Helmar Lerski: do Cinema Expressionista para a Fotografia

July 29, 2017 | Autor: Paulo Figueiredo | Categoria: Photography, Cinema, History of photography, History of Cinema, Helmar Lerski, Expressionismo Alemão
Share Embed


Descrição do Produto



Universidade Nova de Lisboa
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Ensaio para Fotografia
Paulo Figueiredo
Ano 2007/2008


Helmar Lerski: do Cinema Expressionista para a Fotografia

"A forma fundamental comum a todos os corpos… é a luz"
São Boaventura


O período de 15 anos que decorreu entre a revolução de Novembro de 1918 e a ascensão de Hitler ao poder, em Janeiro de 1933, é conhecido na História alemã como a época da Cultura de Weimar. Foi um momento especial no qual o clima derrotista e depressivo, resultante do desastre militar de 1918, coexistiu com uma grande criatividade artística e intelectual. Berlim tornou-se a capital das vanguardas nos anos 20. Surge então a corrente Expressionista que tem raízes na pintura e que foi rapidamente adoptada pelas mais variadas artes. Esta corrente enfatizava as reacção emocionais do artista e o imaginário, opondo-se á visão tradicional (o Impressionismo) segundo a qual o artista e a obra se deviam esforçar por reproduzir fielmente apenas a aparência natural do objecto do seu trabalho.
"O Expressionismo não é pois uma moda, um movimento, mas uma Weltanschaung, quer dizer uma "concepção de mundo", uma reinvenção da realidade"
Revisitemos em primeiro lugar, os parâmetros que fizeram do Expressionismo um dos mais importantes movimentos da História do Cinema. A arte expressionista foi uma exasperação da expressão, encaminhada para obter efeitos de excessiva e exaltada emotividade. O termo Expressionismus, uma neologismo na língua alemã, relaciona-se por sua vez com o sinónimo "ausdruck". Do verbo "ausdrücken", que para além de "expressar", significa no seu sentido original, "espremer" ou "retorcer". Assim, o conceito de Expressionismus não significa somente "expressão", mas também "expressão retorcida" ou "expressão dramática". Para críticos como Herwarth Walden, Paul Fechter e Hermann Bahr, o termo Expressionista poderia ser utilizado num sentido extenso para aludir a todo o "moderno", às vanguardas dos primeiros decénios do Século XX (cubismo, abstracção, futurismo etc…). Já para W. Georges, o Expressionismo não só é uma acepção de estilo, mas uma constante na arte. Manifesta-se na arte pré-histórica, nas artes arcaicas, na arte antiga tardia, na arte medieval e no Século XVII. Seja como for, o termo Expressionismo converteu-se no lema de toda a vanguarda europeia em oposição ao Impressionismo.
A obra maior do Expressionismo no cinema é o célebre «O Gabinete do Doutor Caligari» (1919) de Robert Wiene. Wiene transporta-nos para um mundo de puro pesadelo que coincide com a instabilidade política do momento: muros cheios de "grafitti", prédios "inclinados" e ameaçadores, panos de fundos desbotados de onde se destacam figuras geométricas abruptas e personagens alucinados. Tudo aqui gira sob o signo da angústia. A utilização de grandes planos das faces dos protagonistas é notória, para transmitir uma sensação de proximidade ao espectador. Pela primeira vez os actores incarnam personagens fictícios numa narrativa sustentada. Não na representação fiel da realidade, mas numa concepção alternativa da mesma. Uma ficção. Nas palavras de Jean Mitry, "aqui as decorações não embelezam, criam um universo incoerente que sublinha o desequilibro mental do herói: as ruas deformadas, as casas oblíquas, as luzes e sombras opondo-se a violentas manchas brancas e pretas que participam da linha quebrada. Vê-se quais são os objectos do Expressionismo: traduzir simbolicamente, por meio das linhas, as formas e o voluma, a mentalidade dos personagens, o seu estado anímico, também a sua intencionalidade, de tal forma que o cenário apareça com a tradução plástica do seu drama".
Trata-se sem dúvida do filme mais característico do cinema Expressionista alemão, que criou toda uma estética peculiar; a narração cinematográfica de conflitos particulares e sociais tão intensos é levada a cabo mediante quadros particulares, acções paralelas, flashbacks e montagem complexa, que têm como resultado produções oblíquas, subjectivas, onde causalidade e motivação dos personagens, a sua complexidade psicológica e a sua introspecção emocional, e estruturas espácio-temporais não são claras e em boa medida, serão imaginadas pelo espectador.
Lerski (1871 – 1956) usava uma arcaica câmara de muito grande formato (30x24cm) e imprimia por contacto, transformando a face numa imensa paisagem compacta, esculpida pela textura, o brilho e os relevos da pele. Fotografava ao sol, num terraço, usando diferentes filtros e 16 pequenos espelhos para fazer variar a luz e o recorte das formas.
Em vez do retracto objectivo, neutro ou cientifico, e à distância, também, do retracto subjectivo, que visaria interpretar a psicologia, o carácter, a individualidade mais profunda de alguém, Lerski constrói toda uma galeria de expressões e (pseudo) identidades, a partir de uma mesma face. Esta foi realizada entre 1935/6 na Palestina e é considerada uma das mais radicais experiências fotográficas sobre o retracto feitas por um artista dedicada à fotografia. Lerski que já tinha sido director de câmara e de efeitos especiais no cinema mundo em «Metropolis» de Fritz Lang (1927).
Em 1931 publicou «Köpfe des Alltags: Unbekannte Menschen» («Cabeças de Todos os Dias: Gente Desconhecida») em que reúne 80 retractos de estúdios onde os rostos, sem em grande plano, surgem dramaticamente estilizados por luzes. Para este trabalho, Lerski recrutou modelos em agências de emprego e refere-os através de identidades sociais (varredor de ruas, mendigo, pinto, guarda-livros são alguns exemplos), o que concede ao volume um carácter de documentário sociopsicológico.
Depois projectou «Metamorfoses pela Luz» onde demonstraria que a presença física e objectiva de um rosto ou que o caracter de um retratado, são por inteiro, ou podem ser, uma construção do fotógrafo, ou que a imagem exterior da identidade social ou a presença psicológica supostamente mais íntima (que um retracto subjectivo deveria ser capaz de captar com "verdade"), podem ser elaboradas e infinitamente manipuladas a partir d exterior pelos meios próprios da fotografia. Para além deste exercício conceptual e prático levado à exaustão, o projecto de Lerski encaixa numa contexto muito particular da história da República de Weimar e da história da fotografia.
Nascido em Zurique e de ascendência polaca, Helmar Lerski (aliás, Israel Schmuklerski) foi actor nos Estados Unidos antes de se dedicar à fotografia e passou a interessar-se pelo cinema documental depois de trocar Berlim pela Palestina em 1931, antecipando-se às perseguições nazis. Aí realizou um dos emblemas do cinema sionista, «Avodah» («Trabalho») em 1935 sobre os colonos judeus.
Para além das «Metamorfoses», onde aparentemente se dilui sob os efeitos da encenação a crença de Lerski na objectividade fotográfia, dedicou-se a projectos de natureza documental marcados pela apologética sionista. «Cabeças Judias» e «Soldados Judeus» são os exemplos mais marcantes. Fez também retractos Árabes e fotografia de paisagem e arquitectura. Por outro lado, radicalizou as suas experiências numa série de «Paisagens do Rosto», com a ampliação de fragmentos de retractos, realizou estudos fotográficos de «Mãos Humanas» e de «Cabeças de Marionetas», este último novamente para um projecto cinematográfico. Essa dupla orientação (fotografia e cinema/documentário) deve ser considerada para que não se valorizem as «Metamorfoses» como definitiva demonstração do trabalho de Lerski.
As questões da identidade judaica agudizadas pelas perseguições nazis, bem como as da representação figurativa dos agentes da luta de classes, atravessam de modo dramático as décadas de 20/30. Na fotografia, esses anos são também marcados pelas grandes transformações sumariadas pela exposição «Film und Foto», organizada em Estugarda em 1929 pelo Deutcher Werkbund, onde Lerski esteve representado com 15 obras.
Para percebemos um pouco mais o ambiente artisticamente produtivo em que Lerski se popularizou, vejamos outros conhecidos autores da época. Com Karl Blossfeldt e Albert Renger-Patzch, a exploração sistemática do close up tornara-se uma das marcas da chamada nova visão. Otto Umbehr terá sido o primeiro a aplicá-la ao retracto, inaugurando um novo estilo adaptado do grande plano do cinema e da redução às formas plásticas elementares cultivada pela Bauhaus, de que foi aluno. August Sander, identificando com a lógica mais ampla da nova objectividade, publica em 1929, «Antlitz der Zeit» («Rosto do Tempo»), no quadro do seu imenso projecto de traçar o retracto colectivo da Alemanha do tempo da República de Weimar, fotografando corpos inteiros referenciados pelas suas profissões e posições sociais.
Na arte do cinema os tipos de iluminação dependem muito das necessidades do argumento e da sensibilidade do realizador. Mas o realizador não é aquele que se expressa por meio da luz, para isso existem os directores de fotografia. Para que o filme se expresse o melhor possível, entendendo o melhor possível como o mais "belo", o realizador deve comunicar ao director de fotografia e fazê-lo entender o objectivo do filme. Para efeitos narrativos poderíamos dizer que a arte da fotografia cinematográfica se expressa de duas formas: uma luz que acompanha a narração e uma luz que narra. A luz que acompanha a narração é aquela que respeita as fontes naturais de luz, sendo estas não apenas o sol ou a lua. Falamos de natureza humana também, que tem lâmpadas, velas, fogos-de-artifício e tudo o mais. A luz que acompanha a narração é aquela luz omnipotente, a luz do acaso. Luz que "fala", mas de maneira muito subtil, sem que ninguém a perceba, porém está lá, está ali. Sem ela, nada. Por outro lado, a luz que narra é que aquele expressiva, que pode ou não respeitar nada além do artista (e mesmo assim, pode desobedecer-lhe) É o artista e o seu mundo. Mundo que é feito de opostos que lutam e que se amam. Que vivem entre as dimensões do consciente e do inconsciente.
Na sua fotografia, Lerski tenta manter uma relação entre luz e a sua fonte procurando que a narração seja o mais verosímil para o espectador. Para isso traz consigo o Expressionismo do cinema é adequa-o à fotografia, por intermédio do uso cuidado da luz e do seu logos relativamente ao impacto causado pelo uso do contraste dos claros e dos escuros. Para tal percepção, Lerski codifica a sua fotografia dentro de um determinado conjunto de valores-referência associados a algo que não está visível na fotografia. Como Régis Debray afirma em «Vie et Mort de L'Image», algo que resulta de uma ideologia instaurada num cruzamento entre o eikon e o eidos, um pouco como o cruzamento entre o Impressionismo e o Expressionismo. Debray chama-lhe ícone. Tal ideologia imanente preocupava os Gregos por da visibilidade a uma coisa que não tinha qualquer fundamento, de criar num só gesto uma ideia e não a cópia da ideia. Não apenas uma aparência da idealidade, mas a instauração de uma ideia n visível que não se funda numa ideia pré-estabelecida: um simulacro.
O simulacro pertence á ideia de eidolon ou ídolo e diferencia-se do conceito de ícone pela essência que transporta ser ou não dotada de consistência ontológica. Um ídolo reproduzia algo existente através de uma teknè ou fabricação/produção e não requeria um saber epistemológico (episteme) ou teórico como a representação do ícone. Para descodificar este simbolismo é necessário que haja um reflexo, uma referência. Segundo Gilles Deleuze, esse reflexo é a cultura. Os limtes de cada um são s da cultura, que se encontram numa plano intermédio de mediação, um plano entre a representação, onde a imagem circula como símbolo partilhado por uma cultura que lhe impõe certos limites.
Para Lerski, foi fundamental a Cultura de Weimar, que foi a sua escola e consecutivamente, a sua grande influência e estabelecedor de regras. Parece inicialmente que as obras fotográficas de Lerski não possuem qualquer espécie de narrativa, porém essa narrativa está sustentada nos contrastes de luz e sombra, que o autor utiliza, à semelhança do cinema mundo, que se habituou ao suporte luminista para sustentar a história no espaço e no tempo.
A quem pertence o primeiro olhar, o primeiro acto de percepção e de atenção? Ao artista sem dúvida. De onde, o segundo olhar pertence ao olhar do duplo, aquele que comprometido numa escrita em suspenso que obceca, suspende o corpo e o olhar do espectador. São, assim, as fotografias de Helmar Lerski: fotografias de duplos, sejam esses duplos a encenação da própria face de Lerski ou de outras figuras e objectos. Figuras sempre carregadas pelo claro-escuro, pela contraposição luz e sombra. Figuras sempre impecavelmente vestidas, como quem se prepara para a redenção. Aliás, os olhares arrependidos e confessionais são uma constante e permitem pensar em Dreyer e no seu «Paixão de Joana de Arc». E, preparando-se para redenção, só a luz há-de consagrar esse último reflexo que a sombra há-de absorver. De igual modo, só os objectos hão-de também testemunhas em silêncio e imóveis, essa cintilação desmedida, esse peso inenarrável, indizível, das próprias coisas e das figuras. Razão tinha pois, Baudelaire quando dizia que o espectador do Museu do Louvre pára pouco, ou não pára sequer, diante dos quadros para os contemplar. É de contemplação que fala Lerski nas suas várias séries, onde uma olhar fixa um outro atentamente.




Bibliografia
Debray, Regis, «Vie et Mort de L'Image», Paris, Gallimard, 1992
Deleuze, Gilles, «Platon et le Simulacre» in Logique de Sens, pp. 292-307
Grilo, João Mário, «As Lições do Cinema, Manuel de Filmologia» Edições Colibri 2007
Céspedes, Carmenrosa Vargas, «A Linguagem da Luz, Naturalismo e Expressionismo na Fotografia Cinematográfica», 2004





















Grilo, João Mário, As Lições do Cinema – Manual de Filmologia, pág. 112

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.