Heidegger e a defesa do realismo

July 24, 2017 | Autor: J. Mezzomo Flores | Categoria: Ontology, Realism, Oswald Külpe
Share Embed


Descrição do Produto

Heidegger e a defesa do realismo


Juliana Mezzomo Flores


Em 1912, Heidegger publica um dos seus primeiros artigos em uma
revista católica de renome na Alemanha, o Philosophisches Jahrbuch der
Görresgesellschaft[1]. Embora o título do artigo, O problema da realidade
na filosofia moderna, possa indicar que se trata de uma tentativa de
apresentação sistemática das formulações do problema na filosofia moderna,
ou uma peça informativa sobre um tema na história da filosofia, a exposição
de Heidegger deixa claro que este não é o intento primordial do texto.
Antes, Heidegger posiciona-se em favor do realismo. Mais do que isso, trata-
se não somente da defesa da posição realista, mas também uma defesa da
viabilidade e da necessidade de tal defesa. Logo, Heidegger busca não
apenas argumentar em favor do realismo, mas considera imprescindível
mostrar que a defesa do realismo é um tópico imperativo para as pretensões
filosóficas da época – como se estivesse respondendo também à pergunta:
"por que, em 1912, devemos ser realistas?".
No que segue, meu interesse estará concentrado em explicitar como
Heidegger responde esta pergunta e, complementarmente, como empreende a
defesa da posição realista, além de fornecer algumas indicações sobre
problemas que surgem na continuidade do tema na obra do filósofo. Porém, o
propósito fundamental não é o de realizar um registro de época (como em
1912 respondeu-se a esta pergunta) ou de avaliar a correção ou o grau de
complexidade dos argumentos heideggerianos em favor do realismo, mas o de
apreender como Heidegger vê na defesa do realismo um ponto crucial tanto
para a ciência quanto para as aspirações de significatividade do discurso
filosófico. Na renúncia ao realismo estaria em jogo tanto uma negligência
ao modus operandi científico quanto uma desatenção às possibilidades da
filosofia de produzir um discurso sobre sua época, no qual o cenário
científico começa a impor-se de maneira inexorável (GA1, s.4).


1. A defesa da relevância da posição realista

O ponto de partida do jovem Heidegger é justamente problematizar a
necessidade de defesa do realismo e a significatividade da pergunta pelo
real. Tal movimento constitui-se em uma estratégia curiosa por dois
fatores. Em primeiro lugar, pois no ambiente teológico de sua formação
intelectual, e para o qual suas palavras seriam dirigidas diretamente, o
realismo era a concepção metafísica dominante. Como delineia Barash
(2003,p.65-66), os anos em que Heidegger cursa o gymnasium e a universidade
testemunham um retorno do Tomismo nos círculos católicos intelectuais e
eclesiásticos europeus. Caracterizado pela assunção de um realismo de
inspiração Aristotélica, grosso modo tal concepção afirma que a
determinação conceitual dos objetos não cumprem a função de meros
instrumentos de classificação fundados na experiência humana ou sediados em
faculdades, mas se referem aos aspectos essenciais dos objetos
independentes da consciência. O matiz tomista está em que a possibilidade
da relação essencial entre ser e pensar encontra seu fundamento na harmonia
da criação divina.
Por outro lado, Heidegger inicia o texto com a frase de Ferdinand de
La Brunetiére, na qual o pensador qualifica a questão sobre o mundo
exterior como produto de uma dúvida extravagante. Para La Brunetière, trata-
se, antes de tudo, de perguntar se a questão mesma possui sentido do ponto
de vista da vida prática, na qual o real (Reale) adquire um statuto de
densa auto-evidência – e da qual apenas um louco, no veredicto do pensador
francês, suspeitaria. O problema assim considerado nem se apresentaria, na
medida em que a realidade não se constitui como motivo de dúvida para o
senso comum.
Logo, o "curioso" na insistência de Heidegger de colocar em questão a
necessidade da defesa do realismo é o fato de ela inicialmente parecer um
esforço dispensável. Se institucionalmente o realismo era uma posição
aceita e defendida, para a fala de La Brunetiére, sendo o senso comum a
instância última de decisão, perguntar-se pela realidade do mundo exterior
é algo sem sentido, dado que o real é uma evidência incontornável. Ainda
que de pontos de vista diferentes, e quiçá possivelmente comunicantes, a
importância de afirmar a existência do real é algo suposto, tanto para a
metafísica teológica quanto para o senso comum (mesmo que de modo tácito).
Mas Heidegger justamente recusa anuir a esta suposição e utilizá-la como um
ponto de partida indiscutido. Antes, afirma que o decreto de La Brunetiére
não é suficiente para resolver a questão, e que o esforço para emancipar-se
do peso das auto-evidências é pré-condição para uma compreensão mais
profunda de uma tarefa que necessita de consecução (GA1, s.1).
Posto isso, algumas questões se apresentam de imediato: onde Heidegger
busca justificar a necessidade da defesa do realismo? Em que razões apóia
sua defesa, já que, por exemplo, qualifica como não suficiente a via
aludida por La Brunetiére? Claramente Heidegger tem em vista os detratores
do realismo, tanto idealistas quanto anti-realistas, e não apenas
interlocutores expressa ou potencialmente realistas. Neste sentido, afastar-
se da suposição de que o realismo deve ser defendido é uma precaução
importante. Mas Heidegger vai além da cautela, identificando um campo onde
estas questões se apresentam de modo crucial: a ciência. Os desdobramentos
das ciências ao final do século XIX e início do século XX evidenciariam os
ganhos da aposta na possibilidade de conhecer o real e do realismo como
postura científica dominante. As pesquisas empríricas nas ciências naturais
assumem um "saudável realismo", o qual lhes propiciam "excelentes
resultados" (GA1, s.3). Tal postura é resumida na seguinte descrição de
Heidegger:
Como mencionado, a circunstância incontestável e que está
fazendo época das Ciências Naturais deslocou nosso
problema para o centro dos interesses. Quando o
morfologista determina a estrutura das plantas e dos
animais, quando o anatomista explica a estrutura interna
do seres vivos e seus órgãos, quando o biólogo celular
empreende o estudo das células, sua estrutura e seu
desenvolvimento, quando o químico investiga os elementos e
as combinações dos compostos químicos, quando o astrônomo
calcula a posição e a órbita dos corpos celestes, os
pesquisadores nestes diversos ramos das ciências estão
convencidos de que eles não estão analisando meras
percepções ou examinando puros conceitos, mas, antes,
postulando e determinando objetos reais que existem
independentemente deles mesmos e de suas pesquisas
científicas. (RP, s.4)


Não obstante a situação no interior da ciência, as posições
filosóficas predominantes na época são as que interditam as questões sobre
o real. As questões em torno do realismo são decisivas, pois são o terreno
em que se evidencia um abismo entre o que diz a filosofia e o modo como a
ciência opera. Logo, o cenário das ciências demanda que a filosofia, se
quiser fazer jus à seu tempo, reintroduza a discussão sobre o realismo.
Este, ao meu ver, é o argumento central do jovem Heidegger para sustentar a
necessidade da defesa do realismo. Está em jogo, sobretudo, a possibilidade
da filosofia de pensar não apenas as ciências, mas de confrontar suas
próprias formulações com a situação de sua época. Não é de surpreender que
Heidegger questione se um conflito entre teoria filosófica e a práxis das
ciêncas naturais é, de fato, algo efetivo, ou se não é o caso de que
posições como o Fenomenalismo são ultrapassadas (GA1, s.3)[2].
O apelo do jovem Heidegger ao cenário das ciências e a análise da
incorreção dos diagnósticos filosóficos acerca deste toma de empréstimo os
insights de Oswald Külpe[3]. Com efeito, Heidegger cita a frase do escrito
Die Philosophie der Gegenwart in Deutschland, na qual Külpe afirma que no
limiar da filosofia do futuro encontra-se o "problema da realidade" (GA1,
s.4). Não apenas há a citação direta de Külpe para reforçar a importância e
o modo de ver a questão, mas também a caracterização do problema da
realidade é feita nos termos deste: o problema do realismo é o problema da
Realização (Realisierung)[4]. A realização caracteriza o modus operandi
científico, na medida em que este se desdobra de modo a buscar descortinar
o real tal qual este se encontra independentemente das pesquisas
científicas. Trata-se do procedimento descrito por Heidegger na citação
acima.


2. A defesa do realismo


Diante do realismo performado nas ciências, o problema é construído na
direção de uma indagação pela possibilidade e admissibilidade do
comportamento que postula e determina objetos "trans-subjetivos" (nos
termos de Heidegger). A pergunta pelos fundamentos da realização se
desdobra em 4 questões: 1. A postulação do real é admissível (zulässig)? 2.
Como é possível a postulação do real? 3. A determinação do real é
admissível? 4. Como é possível a determinação do real? (GA1, s.5).
Heidegger inicia considerando as questões 1 e 3, o que o leva a discutir as
posições teóricas que decretam ser injustificáveis a postulação e
determinação do real.
Consequentemente, na defesa do realismo se incorpora uma tarefa
crítica, voltada para as próprias concepções que interditam as questões e o
acesso cognitivo ao real. Heidegger concentra-se inicialmente em discutir o
pano de fundo filosófico do problema. Embora se detecte que a posição
realista é predominante na filosofia até Berkeley, está em questão a
identificação das raízes teóricas que sustentam as posições que resultam
ser diretamente contrárias ao realismo na época[5]. Neste percurso, é a
David Hume a quem se credita uma posição especial. Sobretudo porque as
formulações de Hume sobre a origem dos conceitos de causalidade e de
substância – transferindo seu caráter objetivo à uma operação subjetiva de
reprodução de associações entre percepções – e a reação de Kant a Hume a
partir da distinção entre fenômeno e coisa-em-si, são consideradas como as
matrizes de duas principais tendências dominantes em teoria do conhecimento
da época: o Conciencialismo e o Fenomenalismo. Estas posições decretariam
que postular o real ou meramente determiná-lo, é uma tarefa tanto
impossível quanto inadmissível, respondendo, portanto, de modo negativo às
questões colocadas ao início.
Se no procedimento de refutação ao Fenomenalismo entra em jogo uma
crítica direta à Kant, o ponto de partida da crítica ao Consciencialismo é
uma avaliação do que Heidegger menciona como sendo o centro do pensamento
consciencialista, o princípio de imanência. Com Klimke, Heidegger distingue
neste princípio três argumentos de ordem diferentes a serem considerados, a
saber, um argumento a priori, um argumento empírico e um argumento
metodológico. O argumento a priori afirma que um conceito de uma realidade
independente do pensamento é uma contradição, na medida em que pensar tal
conceito já o torna dependente da atualidade da consciência. Heidegger
responde a esta objeção identificando que a confusão é feita por não se
distinguir entre entre conteúdo ou significado e existência física de um
conceito. Neste sentido, destaca-se que o conteúdo do conceito não pode ser
dependente da existência do ato mental que a cada vez o veicula.
No caso do argumento empírico, trata-se de alegar que o conhecimento é
constituído de fatos e leis que são dados imanentes à consciência. Do mesmo
modo, se identifica uma confusão entre o ato psíquico e o conteúdo dos
príncípios lógicos que governam o conhecimento. Heidegger ataca tal
argumento por uma via tripla: em primeiro lugar, destaca que apenas a
associação de percepções e idéias sem estar de acordo com algum princípio
resulta somente em um quadro caótico. Em segundo lugar, se trata de
rejeitar a posição consciencialista sobre a origem dos princípios lógicos,
afirmando que estes não são indutivamente fundados, não sendo leis causais
dos eventos psíquicos e defendendo seu status ideal e constitutivo. Em
terceiro lugar, entra em questão a afirmação de que este argumento é
conflitante com a própria experiência psíquica, uma vez em que a própria
esfera da consciência só pode ser descoberta a partir de um ato de
abstração, o qual necessariamente deve transcender a esfera do que é
imediatamente dado na consciência (GA1, s. 7-8). Já o argumento
metodológico defende a prioridade dos dados imanentes à consciência no
tocante à certeza do conhecimento. Apenas o que é dado de modo imediato na
consciência pode constituir uma fundação segura para as ciências. Heidegger
investe contra este argumento apontando o equívoco de se considerar que a
mera existência dos fatos psíquicos pode ter o papel justificacional
exigido para o tipo de certeza cognitiva em questão.
No caso da posição Fenomenalista, trata-se, como já antecipado, de uma
crítica à posição kantiana. Tal posição, ao contrário do consciencialismo,
se caracterizaria pela admissão da postulação do real, embora negue a
possibilidade de determiná-lo. Grosso modo, a crítica de Heidegger
contempla a concepção kantiana do caráter constitutivo da subjetividade na
apreensão e determinação dos dados da experiência. Por um lado, trata-se de
defender o estatuto não intuitivo e não categorial de certos objetos do
conhecimento tendo como contra-exemplos as próprias categorias kantianas e
os objetos da lógica, no primeiro caso, e o material caótico, não ordenado
das percepções sensíveis, no segundo. Mas a alegação que se pretende ser
mais contundente é a de que a função modificadora dos dados da experiência
exercida pela subjetividade mediante as formas da intuição e das categorias
do entendimento é uma suposição dogmática (GA1, s. 9). Neste sentido, o
problema não está tanto na distinção entre fenômeno e coisa-em- si e nem da
própria noção de coisa-em-si ou a interdição de sua determinação, mas do
peso atribuído à subjetividade no conhecimento dos objetos.
Com efeito, Heidegger defende que a concepção na qual os materiais da
experiência são processados subjetivamente pelo entendimento atua em
sentido diretamente contrário ao da realização. Na identificação do
conflito da teoria kantiana com a realização se desdobra a tarefa positiva
de indicar como é possível a postulação e a determinação de objetos reais.
Em que sentido a realização seria contrária ao modelo descrito por Kant? A
resposta encontra-se de modo mais claro a partir da definição da finalidade
da realização: "A meta da realização é a de determinar o dado, o
encontrado, em seu em si (in seinen Ansich), com a eliminação dos modos de
apreensão e os elementos do sujeito cognoscente que o modificam" (GA1,
s.12). Esta eliminação é possível, uma vez que certos elementos na
experiência mostram-se independentes do sujeito: "O caráter espaço-temporal
dos objetos da experiência, sua coexistência e sucessão, as pausas na
percepção e as relações entre os conteúdos da consciência que se nos impõem
e não são determinadas pela nossa vontade revelam indisputavelmente uma
legalidade independente do sujeito que experiencia" (GA1, s. 12). A tese da
independência é reforçada pela observação acerca do caráter comum da
experiência dos objetos: "A postulação de realidades transcendentes à
conciência é requerida sobretudo pelo fato de que um e mesmo objeto é
imediatamente comunicado a diversos indivíduos". (GA1, s. 12).
Evidentemente, chama a atenção a qualificação de imediato dada ao
compartilhamento da experiência dos objetos. Heidegger apressa-se em
descatar que se trataria de defender uma posição realista ingênua, na qual
as impressões seriam realidades objetivas tais como se apresentariam em
estímulos sensórios[6]. Concomitantemente, reforça-se que a apenas o puro
pensamento (ou a lógica pura) não é um tribunal competente para decidir as
questões sobre realidade ou idealidade. Logo, propõe-se um modelo de
realismo no qual interagem conjuntamente os momentos racionais e empíricos.
O tipo de relação causal em jogo entre mundo exterior e as sensações é
melhor expresso, no entender de Heidegger, a partir da formulação de Külpe,
na qual o mundo externo é concebido como um "suporte de relações
externamente ordenadas de nossas impressões sensíveis" (Külpe apud GA1, s.
13). O real é postulado enquanto este suporte de relações qualificadas por
Külpe, ademais, como relações que são compelidas e impingidas ao sujeito.
A determinação do real, ou das realidades enquanto tais relações
compelintes, é uma tarefa a ser levada a cabo pelas ciências, embora
Heidegger afirme a impossibilidade de exaurir a totalidade das mesmas e de
apresentá-las de modo inequívoco: "Uma definição perfeitamente válida e
adequada das realidades postuladas permanecerá sempre como uma meta ideal
para as ciências da realidade (Realwissenchaften)" (GA1, s.13). A
justificativa para uma inesgotabilidade do real pelas ciências através do
conhecimento observacional revela, ao meu ver, antes do que uma aposta ou
problematização da capacidade de abstração das ciências, uma base
metafísico-teológica subjacente ao realismo proposto; o conhecimento
sensível, mesmo com o refinamento de seus instrumentos, possui limitações:
"Mesmo que todas as relações pudessem ser exibidas, nós temos que atentar
para que existem certas realidades não-independentes que nós não
conseguimos alcançar com nosso conhecimento sensível, mesmo com os mais
refinados instrumentos para auxiliar os órgãos dos sentidos" (GA1, s.14).
É para esta direção que Heidegger se volta ao final do texto, ao
advertir que mesmo que não se concorde com todas as idéias de Külpe, seu
trabalho abre caminho para uma necessária tarefa positiva a ser executada
pela filosofia Aristotélico-Escolástica (GA1, s.15). Neste sentido, o jovem
Heidegger avista que a ciência coloca em questão não apenas o Fenomenalismo
ou o Consciencialismo, mas que o problema do realismo mos moldes
epistemológicos propostos por Külpe é um ponto decisivo a ser incorporado
pela metafísica teológico-realista da época. Assim sendo, não me parece
correto afirmar, tal como o faz Glazebrook (2000, p. 89) que o interesse de
Heidegger nas ciências neste momento se traduz em um comprometimento
irrefletido com o sucesso destas. Desconsideram-se as preocupações
intimamente (e expressamente) vinculadas à metafísica aristotélico-tomista
assumidas por Heidegger no momento, para as quais uma apropriação de Külpe
apresenta-se como a melhor alternativa. E estrategicamente, o panorama
científico da época, além de oferecer um desafio à filosofia, apresentava-
se como um front privilegiado para a defesa do realismo frente às
concepções epistemológicas pós-criticismo.


3. O retorno a Külpe: da realização à vivência do mundo circundante


É relevante notar como Heidegger retoma anos depois, na preleção do
Kriegsnotsemester de 1919[7], as referências a Külpe. O texto da preleção
nos oferece, além disso, indicações sobre o desdobramento do problema do
realismo na obra do filósofo[8]. Em linhas gerais, na preleção intitulada A
idéia da filosofia e o problema da visão de mundo Heidegger visa
desenvolver a idéia de filosofia enquanto uma ciência primordial ou
originária, situando-se na convergência de problemas trazidos pelas as
tentativas de conceber a filosofia e suas tarefas no final do XIX e início
dos anos XX, como o neokantismo, a fenomenologia, a metafísica indutiva, o
historicismo e a filosofia da vida. A filosofia seria a ciência primordial
tanto na definição de seu âmbito de investigação, a vida fática em sua
significatividade originária, quanto no seu método de acesso e expressão de
tal âmbito, ao executar constantemente uma revisão crítica de seus próprios
fundamentos. As dificuldades de uma ciência do âmbito mais imediato de
nossa experiência com o mundo são agravadas pela exigência de preservar as
vivências em seu caráter próprio, não tomando-as como objetos dotados de
determinações aos quais se pode chegar mediante uma via reflexiva. Em meio
à discussão acerca do caráter e do acesso e expressão filosófica da vida
fática, Heidegger volta-se para um problema que até aquele estágio havia
ficado indiscutido: na idéia de uma ciência não objetiva das vivências, já
se supõe a realidade das vivências e do próprio mundo circundante. As
questões acerca da realidade do mundo externo não podem ser desatendidas
pois, além de serem decisivas para a ciência pretendida, também são
consideradas como um problema epistemológico "candente" (GA56/57, s.78)
para a filosofia.
Por conseguinte, as posições realista e idealista são revistas
criticamente por Heidegger. Embora denomine como representante do realismo
a filosofia de Aristóteles (assim como Kant é escolhido como o modelo de
pensamento idealista), é o realismo crítico de Külpe o objeto da análise
(GA56/57, s.82). Diferentemente de 1912, Heidegger recusa tanto as
respostas idealista quanto realista ao problema do mundo exterior. Em jogo
nos dois momentos, ao meu ver (e sem a pretensão de uma comparação
exaustiva), está uma concepção acerca do que é primariamente dado na
experiência e sobre o caráter da referência do sujeito ao mundo. Se em 1912
é a partir do campo da ciência que estabelecem estes problemas, em 1919 o
ponto de partida e de chegada é o mundo circundante cotidiano (e suas
conexões, mesmo que tensas, com o âmbito teórico).
Heidegger observa que, como defende o realismo crítico, conceber o
dado primário como sensações ou dados sensoriais para os quais, então,
procurar-se-ia uma causa exterior, só é possível caso se desconsidere uma
vivência mais fundamental, que é a do envolvimento cotidiano com o mundo. O
exemplo aduzido é o da vivência da cátedra na qual Heidegger se pronuncia.
Heidegger insiste que na vivência da cátedra, o que "vê" primordialmente
não é a cor marrom como a sensação marrom ou como um momento de seus
processos psíquicos, mas sim uma cátedra marrom em uma conexão
significativa. A cátedra é vivenciada como algo no qual o professor falará,
mostra-se como algo para este colocar seus livros, num contexto que envolve
outros objetos na sala, os alunos, que possui uma determinada iluminação,
etc. Heidegger admite que se pode surprimir tal contexto significativo, que
se pode chegar à sensação de marrom, convertê-la em um objeto, mas apenas à
custa de impugnar o mundo circundante, vivenciando-o em uma atitude teórica
que não é a primordial. Ademais, buscar suspender este dado primário em
vista de uma atitude crítica contra a consciência natural seria perder de
vista o problema. A contribuição de Külpe é avaliada em 1919 a partir deste
ponto de vista. Heidegger assevera:
Quando procuro explicar o mundo circundante teoricamente,
este desmorona. Não significa uma intensificação das
vivências ou um melhor conhecimento do mundo circundante
se eu me aventuro a dissolver ou submeter teoricamente as
vivências à teorias ou explicações carentes de toda
clarificação.
O contra-senso do realismo crítico está não somente no
cancelamento da dimensão significativa do mundo
cricundante, no fato de que nem sequer vê e pode ver esta
dimensão, mas que toma uma teoria e tenta explicar um ente
por meio de outro. Quanto mais crítico se faz, tanto mais
se contradiz (GA56/57, s. 86).


O acerto de contas com o realismo crítico baniria, portanto, todo o
problema do horizonte heideggeriano? Com efeito, Heidegger afirma que a
resolução do problema do mundo exterior é entender que este é não é um
problema, mas um contra-senso (GA56/57, s. 92). Mais especificamente, o
contra-senso estaria na pergunta teórica pela realidade do mundo
circundante. Não porque já se pressupõe que este mundo é real, mas porque o
real diz respeito ao que não possui mais o caráter do mundo circundante[9].
Neste sentido, se Heidegger recusa conceber o mundo circundante a partir da
categoria da realidade, esta ainda continua vigente para qualificar a
experiência cognitiva das coisas. Permito-me trazer o trecho onde
claramente se expressa esta distinção:
O caráter de coisa abarca uma esfera totalmente
originária, que foi destilada a partir do circundante.
Nesta esfera o "mundear" já está apagado. A coisa está aí
simplesmente como tal, isto é, é, real, existe. A
realidade, portanto, não é uma característica propriamente
circundante, mas sim uma característica inerente à
essência do caráter de coisa, uma característica
especificamente teorética. O significativo é des-
significado até o que resta: ser-real. A vivência do
circundante é des-vivificada até o que resta: o
reconhecimento de algo real como tal (GA56/57, s. 89).




4. Considerações finais
No acompanhamento da defesa de Heidegger do realismo, buscamos
ressaltar que e como a ciência e seus desdobramentos são tomados por este
como o local privilegiado e problemático para o debate filosófico da época.
Por outro lado, a uma posição realista "dura" e completamente em
consonância com a concepção de Külpe no início da década de 10, conjugamos
a descrição da mudança no problema e a recusa do realismo crítico ao final
da mesma década. Mas não se trata apenas de mostrar o modo como Heidegger
rompe com Külpe ou mesmo defender que tal ruptura foi a responsável pelo
arrefecimento do jovem entusiasmo realista. Antes de tudo, se tem em vista
encetar algumas questões para desdobramentos futuros, principalmente as que
qualificariam uma das conclusões que para mim se evidenciaram ao longo
deste trabalho: a de que Heidegger neste período reserva ao domínio do
teórico uma posição realista, mesmo quando sai do campo da defesa do
realismo e dedica-se em salvaguardar a experiência do mundo circundante das
posições realistas ou idealistas. De modo curioso, Heidegger em 1919 parece
se afastar de Külpe e se reconciliar com Brunetiére, ao declarar sem
sentido a questão do mundo externo. Contudo, numa posição que o leva para
longe do francês, Heidegger recusa a rotular de realidade o mundo
circundante.
Neste sentido, a realidade é estabelecida pelas ciências ao alcançarem
o mundo com vistas ao descobrimento de coisas em suas determinações.
Contudo, a imagem realista da ciência progressivamente se complexifica ao
longo da década de 20 e chega a contornos menos precisos já em SZ, com as
pouco claras afirmações de Heidegger no parágrafo 44 desta obra. Ademais, a
Física, notavelmente desconsiderada no texto de 1912 quando se exemplificam
ciências onde se opera a realização, passa a representar um desafio
crescente para tal quadro realista[10]. De qualquer modo, é central
analisar em que medida a recusa se traduz em um abandono do realismo,
sobretudo no tocante às pretensões de uma descrição ontológica da ciência.


Referências Bibliográficas


Barash, Jeffrey Andrew (2003). Martin Heidegger and the problem of
historical meaning. New York: Fordham University Press (2nd.ed).

Chevalley, Catherine (1992). Heidegger and the physical sciences. In:
DREYFUS & HALL, H. Heidegger: A Critical Reader. Oxford, Blackwell, p.342-
364.

Glazebrook, P. (2000). Heidegger's Philosophy of Science. New York: Fordham
University Press.

Heidegger, Martin (1978). Das Realitatsproblem in der modernen Philosophie.
In: Frühe Schriften. Gesamtausgabe Band 1 (GA1). Frankfurt am Main:
Klostermann, p. 1-16

Heidegger, Martin (1978). Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns
Scotus In: Frühe Schriften. Gesamtausgabe Band 1 (GA1). Frankfurt am Main:
Klostermann, p. 189-414.

Heidegger, Martin (1988) Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs.
Gesamtaugabe Band (GA20). Frankfurt am Main: Klostermann.

Heidegger, Martin (1967) Sein und Zeit. 11. ed. Tübingen: Max Niemeyer
Verlag.

Heidegger, Martin (1987) Die Idee der Philosophie und das
Weltanschauungsproblem. In: Zur Bestimmung der Philosophie. Gesamtausgabe
Band 56/57 (GA 56/57), F. am Main: Klostermann, p. 3-120.

Kisiel, T. (1993) The Genesis of Heidegger's Being and Time. Berkley:
University of California Press.

Kiseil. T. & Sheehan, T. (2007) Becoming Heidegger: on the trail of his
occasional writings, 1910-1927. Northwestern University Press.




Safranski, Rüdiger (2000). Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o
mal. São Paulo: Geração Editorial.

Van Buren, J. (2003). Supplements: from ealiest essays to Being and Time
and beyond. Ney York: St. of New York University Press.














-----------------------
[1] Para uma cronologia dos primeiros escritos de Heidegger, ver: Van
Buren, J. (2003, p.17-34), bem como Kisiel & Sheehan (2007, p.23ss)
[2] Mesmo que não discuta a suposição de uma harmonia de princípio entre a
teoria filosófica e a práxis das ciências, Heidegger é enfático em dizer
que, no interior de uma investigação sobre "como é possível a ciências
empíricas da natureza?" uma resposta positiva deve ser dada, ou seja, o
problema estaria em uma posição filosófica determinada.
[3] Barash (p.93) bem atenta que o empréstimo das noções de Külpe iria mais
longe, constituindo-se como uma paráfrase das idéias centrais do livro
Einleitung in die Philosophie (o autor indica como fonte de comparação as
páginas 152-53 deste escrito). O crédito às idéias de Külpe não tem como
objetivo aqui tornar discutível a originalidade dos argumentos de Heidegger
(o que comprovadamente não é o caso neste escrito) mas o de indicar que
Heidegger, ao escolher Külpe como interlocutor, estava em efetivo contato
com o panorama científico da época.
[4] Em 1912 Külpe lança o escrito "Realisierung", no qual aprofunda as
formulações já conhecidas e retomadas nos escritos apontados por Heidegger
no artigo (sobretudo o Einleitung in die Philosophie de 1910,
Erkenntnistheorie und Naturwissenschaft, de 1910 e Die Philosophie der
Gegenwart in Deutschland, 1911). Heidegger considera o escrito de 1912 na
tese pos-doutoral de 1915, Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns
Scotus (GA 1, s. 342).
[5] Heidegger cita como representantes Richard von Schubert-Soldern,
Schuppe, Avenarius e Ernst Mach (GA1, 5-6).
[6] Heidegger também se pronuncia claramente contra o sensualismo,
denominando-o de "dogma epistemológico" (GA1, s. 13)
[7] Já forma parte de uma concordância comum na recepção da obra de
Heidegger considerar o texto de 1919 como o primeiro grande passo deste em
direção à formulação de conceitos-chave de sua filosofia, sobretudo graças
ao trabalho de Kisiel (1993, capítulo 1 da primeira parte). Também é
conhecido o impacto desta preleção nos círculo acadêmico alemão em alunos
tais como H.G. Gadamer e K. Löwit - um dos registros desta está na
biografia de Heidegger escrita por Safranski (2000, p. 123-141)
[8] Reservo-me aqui apenas ao registro de como a posição heideggeriana, e a
avaliação do realismo crítico de Külpe, mudam radicalmente, sem, contudo,
adentrar na discussão das causas e das fontes dessa mudança. É sabido que
nestes 7 anos que separam os dois textos, Heidegger não apenas abandona a
formação teológica e a igreja, mas também tem uma aproximação decisiva com
Heinrich Rickert, Edmund Husserl e a fenomenologia.
[9] Heidegger aqui fala na experiência da coisa enquanto objetificação
(Objektivierung) como uma privação de vida (ent-leben) (GA56/57, s. 84). É
relevante ressaltar que em Ser e Tempo (SZ, s.363-64), Heidegger também
reserva à ciência o procedimento de objetificação dos entes. Ademais, o
tema da privação de vida, ou em que medida a atividade teórica promove uma
ruptura na relação com o do mundo circundante, é um problema que também
ecoa em preleções como Prolegômenos à história do conceito de tempo (GA 20)
e SZ através de noções como desmundanização. Para uma problematização do
conceito de desmundanização, bem como de suas tensões com a concepção de
ciência em SZ e até a supressão no pós-Kehre, ver Fragozo (2011).
[10] Para uma consideração do impacto da Física na filosofia de Heidegger,
ver Chevalley (1992).
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.