Herbert Spencer e a noção de Estado na obra política de Sílvio Romero

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Herbert Spencer e a noção de Estado na obra política de Sílvio Romero

Autor – Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF e mestrando em Sociologia com ênfase em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ.

Resumo: O trabalho tem por objetivo analisar a mobilização do ideário cientificista spenceriano feita por Sílvio Romero em reação às elites oligárquicas regionais e à adoção, por parte delas, do positivismo, o qual era utilizado para consolidar filosoficamente seus projetos político-sociais para o Estado brasileiro. Procuro analisar como a utilização feita por Romero do evolucionismo de Spencer, mais do que uma derivação “torta” ou falha dos princípios do filósofo inglês, respondia dialeticamente a uma conjuntura política específica. Sua ressignificação mantinha uma relação criativa com os paradigmas políticos por ele defendidos naquele momento, sobretudo o de uma República parlamentar conjugada à diminuição da autonomia dos estados e a incorporação do nascente proletariado. Palavras-chave: Pensamento político-social brasileiro; Herbert Spencer; Sílvio Romero Abstract: This article aims to analyze the mobilization of the spencerian scientistic thinking done by Sílvio Romero regarding regional oligarchic elite and their adoption of the positivism, which was used to philosophically consolidate its politic-social projects to the Brazilian State. I'll evaluate how Romero used Spencer's Social Evolution (being something more than just a flawed deviation of the English philosopher) to address a specific political conjuncture. His redefinition had a creative relation to the political paradigms he supported back then, specially a conjugated parliamentary republic, the reduction of the states' autonomy, and the embodiment of the proletarian origin. Key-Words: Social Politic Thought; Herbert Spencer; Sílvio Romero .

1 - Introdução

Sílvio Romero é destacado por muitos analistas como um dos grandes intelectuais brasileiros e sua obra foi objeto de muitas análises, indo da História e Literatura até a Filosofia1. Romero é comumente associado ao movimento renovador de ideias políticas e filosóficas no Brasil, a chamada “geração de 1870” formada por intelectuais que se caracterizavam pela oposição à “ordem saquarema” que vigorou quase ininterruptamente entre 1848 e 1878 e os três pilares da ordem imperial conservadora: o catolicismo hierárquico, o indianismo romântico e o regime que limitava a participação política. Romero teve sua obra, principalmente sua crítica literária, diretamente marcada pela influência do ideário cientificista, especialmente o evolucionismo de Herbert Spencer. A utilização pouco ortodoxa dos referencias intelectuais estrangeiros e as atribuídas “contradições” em seus movimentos teóricos foram os aspectos que mais o estigmatizaram na produção analítica e crítica sobre ele, tanto de seus contemporâneos quanto nas obras de pensamento social e história cultural no século XX. O objetivo do presente artigo é uma breve tentativa compreender e analisar esse movimento de “aclimatação” do liberalismo evolucionista spenceriano realizado pelo autor sergipano numa chave processual. Isso implicará em realizar uma análise que leve em conta que a teoria se constitui em movimento, reflexivamente em relação a “matéria social”, onde a conjuntura não funciona apenas como determinante exterior, mecanicamente, mas sendo incorporada internamente ao texto2.. Assim, dialeticamente, imbricam-se mudanças na forma sociológica das interpelações e o movimento político e social mais amplo a qual as formulações de Sílvio Romero dialogam de forma analítica, mas também normativa. Entretanto, o contexto, entendido como exterioridade, não é descartável na minha análise, mas o propósito central é entender como ele dialoga e se integra (e se transforma) internamente na obra romeriana. O liberalismo spenceriano, na sua matriz de origem , apresentava o ethos liberal vinculado diretamente a leis imanentes da vida orgânica, concepção essa mais tributária de Lamarck do que de Darwin (filiação essa que foi criada pelo senso-comum acadêmico), pois segundo Bellamy “a postura de Lamarck ajustava-se muito melhor que a de Darwin à ideia vitoriana do desenvolvimento do caráter pela recompensa judiciosa do esforço” (1994:29). Minha hipótese é de que o centro ontológico dessa premissa spenceriana é deslocada na interpretação realizada por Romero, pois devido a conjuntura de dominação oligárquica, federalismo e laissez-faire no Brasil, tanto no 1

O recurso de mobilizar criticamente a bibliografia analítica sobre Sílvio Romero tem ligação direta com o argumento referente à aclimatação original do spencerianismo pelo autor e a quebra do “lugar-comum” de sua fortuna crítica de um pensamento imitativo e fraco teoricamente. 2 Inspiro-me aqui nas proposições de Schwarz(1999) e de Candido (2000), segundo as quais a matéria social funciona como elemento interno ativo na constituição da forma. No caso dos dois autores, se referindo a literatura de ficção e no caso aqui proposto como “modulador” das construções e deslocamentos de referências teóricos.

sentido econômico quanto no social (a ausência de políticas de integração do “proletariado” à vida pública e política brasileira e a falta de mecanismos de representação popular realmente efetivos no arranjo da Primeira República) fizeram com que o autor sergipano não aderisse totalmente a essa proposta extrema de liberalismo e reconsiderasse o papel do Estado na função de mediador e até, em última instância, de tutela do “povo em formação” no Brasil3. Pode-se notar, nesse movimento, como a migração e adaptação das ideias em contextos periféricos pode trazer úteis mecanismos para desvelar não somente a sua forma, deslocamentos e aplicabilidade (ou não) fora do centro, mas também para desvelar as contradições no funcionamento das teorias no centro (RICUPERO, 2008: 68).4 Afirmo isso baseado no segundo momento do liberalismo inglês, onde por meio das formulações de J.S. Mill e T.H Green, os autores perceberam a insuficiência do modelo radical do Laissez-Faire diante das contradições sociais cada vez mais às claras mediante o crescente processo de industrialização (BELLAMY, Ibd: 31). Utilizo aqui a noção de repertório intelectual proposta por Swindler (1986) e Tilly (1993), na qual os agentes fazem uso dos conceitos e teorias por meio de um critério político de triagem. Essa adoção permite por em debate a forma como em contextos periféricos as matrizes teóricas “importadas” são incorporadas mediante um locus vivo de disputa e também como esse movimento de “aclimatação” permite tensionar também as bases epistemológicas das teorias em seus centros originais de emissão. Com esse movimento, entretanto, não desconsidero a tentativa de formulação teórica generalizante por parte de Sílvio Romero, como se operasse uma adoção utilitarista das ideias, mas antes uma mobilização reflexiva e com agência das ideias científicas europeias. Com vistas a auxiliar a análise da trajetória política de Sílvio Romero torna-se necessário retomar as reflexões de Bourdieu acerca das ilusões biográficas, que nos indica que é necessário reconstituir o campo de ação do indivíduo estudado, contextualizando-o em relação aos aspectos da sociedade que está inserido. Quando se pensa numa trajetória, não se deve imaginá-la como um todo coerente e racionalmente traçado, como se os sujeitos históricos obedecessem a um caminho pré-estabelecido (BOURDIEU, 2005). Tratando-se da análise da obra e posicionamento político de Silvio Romero, torna-se vital para o bom andamento da análise utilizar esses apontamentos, pois em Romero, talvez mais explicitamente do que ocorre com todos os literatos do período, sua vida e obra apresentam um aspecto nitidamente relacional. Essa abordagem auxilia no entendimento da lógica social que o autor está inserido, sua relação com os outros intelectuais do Recife e do resto do

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O liberalismo spenceriano não negava totalmente o papel do Estado, mas via apenas ele como educador em um primeiro momento, para em seguida deixar que as “leis naturais” da sobrevivência do mais apto dessem forma a uma comunidade realmente mais adaptada a sociedade moderna.(Bellamy, idem). Já Sílvio Romero acreditava que ele tinha papel central na defesa das populações à margem do acesso a uma representação social e política, que estava no momento monopolizadas pelas castas oligárquicas estaduais. 4 A interpretação de Bernardo Ricupero refere-se diretamente ao ensaio “As ideias fora do lugar” de Roberto Schwarcz (2012).

Brasil, podendo nos oferecer uma eficaz resposta à questão da suposta falta de coerência em suas obras e atitudes, escapando do cerne desse pensamento: a linearidade e coerência das trajetórias intelectuais que enquadram os fatos que escapam a esse modelo como apenas incoerências e “vulgarizações” de ideias (Ibid.). Por outro lado, o uso do contextualismo linguístico como aporte metodológico neste trabalho permite a fuga em relação ao perigoso mecanismo de interpretar a trajetória intelectual e política de Sílvio Romero sob o prisma das classificações feitas por seus críticos, nublando os confrontos e estratégias intrínsecas a um ambiente marcadamente conflituoso e em formação. Essa matriz teórico-metodológica auxilia a crítica da repercussão e da forma como a obra romeriana foi absorvida e analisada pelos estudiosos do pensamento social brasileiro. Na sua grande maioria, esses trabalhos muitas vezes “importam” acriticamente categorias classificatórias próprias de um cenário bem específico de disputas e alocam o autor em uma “jaula” hermenêutica: o uso do ideário cientificista aparece nessas análises como mera reprodução de suas matrizes europeias e as polêmicas em que Sílvio Romero participou são entendidas como influenciadas pelos seus devaneios “passionais”, quase irracionais, não obedecendo a uma lógica interna e histórica. O esforço empreendido de análise da produção crítica sobre Sílvio Romero numa perspectiva de média duração5 terá o intuito de perceber e salientar permanências interpretativas que estigmatizam o autor e elucidar um outro caminho possível para o entendimento do seu esforço intelectual. Além disso, permitirá apreender a dinâmica interna de sua produção teórica sempre referenciada aos momentos específicos que a vida sócio-política do país passava e corroborar a ideia da abordagem da teoria como processo, recurso analítico explicitado linhas acima. Perceber essa dinâmica, sem desmerecer as contribuições heurísticas das obras analisadas e criticadas, permitirá superar o lugar-comum em que se situou por muito tempo a fortuna sobre Romero e tentar compreendê-lo, alternativamente, em seu esforço maior de confrontação política e estratégico de inserção num ambiente intelectual não muito receptivo a ele. No decorrer da análise, mobilizo os ensaios de crítica política e de conjuntura do período republicano de Sílvio Romero(1894;1910;1912;1969;1978;1978b), principalmente no momento de “desencanto” que ele e grande parte de sua geração sofreu com os rumos tomados pelo regime. Nestas obras o autor mobiliza mais claramente o liberalismo spenceriano contra o regime oligárquico e suas influências comtianas e já demonstra seu descontentamento com o modelo federalista consagrado pela carta de 1891. Como forma de contrapor a recepção de Romero à

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Entendo “média duração” como propõe Braudel (1992) no caso de processos de duração cíclica e conjuntural no decorrer da história. Para o autor, esse seria o tempo dos processos econômicos, sociais e políticos que extrapolariam o espontaneismo dos fenômenos de curta duração (o acontecimento), mas também não teriam a perenidade dos processos de longa duração (os fenômenos ligados aos processos geológicos e da interação do meio físico e geográfico com o homem em sociedade).

Spencer, também utilizo como ferramenta nesse esforço analítico as obras do autor britânico, mais especificamente as que tratam da relação indivíduo e estado (1850;1891;1939;1960), mote central de sua produção teórica. 2 – Desvio, contradição ou estratégia? Um balanço analítico-crítico da fortuna crítica de Sílvio Romero

Muitas das análises sobre Romero trabalham com a ideia de que o pensamento do autor e a forma como mobilizou suas construções intelectuais seriam “contraditórios”, desde as primeiras reações em relação à sua obra até as análises mais recentes. Sua suposta incoerência e o ardor e ferocidade para com as querelas em que estava envolvido com seus adversários marcaram uma tradição de análise que por muito tempo balizou o debate sobre sua contribuição para o pensamento social brasileiro. José Veríssimo, um dos principais adversários intelectuais de Romero6, inaugura uma vertente interpretativa sobre a obra do autor ao se posicionar criticamente em relação à crítica literária romeriana, do que o trecho abaixo citado constitui exemplo emblemático: [...] ele não é uma natureza complicada e difícil, antes clara, espontânea e aberta. Mas também incoerente, impulsiva, sem medida nem comedimento. Isso explica as suas incoerências, a sua inconstância de caráter e de espírito [...] se não se emenda, é um candidato ao delírio de perseguição (VERÍSSIMO, 2001, p. 244)

Nota-se claramente a desqualificação de Romero transcendendo ao arcabouço teórico e crítico utilizado por ele e fixando-se nas suas características pessoais e psicológicas. Artifício comum na mis-en-scéne intelectual da época, essa forma de abordagem interpretativa se perpetuou, de formas diversas, na vasta produção subsequente sobre o autor, indo desde Antonio Candido até obras mais recentes, as quais serão abordadas adiante. Sílvio Romero é considerado por Antonio Candido um dos principais nomes da moderna crítica literária brasileira, apesar do autor salientar discrepâncias nas suas análises e o excessivo enfoque nos fatores externos à literatura. Candido, em Método Crítico de Sílvio Romero (1945), enfatiza as contradições romerianas, caracterizando-as como um “ardente e por vezes desordenado movimento entre ideias resultante de um humor instável” (Ibid.:19). Podemos notar que a interpretação de Candido lança mão de certo psicologismo, como Veríssimo, ao caracterizar a lógica do movimento intelectual de Romero. Segundo Candido, a polêmica, tão marcante na obra de Romero, teria sofrido influência de ressentimentos e motivos pessoais, mais do que motivações

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Além de toda a diferença entre as propostas de crítica literária existentes entre os autores, pode-se localizar o início da polêmica e da intensa rixa entre os dois na defesa de Machado de Assis empreendida por Veríssimo mediante as críticas feitas por Romero no seu Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira (1897). Sobre essa tríplice polêmica, ver Bariani, 2007.

políticas e de disputa intelectual. O problema de tal análise é o fato de Candido deslegitimar essas motivações na trajetória de Romero dentro da disputa intelectual do período. Por outro lado, Antonio Candido vê na obra de Romero importância devido à forma como o último ultrapassou o formalismo da crítica literária e permitiu uma leitura mais complexa das atividades artísticas e literárias do Brasil. Para Candido, esse movimento em Romero deveu-se ao embasamento no naturalismo crítico, que entende as questões culturais de forma integrada e funcional em relação a um contexto específico (Ibid.). Apesar desse reconhecimento da importância da obra de Romero para a crítica literária brasileira, Candido entende o uso do ideário cientificista no autor como mera reprodução de suas matrizes europeias. As polêmicas em que Sílvio Romero participou são entendidas como influenciadas pelos seus devaneios “passionais”, quase irracionais, não obedecendo a uma lógica interna do campo7 de disputa intelectual e política do período. Nelson Werneck Sodré, em seu livro A Ideologia do colonialismo (1984 [1956]), trabalha com a perspectiva de que o pensamento evolucionista brasileiro, especificamente o de Sílvio Romero, seria fruto de uma recepção acrítica e servil do ideário da “metrópole”, reflexo da dominação colonial, enfatizando que as teorias adotadas pelos intelectuais brasileiros do fim do século XIX seriam uma [...] transplantação cultural, isto é, a imitação, a cópia, a adoção servil de modelos externos, no campo político como no campo artístico [...] Os povos subordinados não a escolhem por um ato de vontade. São naturalmente conduzidos a recebê-la porque, ao mesmo tempo que justifica a supremacia de nações colonizadoras, justifica, internamente a supremacia da classe ou das classes que se beneficiam da subordinação, associando-se às forças econômicas externas que a impõe (SODRÉ, 1984: 08).

No mesmo diapasão do argumento de Sodré, Dante Moreira Leite em O Caráter Nacional Brasileiro (1969) argumenta que o uso dos aspectos científicos por Romero seria forma de dar legitimidade à sua atividade de crítico, visto o prestígio que a ciência tomou na intelectualidade brasileira no último quartel do século XIX (Ibid.: 180) e não mantendo um nexo com a realidade social brasileira. . Já na década de 1970, Thomas Skidmore, em Preto no Branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1976) também destaca as supostas contradições no pensamento de Sílvio Romero, principalmente na questão do papel do mestiço na construção da ideia de um novo Brasil. O historiador americano classifica como inconsistente as posições de Romero, o qual, para Skidmore, teria ressignificado as ideias cientificistas raciológicas, alocando o mestiço em um contraditório papel na construção desse “novo” nacional. Essa inconsistência, segundo Skidmore, seria ainda mais aguda tendo em vista a solução do branqueamento e a sua incompatibilidade com 7

Utilizo “campo” aqui como categoria descritiva e não da forma analítica empreendida por Pierre Bourdieu.

as ideias matriciais europeias. Retomando e criticando essa vertente analítica propagada pelo brasilianista, Roberto Ventura, no seu livro Estilo Tropical: História Cultural e polêmicas literárias no Brasil analisa essas aparentes contradições na obra de Romero como uma forma de integração do ideário europeu no Brasil consoante à conjuntura política nacional, como fica claro no trecho citado:

[...] os sistemas de pensamento europeus foram integrados de forma crítica e seletiva, segundo os interesses políticos e culturais das camadas letradas, preocupadas em articular os ideários estrangeiros à realidade local. O racismo científico assumiu essa função interna, não coincidente com os interesses imperialistas, e se transformou em instrumento conservador e autoritário de definição da identidade social da classe senhorial [...] (VENTURA, 1991, p.60)

Ventura, no fragmento acima, dialoga com a tradição interpretativa na qual Skidmore se enquadra. Ao contrário do brasilianista, Roberto Ventura não enxerga a adaptação do ideário europeu como cópia ou erro de percurso, ao contrário, enxerga o repertório cientificista atuando como um arsenal retórico que foi utilizado para os anseios modernizadores da intelectualidade brasileira do último quartel do século XIX e início do século seguinte. O autor relaciona o recurso à polêmica como reflexo de uma prática própria da intelectualidade brasileira do período remanescente de certos aspectos tradicionais – a questão da honra e da busca pela manutenção da integridade pessoal – e aponta na direção de que forma e conteúdo das críticas feitas pelo autor sergipano seriam fruto de uma conjuntura influenciada por um modus operandi tradicional. Essa abordagem pode ser útil para ver como o repertório intelectual se realiza, como forma, numa ferramenta retórica de debate e disputa, como apresentada linhas acima. Internamente, no sentido de incorporada ao texto, as tensões da vida social brasileira são questionadas frente a um repertório de certa forma deslocado das suas matrizes originais. Em trabalho recente de Alberto Luis Schneider (2005), percebe-se a preocupação em historicizar as querelas de Romero frente aos seus adversários intelectuais e políticos (principalmente Machado de Assis), transcendendo o “estigma do contraditório” que marcou, durante décadas, as abordagens sobre Romero. Dessa forma, Schneider percebe que muitos dos movimentos críticos e ataques de Sílvio Romero à “panelinha fluminense” e ao seu “chefe” – Machado de Assis – representavam uma tentativa de critica à posição central ocupada pelo Rio de Janeiro no ambiente intelectual do país no momento. Além disso, Schneider destaca a disputa empreendida por Romero em torno da definição e normatização da semântica do ofício letrado no país: a postura “engajada” de Romero em oposição ao suposto belletrissmo de Machado de Assis (Ibid.: 99). Outro aspecto presente no trabalho de Schneider tange a certas interpretações que dão a linha de comparação que empreendo aqui. O autor, em passagem que explica a diferença entre as

abordagens de Machado de Assis e Romero quanto à questão da nacionalidade, deixa clara a chave de compreensão dessa diferença:

A pretensão romeriana de explicar o Brasil exibiu uma consciência nacionalista perturbada, oscilando entre o otimismo e o pessimismo, que observava a vida brasileira e ao mesmo tempo lia os teóricos europeus, extraindo desses olhares respostas contraditórias. A imaginação intelectual do século XIX penetrou fundo no universo romeriano. Machado de Assis, ao contrário, foi menos suscetível aos discursos hegemônicos, menos interessado nas grandes teorias explicativas e mais disposto a flagrar a universalidade do homem nas suas estratégias veladas, no cálculo escondido atrás da generosidade ou da ingenuidade, no jogo das aparências, no interesse de classes dissimulado. Sem a angústia da identidade nacional, Machado de Assis soube falar do seu país e de seu tempo, conseguindo afirmar e relativizar, criticar e compreender, capaz de aludir às coisas brasileiras sem cair num discurso nacionalista ou antinacionalista (SCHNEIDER, 2005, p.117) (grifo meu).

O autor, ao fazer essa comparação, repete a longa tradição explicitada linhas acima, vendo em Sílvio Romero uma adoção equivocada de repertórios intelectuais externos à realidade brasileira e, por outro lado, em Machado de Assis, saltaria aos olhos a sofisticação de sua interpretação e o refinamento de se afastar do cientificismo tão em voga no período, o que lhe permitiria ver as nuances da realidade social brasileira, desprendido das amarras da “angústia da identidade nacional” (Ibid.: 117). Não nego que Machado de Assis não comungava e sempre foi um crítico do cientificismo nas suas mais variadas vertentes e o fez com muita perspicácia no seu tempo. Entretanto, entender a prevalência de Machado de Assis em relação a Romero através dessa chave de leitura me parece um exercício eivado de anacronismo, posto que essa interpretação desconsidera a realidade do momento em que os agentes estavam inseridos, fazendo uma leitura teleológica. Ademais, entender que existem teorias ou “doutrinas” específicas ou mais apropriadas em relação a determinado período pode ser perigoso e não permitir enxergar a forma política em que os repertórios são empregados. Como nos lembra Quentin Skinner (1996), o estudo do contexto em que a obra foi produzida não significa apenas adquirir uma informação adicional sobre uma etiologia, mas também implica em perceber e ter maior visão interna sobre o que seu autor queria dizer, o que ele “estava fazendo”8 quando escreveu suas obras (Ibid.: 13). A proposta metodológica do contextualismo linguístico transcende a simples análise do argumento do autor e possibilita dar conta das questões que Sílvio Romero lançava e tentava responder e, em que medida, aceitava e endossava, ou contestava e

Skinner não defende que esse “fazer” seria o de adentrar a mente do autor e, em um esforço subjetivista, dar conta dos meandros de sua mente. O que ele coloca é o fato de entender a produção dos textos dentro dos seus contextos linguísticos específicos e compreender como os mesmos têm uma função estratégica e instrumental de agência na realidade (2005).

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repelia – ou às vezes até ignorava – as ideias e convenções predominantes. Após esse breve mapeamento da presença de certas continuidades de análise em torno da obra de Romero, convém perceber a utilização do repertório teórico por ele adotado com finalidade de ação prática frente à realidade política do país. Vale mencionar que, para Romero, a atuação política e a prática literária caminhavam juntas e faziam parte do mesmo movimento. Portanto, para melhor compreender a dinâmica intelectual do autor se torna necessário considerar também suas análises políticas strictu sensu. 3 – Liberalismo, Positivismo e Spencerianismo

Em linhas gerais, a análise da adoção do evolucionismo de Spencer pelos intelectuais brasileiros caminhou no sentido de relacioná-la ao pensamento liberal e sua crítica a interferência do Estado, a ênfase no individualismo e na concorrência enquanto que o Positivismo encontrou guarida e serviu de base para projetos de cunho autoritário. Richard Graham, em seu clássico livro sobre a influência britânica nos projetos de modernização no Brasil, afirmava Ideias que conseguiam relacionar progresso, ciência e indústria entre si tinham um apelo especial àqueles que trabalhavam para destruir a sociedade tradicional. O pensamento de Herbert Spencer fez isso incrivelmente bem, pois acreditavam quando ele dizia que o progresso era inevitável, que levaria a um futuro industrial, e que a ciência provava a veracidade de ambos argumentos [...] Spencer deu credibilidade às políticas governamentais "laissez faire"e apresentou argumentos fundamentados contra a legislação do bem-estar social. Com isso, ele deu esperança e acabou com os medos de muitos membros dos novos grupos urbanos. (GRAHAM, 1972: 232-233) [Tradução minha]

Assim, o autor britânico afirma que em grande parte da aceitação de Spencer no Brasil foi a possível correspondência do pensamento científico e de seu papel na contestação a tradição e as permanências do Império com o liberalismo. No mesmo diapasão, Angela Alonso avança e afirma que, além disso, positivismo e spencerianismo representavam polos opostos no sentido de concepções político-ideológicas para os rumos do país, e de forma geral “[...] o spencerianismo tendeu a fornecer uma via liberal para o progresso, enquanto o positivismo comteano trazia uma perspectiva autoritária.” (ALONSO, 1995: 5). Esse cenário em grande parte corresponde ao contexto intelectual presente no Brasil do período, entretanto, a forma como Romero percebe e constrói sua argumentação sobre o papel do Estado e, principalmente, sobre o cenário político da Primeira República brasileira e o domínio dos setores oligárquicos flui em outra direção. Primeiro, convém mencionar que em grande medida o positivismo que Romero toma como alvo é basicamente o de inclinação laffitista, seguido pelos adeptos do Apostolado. Segundo o autor sergipano, os adeptos da Religião da Humanidade construíram um arcabouço teórico-religioso que copia estruturalmente o credo católico e, seguindo

essa linha, teria assumido um caráter autoritário (ROMERO, 1978). Entretanto, o cenário do positivismo no Brasil é bem mais plural do que faz crer a “história oficial” criada pelo Apostolado, principalmente sob a liderança de Miguel Lemos9. O positivismo, além da sua forma religiosa, levando ao extremo as proposições de Comte, baseado principalmente na obra de Lafitte, também teve no Brasil adeptos de sua forma “heterodoxa”, aos moldes da concepção de Littré, funcionando mais como um recurso metodológico e discursivo de crítica ao status quo tradicional, com vistas a uma saída para a modernidade nacional e menos com aspirações morais, éticas e metafísicas (ALONSO, 1996). Voltando ao enfoque Romeriano da questão, podemos perceber que o positivismo, para ele, teria tomado forma no Brasil – principalmente com o advento da República – como uma seita, um emaranhado de fanáticos (Ibid.: 116), servindo ao sectarismo dos militares e às configurações oligárquicas regionais. Para o autor, o militarismo, com a influência da doutrina positiva de Augusto Comte, teria deixado de ser uma instituição neutra e passando a agir ativamente na política brasileira, fato esse que seria um equívoco causador de imensos males para o país. Nota-se que a questão do combate doutrinário contra o positivismo não se apresentava para o autor sergipano como mera disputa entre ideias, mas sim tinha tamanha importância porque implicava em questões práticas da vida política e social do país. Para o autor, o combate aos desmandos do militarismo no período pós-golpe republicano e à crítica ao autoritarismo e ao regionalismo oligárquico passavam majoritariamente pela crítica ao suporte filosófico que os sustentava. Segundo ele: A república do positivismo têm de república apenas o nome: está para o verdadeiro ideal republicano como o governo autocrático do Czar está, na ordem da realeza, para a monarquia constitucional da Inglaterra. Nem mais, nem menos. É o que é fácil de verificar, chamando a depor as bases de uma constituição política ditatorial federativa para a República brasileira, publicadas pelo apostolado central. (Ibid) [grifos meus]

Para Romero, o atraso, tanto social, quanto intelectual caminhavam juntos, e o combate precisava ser nessas duas frentes. Penso que para entender sua atuação de forma mais completa e dar conta dos aspectos mais imbricados e complexos de suas ideias faz-se necessário também realizar esse duplo movimento de análise, não priorizando um aspecto em detrimento de outro. De certa forma, a crítica ao institucionalismo presente de modo tão decisivo no positivismo, ou seja, a ideia segundo a qual a mudança e\ou reforma das instituições ou “ideologias” pudessem, por si só, transformar a realidade é o norteador dessas críticas. Questão parecida é retomada, anos mais tarde, por Oliveira Vianna ([1949]1999) e na sua construção do binômio analítico “idealismo utópico” versus “idealismo orgânico”. Tanto para Vianna, quanto para Romero, a sociedade é vista como uma Sobre a “história oficial” construída por Miguel Lemos e seus correlegionários da Religião da Humanidade Cf Alonso, 1996. 9

realidade substantiva que antecede lógica e antologicamente a política. 4 – Crítica ao sistema oligárquico e o Estado enquanto “agente” da mudança social

Em sua obra Doutrina contra Doutrina (1894), Romero elabora uma forte crítica ao positivismo no Brasil, presente a seu ver no exército e naqueles que promoveram o golpe republicano no país. Utilizando de forma singular e progressista o evolucionismo spenceriano como contraponto ao “atrasado positivismo com seus anacronismos, ditaduras, seu patriarcado...” (Ibid.: 122), Romero defende que o Brasil é “fatalmente democrático” (Ibid.: 72). Em outras palavras, para ele, a nação brasileira surge no momento posterior ao fim das aristocracias próprias do Antigo Regime quando a mestiçagem funcionou como um mecanismo que tornou a sociedade brasileira “naturalmente” igualitária e onde o governo aristocrático e autoritário de poucos não condizeriam com os fatores do meio social brasileiro. Ao fazer a crítica do autoritarismo em que o positivismo se apresenta no Brasil, Romero utiliza o liberalismo de inspiração spenceriana de forma a defender a democracia, e a chamar a atenção para a exploração capitalista dos operários (Ibid.: 90), chegando mesmo a flertar com o movimento socialista e a tecer elogios à obra de Marx e Engels (Ibid.: 85). Esse processo de afastamento e antagonismo em relação ao positivismo e adesão ao evolucionismo de Herbert Spencer10 atinge o seu auge na trajetória de Romero no início do período republicano e salienta que uma das suas motivações teria sido justamente o cenário político em que se configurou a república brasileira nos seus primeiros anos. O repertório intelectual se apresenta para ele como forma de interagir e reagir à estrutura política nacional11. Durante o fim do século XIX e a primeira do século XX, os grupos oligárquicos davam suporte à ordem política nacional. As oligarquias estaduais eram os principais atores políticos dos primórdios da República, tendo o governo federal que negociar e tecer acordos com eles para manter a governabilidade. Romero em As oligarquias e sua classificação, discurso transformado em artigo que data de 31 de maio de 1908 sintetiza o que pensa sobre as oligarquias e o seu legado negativo: O Brasil de hoje, como foi organizado, por certos ‘fantasistas’ sem cultura real, sem plasticidade orgânica de talentos e de doutrinas, confundidores famosos de frases com 10

Sílvio Romero se dizia um “spenceriano crítico”, já que não comungava totalmente com a ideia monogenista contida na doutrina, ou seja, a de que a” raça” humana teria uma origem única e tenderia a um caminho evolutivo comum. Esse fato tem relação íntima com a sua primeira interpretação da questão da mestiçagem, aonde via nela uma saída positiva para a questão da identidade nacional brasileira, mesmo se pesando a ideia da “degenerescência” do mestiço.(1969). 11 Inspiro-me aqui no movimento analítico proposto por Alonso (2002) que utiliza a noção de repertório contencioso para a análise do movimento de aclimatação e instrumentalização de repertórios teóricos pela “Geração de 1870” no contexto de crise do Império do Brasil.

idéias, e como tem andado ao sabor e sob o tacão de criminosos exploradores, é uma desarticulada ditadura, de joelhos perante o exército, repartida em vinte oligarquias fechadas, feudos escusos, pertencentes a vinte bandos de vicários (ROMERO, 1910, p.407)

Dois dos principais grupos da renovação intelectual do Brasil, as elites regionais, antes de 1880 marginalizadas, mas agora com poder e influência nos seus estados foram os federalistas de São Paulo e os do Rio Grande do Sul (ALONSO, 2002: 156-157). Em comum, eles nutriam a filiação ideológica ao positivismo de Augusto Comte e a defesa da descentralização política. Romero foi um crítico desses últimos, exemplificado pelas rusgas com Pinheiro Machado12 e Julio de Castilhos13 e o grupo gaúcho que eles representavam, controvérsia essa que fica evidente em um fragmento de sua obra O castilhismo no Rio Grande do Sul:

A maior anomalia da República Brasileira é a existência em seu seio, existência tolerada pela fraqueza do governo federal, da organização de um dos Estados da União inteiramente fora dos moldes de todos os outros, moldes prescritos pela carta de 24 de fevereiro [...] É a organização castilhista do Rio Grande do Sul, fonte inesgotável de males que têm açoitado aquela rica região e aquele nobre povo (ROMERO, 1912: 01).

Para uma melhor compreensão do argumento que tento traçar, talvez seja necessário recorrer a uma contextualização do momento republicano e o papel dos regimes oligárquicos em relação ao liberalismo, notadamente no caso de cunho econômico. O período que vai de 1889 até 1930, comumente chamado de Primeira República, ou pejorativamente de “República Velha” não foi um período de homogeneidade política, muito pelo contrário. Entretanto, a influência das elites regionais sempre foram um forte fator no jogo político Republicano, mesmo nos períodos aonde ocorreram tentativas de centralização política (Governo Floriano Peixoto). As críticas de Sílvio Romero mantêm relações com o período florianista, mas também continua tendo como alvo os agentes oligárquicos que deram base aos governos de Prudente de Moraes e Campos Salles, onde, na expressão de Renato Lessa (2001), foi possível “rotinizar” a política oligárquica num cenário político mais harmônico, com vistas ao desenvolvimento e expansão do mercado primárioexportador. Sendo assim, e concordando com a interpretação de Lessa, pode-se entender que a política dos governadores serviu de sustentação política para uma dinâmica notadamente de cunho liberal, principalmente no sentido econômico da ideologia. Logo, o esquema que liga Spencer ao ideário liberal e Comte às práticas autoritárias deve ser relativizado, levando em conta também a forma crítica que Sílvio Romero discute o clientelismo e o regime oligárquico. Meu argumento inside desconstrução de parte das premissas apresentados da necessária 12

Um dos principais nomes da oligarquia gaúcha, Pinheiro Machado foi eleito senador e deputado federal pelo Estado do RS. 13 Político do PRP formado pela faculdade de Direito de São Paulo, por duas vezes foi eleito governador do Rio Grande do Sul. Fortemente influenciado pela doutrina positivista de Augusto Comte, redigiu a constituição do Estado do Rio Grande do Sul praticamente sozinho, constituição de viés nitidamente positivista e autoritário. Os castilhistas assumiram o poder logo que a República foi instaurada no Brasil. Sobre o tema, ver COSTA e PADUIM, 2006.

ligação do spencerianismo lido e utilizado no Brasil com o liberalismo político e a crítica ao papel do Estado como interventor - para compreender como Romero utiliza Spencer: não necessariamente para desabilitar o papel do Estado, mas antes para pensar em formas de atuação do Estado na função normativa sobre certos aspectos da vida pública, como a educação e a incorporação do “proletariado” nascente. Em pronunciamento datado em 1908 e transformado em artigo, referindo-se à política econômica de Nilo Peçanha e a insuficiência dos serviços públicos, Sílvio Romero sintetiza sua crítica ao regime da Primeira República e salienta os aspectos que considerava necessário que o Estado voltasse seus esforços: […] com o desmantelamento de todos os serviços públicos, nomeadamente os que se referem à instrução, à educação e à aplicação do direito; com o seu abatimento geral de todas forças ideias, impulsionadoras da alma dos povos à segurança dos altos destinos autônomos; com o abatimento de tudo que não seja pedir dinheiro para gastar e mentir para fascinar, função única dos governos desta boa terra na hora presente, com todas essas máculas e mil outras que todas se calam por não poderem entrar num só período o nosso querido e desventurado Brasil tem sido levado a não se parecer com povo algum da terra.(ROMERO, 1978b: 200)

A chamada feita pelo autor para que o Estado assuma certas funções em prol do desenvolvimento nacional, até em última instância na criação de uma “identidade” então inexistente, parece contrariar os ditames principais da teoria spenceriana, principalmente no que diz respeito aos entraves causados pelo Estado ao desenvolvimento social e a defesa das potencialidades individuais, bem como a ideia de que a tutela já faria parte de um período ultrapassado nas modernas civilizações e, por consequência, sua presença significaria atraso (SPENCER, 1960). Nesse sentido, Romero parece “torcer” a teoria e fazer com que ela dialogue com o momento político-social em que estava inserido. Se por um lado, Romero adota e declara a filosofia da história proposta por Spencer como superior aquela defendida por Augusto Comte, principalmente na questão das teorizações metafísicas e suprareligiosas do segundo, por outro parece relativizar a máxima clássica de Herbert Spencer da sobrevivência do mais apto, aos moldes ditados por Darwin para se pensar o mundo natural, como justificativa para a exclusão social de determinados grupos. Romero, como visto anteriormente, não ignora a necessidade de pensar de forma séria em como o projeto republicano resultante da política oligárquica excluiu e relegou à miséria grande parte da população e vê, ao contrário da forma como Spencer foi lido por outros setores intelectuais no Brasil e fora dele, o Estado como responsável por equacionar essa situação. Sobre a incorporação do “proletariado” e a relação capital–trabalho propostas pelo positivismo relido “à brasileira”, Romero diz

Reduzida a sua mais simples expressão,a solução positivista do problema do proletariado, a que emphaticamente chama-se a sua incorporação na sociedade moderna, reduz-se a ser o

dito proletariado levado ao rego, isto é, á obediência e á veneração aos ricos, pelo clero da nova seita, adinstar do que, quasi sempre embalde, procurou fazer a clerezia catholica da idade média. D'ahi o desespero em que se acha o clotildismo para crêar o alludido clero, custe o que custar. Querem espalhar a nova milícia religiosa pelo mundo em fora para preparar o amanho das almas. i eE quanto mais inculto fôr o terreno, tanto melhor, mais depressa brotará a semente clotildeana. Por isso é que se ataca todo o ensino leigo, todo o ensino do Estado, com o fim de deixar ao padre positiveiro desimpedido o caminho. (ROMERO, 1894: 105-106)

Novamente surge a questão do papel do Estado como fornecedor do substrato para a emancipação do povo – no caso a educação – e a crítica à suposta forma autoritária proposta pelos seguidores do comtismo. Convém salientar que estudos mais recentes discutem o papel do Estado na obra de Herbert Spencer e relativizam um pouco a noção de que a obra do autor incorporaria um liberalismo vitoriano selvagem. John Offer (1999) desvela certos aspectos pouco explorados na obra de Spencer, principalmente nas obras Principles of Sociology e Principles of Ethics, que trazem à tona sua defesa do papel das redes de beneficiência, que assumiriam o papel de fornecer uma política privada de Wellfare, relativizando assim o absolutismo da ideia de struggle for life social em sua obra. De certa forma, Romero se antecipa a essa interpretação e relê o spencerianismo utilizando um critério criativo e realista das condições sociais do Brasil naquele momento. 5 – Conclusão

A adoção de uma perspectiva de teoria em processo permite compreender e explicar como a aclimatação do cientificismo europeu por Sílvio Romero teve agência e de certa forma contribuiu para o desenvolvimento dos estudos sobre a sociedade brasileira que se seguiram a ele. Outro dos objetivos desse trabalho foi o de avaliar e matizar certa visão corrente sobre Romero, segundo a qual uma certa lógica de cópia/desvio das ideias marcaria a trajetória intelectual do autor sergipano, no sentido de absorção mecânica de certos repertórios intelectuais e também de contradições presentes na sua trajetória intelectual. Ao contrário, procurei investigar o uso do liberalismo spenceriano por Romero como forma de atuação política e intelectual no contexto nacional e também como uma tentativa crítica e criativa de tensionar as proposições teóricas do centro (no caso a Inglaterra), e não como mero “erro de percurso” na migração das ideias das matrizes europeias para o Brasil. A relevância do posicionamento analítico apresentado neste artigo está no fato de trazer à tona conflitos dentro de campos vistos pela literatura como homogêneos, e de salientar que as ideias “científicas” de Romero estavam trabalhando a favor de uma luta política, de disputa de paradigmas de organização social. Sua obra sempre foi encarada por ele como forma de ação na realidade, por mais que, influenciado pelas ideias cientificistas, acreditasse que o que estava realizando era

descobrir a lógica natural existente na realidade. Além disso, num plano mais geral, demonstra-se útil a análise nesse modo como forma de pensar as trajetórias e produções intelectuais chamadas clássicas, dentro do campo de estudo do pensamento social brasileiro, dentro de uma dinâmica menos “desencarnada” (FEVBRE apud CHARTIER, 1990: 70) e mais atenta aos processos constituintes da produção intelectual e de formação dos repertórios intelectuais.

6 – Referências bibliográficas 6.1 – Fontes primárias ROMERO, Sílvio. Doutrina Contra Doutrina. J.B. Nunes editor, Rio de Janeiro, 1894. ______. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura Brasileira, 1897. ______. Provocações e debates: contribuições para o estudo do Brasil social. Porto: Livraria Chardron, 1910 ______. Os novos partidos políticos no Brasil e o grupo positivista entre eles. In. Sílvio Romero: Teoria, Crítica e História Literária. Org. Antonio Candido. Editora LTC, Rio de Janeiro, 1978. ______. "As oligarquias e suas classificações" In. Sílvio Romero: Teoria, Crítica e História Literária. Org. Antonio Candido. Editora LTC, Rio de Janeiro, 1978b. ______. O castilhismo no Rio Grande do Sul. Porto: Chardron de Lello & irmão, 1912. ______. Obras Filosóficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. SPENCER, Herbert. The Man versus The State, The Caxton Printers, Idaho, 1960. _______. Do Progresso: sua lei e sua causa. Digitalização da edição de Editorial Inquérito, Lisboa, 1939. _______. Social Statics or The Conditions Essential to Human Happiness. Londres, Ed. John Chapman, 1851. ______. Essays: Scientific, Political & Speculative. Londres, Ed. Williams and Northgate, 1891. 6.2 – Obras de referência

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