Herói, ainda que tardio: uma análise do ensino da história sobre o mito de Tiradentes

August 7, 2017 | Autor: Letícia Mistura | Categoria: History, Historical Consciousness, Collective Memory, Teaching History, Tiradentes
Share Embed


Descrição do Produto

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS

Herói, ainda que tardio: uma análise do ensino da história sobre o mito de Tiradentes. Flávia Eloisa Caimi* Letícia Mistura**

Resumo: A figura de Tiradentes como herói nacional já perdura por mais de dois séculos na memória do país, sendo legitimada por instituições políticas e educacionais, configurando-se caracteristicamente como um “mito” cuja presença vem sendo problematizada por variados estudos. A proposta deste artigo é analisar a permanência desse sujeito histórico na memória estudantil de jovens na faixa etária de 15 anos. O desenho metodológico se insere no âmbito da pesquisa qualitativa, tomando como campo empírico os resultados de um amplo questionário realizado com estudantes secundaristas de escolas estaduais e particulares do município de Passo Fundo – Rio Grande do Sul. No campo teórico, buscou-se tematizar os conceitos de herói, memória e identidade nacional, operando-os no diálogo com as categorias da consciência histórica proposta por Rüsen (2010) e da memória coletiva, exposta por Halbwachs (2006). Palavras-chave: Consciência histórica. Herói nacional. Memória.

Abstract: The figure of Tiradentes as a national hero has endured for over two centuries in the memory of the country, being legitimized by political and educational institutions, setting up typically as a "myth" whose presence has been problematized by various studies. The purpose of this scientific article is to analyze the permanence of this historical subject in memory of young student aged 15 years. The methodological design is within the scope of qualitative research, taking as empirical field the results of a comprehensive questionnaire performed with high school students from state and private schools in the city of Passo Fundo - Rio Grande do Sul. In the theoretical field, we attempted to thematize the concepts of hero,

Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado/ Doutorado, e da licenciatura em História da Universidade de Passo Fundo/RS. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ** História - Universidade de Passo Fundo/RS. Bolsista de Iniciação Científica UPF, vinculada ao projeto Historiografia, ensino e aprendizagem histórica, sob a coordenação da Profª Dra. Flávia Eloisa Caimi.

Página

*

990

memory and national identity, operating them in dialogue with the categories of historical

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS consciousness proposed by Rüsen (2010) and collective memory, exposed by Halbwachs (2006). Keywords: Historical consciousness. National hero. Memory.

Introdução

Pensar o “homem no tempo” como objeto do estudo da história, considerando o conceito proposto por Marc Bloch (2002) no século passado na forma de um dever de ofício do historiador alcança, na atualidade, um âmbito maior do que o estritamente acadêmico. O historiador é chamado ao meio social, ganhando responsabilidade de detetive do tempo histórico. Entretanto, o ato de pensar o homem no tempo requer mais do que o mero conhecimento de quem é esse homem, requer conhecer o pensamento desse homem sobre seu mundo, sobre sua sociedade e sobre si mesmo, muitas vezes sem que haja indícios concretos da existência desse pensamento. Para essa tarefa, é necessário que o historiador faça uso da análise da visão humana sobre aquilo que o homem representa socialmente. A expressão humana de representação social rege sua orientação no tempo, delineando suas intenções – sejam estas intencionais consciente ou inconscientemente – também inseridas no tempo. A representação social age, numa memória social, como fonte pura onde se buscará essa orientação, dimensionada temporalmente. No que diz respeito a uma jovem sociedade em construção, buscar-se-á uma representação que identifique os ideais do poder vigente com o dos submissos – ditos aqui não como subservientes, mas como figurantes do poder – para posterior legitimação de um poder onde haja lealdade, ao menos aparentes, entre ambos os personagens – o que caracteriza, de certa forma, os mecanismos presentes na formação um Estado nacional. Caberá ao poder, então, a tarefa de busca e construção de figuras representativas, que corroborem com seus interesses e – mais – que se identifiquem com os ideais do “povonação”.

Essas figuras passarão por processos que as legitimem como genuinamente

representativas – esses processos não caberão ao meio político exclusivamente, mas também

representações sociais que orientem o estudante na formação de sua identidade nacional. Falamos, aqui, da atribuição ao ensino de história que data da formação dos estados liberais,

Página

ensino da história. Pela educação, se constrói, legitima e ensina, incansavelmente,

991

ao patamar dos sistemas educativos, sendo uma das atribuições primárias de utilidade ao

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS no século XIX, até meados do século XX. Problematizações e estudos acerca dessa função vêm sendo produzidos desde então, que esmiúçam as funções do ensino de história ao longo do tempo e apontam as implicações políticas de sua função como formador de uma identidade nacional. Propomos, por meio de análise parcial de um amplo questionário realizado com estudantes de segundo ano do ensino médio, verificar a expressão de suas representações identitárias, atentando para a formação estatal destas (com aporte na memória histórica e coletiva) e suas implicações na construção adolescente da consciência histórica e de uma identidade nacional. Aliado aos pontos de exploração, discussões atuais sobre o papel da memória no ensino de história serão colocadas em voga, a partir dos resultados observados. A discussão será delineada em três pontos de observação, junto da exposição dos resultados das questões respondidas pelos jovens: (1) a noção da memória histórica e coletiva como fonte da representação social; (2) a representação social tomando forma de herói e símbolo religioso: o almejar de uma identidade nacional e (3) e a voz da consciência histórica: suas expressões no ensino da história.

Os jovens e a história no Mercosul Os dados em análise constituem um recorte do projeto de pesquisa “Os jovens e a história no Mercosul”, financiado em parte pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenado no Brasil pelo Prof. Dr. Luis Fernando Cerri, que muito se assemelha a um estudo anterior, Youth and History, de realização em 25 países da Europa, somando-se a Palestina e Israel, que quantificou um coeficiente de 32 mil jovens, com idade de 15 anos, entrevistados. Segundo define Cerri na apresentação do projeto, este se define como “um levantamento sobre a consciência história, cultura política e percepções da aprendizagem escolar de História de jovens entre 15 e 16 anos na América do Sul”. 1 No Brasil, o projeto foi realizado em 19 estados, totalizando 36 cidades-polo, onde

representantes do projeto em cada município, em uma turma por escola, numa classificação de sete tipos de escola por município. A presente análise resulta da aplicação do instrumento no 1

Fonte: http://gedhiblog.blogspot.com.br/p/jovens-e-historia-no-mercosul.html. Acesso em: 06/07/2013.

Página

responderam a questionários impressos. Os questionários foram aplicados por professores

992

alunos de 15 a 16 anos (situados no 2º ano do ensino médio) e seus professores de História

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS município de Passo Fundo/RS, que comtemplou cinco escolas participantes do projeto, totalizando um montante de 121 questionários aplicados. Nos limites desta comunicação se tratará apenas de algumas questões referentes aos questionários respondidos pelos estudantes; das 43 questões aplicadas, quatro serão analisadas: as questões de número 2, que inquere quanto ao objetivo do estudo da história, a de número 4, que questiona a confiança do estudante nas diversas formas em que a história se mostra, de número 7, que objetiva coletar dados referentes à orientação religiosa do estudante e a de número 33, que solicita ao respondente que elenque três heróis da história do país, ordenados por caráter de importância. A noção da memória histórica e coletiva como fonte da representação social A discussão trazida por Carretero, González e Rosa na introdução da coletânea Ensino da história e memória coletiva (2007), põe em voga o papel atribuído ao ensino escolar – especificamente o da história – e as modificações sofridas pela disciplina devido às transformações da demanda mundial ao longo do tempo. Segundo os autores, a sociedade do momento atual, embora inserida num processo de globalização que significaria uma perda da eficácia estatal na produção de identidades, urge à memória uma orientação em que “se renovam as lutas pela construção de representações do passado e projeção de futuros coletivos” (CARRETERO et al., 2007, p. 14). Nesse sentido, a construção pelas representações de uma identidade nacional se dá pela memória, que, consultada, oferece instrumentos de busca e apreensão de valores aplicáveis à situação do presente. Como apontam os autores, os instrumentos de lembrança, evocativos da memória, estão sempre a serviço do presente. Essa prática pode ser encontrada, com relativa facilidade, em diferentes períodos da história política do Brasil, instrumentalizada pelas diretrizes do ensino da história, que se torna um instrumento eficaz de difusão e legitimação da memória histórica do país, vertida em representações sociais, utilizadas em aporte específico aos interesses do momento presente. A tese sociológica sobre a memória coletiva de Maurice Halbwachs (2006) dedica um capítulo à análise das memórias coletiva e histórica. Mesmo não considerando que o

história vivida), ele admite a ponte entre o conhecimento e as memórias coletiva e histórica (sendo a memória histórica um pressuposto da existência de uma memória pessoal

Página

que só fará parte do recorte da memória coletiva referente ao seu período vital (a memória da

993

indivíduo faça parte efetivamente da memória coletiva de sua sociedade, pelo argumento de

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS corroborante). Assim, indivíduo recorre à memória coletiva de sua nação para tomar conhecimento de fatos, mesmo que não os tenha vivido e que os pontos de contato entre sua vida e a da nação sejam limitados à quase inexistência. As ideias de Carretero, González e Rosa (2007), ladeadas às de Halbwachs (2006) dão aporte às observações obtidas pela análise de resultados referentes à questão de número 33 do questionário aplicado. É pedido aos estudantes que listem, preenchendo três lacunas e por ordem de importância, três heróis que considerarem importantes para a história de seu país. A participação dos alunos foi significativa, embora parcial. Dos 121 questionários, 14 estudantes não preencheram o espaço referente à primeira lacuna, 17 deixaram em branco a segunda lacuna e 22, a terceira lacuna. Delineando-se entre intérpretes musicais, nomes do futebol e figuras proeminentes do poder político do país - lideram, lado-a-lado, Dom Pedro I, Getúlio Vargas e Luís Inácio Lula da Silva -, surpreendeu a recorrente referência ao personagemsímbolo do conflituoso período anterior à Proclamação da República brasileira: o alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha, o Tiradentes. É expressivo, pode-se inferir, o papel da representação social na memória coletiva, claramente ainda em vigor no meio escolar – e, também provavelmente, fora dele. A questão de número 4, que questiona a confiança dos estudantes nas várias formas de contato com a história, apresentou como alternativas: a) livros escolares, b) documentos e outros vestígios, c) romances históricos, d) filmes, e) novelas e minisséries, f) documentários na televisão, g) falas de professores, h) falas de outros adultos (pais, avós) e i) museus e lugares históricos. Os resultados apontam um dado interessante, mostrando a existência de um equilíbrio relativamente aproximado na qualidade da confiança sentida pelos estudantes entre as formas de contato da história estritamente presentes na escola (alternativas a e g, respectivamente livros didáticos e falas de professores) quanto fora do ambiente escolar (alternativas f, h, e i, respectivamente, documentários na televisão, falas de outros adultos (pais, avós) e museus e lugares históricos). Essa situação pode denotar, sem caráter conclusivo, um fator de conhecimento “geracional”2, como denominado por Sá, Oliveira, Castro e Möller (2009) em análise sobre a memória histórica presente atualmente nos brasileiros, referente ao recorte do

Referente, segundo os autores, às relações existentes entre as gerações. Quando de um estudo que vislumbra tomar como objeto empírico a memória atual de um período histórico específico, transcorrido a 20 ou 40 anos, ter-se-á, segundo Sá, Oliveira, Castro e Möller (2009), “uma parte [...] da população atual [que] o terá vivido enquanto era ainda muito jovem, uma outra parte quando já adulta e uma terceira parte simplesmente não o terá presenciado” (p. 251).

Página

2

994

período da Ditadura Militar. A pesquisa referida foi realizada com diferentes faixas etárias e

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS analisada também no que se refere a esse fator dimensional, sendo a conclusão referente aos jovens do presente, que não viveram o período, extremamente interessante: segundo os autores, os jovens não estão alienados politicamente, e sim “há uma memória geracional amplamente compartilhada, [...] faltando-lhe apenas uma dimensão factual estruturada que lhe assegure maior consistência” (SÁ et al., 2009, p. 263). A observação feita pelos autores remete, mesmo que parcialmente, ao fenômeno observado na questão 33 (que pedia aos jovens que elencassem três heróis da história de seu país), onde aparece um personagem cuja presença é recorrente na memória histórica do país, como Tiradentes. Embora não seja possível precisar exatamente o porquê da escolha ou a qualidade do conhecimento factual dos estudantes, o fator memorialístico está presente: a representação só o é porque está configurada por e assentada numa memória histórica e coletiva. Essa memória, por sua vez e segundo nos mostra a questão de número 4 (que intenciona qualificar a confiança dos respondentes nas várias formas de presença da história em seu dia-a-dia) está confiada não apenas ao conhecimento socializado no meio escolar, mas também no meio familiar – daí seu caráter geracional – e social. Há, nessa expressão representativa da memória, tanto o caráter de memória histórica vivida, como teorizava Halbwachs (2006), quanto o de uma memória de onde emergem representações, construídas por meio escolar, para legitimação de regimes políticos e intencionalmente provocar o surgimento de uma identidade nacional – como sugeria a discussão antes colocada por Carretero, González e Rosa. A representação social tomando forma de herói e símbolo religioso: o almejar de uma identidade nacional Recuperando o sentido utilizado por Sá, Oliveira, Castro e Möller (2009, p. 248) para explicitar o dinamismo da memória da sociedade ao torna-se uma representação social, podemos primeiramente colocar o pressuposto da mobilidade da memória. Segundo os autores, somente quando há a mobilização da memória pela sociedade é que esta emerge como “social”, representante de uma coletividade. A mobilização da memória pela sociedade, que a torna representativamente coletiva, é também pressuposto para a criação de uma representação social. A representação social

instrumento clássico de legitimação de regimes políticos, articulando-se de forma a justificar racionalmente a organização do poder. A ideologia de um regime político está diretamente

Página

política de regimes de poder. Segundo José Murilo de Carvalho (1998, p. 9), a ideologia é um

995

encontrará utilidade, enquanto mobilizada por uma memória, no processo de consolidação

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS ligada à memória que este busca resgatar em seu presente, necessitando de representações em um formato que encontre resposta no imaginário popular em situação. Carvalho (1998) apresenta o caso do Brasil em vias de legitimação do regime republicano: era preciso manipular símbolos, segundo o autor, pensando “refazer esse imaginário [popular] de acordo com os novos valores” (p. 13).

A proposta do regime republicano de transmutar a

representação social a fim de personificá-la em uma figura heroica foi processualmente trabalhosa e acabou por semear um herói inesperado, Tiradentes. Aos poucos, figuras consideradas apropriadas para representação do novo regime foram descartadas pela opinião popular, tanto por lhes faltarem “ingredientes de historicidade”, que pode ser explicado pelo evento da proclamação da República ter sido, segundo o autor, um evento de caráter popular raso, enquanto fortemente representada militarmente. Uma figura, no entanto, relativamente afastada do meio “nobre” dos heróis sugeridos foi lentamente agregando valores que lhe assegurariam a mitificação. Carvalho explica o processo de heroificação de um personagem como tendo por necessidade “a transmutação da figura real, a fim de torná-la arquétipo de valores ou de aspirações coletivas” (1998, p. 14), e assim pode ser observado claramente no processo que elevou o herói menos esperado pela política republicana, herói que terminou por ser um símbolo não somente político, mas nacional em diversas esferas, o “inconfidente” Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Em outra interpretação, o herói escolhido passará, antes de exercer sua função, por uma legitimação de si mesmo: necessitará corresponder aos apelos coletivos de uma população e responder a uma idealização de modelos éticos, morais e ideológicos da coletividade. A elevação de Tiradentes a símbolo nacional, memorialístico e social, é permeada por um fator curioso: o debate historiográfico acerca de vários aspectos do personagem, embora seja abrangente e constante, é transcendida por um levante intenso de produção do imaginário popular, segundo teoriza Carvalho (1998). Poemas, gravuras, pinturas e canções foram dedicados a ele: o modo popular caracterizou sua legitimação, agregando fatores simbólicos a um processo de pensamento que se tornou parte do amontoado memorialístico coletivo sobre Tiradentes. É desse “amontoado memorialístico” que partiram muitas problematizações

De acordo com o estudo O mito do herói nacional, de Paulo Miceli (1997), resultado de um projeto de pesquisa de forma bastante semelhante à questão analisada de número 33, que

Página

história, como legítimo herói nacional, simbolizando o povo brasileiro em sua melhor forma.

996

utilizadas em estudos recentes e insistentes acerca do papel do personagem no ensino da

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS solicitava aos respondentes uma lista de três heróis que considerassem importantes para a história de seu país, por ordem de importância – e, curiosamente, bastante parecida em sua análise conclusiva - os principais instrumentos de perpetuação de culto e simbolismo de um herói são a escola, a família e o livro didático, o que casa muito bem com o observado pelos dados resultantes da questão de número 33, combinados às percepções ligadas à confiança dos alunos nas fontes da história com as quais convivem, pelos resultados da questão de número 4. Outra questão mostra-se interessante ao se verificarem as semelhanças das teses de Carvalho (1998) e de Thais Nivia de Lima e Fonseca (2009). Ambos os autores comungam da tese de que a sacralização obtida pela figura de Tiradentes foi determinante para sua maior aceitação e perduração na memória coletiva da nação – também constante no que se observa nas diretrizes do ensino de história. Para os autores, o eixo religioso da trajetória de Tiradentes como herói cívico dá coesão às discussões historiográficas sobre o tema: se há discordâncias em nível real, o imaginário trata de escoá-las em simbolismos (incluindo o religioso) que transformam o herói numa instituição. De acordo também com Miceli (1997), o herói permanece moralmente imaculado, de indiscutível legitimidade. Como observa Fonseca, o cunho religioso se justifica na característica do mito político e de suas representações estarem “alicerçados em aspectos da realidade cultural de uma sociedade” (2009, p. 108). O fenômeno do herói como mártir se insere, juntamente ao simbolismo de sofrimento por sacrifício político (e também social, pode-se inferir), na fundamentação moral cristã como um exemplo de conduta inexorável – e eficiente. As analogias trazidas pelos levantes populares representativos, que elevaram Tiradentes a uma comparação a Cristo – e aqui inserem-se principalmente as alegorias ao martírio e ao esquartejamento do corpo do inconfidente, o horror à ausência de um ritual fúnebre cristão “dignificante” – só colaboraram para o assentamento do caráter cristão do herói-mártir. A pergunta de número 7, que tenciona verificar a religião dos estudantes, dá margem à uma inferência que se mostra coerente à referência expressiva a Tiradentes mostrada pela questão 33 e pode-se dizer, confirma as teses de Carvalho (1998) e Fonseca

alternativas: a) Católica, b) Evangélica, c) Judaica, d) Islâmica, e) Outra e f) Nenhuma. Cem

Página

questão em análise, de número 7, questiona a opção religiosa do respondente a partir de seis

997

(2009) sobre a força do caráter religioso na disseminação do heroísmo do personagem. A

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS por cento dos estudantes responderam à questão, sendo que o percentual majoritário foi obtida pela primeira alternativa, Católica, com 60,3% de escolha. Colaborou para a disseminação do heroísmo de Tiradentes não apenas o movimento popular apoiado na figura do alferes (canções, poemas), mas também a historiografia contemporânea à movimentação de sua construção como herói. Fonseca (2009) mostra que a maior parte da produção historiográfica do período tratou de incutir (ou simplesmente aceitar) um Tiradentes assolado pelos anos de prisão, antes de sua condenação. Os três anos de reclusão teriam amenizado seus ímpetos revolucionários, antes uma característica deveras marcante de Tiradentes, e, pelo sofrimento, o aproximado do heroísmo religioso. A produção popular e artística anteriormente referida buscou idealizar a imagem de Tiradentes, representando-o como um homem simpático, de bonita compleição física – uma forma de também o dignificar moralmente -, defensor da pátria e símbolo do civismo e dos melhores valores morais – o que de nenhuma forma foi passível de crítica histórica. De acordo com Fonseca (2009), ainda, a idealização da figura de Tiradentes encontrou espaço em vários períodos da história política brasileira, como instrumento de formação de identidade nacional, tanto na legitimação política de outros governos quanto como subsídio para o ensino da história e de disciplinas específicas para a formação moral e cívica. O que está em questão, agora, se localiza no presente: a expressão do personagem como símbolo na construção da consciência histórica. A voz da consciência histórica: suas expressões no ensino da história Jörn Rüsen, em sua Razão histórica (2001) conceitua, em certo momento do texto, a consciência histórica como “o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir de maneira que elas não sejam levadas ao absurdo no decurso do tempo” (p. 59), ou seja: o homem necessita, para orientação de sua vida prática e para não perder-se nas mudanças temporais, de um sentido que lhe indique como agir. A consciência histórica é o meio que o fará ter controle sobre suas ações no tempo, um modo específico de pensamento que pode ser executado de forma humanamente genérica. O homem tem, segundo Rüsen (2001), as mudanças do tempo presente como sempre carentes de interpretação: por meio da

rememoração, que trará uma continuidade de pensamento que o fará – pela interpretação – construir um sentido para o presente.

Página

vinculam com a experiência do passado, de onde ele vai buscar orientação por meio da

998

relação das dimensões temporais, a sua expectativa de futuro (suas intenções no tempo) se

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS A questão de número 33, que solicitava aos jovens que elencassem três heróis da história de seu país, por ordem de importância, mostrou uma referência representativa social diretamente presente no pensamento dos jovens estudantes entrevistados: um herói, símbolo moral de conduta exemplar, que também pode ser tido como orientação. Por meio da construção da consciência histórica dos estudantes, que se delineará pelas relações dimensionais do tempo, poder-se-á buscar no passado uma orientação para o futuro, que dará sentido para suas intenções de agir do presente – em razão e tentativa de alcance daquela expectativa de futuro. Cria-se assim, uma interdependência entre passado, presente e futuro, que constrói sentido, pela consciência histórica, das ações do homem no tempo. O homem, teoriza Rüsen (2001), em sua experiência no tempo, está sempre intencionado a agir e sofrer (mover-se por meio de ações e paixões) pela sua iminente perda de identidade no tempo – há uma questão de sobrevivência. O tempo natural do homem é limitado por obstáculos justamente ligados a essa limitação, e precisa transformar-se em tempo humano – de forma a superar e ultrapassar os limites da vida. A transformação do tempo natural em tempo humano é resultado da constituição da consciência histórica, operando-se pela interpretação do tempo (e das intenções humanas nesse tempo, criando-se assim uma relação de sentido para a experiência do tempo presente). A questão de número 2 consultou a opinião dos alunos sobre a importância dos objetivos do estudo da história, demonstrados em três alternativas, nas quais residem três níveis de intensidade de concordância (pouca importância, alguma importância e importante): a) Conhecer o passado, b) Compreender o presente e c) Buscar orientação para o futuro. A participação dos estudantes na questão foi de 100%, sendo a concordância com a importância (terceiro nível) da alternativa a) Conhecer o passado 88,4%, da alternativa b) Compreender o presente 84,2% e da alternativa c) Buscar orientação para o futuro 76,03%. A análise mostra uma confirmação da noção dos alunos quanto à interdependência entre as dimensões de tempo, expressas pela consciência histórica como pressuposto para a interpretação do tempo e assim, a construção de sentido para o presente (com rememoração do passado e expectativa de futuro), embora não seja possível entender suas noções quanto à interdependência efetiva

herói que instrumentaliza orientações morais, construída pelo ensino da história.

Considerações finais

Página

histórica sendo, de acordo como se infere em sua preferência expressa pela questão 33 por um

999

entre as dimensões ou a forma como ocorre. Entretanto, a noção está presente e a consciência

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS Há, então e após a análise das questões propostas, de ser questionado o objetivo do ensino de história enquanto construtor da consciência histórica dos jovens: em que patamar ela se encontra e como é possível que se resgate a problematização da ideia de uma educação em história apenas voltada para a construção de uma identidade nacional – legitimada no âmbito político. A história deve ser ensinada, conforme inspiram Carretero, González e Rosa (2007), com cuidado extremo à delicadeza de cada proposição: de forma que nem a identidade nacional seja ignorada, nem se torne um instrumento de submissão a um poder – ou carregue excessiva coletividade de uma memória histórica, que deve ser contínua e criticamente observada. Deve valorizar a noção temporal do indivíduo, tanto quanto tem o poder de mostrar que o estudante também é o “homem no tempo” de Marc Bloch, devendo oferecer condições para que ele se inclua em seu tempo, se inspire e busque orientação em outros tempos e cresça em direção a uma noção de futuro acurada pela orientação dos instrumentos de pensamento que construirá no seu percurso de aprendizagem da história.

REFERÊNCIAS: BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. CARRETERO, Mario; GONZÁLEZ, María Fernanda; ROSA, Alberto (Org.). Ensino da história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. CERRI, Luis Fernando. Jovens e a História no Mercosul. Disponível em: http://gedhiblog.blogspot.com.br/p/jovens-e-historia-no-mercosul.html, acesso em: 06/07/2013. FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Os heróis nacionais para crianças: ensino de história e memória nacional. In: GONTIJO, Rebeca; MAGALHÃES, Marcelo de Souza; ROCHA, Helenice Aparecida Bastos (Org). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 107-126.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

Página

MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Contexto, 1997.

1000

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS SÁ, Celso Pereira de; OLIVEIRA, Denize Cristina de; CASTRO, Ricardo Vieiralves de; MÖLLER, Renato Cesar. A construção e o estado atual de uma memória histórica: o caso do regime militar no Brasil (1964-1985). In: ALMEIDA, Angela Maria de Oliveira; JODELET, Denise. (Org). Representações sociais: interdisciplinaridade e diversidade de paradigmas. Brasília, DF: Thesaurus, 2009. Recebido em Julho de 2013

Página

1001

Aprovado em Agosto de 2013

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.