Hannah Arendt e a questão do amor de si em Agostinho

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA, Cristina BECKERT e Margarida AMARAL (Coords.), Hannah Arendt: luz e sombra. Seminário Internacional, Lisboa, CFUL, 2007, pp.149-156.

HANNAH ARENDT E A QUESTÃO DO AMOR DE SI EM AGOSTINHO Maria Leonor L.O. Xavier

A superação do egocentrismo terá sido, a nosso ver, um dos fios condutores do desenvolvimento da filosofia do amor em Agostinho. Um dos seus primeiros diálogos filosóficos, o Diálogo sobre a Felicidade (De beata vita), dá claro testemunho disso: na alegoria inicial da navegação, os navegantes que se dirigem para o porto da filosofia têm de enfrentar um obstáculo de monta, o rochedo da vanglória, isto é, têm de recusar um valor egocêntrico; depois, na própria orientação que o diálogo toma, sobre o caminho da felicidade, conduzindo o desejo para aquilo apenas que não se pode perder, o medo da perda é o motivo central de infelicidade, e este é obviamente um motivo egocêntrico. É também o medo da perda que motiva a adesão ao eterno, e com ela, o amor a Deus. Este amor tem, pois, uma forte motivação egocêntrica em Agostinho, que nunca é completamente eliminada na evolução do seu pensamento. No entanto, a inclinação egocêntrica não terá passado despercebida à consciência auto-crítica de Agostinho. Daí a necessidade de reflectir sobre esse ponto de atracção, que é o seu si. Daí a centralidade do amor de si a si na filosofia augustiniana da alma, implicando quer um constitutivo conhecimento de si, como condição, quer a sua ordenação, como meio, ao amor a Deus. Contrabalançando a motivação egocêntrica do amor a Deus, a exigência de ordenação do amor de si, como amor instrumental ou de uso (uti), ao amor a Deus, como amor de fruição (frui), exprime um esforço de auto-descentramento. Com efeito, é por causa do amor a Deus que o amor de si a si não é um fim em si mesmo, e consegue, por isso, descentrar-se. Mas é também por causa do amor a Deus que o amor ao próximo, tal como o amor a si, não é um fim em si mesmo. O teocentrismo, que modera o egocentrismo, também relativiza o amor ao próximo, como um meio, de forma análoga ao amor a si. Hannah Arendt compreendeu bem a dificuldade de justificação do amor ao próximo na filosofia de Agostinho. Daí a relevância da terceira parte da sua obra, O Conceito de Amor em Agostinho (Der Liebesbegriff bei Augustin)1, na interpretação dessa justificação. Daí também a necessidade de questionar o amor de si na interpretação do conceito de amor em Agostinho. O amor de si é, por isso, o fio condutor da nossa abordagem da interpretação arendtiana. Encontramo-lo como um elo comum às principais articulações conceptuais que a obra tece. Encontramo-lo, em especial, através da análise dos duplos sentidos, que pontuam e caracterizam a interpretação arendtiana. Essas dualidades de análise permitem-nos compreender como Hannah Arendt não só acompanha o questionamento augustiniano do egocentrismo, como não abandona e até reforça o antropocentrismo da filosofia de Agostinho.

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Obra doravante referida e citada segundo a versão inglesa: Love and Saint Augustine, editada por Joanna Vecchiarelli Scott e Judith Chelius Stark, Chicago – Londres, The University Chicago Press, 1996 (tradução de E. B. Ashton, com subsequentes revisões da autora: cf. pp.x, 115).

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA, Cristina BECKERT e Margarida AMARAL (Coords.), Hannah Arendt: luz e sombra. Seminário Internacional, Lisboa, CFUL, 2007, pp.149-156. O duplo amor de si O amor de si intervém, desde logo, no âmbito do primeiro conjunto conceptual, constituído a partir da acepção do amor como desejo (appetitus), que a filósofa intérprete de Agostinho tematiza na primeira parte da sua obra. Nesse primeiro conjunto, o amor é desejo de possuir, que se transforma, na posse, em medo de perder o objecto possuído. Assim se começa por reconhecer a estreita relação entre o amor, como desejo, e o medo da perda. Hannah Arendt não questiona propriamente o carácter egocêntrico do desejo da posse e do medo da perda. A relação entre o desejo e o medo dá, no entanto, ocasião a introduzir a divisão augustiniana do amor, em cupidez (cupiditas) e caridade (caritas): a cupidez é o apego ao mutável e a caridade é a adesão ao eterno. Só a adesão ao eterno impede que o desejo da posse se transforme em medo da perda. Só a adesão ao eterno impede que o amor de si se transforme em medo da perda de si, isto é, em medo da morte, a perda de todas as perdas. Este reconhecimento é bem fiel ao pensamento de Agostinho, que não se altera, neste ponto, ao longo da sua evolução. Mas, como situar, então, o amor de si neste primeiro conjunto conceptual? É cupidez ou caridade? Numa primeira análise, o amor de si é apego a um si mortal, passível de se transformar em medo da morte, e, portanto, faz parte da cupidez. O amor de si, como cupidez, tem que dar lugar à renúncia a si, a fim de libertar o si do medo da morte. Por isso, «o ódio de si é a última, desesperada consequência do amor de si, que deseja, mas nunca alcança, o seu próprio “bem”»2. Assim, a renúncia a si está incontornavelmente no caminho do amor de si, como desejo daquilo cuja perda, a morte, não permite possuir. Do amor de si, como cupidez, resulta a renúncia a si3. Quer isto dizer que, na caridade, o amor de si já não existe para dar lugar à renúncia a si? Já não existe o amor de si, como cupidez, mas não desaparece todo o amor de si. Aqui começamos a deparar com as dualidades típicas da análise arendtiana. É que não há um só amor de si; há um duplo amor de si: o amor ao si mortal, que pertence ao mundo, e que, juntamente com o amor ao mundo perecível, é cupidez; e o amor ao si futuro, que pertence a Deus4. Este segundo amor de si não contradiz, antes conduz ao amor a Deus. Mas este segundo amor de si será ainda desejo? Se fosse desejo, este segundo amor de si centrar-se-ia no seu objecto, que seria, neste caso, o próprio si, deixando-se determinar inteiramente por ele. Ora, o segundo amor de si é um amor a si na pertença a Deus, portanto, já descentrado de si. Por isso, já não é desejo (appetitus), mas dilecção (dilectio), isto é, amor ordenado, determinado pela ordem que fixa o que está acima do si (Deus), o que está ao nível do si (o próximo) e o que está abaixo do si (o corpo)5. O segundo amor de si é, assim, um amor ordenado de si, não exclusivo a si nem centrado em si, mas integrado na ordem do amor. Todavia, nesta ordem, o lugar do si é crucial: é relativamente ao si que se define o que está acima, o que está ao mesmo nível e o que está abaixo. O si é, pois, o ponto crucial do amor ordenado, ou da ordem do amor. Esta ordem diminui, mas não elimina a centralidade do amor de si. 2

«Rather this self-hatred is the last, desperate consequence of self-love that desires, but never attains, its own “good”.» Op. cit., p.31. 3 Na medida em que decorre fundamentalmente da frustração do amor a um si perecível, esta renúncia a si é considerada por Arendt, como «pseudo-cristã» (cf. Op. cit., p.30), isto é, como não exclusiva ou propriamente cristã. 4 Cf. Op. cit., pp.25-31. 5 Cf. Op. cit., pp.37-39.

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O duplo ante Entre o primeiro e o segundo amor de si, medeia a renúncia a si. Mas, como é que a renúncia a si dá lugar ao segundo amor de si, o amor ordenado de si na pertença a Deus? Como é que o si chega a esta pertença? Através da interrogação sobre a sua própria origem. Esta interrogação profundamente humana traz para primeiro plano o papel da memória. Terá o si, memória da sua origem? Da sua origem intra-mundana ou extra-mundana? O conhecimento da origem parental, portanto, intra-mundana, que permite o amor filial, não é imediatamente assegurado por uma recordação explícita, mas é prenunciado pela fé no testemunho dos parentes, o que Agostinho apresentara como caso de fé natural, em De utilitate credendi. Não é também a respeito de uma origem intra-mundana, que Hannah Arendt convoca o tema da memória, na sua obra sobre o conceito de amor em Agostinho; é, sim, a respeito da origem extra-mundana no Criador, do si como criatura. A filósofa intérprete de Agostinho toma como evidência dessa origem, a memória da vida feliz: esta memória não é a recordação de uma experiência intra-mundana, mas de uma noção de vida feliz incomparável com a vida terrestre, e que acusa a dependência de algo fora de si. Mais do que uma recordação, a memória da vida feliz é um regresso ao Criador, origem extra-mundana e verdadeiro ser do si6. O segundo amor de si é, portanto, uma relação retrospectiva a um ante extra-mundano. Não obstante esta elaborada ilação, permitimo-nos aqui discordar da interpretação de Hannah Arendt relativamente à memória da vida feliz em Agostinho. Os textos por ela citados, de Confissões X, não obrigam a aceitar a sua interpretação, apenas a permitem como uma extrapolação. Esses textos procuram responder à questão de saber como é possível uma memória da vida feliz, que permite procurá-la, a quem não a possui ainda: «Acaso do mesmo modo como nos lembramos da alegria? Talvez. Na verdade, mesmo estando triste, lembro-me da minha alegria, tal como estando infeliz, me lembro da vida feliz; e nunca vi, nem ouvi, nem cheirei, nem provei, nem toquei a minha alegria com os sentidos do corpo, mas experimentei-a no meu espírito quando me alegrei, e o conhecimento dela fixou-se na minha memória»7; «Porque isto [a alegria] é uma coisa que ninguém pode dizer não ter experimentado, por isso mesmo, ao encontrá-la na memória, ela é reconhecida quando se ouve a expressão “vida feliz”»8. Antes de aproximar a memória da vida feliz e a memória da alegria, Agostinho tinha testado a afinidade da memória da vida feliz com a memória de inteligíveis, como os números e a eloquência. Mas, por um lado, a recordação dos números não estimula, antes anula o desejo de alcançá-los, ao contrário recordação da vida feliz, que, em vez de anular, alimenta o desejo de possuí-la. Em muito difere, pois, a memória dos números, da memória da vida feliz. Por outro lado, a recordação da eloquência estimula, de facto, em muitos o desejo de serem eloquentes, no que a memória da eloquência se aproxima da memória da vida feliz, embora, no caso da eloquência, o desejo de ser eloquente não dependa só da inteligibilidade prévia da eloquência, uma vez que não é 6

Cf. Op. cit., pp.46-49. Confissões X, 21, 30. Edição bilingue, com tradução de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina C.-M. S. Pimentel, introdução de Manuel Barbosa da Costa Freitas, notas de âmbito filosófico de Manuel Barbosa da Costa Freitas e José Maria da Silva Rosa, Lisboa, Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira/ Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, p.483. 8 Confissões X, 21, 31, p.485. 7

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA, Cristina BECKERT e Margarida AMARAL (Coords.), Hannah Arendt: luz e sombra. Seminário Internacional, Lisboa, CFUL, 2007, pp.149-156. fácil dissociá-lo da observação nos outros da expressão sensível dessa qualidade inteligível. Em contrapartida, a vida feliz nos outros escapa completamente à observação por via sensitiva. Por conseguinte, também da memória da eloquência se afasta a memória da vida feliz. O caso mais similar a esta é, de acordo com os passos citados, a memória da alegria. Ora, esta é a memória de uma emoção humana tão inelutável, pelo menos, quanto a da tristeza. Mas a memória da alegria é a memória de uma experiência humana intra-mundana. Portanto, se a memória da vida feliz é análoga à memória da alegria, tal como Agostinho o admite, pelo menos hipoteticamente (“Talvez” - fortasse ita), então a memória da vida feliz é também a memória de uma emoção humana intra-mundana. A extrapolação arendtiana em torno da memória da vida feliz é, na realidade, uma solução para a questão da origem da memória de Deus (memoria Dei). Esta é uma grande interrogação de Agostinho, para a qual não é para nós claro que o filósofo antigo tenha encontrado uma resposta precisa. A memória de Deus não é uma memória de imagem, como a memória dos sensíveis; nem uma memória de impressão esbatida, como a memória das emoções passadas; mas é uma memória de presença, como a memória dos inteligíveis. Mas como é que Deus se torna presente à memória? Num recôndito canto? Num fundo sem fundo? Agostinho acaba por reconhecer que a presença de Deus é uma omnipresença, e que não é senão por uma espécie de cegueira mental que o si tem necessidade de procurá-la9. Agostinho não defende, deste modo, a retrospectividade da memória de Deus. A retrospectividade conduziria à reminiscência, e esta implicava a pré-existência da alma, doutrina que o platonismo augustiniano acabou por recusar expressamente10. Mesmo que ancorada numa metafísica exemplarista, de raiz platónica, das razões eternas da criação no Criador, a concepção de uma relação retrospectiva do si a um ante extra-mundano, através da memória da vida feliz, é uma elaboração mais arendtiana do que augustiniana. No entanto, a relação retrospectiva do si a um ante extra-mundano é nuclear na metafísica através da qual Arendt interpreta o amor em Agostinho, permitindo não só compreender a relação do si a um fim extra-mundano como reequacionar a relação entre o si e o mundo. Com efeito, a perspectiva sobre o fim, para o qual tende o si, conduz, não a admitir uma relação prospectiva oposta à relação retrospectiva com a origem, mas a duplicar esta mesma relação retrospectiva. Daí a concepção arendtiana do duplo ante, como origem e fim extra-mundano do si11. Esta concepção insere-se numa metafísica do ser e do ente, segundo a qual Hannah Arendt interpreta a relação entre Criador e criatura: o Criador é identificado com o ser absoluto, imutável e eterno, que está antes de todas as coisas, e que é o verdadeiro ser de todas elas; a criatura é identificada com o ente que vem à existência, caracterizando-se o ser criatural pelo devir e pela mutabilidade. Estas são propriedades decorrentes da condição essencialmente relativa do criado. Daí a consideração da imitação, como atitude fundamental do ente relativamente ao ser, do qual se distanciou pela sua condição criatural12. Daí o apego à origem, acusado pela retrospectividade da relação do si ao seu fim, na análise arendtiana do duplo ante. Esta análise conduz-nos ainda a outras dualidades, como a uma dupla determinação da procura de si, obrigando a recuar aquém da renúncia a si. A procura de 9

Cf. Confissões X, 26, 37. Cf. A Trindade XII, 15, 24. 11 «Being relates to human life as that from which it comes and to which it goes, and this “before” (ante) man in the twofold sense of past and future.» Op. cit., p.55. 12 Cf. Op. cit., pp.52-54. 10

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA, Cristina BECKERT e Margarida AMARAL (Coords.), Hannah Arendt: luz e sombra. Seminário Internacional, Lisboa, CFUL, 2007, pp.149-156. si, intensa e reflectidamente experimentada por Agostinho, pode tomar duas direcções, segundo Hannah Arendt, configurando-se como uma interrogação fundamental quer sobre a origem quer sobre o fim da sua existência13. A interrogação sobre o fim da existência de si dá lugar também a uma dupla acepção de fim: por um lado, o termo da vida, que é a morte; e, por outro lado, a eternidade que confina com termo da vida14. Dir-se-ia que a morte é a acepção negativa de fim, e a eternidade, a acepção positiva de fim. Seria, todavia, simplista pensar assim. A morte tem um papel positivo: é ela que denuncia a vanidade da vida que acaba, e, desse modo, reconduz à origem, que coincide com a eternidade, a segunda acepção do fim da existência15. No processo de interrogação sobre a origem da sua existência, o si encontra a sua relação com o mundo. Também do mundo, há diversos sentidos a discernir na análise arendtiana. Antes de mais, a acepção grega de mundo como cosmos, isto é, como ordem superior e eterna, que permanece para além do devir das coisas mutáveis. Esta acepção de mundo está presente no conceito de universo em Agostinho, sobretudo, nos primeiros escritos, como ilustra especialmente o diálogo sobre a ordem, De ordine, mas tende a perder importância à medida que ganha terreno o modelo bíblico da criação16. Este modelo dá conta de uma origem anterior ao mundo e torna o mundo criação de Deus. Entretanto, também o mundo criado se desdobra numa dupla acepção, na interpretação de Hannah Arendt: há o mundo natural, simbolizado pelo céu e pela terra, que é criação divina; e há o mundo humano, constituído pelas relações que o homem tece com o mundo que habita17. É a este mundo por si constituído que o homem se liga com laços de pertença e de amor. É também, por isso mesmo, que este mundo humanamente instaurado comporta a negatividade de poder tornar-se uma alienação do amor a Deus, porquanto se perfila como um falso ante, iludindo a anterioridade do verdadeiro ante do ser anterior à criação18. O amor do mundo, como apego a um falso ante, concorre assim com o amor a Deus, como regresso à verdadeira origem. É esse amor do mundo, que é negativo, e que Hannah Arendt identifica com a concupiscência ou a cupidez19. Não se pense, porém, que o amor de si está ausente quer do amor do mundo quer do amor a Deus para além do mundo. Não, o amor de si está presente em ambos, de modo que o amor do mundo é, na realidade, um amor de si na pertença ao mundo, e o amor a Deus, um amor de si na pertença a Deus. Por isso é que o amor a Deus não anula todo o amor de si, embora requeira a renúncia a si na pertença ao mundo.

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«Self-questioning (se quaerere) can thus be doubly guided: man can ask himself both about the “whence” and the “whither” of his existence.» Op. cit., p.70. 14 «The end of life, to which life relates and which throws life back, is an end in a twofold sense. It is finis vitae, the end to which life inherently comes. As such it is the end as the last and most radical indication of life’s transience. However, “end” is also understood as the end by which life ceases to be and for whose sake life is lived. In this sense, “end” may be defined as the point where life meets eternity or even as eternity itself. Eternity is then the end achieved by life.» Op. cit., p.73. 15 Cf. Op. cit., pp.75-76, 78. 16 Como Hannah Arendt reconhece: cf. Op. cit., pp.57-65. 17 «The concept is twofold: first, the world is God’s creation (heaven and earth), which antedates all love of the world; and second, it is the human world, which constitutes itself by habitation and love (diligere).» Op. cit., p.66. 18 Cf. Op. cit., p.68. 19 «The missing of the turn – a mistaking of the world that exists before and after man for eternity – is a turn to the wrong “before”. It is characterized as covetousness (concupiscentia), or cupiditas.» Op. cit., p.77.

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA, Cristina BECKERT e Margarida AMARAL (Coords.), Hannah Arendt: luz e sombra. Seminário Internacional, Lisboa, CFUL, 2007, pp.149-156. Mas, se o amor de si nunca se ausenta dos rumos do amor, que dizer do amor aos outros? Vamos, assim, ao encontro da questão que determina a terceira parte da obra de Hannah Arendt sobre o conceito de amor em Agostinho: a questão do sentido do amor ao próximo. Este amor parece não encontrar razão suficiente no processo de conversão do amor de si na pertença ao mundo ao amor de si na pertença a Deus. Esta pertença a Deus, que caracteriza as relações humanas na cidade de Deus, garante certo descentramento do si, impedindo a instrumentalização do outro ao serviço de si: amar-se a si e ao outro por Deus impede a redução quer do si ao outro quer do outro ao si, preservando a paridade do si e do outro, tal como se encontra acautelada no mandamento do amor. Mas o que é que obriga a introduzir o outro no amor do si a Deus? Esta interrogação obriga a reconsiderar a questão da origem e a desdobrá-la de novo numa dupla questão, que pede uma dupla resposta: uma é a origem do ser particular do homem no Criador; e outra é a origem do género humano num antepassado comum, simbolizado por Adão20. Aquela origem é dada por criação, enquanto esta é dada por nascimento. Ora, é esta segunda origem que determina um parentesco originário entre os seres humanos e a pertença de uns aos outros21. É, em virtude desse parentesco e desta pertença, que o outro ser humano se torna próximo do si, e que o amor mútuo se revela amor fraterno22. No entanto, por que razão é que Hannah Arendt dissocia tão abruptamente a origem divina do ser particular do homem, como criatura, da origem adâmica do género humano? É que esta segunda origem está marcada pelo pecado, constituindo, na verdade, a origem da natureza decaída do homem23. Portanto, a segunda origem do homem, aquela que funda a co-pertença dos homens entre si, é uma má origem. O amor mútuo entre o si e o próximo, como amor fraterno, tem, assim, um mau princípio, marcado desde logo pelo pecado. A filósofa-intérprete de Agostinho não se detém na interpretação da índole do pecado original, após o que dissera sobre o amor desordenado da cupidez, entendida como apego ao falso ante mundano. De qualquer modo, é o passado comum de pecado da estirpe adâmica, que justifica, em última análise, que os homens se dêem as mãos entre si num amor mútuo, que constitui o conceito de caridade social, na interpretação de Hannah Arendt24. Este conceito de caridade social é, aliás, um dos desenvolvimentos mais singularmente arendtianos desta abordagem do amor em Agostinho. Um desenvolvimento fiel a Agostinho? Julgamos que sim, na medida em que a evolução do pensamento de Agostinho não só não o impede, como até o propicia, 20

«In raising the question about the neighbour’s relevance, we find that the question about humanity’s origin is doubly posed and doubly answered by Augustine. First, Augustine inquires about the being of man as an individual. In this inquiry the question about being is identical with the question of whence this being comes – what is its source. The answer is that God is the source of each and every individual. It is at this point that the individual is discovered. The individual then becomes decisive for neighbourly love as the focus of concern for the other’s salvation. However, the other person, in his capacity as our neighbour who does not merely happen to be in the same world with us and to believe in the same God, does not come into this field of vision at all. Second, when Augustine asks about the origin of the human race, the answer, as distinct from the self-sameness of God, is that the origin lies in the common ancestor of us all. Analogous to this, man is seen in the first sense as isolated and coming by contingency into the world viewed as a desert. In this second sense, man is seen as belonging to mankind and to this world by generation.» Op. cit., pp.111-112; vd. também pp.103-104. 21 Cf. Op. cit., pp.95, 99-100. 22 Caracterizando a comunidade de Cristo: cf. Op. cit., pp.108-109. 23 Cf. Op. cit., pp.102-105. 24 «In Part III we shall see that we meet the other person as our neighbour in “social” caritas, because human beings belong together due to their common historic descent from Adam.» Op. cit., p.95.

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA, Cristina BECKERT e Margarida AMARAL (Coords.), Hannah Arendt: luz e sombra. Seminário Internacional, Lisboa, CFUL, 2007, pp.149-156. atendendo ao seu reconhecimento crescente do estado decaído da natureza humana, e das inevitáveis repercussões desse estado. Uma questão se tornou também para nós inevitável: será que os homens só são capazes de serem solidários entre si por causa da miséria que têm em comum? Não haverá uma causa positiva para a solidariedade humana? Esta é uma questão e um desejo, que não podemos deixar de formular, na consciência de que, com Agostinho, segundo Hannah Arendt, não conseguimos superar uma visão sombria da nossa humanidade.

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