Herberto Helder, o nome da obra
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HERBERTO HELDER, O NOME DA OBRA Rosa Maria Martelo
[in José Quaresma (coordenador), Gravura, Instalação e Poesia. A Alegria de um Encontro. Printmaking, Installation and Poetry. The Joy of a Reunion, Lisboa, CIEBA-‐FBAUL, 2012, pp. 44-‐48]
Singularíssima, visionária, a obra de Herberto Helder foi sempre estranha a
este mundo, muito embora nada deste mundo lhe seja estranho. Talvez por se ter inventado juntamente com as leis internas que a sustentam, talvez por ser omnívora nas muitas tradições de pensamento que convoca, a poesia de Herberto Helder cruza todos os tempos, mas mantém-‐se irredutível na sua inactualidade sempre renovada. Mais de cinquenta anos volvidos sobre a publicação de O Amor em Visita (1958), e quando vivemos uma época de mercantilização generalizada à qual largas franjas da literatura e das artes inegavelmente cedem e se ajustam, a escrita herbertiana continua a erguer a improbabilidade radical do seu mundo altivo e absoluto. De tal modo que poderíamos reverter a favor do poeta o que ele mesmo disse acerca de Hölderlin e afirmar que, no contexto da poesia contemporânea, também ele é “o poeta impossível que foi possível” (2006: 141). A quem hoje queira conhecê-‐la, a poesia de Herberto Helder apresenta-‐se sob o título Ofício Cantante (2009), num livro que reúne as obras publicadas desde 1958, embora sob uma forma que não corresponde linearmente ao que se poderia esperar de um volume de obras completas. Como consta do subtítulo, Ofício Cantante é a “poesia completa”, e não uma mera reedição do conjunto dos livros publicados pelo autor, já que estes foram sofrendo alterações e supressões significativas nas várias edições e reedições da “poesia toda”. Paralelamente, o poeta tem vindo a reeditar Photomaton & Vox (4ª ed., 2006), livro no qual se contam pouquíssimos textos em verso, embora seja inegável o tom poético que o caracteriza. Trata-‐se de um volume híbrido que, além de inéditos, recolhe textos de proveniências diversas, alguns deles vindos de uma nunca reeditada Apresentação do Rosto (1968) e outros que tinham
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tido funções paratextuais em livros de poesia de onde foram retirados. No seu conjunto, Photomaton & Vox é a narrativa ligada das interrogações e meditações de uma obra que se pensa no processo de criação, funcionando portanto como o interpretante do “poema contínuo” herbertiano. Juntemos a estes dois títulos as narrativas ficcionais de Os Passos em Volta (10ª ed., 2009) e ainda os vários volumes de “poemas mudados para português”, que apontam para a as referências multiculturais desta poesia, e teremos destacado o essencial da obra na sua aparência mais recente. Não posso alongar-‐me em pormenorizações de carácter bibliográfico, mas é importante acrescentar que o título Ofício Cantante tinha sido usado por Herberto Helder na primeira recolha dos seus livros de poesia, em 1967, depois da qual o poeta organizou outras recolhas, já com a inclusão de obras posteriores, sob os títulos Poesia Toda e Ou o Poema Contínuo. Lido a seguir ao nome de autor, como normalmente acontece no rosto de um livro, este último título, iniciado pela disjuntiva inclusiva “Ou”, sugere uma total identificação entre o nome da obra e o nome de autor fazendo de “Herberto Helder” um sinónimo de “o poema contínuo” e estabelecendo, entre ambos, um vínculo e uma permutabilidade incontornáveis. Como inúmeras vezes é afirmado nos poemas, as imagens, o som, o ritmo dos versos supõem uma voz e um corpo, mas os textos pretendem funcionar como “carnagem sonora” (2009: 355), como uma dobra reflexiva do mundo apenas possível em função do processo de des-‐subjectivação resultante da escrita. Por conseguinte, se retrato há (photomaton), ele concentra-‐se nesse processo libertário (vox) ao qual Herberto Helder chama criar um estilo ou um idioma, e que é a manifestação de uma língua singular, única. Esse idioma surge entre imagem, som e sintaxe, em permanente tensão com a gramática da língua comum, em particular com a sua distribuição semântica convencional, que os poemas a todo o tempo deslocam. Sendo a fluência imagética e rítmica responsável pelo continuado re-‐ nascimento da obra, o “ofício cantante” apresenta-‐se como um efeito da produtividade do poema contínuo. E não o contrário. Num texto publicado em 2005, Herberto Helder resume, muito melhor do que eu o poderia fazer, o sentido deste “ofício cantante”:
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Compreendi então: cumprira-‐se aquilo que eu sempre desejara – uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical. (Helder 2005: 112)
Se, como pretende Jean-‐Luc Nancy, existe no texto “uma potência indefinida de imaginar diante da qual o texto não é senão impotência, uma exposição permanente das imagens” (2003: 131), se o texto apenas supera esse limite quando o seu fundo de imagem consegue suprir o plano em que falha, então a poesia de Herberto Helder é o esplendor da imagem, entendida esta não num sentido estritamente retórico ou formal, mas na vasta amplitude em que um fundo de imagem pode efectivamente ser convocado pelo texto para colmatar a insuficiência da língua. Esta operação descreve-‐se (por exemplo) assim: Mergulhador na radiografia de brancura escarpada. Arboreamente explosiva. Busca na constelação salina a flor que traga na boca de bailarino. Uma bolha árdua, estelar, à tona do corpo e da onda. A morte confundida fora e dentro. Quando não há palavra que se siga e apenas uma imagem mostre em cima os trabalhos e os dias submarinos. (Helder 2009: 433)
“Quando não há palavra que se siga” é, neste poema, uma imagem que significa a guerra com os limites da palavra; e, como vemos a seguir, “apenas uma imagem” pode superar esses limites. Mas trata-‐se sempre de uma imagem verbal livre, ou melhor, de séries de imagens livres (libertas desde logo das limitações da visão). E livremente articuladas. Por isso, a poesia de Herberto Helder falará muitas vezes do fluxo das imagens, dos “enxames das imagens” (Helder 2009: 401), ou da “transfusão das imagens” (idem: 94), concebendo-‐se como “uma espécie de cinema das palavras” (idem: 274) que podemos associar ao “retrato em movimento”:
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“elas estão andando por si próprias!” exclama alguém estão a falar a andar umas com as outras a falar umas com as outras estão lançadas por aí fora a piscar o olho a ter inteligência para todos os lados sugerindo obliquamente que se reportam a um novo universo ao qual é possível assistir “ver” como se vê o que comporta uma certa inflexão de voz (Ibid.)
Esse cinema é uma experiência de escrita à qual corresponde um processo de leitura equivalente, pois também o leitor herbertiano avança de imagem em imagem, através de “aproximações, fusões e extensões, descontinuidades, contiguidades e velocidades” (Helder 1998: 7-‐8) que lhe dão acesso àquela que é provavelmente a mais exultante experiência de des-‐subjectivação alguma vez conseguida na poesia portuguesa. Dizer isto poderá talvez convocar Fernando Pessoa nas entrelinhas, pelo que importa tornar explícita uma diferença fundamental: esta poesia aspira à criação de “um universo autónomo, irreferenciável, absoluto” (Helder 2005: 112), a uma “montagem total” (2006: 141) onde o mundo não poderá imiscuir nenhuma falha, nenhum abrandamento. Muito pelo contrário, caberá à vertigem das imagens superar o que no mundo se apresenta lento, pouco tenso, pouco nítido. Paralelamente, se há “crime” – o assassinato traduzido na afirmação de uma perfeita identidade entre o nome “Herberto Helder” e “o poema contínuo”, o assassinato que dá lugar à assinatura –, é porque o nome de autor deverá surgir em perfeito acerto com a obra: em idioma e estilo, apenas. O retrato projectado pela voz tem, portanto, uma forma: a do livro contínuo, retomado em “folhetos” sucessivos: este, único, singular ofício cantante. A condição extrema desta aventura faz-‐se em grande parte do acto de se contar enquanto busca de uma gramática que a torne possível. Assim, alguns poemas farão a narrativa do percurso que, enquanto poema, essa mesma narrativa instaura:
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Este que chegou ao seu poema pelo mais alto que os poemas têm chegou ao sítio de acabar com o mundo: não o quero para o enlevo, o erro, disse, quero-‐o para a estrela plenária que há nalguns sítios de alguns poemas abruptos, sem autoria. (Helder 2009: 518)
Os poemas “sem autoria” chamam-‐se então “Herberto Helder” porque este é o nome de uma radical des-‐subjectivação. O seu instrumento é o ininterrupto fluxo das imagens (visuais e sonoras), isto é, da matéria, do tempo e do movimento. Pelo que, as imagens herbertianas nunca se desligam da experiência, tantas vezes contada, de um gesto de escrita cuja máxima ambição é a permeabilidade. A imagem de um corpo condutor de uma energia despolarizada, que atravessa a poesia herbertiana, traduz isto mesmo. Ao nosso tempo, chamou Herberto Helder “um tempo verbal manso” (2005: 113). Com bastante ironia, acrescentava: “Os poetas cumprimentam o dicionário, a gramática, a regra das formas, trazem luvas para trabalhar as massas sangrentas. E saem limpos como de cirurgias a raios laser”. Ao invés, o ofício deste poeta sempre se quis herdeiro do “verbo primitivo e furioso, sangue e sopro” (idem: 114), colocando-‐se ao lado daqueles românticos que, ainda antes e também já depois do romantismo, souberam reler o mais obscuro, primevo mundo pré-‐socrático e dele resgataram uma insuperável permeabilidade entre a luz e as trevas. Quando Herberto Helder afirma que nunca foi moderno (2001: 193), embora poeticamente também o seja e de muitas maneiras, aponta-‐nos essa origem à qual, na verdade, nunca nos tornámos imunes. Escutar o poeta nesse repúdio do moderno, ouvi-‐lo sublinhar “a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas” (ibid.), pode ter consequências na maneira como lemos a “desarrumação das imagens” (Helder 2009: 335) herbertianas. Que são justas e literais conforme uma coerência própria. Referências bibliográficas Helder, Herberto (2001) “Herberto Helder: entrevista” [1990], Inimigo Rumor, nº 11, 2º semestre. (2005) [texto sem título], Telhados de Vidro, nº 4, Maio.
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(2006) Photomanton & Vox, 4ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim. (2009) Ofício Cantante, Lisboa, Assírio e Alvim. Nancy, Jean Luc (2003) Au Fond des Images, Paris, Galilée.
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