Hannah Arendt - pluralidade, dialética, pensamento

August 31, 2017 | Autor: Carla Francalanci | Categoria: Hannah Arendt, Contemporary Political Philosophy
Share Embed


Descrição do Produto





*Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A distinção entre obra e ação é um ponto crucial do pensamento arendtiano. Cf. Hannah Arendt, A condição humana. 11ª edição revista. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, pp. 169 a 308.
É nesse entrelaçamento fundamental que Arendt interpreta as sentenças emblemáticas de Aristóteles, que apresentam o homem como "vivente dotado de logos" e "vivente político". Id. Ibid., pp. 29 a 33.
´Cf. Julia Kristeva.Hannah Arendt: life is a narrative. Toronto: University of Toronto Press, 2001, pp. 56 a 70.
"Além das condições sob as quais a vida é dada ao homem na Terra e, em parte, a partir delas, os homens constantemente criam suas próprias condições, produzidas por eles mesmos, que, a despeito de sua origem humana e de sua variabilidade, possuem o mesmo poder condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma duradoura relação com ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana".Id., Ibid. Nota 2, pp 10-11.
Id., Ibid., pp. 11-12.
4 Id. Ibid., p. 220.
Id. Ibid., p. 220.
Cf. Martin Heidegger. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 165 a 184.
Hannah Arendt. A vida do espírito. Trad. Cesar Augusto de Almeida, Antônio Abranches e Helena Martins. . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 20.
É preciso marcar que Hannah Arendt compreende uma separação radical entre o pensamento socrático e o platônico.Com relação a essa questão, a autora duvida de uma crença incondicional de Platão no desejo universal pelo Bem, e oferece como argumento em favor de sua posição o próprio mito de castigos e recompensas com o qual o Górgias se encerra, dirigido segundo ela às multidões, no sentido de coagir os homens ao Bem por temor. "Podemos não saber se Sócrates acreditava realmente que a ignorância causasse o mal, ou que a virtude pudesse ser ensinada; no entanto é certo que Platão achava mais prudente fiar-se em ameaças" Ibid., pp. 202-203.
Id., Ibid, p. 202.
Plato. Phaedrus. Translated by H. N. Fowler. Cambridge and London: Harvard University Press, 1995, 265d a 266c.
Platão. Górgias,482c, APUD Id., Ibid. Nota 10, p. 203 (Grifo da autora).
Id., Ibid., p. 207.
"O fato de que o estar-só, enquanto dura a atividade de pensar, transforma a mera consciência de si – que provavelmente compartilhamos com os animais superiores – em uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem essencialmente no plural". Id., Ibid., p. 207
Id., Ibid., p. 207.
Plato. Greater Hippias. Translated by H. N. Fowler. Cambridge and London: Harvard University Press, 1992, 304d (Trad. minha).
"What do I fear? Myself? There's none else by./ Richard loves Richard; that is, I am I./ Is there a murderer here? No. Yes, I am./ Then fly! What, from myself? Great reason. Why:/ Lest I revenge. Myself upon myself?/ Alack, I love myself. Wherefore? For any good/That I myself have done unto myself?/ O no, alas, I rather hate myself/ For hateful deeds committed by myself./ I am a villain. Yet I lie, I am not/ Fool, of thyself speak well: fool, do not flatter". William Shakespeare, Richard the III, V.v. 134-145, APUD Hannah Arendt, Ibid. Nota 10, pp. 211-212.
"Conscience is but a Word that cowards use,/Devis'd at first to keep the strong in awe…" Id., Ibid., p 212.
Id. Ibid., pp. 79-80.
Hannah Arendt: pluralidade, dialética, pensamento

Carla Francalanci

Neste escrito, gostaria de enfocar a dialética a partir de uma perspectiva que a recoloca em questão na contemporaneidade. Meu interesse é mostrar como Hannah Arendt volta a apresentá-la como paradigma da atividade de pensar, retomando assim, no século XX, as considerações socrático-platônicas. No entanto, essa retomada, antes de tudo, trata de uma ressignificação, uma vez que a pensadora a rejeita como método por excelência para encontrar a verdade, para onde se dirigia a investigação de Platão, contrapondo esse esforço a um outro empenho, para ela a mais legítima meta do pensamento, o da compreensão como criação de sentidos. Será importante mostrar como esse retorno da dialética no pensamento de Arendt a relaciona a questões prementes na contemporaneidade, como a relação entre filosofia e política – realizada no texto que segue pela investigação da noção de pluralidade e sua relação intrínseca com o desdobramento dialético do pensamento –, o problema do mal e o questionamento do próprio estatuto e objetivos da atividade de pensar.
As considerações que irei apresentar partem de um enfoque determinado do movimento mais amplo do pensamento de Hannah Arendt, que considero oportuno explicar antes de tudo. Minha proposta é encarar sua filosofia em geral, e assim, igualmente, as questões que serão aqui levantadas, por uma dupla visada, ou antes, pelo entrelaçamento de duas perspectivas, política e fenomenológica. Sua preocupação maior com o tema da política visa torná-la aparente e significativa como atividade intrinsecamente humana, buscando mostrar que ela revela ao homem aspectos da existência dos quais, somente por seu intermédio, o homem se apropria, ou por ela é capaz de se apropriar mais do que em qualquer outra atividade. Pela política somente, para Arendt, a liberdade se põe em ato, pois por meio dela nos revelamos como iniciadores, instauradores de novas possibilidades, apresentando-se essas sempre improváveis, inauditas, das quais aquele mesmo que inicia não detém o controle, do mesmo modo que, ao nascer, o recém-nascido se instaura no mundo como um recém-chegado, trazendo consigo a possibilidade da implantação de novas configurações de mundo. "Um menino nasceu; o mundo tornou a começar"; essa sentença de Guimarães Rosa poderia perfeitamente figurar como emblema para o pensamento de Hannah Arendt a esse respeito. Pela política ainda, ao realizar ações que instauram história, o homem, nessa característica de ator, pode ser desvelado por si mesmo, isto é, não mediatizado pelas obras que produz e lança no mundo. A obra, se confere ao seu autor o próprio de uma realização finita, também confere à sua existência um caráter necessariamente secundário em relação a ela. Se Cervantes somente passa a ser alguém através do Quixote, alçando-se da turba indistinta para a glória da realização de uma obra imortal, Cervantes não deixa, contudo, de ter sua existência atrelada à do Quixote, de secundá-lo, sendo o autor, ao final, supérfluo com relação à sua obra, no sentido de que o Quixote continuaria sendo o que é, mesmo se o seu autor fosse Pierre Menard, ou mesmo se permanecesse desconhecido. Arendt contrapõe esse modo de revelar-se humano pela obra ao do agir político, no qual as mais impalpáveis dentre as atividades humanas, ação e discurso, precisam ser propagadas e lembradas para que não se percam no momento mesmo de sua efetivação, e só ganham o seu sentido próprio quando se as atribui a um quem, a um agente ou proferidor determinado. Ao desvelar o homem como realizador de feitos e pronunciador de palavras, a ação política o revela em sua dimensão intrinsecamente humana. Dessa forma, para a autora, somente na política o homem se mostra como um "quem", ao invés de desdobrar-se como um "que", isto é, através da enumeração de suas qualidades, maneira pela qual apreendemos os entes em geral, que possuem caráter não humano.
A liberdade e a revelação do "quem" são exemplos breves, acerca dos quais, por essas linhas, muito fica ainda por explicar. O seu sentido aqui é apenas o de nos ajudar a compreender o caráter existencial inalienável dado pela autora ao âmbito político.
Todavia, esse entrelaçamento entre existência e política deve, a meu ver, ser ainda tomado em sentido inverso: se, por um lado, trata-se de tornar aparente a dimensão existencial insubstituível do fazer político, é preciso, por outro lado, ressaltar o âmbito político inalienável da existência. É nesse encaminhamento que desejo introduzir a compreensão arendtiana da pluralidade, como uma condição fundamental da vida humana, para, através dela, tecer algumas considerações sobre a dialética.
É preciso, em primeiro lugar, aclarar o sentido que a autora confere ao termo condição, fundamental em seu pensamento, a ponto de postar-se no cerne de um de seus escritos mais importantes, A condição humana. Em primeiro lugar, esse termo se refere ao fato da vida humana, isto é, às possibilidades e limites dadas à nossa vida na Terra. Contudo, o que Arendt busca ressaltar é, antes de tudo, o caráter dinâmico pelo qual enfoca essa noção em seu sentido fundamentalmente humano. Os homens são condicionados de uma maneira singular, não partilhada por nenhum outro ente; ao invés de se encontrarem estaticamente atrelados ao seu meio, como os demais viventes, somos os únicos entes que se tornam condicionados pelas próprias relações que estabelecemos no mundo. Assim, cada nova configuração de mundo passa a se constituir para nós quase como uma nova "natureza", retornando a nós ao nos impor novos limites e ao nos abrir nova gama de possibilidades. Hannah Arendt não pretende elencar ou se apropriar por enumeração das características e atividades essenciais para a existência humana; ao contrário, é a impossibilidade de tal feito o que ela visa ressaltar, uma vez que a noção de condição se apresenta vinculada ao caráter fundamentalmente histórico do homem, no sentido de que a humanidade poderá vir a perder as principais modalidades de existência que conhecemos hoje sem que, com isso, os seus indivíduos deixem necessariamente de ser humanos, por terem alcançado para si condições radicalmente novas.
A pluralidade se apresenta como uma das condições fundamentais de nossa vida até então. Ela se refere ao fato de que os homens, e não o homem, habitam a Terra. Ser uma condição de nossa vida significa, assim: a pluralidade não deve ser contada como mero dado ou fato constatável, mas antes como algo que entra na estruturação da vida humana e que a faz ser e desdobrar-se, a partir dela e por ela, de um modo determinado. Pluralidade tem para a autora um sentido outro com relação à mera alteridade, própria a todo ente, de maneira tal que aparece no pensamento medieval como uma das marcas do Ser, uma de suas características universais, e outro ainda com relação à distinção e variação individual inscritas nos viventes. A diferença é que o homem é o único ente capaz de exprimir essa distinção e de revelá-la, revelando a si próprio ao comunicar aos outros quem ele é, ao invés apenas de comunicar informações ou estados de alma. Ser plural significa ser inscrito em uma dupla condição: é ser a um só tempo igual, enquanto partilhamos da humanidade, e único, enquanto cada um de nós é essa humanidade de um modo como nenhum outro homem foi, é ou será. Assim, a pluralidade enquanto condição humana se constitui como "a paradoxal pluralidade de seres únicos".
Não se trata aí, deve-se frisar, de um mero ser em conjunto. É preciso marcar que o pensamento de Hannah Arendt se filia ao de Heidegger em sua compreensão fenomenológica do existir e do caráter de revelação ou desocultação próprio ao real como um todo, e parte assim de uma compreensão do habitar o mundo em caráter de co-presença, para o qual ser-no-mundo é sempre já ser-com os outros, isto é, já se ter aberto a eles, contar com eles e levá-los em conta, mesmo na lida mais aparentemente solitária. Contudo, a autora tem como sua marca ressaltar, por um lado, as atividades próprias que decorrem dessa condição, ação e discurso, realçando o que elas trazem de único e de insubstituível para a existência; por outro, o seu pensamento se empenha em aprofundar a visualização de como a pluralidade se inscreve em nós de modo a moldar até mesmo as atividades que nos parecem mais solitárias e a ela contrapostas, como é o caso do pensamento, tema que veremos mais adiante. Para a autora, o caráter mesmo de realidade do mundo é assegurado por nós na busca do seu compartilhamento com outros: "Você está vendo o mesmo que eu?" é uma pergunta trivial, corriqueira; contudo, ela pressupõe que, para nós, o fato de que compartilhar uma visão com outros a valida como realmente existente. A pluralidade se inscreve, assim, na própria constituição da realidade para cada um.
***
Se A condição humana é uma obra na qual Hannah Arendt se volta para o âmbito dos afazeres humanos que constituem isso que, desde a Antiguidade, se denominou bios praktikós ou vita activa, deixando explicitamente de lado a sua contraparte, o bios theoretikós, sua obra inacabada A vida do espírito visa precisamente sanar essa lacuna, ocupando-se das atividades espirituais, divididas em pensar, querer e julgar. Na seção dedicada ao pensar, encontram-se reflexões acerca do modo de proceder do pensamento que gostaria de apresentar, a fim de ressaltar e discutir um dos aspectos fundamentais da dialética, no modo como ela foi entendida desde Platão: precisamente, o seu caráter intrinsecamente dialogal. Assim, um fator que a converte no método de investigação platônico por excelência é a compreensão que esse autor possui do pensamento como o diálogo silencioso da alma com ela mesma.
Contudo, o pensamento nessa obra é examinado tendo em vista um objetivo específico e distinto da meta platônica. Conforme a autora relata em sua introdução, o impulso inicial para essas reflexões foi dado por Arendt ter sido convidada a assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, em 1961. A constatação que a marcou e que deu origem ao texto Eichmann em Jerusalém foi que o autor daqueles crimes hediondos não parecia ter sido levado a cometê-los por ódio, ressentimento, inveja, fraqueza, sequer por adesão cega a uma ideologia, motivos apontados comumente como as causas mais tradicionais do mal; ao contrário, a característica mais marcante de Eichmann parecia ser a irreflexão, mostrada tanto na incapacidade de apresentar motivos para os seus crimes e de considerá-los como tais, quanto na impossibilidade de produzir respostas aos mais variados assuntos que fugissem ao uso de clichês e fórmulas convencionais. Impressionada por esse contraste entre a monstruosidade do crime e a banalidade do agente e de seus motivos, ela começa a se perguntar se há uma conexão íntima entre o mal e a ausência de pensamento. Daí emerge a sua indagação inicial:
"A questão que se impunha era: seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção, independentemente de resultados e conteúdo específico – estivesse entre as condições que levam os homens a abster-se de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os 'condicione' contra ele?"
Seguir essa linha de reflexão implica para Hannah Arendt em discutir com o pensamento socrático-platônico, que aparece na História da Filosofia como emblema da associação entre mal e ausência de conhecimento. Contudo, ela rejeita tanto o seu ponto de partida, o desejo universal pelo bem, uma vez que, na perspectiva da pensadora, a ausência de reflexão gera antes uma ausência de motivação, seja para o mal ou para o bem, quanto o encaminhamento platônico da questão, que faria o pensamento concentrar-se em determinados objetos, eternos e inefáveis, alcançáveis apenas mediante um treinamento rigoroso na arte do pensar, que confeririam dignidade ao pensamento e o encaminhariam em última instância para o bem agir, a decorrer dessa compreensão como que naturalmente. O caminho de investigação de Arendt enveredará, ao contrário, por uma descrição do pensar enquanto atividade, buscando investigar se há algo no seu modo mesmo de proceder que possa ser apontado como contraposto ao mal: "Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o mal, esse algo deve ser alguma propriedade inerente à própria atividade, independentemente dos seus objetos".
Esse algo presente na atividade de pensar é detectado pela autora como o seu caráter intrinsecamente dialético. Mas o que ela enfoca da dialética não é o seu modo de tratar o objeto para o qual se volta, o método de divisões e reuniões pelo qual o personagem platônico Sócrates se declara apaixonado no Fedro. O foco da dialética como paradigma do ato de pensar recai, na perspectiva da autora, na maneira mesma de desdobrar-se a cada vez, que a autora caracterizou como um dois-em-um.
O ponto de partida para essa interpretação é retirado de uma fala de Sócrates no Górgias, citada pela autora:
"Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e [preferiria] que multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me".
Pensar nessa direção implica em vencer o aparente paradoxo contido na sentença: se sou um, como posso estar em acordo ou desacordo comigo mesmo? Afinal, o número mínimo para que se produza harmonia ou desarmonia, acordo ou desacordo, é dois, jamais um. Sendo assim, como compreender essa dualidade inscrita na afirmação socrática pela qual ele sustenta simultaneamente a sua unidade?
Arendt encaminha uma resposta chamando atenção para uma condição dupla de aparecimento contida em cada homem: o modo primeiro do aparecimento de cada um se dá para os outros; ser visto pelos outros como um, como sempre o mesmo eu, é condição do meu reconhecimento por parte deles. Contudo, posso ainda aparecer de outro modo, no sentido de que, ao pensar, apareço também para mim mesmo. Essa atividade produz um desdobramento, uma duplicação entre o eu que aparece e o eu que toma em consideração esse aparecimento. Por esse processo, posso tornar-me para mim mesmo objeto de pensamento. Isso mostra o caráter de dualidade próprio ao eu que pensa, que mostra que todo pensamento é uma ação de voltar-se sobre si, isto é, de auto-compreender-se e desdobrar-se enquanto pensante. Essa duplicação se encontra presente quando penso não apenas sobre mim mesmo, mas sobre qualquer coisa, pois esse pensar, embora o realizemos quase sem percebermos, se desdobra de maneira inerentemente dialogal, na forma de um "o que você entende por...?". Assim, no ato de pensar, exercito essa dualidade que se desdobra na busca de um acordo comigo mesmo a respeito do que quer que seja, procedendo por meio de perguntas e respostas. Aquele que pensa, enquanto o faz, se desdobra em alguém que pergunta e um outro – que é, contudo, o mesmo – que responde.
A situação do pensamento pressupõe por parte de quem o exerce uma retirada do mundo das ocupações, o que desde a Antiguidade fez com que se opusessem radicalmente os dois modos de vida, o bíos praktikós e o bíos theoretikós. Contudo, o estar só que essa retirada promove não pode ser confundido com um mero estado de solidão:
"Existencialmente falando, o pensamento é um estar-só, mas não é solidão; o estar-só é a situação em que me faço companhia. A solidão ocorre quando estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia, quando, como Jaspers dizia, 'eu falto a mim mesmo' (...), ou, em outras palavras, quando sou um e sem companhia".
O desdobrar-se em dois e o proceder assim em diálogo consigo, buscando um acordo interno para o que se pensa, possui para Arendt uma dupla consequência: em primeiro lugar, eles mostram que a dialética é a estrutura mesma do nosso processo de pensamento, a sua modalidade de desdobramento intrínseca; em segundo lugar, permitem à autora afirmar serem essas indicações de que a pluralidade constitui uma marca essencial do humano. Existir aparece, assim, como ser essencialmente no plural. O pensamento é, desse modo, a incorporação dessa pluralidade ao âmbito do cada um, pelo exercício da dualidade que intrinsecamente podemos ser e pelo emprego do discurso, o modo político por excelência, como meio de seu desdobramento.
Nesse sentido, pensar é o contrário de unificar-se. A unificação ocorre precisamente quando essa atividade se encerra, quando quem pensa é novamente chamado ao mundo das aparências, onde se é, sempre, apenas um a cada vez, em cada aparição.
Encarar o pensamento desde a perspectiva do seu objeto de consideração traz à tona o problema da verdade: faz-se mister encontrar respostas para as indagações feitas, o que Arendt credita ao campo do intelecto ou da cognição, distinguindo-os do ato de pensar. Tomado, contudo, desde a perspectiva do seu desdobrar-se enquanto atividade, o pensamento deixa de possuir um objeto que lhe seja exterior, e cuja questão se poderia solucionar, fazendo então cessar a busca, no encontro da solução ou resposta. O pensamento se assume, assim, enquanto atividade infindável. Seu ponto de partida é a consciência, o saber com outros que se inscreve na raiz do termo, logo, o ser cúmplice, no caso, de si mesmo, mas que não pode ser confundida com uma consciência moral, no sentido de que essa traria algum saber acerca de bem e mal ou de certo e errado. Aqui, o único critério reivindicado para ela por Arendt para fazê-la passar à atividade do pensamento é a conformidade ou acordo consigo mesmo, empregado para investigar o que quer que demande a sua atenção. A fim de ilustrá-lo, a autora cita a fala final de Sócrates no Hípias Maior, pois ela remete a esse encontro e ao peso que o acordo consigo traz para a vida de Sócrates. Ele se diz aguardado, sempre que chega em casa, por alguém de quem, mais do que todos os demais, ouve tudo de mal (pánta kaká akoúo), e que vive a refutá-lo :
"Pois acontece que ele é um parente muito próximo, que vive comigo na mesma casa. Então, quando for para casa e ele me ouvir dizendo essas coisas (i.é., dizendo o mesmo que Hípias), perguntar-me-á se eu não me envergonho de ousar discorrer sobre as belas práticas (kalôn epitedeumáton), quando meu embaraço mostrou tão claramente que, acerca do belo, não sei sequer o que ele poderá ser".
É curioso ressaltar que esse "parente próximo" não o acompanha sempre, mas espera por Sócrates "em sua casa", isto é, ele se faz ouvir no momento em que o filósofo se retira do espaço de convivência com os outros e passa a estar só consigo mesmo. Isso implica que essa atividade não acontece de per si espontaneamente e que, assim, pode bem ser encerrada: a única coisa que se necessita para tal é parar de investigar e de indagar-se, isto é, não pensar. No entanto, a proximidade com relação a esse "outro" é o que torna preferível indispor-se com uma multidão de homens a discordar de si.
O contrário disso, o estar em desacordo consigo mesmo, significa tornar-se e abrigar em si mesmo o seu próprio inimigo. Em contraponto à demanda socrática por essa harmonia interna, Arendt apresenta uma fala contundente, retirada do Ricardo III de Shakespeare.
"Que diálogo se pode ter consigo mesmo quando a alma não está em harmonia, mas em guerra consigo mesma? É este o diálogo que se subentende quando Ricardo III, de Shakespeare, está só:
De que estou com medo? De mim mesmo? Não há mais ninguém aqui:
Ricardo ama Ricardo: isto é, eu sou eu.
Há um assassino aqui? Não. Sim, eu:
Então fujamos! Como? De mim mesmo? Boa razão essa: por medo de que me vingue. Como?
Eu de mim mesmo? Ora! Eu me amo. Por quê? Por algum bem
Que possa ter feito a mim mesmo?
Mas não, ai de mim! Eu deveria me odiar
Pelos atos execráveis cometidos por mim?
Sou um canalha. Não, minto; eu não sou
Idiota, fala bem de ti mesmo: idiota, não te adules."

Esse "diálogo silencioso" de Ricardo com sua alma ilustra a contradição interna de quem, ao investigar-se, descobre-se na companhia mais íntima de um assassino. A saída para uma tal divisão e sofrimento internos deverá então ser: não pensar. Essa é precisamente a solução buscada por Ricardo, que afirma, ao fugir de si para reunir-se aos outros,
Consciência é apenas uma palavra que os covardes usam,
Inventada antes de mais nada para infundir temor nos fortes...

***

Seria no mínimo bastante ingênuo de minha parte pressupor que a relação entre pensamento e mal tenha sido "resolvida" por Arendt através desse percurso, e mais ingênuo ainda pretender que ele coubesse no espaço de um artigo. O que pretendi mostrar aqui foi apenas uma indicação do percurso pelo qual a autora começa a construir a sua maneira de abordar e de compreender essa questão. Importante, a meu ver, é a retomada da dialética como paradigma da atividade de pensar, tendo sido operado, contudo, o deslocamento dessa atividade, do âmbito da verdade, próprio ao intelecto, para o da compreensão. Compreender é buscar significado para os acontecimentos do mundo e para a realidade que nos cerca, interrogando assim reiteradamente, em uma atividade infindável. A conexão e, simultaneamente, a separação dessas atividades pode ser assim encarada:
"Quando distingo verdade e significado, conhecimento e pensamento, e quando insisto na importância dessa distinção, não quero negar a conexão entre a busca de significado do pensamento e a busca de verdade do conhecimento. Ao formularem as irrespondíveis questões de significado, os homens se afirmam como seres que interrogam. Por trás de todas as questões cognitivas para as quais os homens encontram respostas escondem-se as questões irrespondíveis que parecem inteiramente vãs e que, desse modo, sempre foram denunciadas. É bem provável que os homens, se viessem a perder o apetite pelo significado que chamamos pensamento e deixassem de formular questões irrespondíveis, perdessem não só a habilidade de produzir aquelas coisas-pensamento que chamamos obras de arte, como também a capacidade de formular todas as questões respondíveis sobre as quais se funda qualquer civilização. Nesse sentido, a razão é a condição a priori do intelecto e da cognição; (...)."
Basear o pensamento no critério do significado e não mais no da verdade, conforme nos convida a pensadora, implica em subtraí-lo ao modelo matemático ao qual ele se encontra submetido desde a Antiguidade, para aproximá-lo, surpreendentemente, ao domínio da narrativa, que recorta o todo dos acontecimentos de uma vida ou de um evento em um percurso linear atravessado e presidido por um sentido. Essa aproximação ainda restitui ao pensamento o caráter plural do qual a verdade, em sua dimensão necessariamente constringente, o afasta. O encontro da verdade acerca de um fenômeno faz imediatamente cessarem os discursos outros com relação ao verdadeiro; ao contrário, o encontro de um significado é na maior parte das vezes o gatilho que faz disparar novos significados, quer esses se aproximem, quer difiram daquele que os fez despertar. É preciso, como fazem as palavras de Arendt citadas acima, encarar o irrespondível das questões próprias ao pensamento como a sua festa e não como a sua derrocada, para vê-lo como a fonte geradora e pródiga, que torna sempre possível a eclosão de novos significados.


BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11ª edição revista. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

_________. A vida do espírito. Trad. Cesar Augusto de Almeida, Antônio Abranches e Helena Martins. . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1988.

KRISTEVA, Julia. Hannah Arendt: life is a narrative. Toronto: University of Toronto Press, 2001.

PLATÃO. Phaedrus. Translated by H. N. Fowler. Cambridge and London: Harvard University Press, 1995.

________. Greater Hippias. Translated by H. N. Fowler. Cambridge and London: Harvard University Press, 1992.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.