Heráclito e Parmênides no ápeiron de Anaximandro

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HERÁCLITO E PARMÊNIDES NO ÁPEIRON DE ANAXIMANDRO Rafael Silva UNIRIO

INTRODUÇÃO Parmênides de Eléia e Heráclito de Éfeso foram dois grandes filósofos da antiguidade grega do século VI a.C que, para alguns pensadores, tais como Hegel, Nietzsche e Heidegger, se dispuseram para além do naturalismo da physis (realidade primeira, material, originária e fundamental) com a qual os pensadores chamados pré-socráticos estavam envolvidos, para se aventurarem sobre um chão metafísico, até então inexistente, que se consolidaria definitivamente com Platão e Aristóteles. Todavia, há pensadores, como Giovanni Casertano, que afirmam não haver dimensão metafísica nestes filósofos pré-socráticos, pois todos estariam, ainda que através da questão do Ser e do devir, teorizando de fato sobre existência da physis. Para Casertano, as investigações de Parmênides são as mesmas dos primeiros filósofos da Grécia, pois o filósofo “concebe fisicamente o que é, confirmando que fala não de um ser metafísico, mas do cosmo entendido em sua totalidade” (CASERTANO, 2011, 88). Se o pensamento do eleata não representa uma aventura metafísica na concepção de Casertano, a do efésio menos ainda, visto que o seu elemento primordial, qual seja, o fogo, o atrela sobremaneira à tradição de atribuir a algum elemento físico a constituição da realidade. Todavia, a interpretação acerca do escopo filosófico dos dois pré-socráticos aqui defendida será a hegeliana-nietzschiana-heideggeriana que toma Parmênides e Heráclito como autênticos pensadores metafísicos. Para melhor compreender a metafísica do eleata e a do efésio se faz importante a justa contemplação de um antecessor dos dois pensadores: Anaximandro de Mileto, o primeiro grego que, antes de Heráclito e Parmênides, desconsiderou uma causa material determinada à formação do universo. Doravante, haverá o esforço de comparar as ideias de Heráclito e Parmênides com a teoria de Anaximandro acerca do ápeiron (indeterminado), para propor que aqueles dois, cada um ao seu modo, contribuiu no sentido de determinar novas

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dimensões ao “necessário não-lugar” (BOCAYUVA, 2010, 402) fundamental e infinito do milesiano. Nesse sentido, caminharemos através dos conceitos de cada um dos três acerca do Ser e do devir.

O ÁPEIRON DE ANAXIMANDRO Para Anaximandro, tudo que vem a ser ou deixa de ser o faz por adquirir ou perder alguma característica particular no movimento de disjunção ou conjunção em relação ao todo. O Ser anaximândrico é eterno, infinito e não predicável, e prepondera sobre o vir-a-ser, justamente por este último carregar consigo predicações sempre imerecidas que, não obstante, nascem e morrem em suas próprias inconsistências. De acordo com Nietzsche, o milesiano vê todo “vir-a-ser como uma emancipação do Ser eterno, digna de castigo, como uma injustiça que deve ser expiada pelo sucumbir. Tudo o que alguma vez veio a ser, também perece outra vez” (1987, p.9). Nietzsche não se privou de dramatizar os termos “castigo”, “injustiça” e “expiação”, usados pelo milesiano para tratar da relação entre devir e Ser, salientado que Anaximandro via o devir como um pecador prestes a pagar a penitência devida. Talvez o filósofo alemão assim tenha interpretado as ideias do grego por ser um defensor do devir. Entrementes, a grandeza de Anaximandro reside na sua pressuposição de que o “fluxo incessante do haver pode acontecer de tal modo que o momento do nascimento de cada ente coincide com a sua morte que, por sua vez, coincide com a emergência de outro ente” (BOCAYUVA, 2010, 403). Anaximandro foi o precursor de um perscrutar diferenciado em relação ao Ser e o devir por ter inicialmente desconsiderado ser algum elemento material específico o princípio estruturador da realidade, como havia feito Tales, conterrâneo seu, para quem a água era o elemento primordial. Para o milesiano, o princípio universal seria o ápeiron (indeterminado, infinito, ilimitado) que “estaria animado por um movimento eterno, que ocasionaria a separação dos pares de opostos [que] pagam entre si as injustiças reciprocamente cometidas” (SOUZA, 1978, 20). Estes “pares de opostos” seriam, de um lado, as partes predicadas, e de outro, o

próprio ápeiron, o essencialmente indeterminado. Nota-se a absoluta abertura do

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pensamento de Anaximandro por ele ter “determinado” como indeterminado o princípio investigado, e como injusto tudo o que ganha determinação. Vale a pena ressaltar que, para um grego antigo, a palavra “injustiça” referia-se à desmedida mais do que à desigualdade. O ápeiron de Anaximandro, enquanto “ser originário desprovido de qualidades definidas [e] destituído de atributos determinados” (BITTENCOURT, 2011, 138),

a partir do qual os particulares predicados devém, é o

ilimitado que contempla conjuntivamente o Ser e o devir, pois ambos são constituintes do todo, embora, para o milesiano, o Ser fosse hierarquicamente superior em respeito ao devir, permitindo-lhe existência, ainda que efêmera e “injusta”, ou seja, desmedida. Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia seguiram nesta esteira metafísica que lida com o Ser e o devir; porém, reestruturando, cada qual ao seu modo, essa relação. Para o efésio, o Ser não seria reduzido ou corrompido pelo devir; ao contrário, o devir em sua totalidade era a medida – logos - precisa do Ser. Portanto, a indeterminação de Anaximandro foi o fundo perfeito para o devir de Heráclito ser; outrossim, para o Ser do efésio devir. Heidegger reitera posteriormente esta abertura heraclítea em um “conceito unitário de ser que autoriza indicar estes diversos modos de ser como modos [logos] do ser” (2002, 250 – grifos auxiliares). Já a teoria de Parmênides encontra uma incompatibilidade diametral com ápeiron anaximândrico, porquanto o devir autorizado pelo milesiano destrói, a partir de dentro, a univocidade e indivisibilidade do Ser parmenídico. No fragmento 8, onde é dito que “Nem a força da confiança consentirá que do que não é nasça algo ao pé dele”, Parmênides recusa-se a permitir e a locar o não-ser, ainda mais no seio do Ser, como permitia Anaximandro. Em relação à indeterminação do milesiano, o eleata a nega ainda no mesmo fragmento: “pois [o Ser] é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites”.

HERÁCLITO NO ÁPEIRON Heráclito enfrentou o Ser e o devir de forma menos dramática que Anaximandro,

corroborando

a

possibilidade

de

ambos

coexistirem

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harmoniosamente na constituição do cosmos, pois “o devir é uma ordem que, por ser permanente, perpétua, jamais deixa de ser o que é em sua essência: Ordem” (SANTOS, 1990, 8).

Essa ordenação do caos é evidente para Heráclito, como podemos

perceber no seu fragmento 8: “o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. Séculos mais tarde, Hegel sustentou a posição heraclítea ao afirmar que “o ser não é mais que o não-ser, nem é menos” (1816, apud SOUZA, 1978, 110). Em relação ao contemporâneo eleata, para quem o devir era impensável, e ao antecessor milesiano, que considerava conjuntamente Ser e devir, o efésio a um só tempo contrariou o eleata, cedendo a berlinda ao devir, como também o milesiano, invertendo a hierarquia anaximândrica entre Ser e devir. Para Nietzsche, “Heráclito descobria que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestam-se em todo vir-a-ser; daí concluía ele que o vir-a-ser não poderia ser injusto nem criminoso” (1987, 16). No artigo “O absoluto enquanto processo em Heráclito e Hegel”, é afirmado que em Heráclito há duas formas complementares de pensar: “uma, apreende as coisas de imediato representando-as para si [devir]; e a outra, compreende as coisas como desdobramento do comum [ser], ou seja, do Logos. Colocando em categorias da filosofia clássica, para ele é preciso mergulhar nas aparências e na multiplicidade [devir] e delas perceber o que há de essência, de unidade [ser]. Essa unidade para Heráclito dá-se no devir” (CORIOLANO, 2005, 33 – grifos auxiliares).

Nessa passagem fica clara a inversão que Heráclito promoveu entre Ser e devir em relação à superioridade eterna do Ser em Anaximandro. O milesiano havia atribuído ao devir um desequilíbrio efêmero a ser sanado, cobrado pelo ser; enquanto Heráclito fez do devir o perpetuum mobile fundamental que constitui tudo que é, intuindo que “o que garante a tensão intrínseca às coisas é aquilo mesmo que as sustenta” (SOUZA, 1978, 32). O logos heraclíteo consistia precisamente na “unidade profunda que as oposições aparentes ocultam e sugerem: os contrários, em todos os níveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa unidade” (SOUZA, 1978, 31). Porquanto a realidade é formada pela convivência dos opostos, “O mesmo é vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes,

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tombados além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes” (HERÁCLITO, frag.88 – grifos meus)..

Evidenciada a inversão hierárquica entre as concepções de Anaximandro e Heráclito acerca do Ser e do devir, considerando que o efésio recebeu os opostos do milesiano, todavia trabalhando-os ao seu modo, é sugerido aqui que Heráclito atribuiu uma determinação temporal ao indeterminado de Anaximandro. Nessa investigação consideraremos primeiramente alguns conceitos sobre o tempo em Anaximandro. Hipólito disse que para o milesiano a “natureza não envelhece” (Ret., I, 6,1-2; DK 12-11 apud KIRK;RAVEN, 1996, 103), o que implica que o ápeiron não estivesse

submetido ao tempo. Outrossim, Pseudoplutarco escreveu que Anaximandro “declarou que a destruição, e muito antes a geração, acontecem desde idades infinitas, pois todas ocorrem em ciclos” (Strom. 2; DK12-10 apud KIRK;RAVEN, 1996, 103); essa passagem sugere que, se há uma ideia de tempo nas concepções do milesiano, esta é mítica, e não histórica. Kirk e Havem reiteram que “o indefinido [ápeiron de Anaximandro] não está em movimento contínuo” (KIRK;RAVEN, 1996, 103); ou seja, não se move, espacial nem temporalmente; ideia que confrontará diretamente o mobilismo pressuposto na teoria de Heráclito. Refletindo sobre estas considerações acerca do tempo em Anaximandro, as particularidades predicadas, que não obstante ocorrem no núcleo desse todo indeterminado, acontecem miticamente. Isso porque, para o milesiano, o final do devir deve coincidir exatamente com o seu princípio, para assim não alterar - nem envelhecer - o Ser em sua eternidade perfeita, ainda que tal perfeição eterna esteja povoada de devires efêmeros. Uma afirmação forte de Anaximandro, qual seja, a de que “o tempo regulamenta o prazo para o pagamento” da injustiça que é todo devir, deve ser interpretada como se esse juiz temporal fosse mítico, pois o que ele exige é que o devir deixe de ser, exatamente como veio a ser, para que o todo permaneça o que é. Essa concepção de tempo mítico não encontra propriedade na teoria de Heráclito, pois este “considera o Tempo como o processo necessário no qual todo tipo de forma de vida, ainda que se transforme por uma necessidade natural,

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manifesta a potência criadora da natureza” (BITTENCOURT, 2011, 149 – grifo auxiliar). O efésio, portanto, ao fazer do Ser o devir em sua eterna mobilidade criadora, carece de um tempo histórico, pois se, como em Anaximandro, o tempo existisse apenas para medir o retorno da parte ao todo, criação alguma subsistiria nesse todo. Por conseguinte, para que a criação heraclítea permaneça, sua destruição deve ser suspensa. Podemos pensar o Ser de Heráclito como um resultado positivo, constituído a partir do incessante fluxo do devir. Ora, há evolução em Heráclito, e não a manutenção do Ser, como em Anaximandro. O tempo heraclíteo, portanto, não poder ser mítico, mas sim histórico; ou do contrário o Ser é sobrelevado em relação ao devir, e o que temos então é novamente o velho ápeiron de Anaximandro. Logo, estas diferentes concepções temporais são fundamentais para distinguir o modo como os dois filósofos relacionavam Ser e devir. Heráclito historiciza o mítico ápeiron anaximândrico ao abrir no cosmos indeterminado um caminho para devir sobre o qual não há necessidade alguma de retorno. No tempo histórico subjacente às ideias o efésio há apenas o livre “devir” do devir, sem Ser algum injustiçado; pois o Ser, para o efésio, é antes algo resultante, não primário. Para Heráclito, o ser não teria posição inicial determinada para onde suas emanações devessem necessariamente retornar, pois é “o sol novo a cada dia” (frag.6). Ademais, se existe algum Ser, este é surgido na medida – logos - do devir. Em vez do regresso penitente do que devém por sobre o caminho desgarrado, preconizado pelo milesiano, justamente porque este pensava que “o processo de individualização [era] uma afronta ao princípio de ordenação do universo” (BITTENCOURT, 2011, p.139), Heráclito ofereceu ao devir a riqueza e a liberdade de um percurso temporal histórico, criativo, enriquecedor e complexificador. “O tempo é o primeiro que se oferece como o devir, é a primeira forma do devir, [...] sua essência é ser e não-ser, [...] a abstrata contemplação desta mudança” (HEGEL, 1816, apud SOUZA, 1978, 115). Portanto, para Heráclito, os “nascidos querem viver e deter suas partes, ou antes repousar, e atrás de si deixam filhos a se tornarem partes” (frag.22 – grifos auxiliares) no processo de criação e movimento do universo.

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Inversamente, para Anaximandro toda parte que angaria alguma determinação deve voltar ao Ser indeterminado, abdicando necessariamente da determinação que a fez devir, retornando assim, miticamente, ao estádio ideal aonde nenhuma predicação subsiste. É esse processo de vir-a-ser, e necessariamente deixar-de-ser - aventura insólita da parte desgarrada - que faz brilhar um tempo Anaximandro. Todavia, esse tempo é mítico, pois no final do devir o Ser retoma a si mesmo. Ora, caso o Ser indeterminado do milesiano possuísse uma determinação temporal intrínseca, ele estaria em contradição consigo mesmo, pois qualquer determinação é tudo menos ápeiron. Por conseguinte, o ápeiron não é, não tem, e não pode ter tempo. Antes, é o devir que cria efemeridades temporais, necessariamente míticas, que começam na predicação inicial de uma parte e finda no instante em que esta predicação cede à indeterminação necessária do Ser. Dado que em Anaximandro o Ser é o senhor do que há - senhorio este que dispensa ulterioridades -, o devir nada constrói; não podendo, portanto, experimentar tempo histórico algum; apenas circular miticamente no justo espaço de ida e volta que o Ser lhe concede e impõe. Apesar de haver uma inversão hierárquica entre Ser e devir em Anaximandro e Heráclito; aquele fazendo do Ser senhor, e do devir escravo; e este, ao contrário, assenhorando o devir e deixando o Ser como o escravo resultante do processo; ambos garantem substância tanto ao Ser quanto ao devir. Heráclito, contudo, ao ter feito do devir a essência ativa do Ser, não pode prescindir do tempo histórico, coisa que comprometeria o Ser do milesiano. Logo, de Anaximandro à Heráclito, saímos do tempo mítico para entrarmos no tempo histórico.

PARMÊNIDES NO ÁPEIRON Na questão do Ser e do devir coloca-se Parmênides, para quem o Ser é uno, imutável, em nada redutível nem acrescentável. Para o eleata, o vir-a-ser, isto é, o devir da multiplicidade, decorre das ilusões dos sentidos e do intelecto sem comprometer a imutabilidade inabalável do seu Ser eterno e uno. Parmênides negativa o devir sobremaneira, a ponto de negar-lhe existência, denominando-o

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não-ser, como fica claro no seu fragmento 2: “o outro que não é, que tem de nãoser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o que não é, não é consumável nem mostrá-lo”; e também na passagem do fragmento 7: “Pois nunca isto será demonstrado: que são coisas que não são”. Para Parmênides, só mantém o direito de propriamente ser, aquilo que já-é desde sempre e que nunca-deixará-de-ser.

O

Ser

parmenídico,

diferente

do

indeterminado

anaximândrico, é pleno de determinações: eterno, imóvel, finito, imutável, pleno, contínuo, homogêneo e indivisível. Parafraseando Aristóteles, o ser do Eleata se diz de muitas maneiras. Ao contrário de Anaximandro, que não determinou o seu Ser, Parmênides, determinou o seu “em equilíbrio, em todos os pontos igualmente perfeito como uma esfera” (NIETZSCHE, 1987, 19). Fica evidente uma diferença entre o Ser do milesiano

e

o

do

eleata:

aquele,

absolutamente

indeterminado;

este

determinadamente esférico. Por conseguinte, na teoria de Parmênides duas ideias parecem contraditórias, quais sejam, aquela que diz que o ser é uma esfera e outra que afirma nada haver além do Ser. Ora, se Parmênides determina o seu Ser como esférico, sobrevém inevitavelmente a ideia de um espaço no qual esta esfera paira imóvel e incorruptível. Então, é inconsistente propor tão rígido limite sem revelar um além-limite. Porém, Parmênides mantém que qualquer espaço já é o Ser todo em si mesmo, sequer podendo haver descolamento entre o ser e o espaço que ele ocupa: lugar e ser coincidem e subsumem-se necessariamente um no outro. Se Parmênides nega locação espacial ao Ser, muito menos ao não-ser lugar foi determinado. O que resta então ao devir parmenídico? Segundo o filósofo, o devir, isto é, a “gênese e destruição foram afastadas para longe” (frag.8 – grifo auxiliar).

Por um lado o monismo parmenídico não reserva espaço para nada que

não seja o Ser eterno e indivisível, pois se há um espaço, esse já é o ser mesmo; mas por outro, ao afastar para longe o devir, sugere um lugar para tudo que não-é. Portanto, neste “longe” - em relação ao Ser esférico - habitam a mobilidade, a infinidade, a incompletude, a heterogeneidade e a divisibilidade, ou seja, toda a sorte de indeterminação. Já estas encontram lugar no ápeiron anaximândrico sem corrompê-lo irreversivelmente; mas de forma alguma no Ser do eleata. Talvez

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assim se dê, pois Parmênides, “em momento algum apela para uma explicitação do que se passa com o ente” (BOCAYUVA, 2010, 406), afirmando que se trata de coisas dos mortais que nada sabem, dos que vagueiam com duas cabeças (frag. 6). “Todas as percepções dos sentidos, pensa Parmênides, dão apenas ilusões; e sua ilusão fundamental é simular que o não-ser é, que o vir-a-ser tem um ser. (NIETZSCHE, 1987, 19)

Entretanto, alcançando o afastado longe aonde vagueiam os devires, estamos distantes do ser esférico parmenídico. Mas que lugar é esse? O ápeiron do milesiano se oferece em sua indeterminação, pois se o Ser de Parmênides é essa esfera bem determinada, o que não é Ser é indeterminação absoluta, portanto, ápeiron; lá onde o as injustas particularidades surgem, para em seguida justamente deixarem de Ser. O ápeiron de Anaximandro, portanto, é a locação possível a tudo que em Parmênides é proibido. Em uma interpretação propositalmente pervertida do fragmento 4 de Parmênides, em benefício da especulação acima lançada, podese visualizar o lugar indeterminado para onde o eleata afastou o devir: “Nota também como o que está longe pela mente se torna firmemente presente: pois não separarás o ser da sua continuidade com ser, nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo, nem reunindo-o” (frag. 4 – grifos auxiliares). O Ser de Parmênides é proposto volumetricamente, “visto que tem um limite extremo, e completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte” (frag. 8 – grifos auxiliares). Já o devir é tratado como ilusão contingente, indigna de existência, e a ele é negado inserir-se na, ou pertencer à, rígida superfície hiperbólica imposta pelo filósofo. Para o sábio de Eléia, o não-ser é aquilo que é centrifugado para longe da sua unidade monista perfeita e estática. É o universo de mobilidade, pluralidade e particularidades da vida dos homens que é excluído da esfera precisa e radicalmente seletiva que delimita o Ser do pensador de Eléia. Desse universo em devir falou Heidegger, em “Ser e Tempo”: “a integralidade do ente pode ser subdividida [sim] em âmbitos particulares (a história, o espaço, a natureza, a vida, a linguagem...)” (2002, 188); e também em “Introdução à Metafísica”: “nós conhecemos o nada, mesmo que seja

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apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadvertidamente” (HEIDEGGER, 1969, 5).

Do ponto de vista do devir, o Ser parmenídico é tudo aquilo que se retira para dentro da esfera cuja superfície, não obstante, faz-lhe fronteira. O limite esférico veementemente precisado pelo filósofo de Eléia comporta-se como o átomo singular que existe intangível e imiscível com qualquer outra coisa que não seja ele mesmo. Já o espaço circundante que envolve esse Ser, ou seja, o lugar de todos os não-seres parmenídicos, somado ao próprio Ser do eleata, é o ápeiron de Anaximandro que a tudo abarca, criado para absorver harmoniosa e indiscriminadamente Ser e devir. Porém, o que Parmênides faz ao ápeiron de Anaximandro é espacializá-lo, determinação que o ápeiron necessariamente não possuía no conceito do milesiano.

CONCLUSÃO O ápeiron concebido pelo pensador de Mileto recebeu as ideias do efésio e as do eleata, pois ambos “viam repetidamente aquele mesmo mundo que Anaximandro tão melancolicamente condenara, explicando-o como o lugar do crime e simultaneamente da expiação para a injustiça do vir-a-ser” (NIETZSCHE, 1987, 16),

pois, “uma vez que do momento em que um elemento prevalece sobre o

outro no ato de confronto ontológico dos contrários” (BITTENCOURT, 2011, 139), o devir é inegável, tanto quanto o Ser. No entanto, cada um dos três filósofos présocráticos fez a sua equação a partir do Ser e do devir. Para Anaximandro, o Ser era necessário e o devir contingente, porém, ambos faziam o ápeiron. Heráclito inverteu a hierarquia do milesiano e pensou o devir como necessário e o Ser como contingente em relação a esse devir, mantendo uma relação fundamental – logos – entre eles. Já Parmênides absorveu a hierarquia do Ser sobre o devir conforme Anaximandro, porém, radicalizou-a, fazendo do Ser a necessidade absoluta, ao preço de dessubstancializar absolutamente o devir.

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Em respeito às inovações que Heráclito e Parmênides trouxeram ao conceito de ápeiron de Anaximandro investigados aqui, podemos dizer que o efésio transformou o tempo mítico do devir – o único tempo em Anaximandro - em tempo histórico, desenhado pela livre, criativa e positiva ação do devir no mesmo ilimitado preconizado pelo pensador de Mileto. Parmênides também transformou a indeterminação do ápeiron ao fazer do seu Ser algo espacialmente determinado, desenhando colateralmente um espaço infinito e indeterminado aonde tanto o Ser quanto o devir habitariam. Esse espaço que envolve o perfeito Ser esférico de Parmênides, considerando o Ser incluso nele, é o ápeiron ele mesmo, todavia, com duas diferenças: a primeira é que para o milesiano o devir é apenas uma desmedida (injustiça), enquanto que para Parmênides é ilusão desnecessária; já a segunda diferença é que o antagonismo entre Ser e devir para o eleata parece ser um negativo em relação ao do milesiano. Isso porque em Anaximandro, ao passo que o Ser é o indeterminado ilimitado, o devir é algo que “pipoca” efemeramente dentro dele, como que o brotar de alguma determinação distinta, que é, mas que em seguida paga o preço por ter sido, para então não mais sê-lo. Em Parmênides, todavia, há uma inversão dessa arquitetura proposta por Anaximandro, pois o Ser do eleata localiza-se no mesmo lugar do devir pontual de Anaximandro, locado no cerne do ápeiron; e o “espaço” que subsiste em torno do ser esférico de Parmênides - a locação de todos os devires - se parece com o Ser anaximândrico, pois ilimitado e indeterminado. Para finalizar, é proposta uma analogia em homenagem à tragédia em meio a qual Nietzsche colocou a filosofia pré-socrática grega. Para Anaximandro, o ápeiron seria o grande Odeon indeterminado no qual o Ser é a figura Hor Concours, dona do palco, mas que dá voz, e por que não dizer, dialoga com o devir irrequieto e inconstante sentado na plateia, deixando o devir ser, pelo tempo mítico de sua efemeridade, até que ele acabe em sua insustentabilidade determinada, e vá embora, ofuscado pela diva necessária e eterna do Ser. Heráclito, inversamente, coloca o devir no palco dramático, pois só ele age, é e constrói, historicamente, o espetáculo da existência; e o Ser, na plateia, é como que a ideia-logos que se forma à medida do espetacular devir. Já Parmênides, em sua rigidez monista, reservou a

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centralidade da arena para o Ser imóvel e impenetrável - musa intocável e alheia aos sentidos -, espacializando tridimensionalmente o eufórico e populoso devir para bem longe, lá nas distantes fileiras da plateia das múltiplas opiniões humanas.

BIBLIOGRAFIA

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