campo de investigação, a “teoria sociológica” ainda tem que encontrar o seu caminho, por meio de um difícil esforço de esclarecimento, contra a Cila de um reducionismo que precisa negar quase tudo para poder explicar algo, e contra o Caríbdis de um pluralismo tão hipnotizado pelo “tudo” que não consegue explicar nada. Àqueles que desejam trabalhar nisso, tudo está por fazer.

HALL, Stuart. "Race, Articulation, Societies Structured in Dominance". In: Sociological Theories: Race and Colonialism. UNESCO, Paris, 1980. pp.306-324 – [TRECHOS SELECIONADOS]

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