Heterotopias Urbanas: Arte, Paisagem e Rebelião em Belo Horizonte (Anais VII Mestres e Conselheiros)

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HETEROTOPIAS URBANAS: Arte, Paisagem e Rebelião em Belo Horizonte

CAMPOS, JOÃO PAULO. (1) 1. Universidade Federal de Minas Gerais. Núcleo de Estudos em Cultura Contemporânea. [email protected]

RESUMO Esse artigo focaliza a reinvenção de práticas artísticas e do espaço urbano promovidas por duas manifestações artivistas em Belo Horizonte: a Praia da Estação e o Sarau Vira-Lata. Organizadas principalmente por jovens ativistas e artistas, essas articulações se inserem, desde o início da atual década (respectivamente, 2010 e 2011), em lutas simbólicas – estéticas e políticas – em torno da ressignificação de paisagens urbanas, transformando formas de ver e experienciar os espaços públicos através de atividades performáticas politicamente engajadas. Nota-se, a partir de dados de primeira mão – recolhidos durante uma pesquisa de campo iniciada em meados de 2013 – e segunda mão – interpretados a partir de uma dissertação de mestrado defendida recentemente (MOTTA, 2014) – que as duas mobilizações estético-políticas produzem uma linguagem simbólica própria, articulando metáforas e símbolos específicos nas suas respectivas experiências ritualizadas. Porém, as duas manifestações compartilham uma estrutura comum, colocando em ação uma lógica que inverte tanto esteticamente como experiencialmente, as relações convencionalmente estabelecidas nos espaços urbanos (praças, ruas, parques etc.). Essas articulações contribuem para a invenção de novos contextos através de novos olhares e novos usos dos espaços urbanos (WAGNER, 2010; CERTEAU, 2012). Reinventando as práticas artísticas e a paisagem urbana cotidianas, esses jovens, mobilizando a supracitada "lógica da inversão", produzem um deslocamento sensível através da reapropriação performática da cidade. Palavras-chave: Heterotopias; Práticas Artísticas; Paisagem Cultural.

Introdução Para começar, introduzo um conceito particularmente importante para a ocasião. O termo heterotopia (aglutinação de hetero = outro + topia = espaço) é um conceito proposto por Michel Foucault para “descrever lugares que funcionam de maneira não-hegemônica”. Diferindo das utopias, as heterotopias não são apenas “imagens, ideias ou ideais”, mas lugares que “existem de fato” (RAPOSO, 2014). Como afirma o filósofo, “acredito que há – e em toda sociedade – utopias que têm um lugar preciso e real, um lugar que podemos situar no mapa”; esses lugares de experimentação – que, segundo o autor, existiram e existem em todas as sociedades – também se apresentam como espaços de enfrentamento de possibilidades, constituindo-se nos interstícios de relações sociais mais ou menos estabelecidas. Elas são a contestação de todos os outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas maneiras: ou como nas casas de tolerância de que Aragon falava, criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado (FOUCAULT, 2013, p. 28).

As heterotopias unem múltiplos espaços e camadas de significado em si, apresentando-se como um conceito crucial para compreender deslocamentos sensíveis da experiência no espaço e as transformações da paisagem urbana através de atividades artísticas. O conceito de paisagem cultural que guia as reflexões do texto concebe esta como “maneiras de ver”, sentir e pensar o espaço e seus elementos constituintes, produzidas, reproduzidas e transformadas através da experiência social (COSGROVE, 1998; SCHAMA, 1996). Nas palavras de Denis Cosgrove, o conceito de paisagem “sempre esteve intimamente ligado, na geografia humana, com a cultura”, se constituindo como uma “maneira de ver”, compor e harmonizar “o mundo externo em uma ‘cena’, em uma unidade visual”. Conceito complexo e de difícil definição, a paisagem implica, segundo o autor, (a) um foco nas formas visíveis do mundo e sua estrutura espacial; (b) a unidade e coerência racional do meio ambiente; e (c) a ideia de intervenção humana transformadora do mundo, constituinte da relação do ser humano com o espaço. Ao contrário do conceito de lugar, lembra-nos sobre a nossa posição no esquema da natureza. Ao contrário de meio ambiente e espaço, lembra-nos que apenas através da consciência e razão humana este esquema é conhecido por nós” (COSGROVE, 1998, p. 100). 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

O principal para a reflexão proposta neste texto se refere à capacidade ou potência transformadora da intervenção humana em relação tanto à paisagem urbana quanto em relação às práticas artísticas nas sociedades contemporâneas. Num contexto de vigilância e restrições intensas da vida pública nas sociedades contemporâneas (RAPOSO, 2014; BRUNO 2013), temos experimentado intensas transformações nas formas de se relacionar com e no espaço urbano. Insurgências de cunho performático se espalham pelas metrópoles mundo a fora (RAPOSO,

2014;

RENA

2013,

2014),

reclamando

“’novos

espaços’

de

democratização e de indignação” (RAPOSO, 2014, p. 91), além de constituírem novos contextos de fruição e formação artística. Movimentos estético-políticos ganham cada vez mais importância tanto no cenário político como no campo artístico, adotando táticas performáticas para reinventar poéticas e paisagens, num complexo movimento experimental. É neste momento de efervescência que surgem os contextos etnográficos trabalhados neste artigo. Dessa maneira, esse artigo focaliza a reinvenção de práticas artísticas e do espaço urbano promovidas por duas manifestações artivistas, das quais sou observador participante, em Belo Horizonte: A Praia da Estação e o Sarau Vira-Lata. Organizadas principalmente por jovens ativistas e artistas, essas articulações se inserem, desde o início da atual década (respectivamente, 2010 e 2011), em lutas simbólicas – estéticas e políticas – em torno da ressignificação de paisagens urbanas, transformando formas de ver e experienciar os espaços públicos através de atividades performáticas politicamente engajadas. Nota-se, a partir de dados de primeira mão – recolhidos durante uma pesquisa de campo iniciada em meados de 2013 – e segunda mão – interpretados a partir de uma dissertação de mestrado defendida recentemente (MELO, 2014) – que as duas mobilizações estético-políticas produzem uma linguagem simbólica própria, articulando metáforas e símbolos específicos nas suas respectivas experiências ritualizadas. Não obstante estas particularidades simbólicas e processuais, as duas manifestações analisadas parecem apontar para uma estrutura comum, colocando em ação uma lógica que inverte, tanto esteticamente como experiencialmente, as relações convencionalmente estabelecidas nos espaços urbanos (praças, ruas, parques etc.).

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A Praia da Estação: carnavalização e rebeldia Como apontei na introdução deste texto, uma característica marcante das sociedades capitalistas contemporâneas é a expansão de mecanismos de vigilância e medidas restritivas que cerceiam a vida pública nas grandes metrópoles1. Nesse contexto, práticas biopolíticas de governo e gestão do espaço urbano e da arte vêm se expandindo e se enraizando no quadro político do país. Destaca-se nesse processo – e para esta discussão específica – a expansão da retórica da cultura e arte no planejamento urbano da cidade, promovendo processos de gentrificação da cidade com a criação de aparelhos culturais oficiais como Museus, Centros Culturais, Bibliotecas, Teatros, Festivais de Música etc. Essas estratégias oficiais de gestão da cultura e do espaço urbano geralmente são impulsionadas em detrimento da dinâmica cultural e espacial características dessas regiões, seguindo as regras do jogo do capitalismo contemporâneo2. Com a eleição do prefeito Márcio Lacerda no ano de 2009, Belo Horizonte sofre uma intensificação deste processo e, em resposta ao decreto número 13.798/09 (09 de dezembro de 2009), sancionado pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, surge o movimento “Praia da Estação”. Como aponta Rena et al (2013), sobre o decreto supracitado: O decreto limitava a realização de eventos na Praça da Estação, área na região central da cidade que apresenta qualidades cívicas para receber eventos de grande porte: é plana e permite aglomeração de um grande número de pessoas. Esta medida polêmica deu continuidade às políticas urbanas de cunho nitidamente mercadológico, emplacadas pelo prefeito desde o início de seu primeiro mandato (Rena et al 2013: 80).

Sobre a justificativa oficial desta medida restritiva, Thalita Motta salienta que: A prefeitura justificou o decreto como medida para garantir a integridade do patrimônio, evitando, em suas palavras, “a depredação do patrimônio público” e também garantindo a “preservação da segurança pública”, ambos decorrentes da dificuldade em limitar o número de pessoas em eventos abertos na praça (MOTTA, 2014, p. 39-40).

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Não discutirei em profundidade esta questão, devido ao foco do texto. Porém, diversos autores têm trabalhado este tema, entre eles BRUNO (2013); RENA (2013, 2014); além dos já clássicos DELEUZE (1992) e FOUCAULT (2008). 2

Sobre um caso atual de gentrificação, ver CASTRIOTA et al (2014). 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

A “Praia da Estação” foi, portanto, o estopim de uma expansão exponencial de mobilizações que deram início a um processo de construção coletiva – ou conectiva – novos arranjos de associação e formas de produção artística e experiência urbana3. O movimento promove encontros lúdicos e carnavalescos de ocupação da praça alvo do decreto 13.798/09. As pessoas se reúnem para desfrutar coletivamente da com roupas de banho, bicicletas, guarda-sóis, boias, bolas de futebol e, assim, para a transformação da estética urbana da cidade e constroem uma alternativa criativa – com forte apelo estético – e performativa de experimentar o espaço urbano em meio à música, sol e jatos de água desengatilhados por um caminhão pipa.

Figura 1- 3 anos de "Praia". Foto: Priscila Musa

A festa e a carnavalização marcam fortemente as intervenções dos banhistas da Praia da Estação, que fazem da Praça uma espécie de praia metafórica, manipulando este mar alegórico como “símbolo dominante” – para usar um conceito turneriano –, vetor de crítica social e cisma experiencial. Assim, os banhistas rompem os sentidos e usos convencionais da praça, promovendo novas experiências num espaço foco de tensões políticas. A Praia da Estação, que nasceu como movimento de contestação política unido à vontade popular de ocupar espaços públicos, comemora quatro anos

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A Praia da Estação – e outras insurgências do gênero – já existia antes do decreto. Porém, não nas proporções e formas que atingiu depois do fato supracitado. Am recorte temporal foi necessário para a presente análise. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

de atividade em 2014. Para a estudante Rayelle Goulart, de 23 anos, a organização do evento vai além do divertimento e reforça a luta pela ocupação do espaço público em Belo Horizonte. "A atual gestão já apresentou diversas propostas de limitação do uso de praças na capital e o movimento Praça da Estação é uma das principais maneiras de a população lutar pelo direito de ocupar o espaço público quando quiser e sem limitações", disse (SIMÕES, 2014).

A Praia se apresenta como um meio performático de reclamar a cidade, buscando romper com as supracitadas medidas restritivas sancionadas pelo governo através da construção de uma plataforma festiva e carnavalesca de formação cidadã. Este ponto fica mais claro ao somarmos às descrições acima o fato de a Praia da Estação ter se tornado um espaço de desfiles de blocos de carnaval de rua que, através da crítica e rebelião pelo riso e deboche, buscam enfrentar as diversas restrições por parte do poder público. Citando novamente Thalita Melo: Impulsionados pelos eventos da Praia da Estação, surge, então, logo no início das primeiras ondas, sua versão em bloco carnavalesco, com direito a marchinhas ácidas e com alto teor político. Os banhistas agora também se vestem de foliões, a fim de criticar as proibições do poder público ao uso da cidade, entre outras questões de tamanha importância para a coletividade

(MOTTA, 2014, p. 68).

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Figura 2 - Foliões na Praia da Estação. Fonte: desconhecida

Combinação sarcástica de festa e contestação política, o carnaval de rua de Horizonte encontra na Praia da Estação um espaço de trocas e ação coletiva4. Um exemplo que deixa patente esta relação é a marchinha vencedora do 2° Concurso de Marchinhas Mestre Jonas em 2013 – “fomentado pela produtora cultural Cria!Cultura em parceria com a Rádio Inconfidência – que só pelo nome (#imaginanacopa) já entrega a sua crítica” (MOTTA, 2014, p. 70): Derrubaram minha casa Por um erro de arbitragem Ai meu deus, essa copa do mundo É uma puta falta de sacanagem! Beagá não sai ganhando Nem se for pra repescagem Se o filho da babá é dono da bola Vou levar minha pelada pra Contagem Se na praça não pode vender pipoca #imaginanacopa

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O já tradicional “Encontro de Blocos” que ocorre no último dia do carnaval de Belo Horizonte. Neste evento diversos blocos de rua não-oficiais partem de suas regiões de origem rumo à Praia da Estação, onde permanecem tocando marchinhas em uníssono. Além disso, o movimento Praia da Estação também tem um bloco próprio e, em suas performances durante o carnaval, sai da Praça da Estação em direção à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, onde se inicia a festa de fato, entre jatos de água e marchinhas de carnaval. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

Se o Laércio tá fechado com a Coca #imaginanacopa Se na Guaicurus só ta dando poliglota #imaginanacopa Se o burguês pira nas mina de pi... Ôpa! #imaginanacopa Se no rádio essa música não toca #imaginanacopa

Sobre a marchinha #imaginanacopa, Thalita Motta escreve que: A marchinha #imaginanacopa (autoria de Daniel Iglesias, Matheus Rocha, Guto Borges) flerta com jargões atuais, com a derrubada das casas em função da Copa do Mundo sediada no Brasil em 2014, com o Poder Público Municipal, quando fala do Márcio Lacerda (PSB)43, atual prefeito de Belo Horizonte e refere-se ao vereador Léo Burguês (PSDB) como “burguês”. Fala da Rua Guaicurus, famosa em Belo Horizonte pela marginalidade e prostituição, e ainda da proibição da venda de pipoca e outros alimentos na “área da Fifa” durante a Copa, quando se permitiu apenas a comercialização dos produtos dos patrocinadores (MOTTA, 2014, p. 70-71).

Apesar da escassez de dados apresentados aqui – devido à etapa atual da pesquisa5 –, podemos destacar, dentre as particularidades simbólicas e processuais da Praia da Estação, alguns elementos importantes para a compreensão de uma lógica que inverte os sentidos de contextos e relações sociais convencionais, contribuindo para um contexto mais amplo de reinvenção do cotidiano urbano através de práticas performáticas politicamente engajadas. Dessa maneira, as intervenções dos banhistas da Praia da Estação buscam, num foco de tensões sociais, experiências fortemente territorializadas de rebelião performática e constituição de novas formas de viver nas metrópoles. Passemos agora ao contexto de pesquisa que tenho trabalhado nos últimos anos com mais afinco e rigor: O Sarau Vira-Lata.

O Sarau Vira-Lata: entre poesias, tragos e manifestos O Sarau Vira-Lata surgiu em meados de 2011 como iniciativa de membros dos coletivos “Família de Rua” – grupo que organiza, entre outros projetos, o Duelo de MC's de

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A minha experiência de campo entre os banhistas da Praia da Estação ainda é incipiente, pois acabo de expandir meu campo – iniciado em meados de 2013 com os poetas do Sarau Vira-Lata – para compreender um leque maior de insurgências estético-políticas em Belo Horizonte, começando pela Praia. Esta temática será trabalhada de maneira mais rigorosa em minha monografia de conclusão de curso, em 2016/1. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

Belo Horizonte – e “Coletivoz Sarau de Periferia” – sarau marginal que ocorre no Barreiro, região periférica de Belo Horizonte. Resultado profícuo desta relação entre a poesia e o rap, a emergente “cachorrada” inicia suas atividades no centro da capital mineira, realizando seus primeiros encontros na praça da igreja Boa Viagem. Destarte, esses jovens artistas fundam o “Sindicato dos Cachorros de Rua” (doravante Sindicato) buscando, principalmente, “ocupar a cidade com a poesia”, numa mistura de rebeldia boêmia e formação artística coletiva. Desde então, as atividades dos Vira-Latas vêm ocupando diversos espaços centrais e periféricos de Belo Horizonte, “espalhando a poesia pela cidade”, ganhando adeptos e se enredando nas lutas simbólicas em torno das formas de ver e experienciar a cidade e a arte.

Figura 3- Logo do Sarau Vira-Lata

Os saraus são noturnos e possuem certa periodicidade. Geralmente ocorrem no centro de Belo Horizonte, reunindo pessoas de diversos lugares da cidade, entre elas: poetas, atores, militantes políticos, universitários, “pops de rua”, MC’s, dançarinos, músicos, enfim, uma riquíssima gama multitudinária que compõe a emergente “cachorrada de rua”, fazendo da rua seu palco e buscando “dar voz a quem não tinha” 6 . Os encontros são organizados através das reuniões do Sindicato e mobilizados pela página dos Vira Latas no facebook. A partir daí a notícia se espalha pelo ciberespaço e através do bom e velho boca a boca. No dia do evento já se pode

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Citação recolhida de um dos participantes do primeiro encontro do ainda emergente “Fórum Nacional dos Organizadores e Pesquisadores de Saraus”. Este colóquio ocorreu no Circuito Literário Praça da Liberdade de 2014, organizado por um dos Vira Latas, e reuniu organizadores e pesquisadores de saraus de 4 Estados do Brasil para discutir temas pertinentes aos saraus, como publicações, diálogo com esfera pública, editais e parcerias. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

ver gente comentando: “Hoje tem Sarau Vira Lata: au au auuuu!”7. A relativa periodicidade dos encontros estimula uma expectativa nos frequentadores antes mesmo do sarau ser confirmado – os saraus ocorrem, geralmente, duas vezes no mês, às terças-feiras à noite. Porém, os organizadores dos encontros também

realizam os “Saraus Relâmpago” em

contextos especiais como turbulências políticas (Ocupação da Câmara dos Vereadores, Ocupação do Viaduto Santa Tereza, Praia da Estação) e celebrações (Virada Cultural de Belo Horizonte, intervenção em eventos universitários etc.) – o que acentua, respectivamente, o caráter politicamente engajado e festivo das intervenções. Com o passar dos anos o “Sarau Vira-Lata” conquistou relativa notoriedade entre as manifestações artísticas da cidade, se destacando tanto na mídia como nos circuitos culturais de Belo Horizonte (os Vira-Latas participaram, dentre outros eventos, de duas edições da Virada Cultural de Belo Horizonte, compondo a programação oficial). Não obstante, a proposta inicial de “tomar a rua” – pegando emprestada a expressão utilizada por Paulo Raposo num artigo recente – continua presente na atividade dos Vira-Latas, num movimento complexo por dentro e fora das instituições culturais formais.

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A imitação do latido e metamorfose performática em cachorro de rua será trabalhada a seguir. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

Figura 4 - Cartaz de divulgação do evento "ARTE NO CENTRO"

Um dado crucial para compreender essa manifestação estético-política é o nomadismo que funda as relações com estes jovens com o espaço urbano. Num evento no facebook deste coletivo, lemos logo na primeira frase do texto de descrição: “O Sarau Vira-Lata é um movimento itinerante que atua nos mais diversos espaços para difundir a poesia”. Em quase 4 anos de saraus, os Vira-Latas já ocuparam praças, ruas, escadarias, centros culturais, ocupações culturais, museus, centros acadêmicos de universidades, entre outros espaços, neste complexo e curioso movimento por dentro e por fora de uma espécie de oficialidade inimiga manipulada taticamente, no sentido que Certeau (2012) dá ao termo. A busca por inovação e contestação do cotidiano na cidade é claramente colocada pelos organizadores e frequentadores dos saraus: acontecendo em fendas e focos do mapa tanto de tensões políticas como de eventos culturais oficiais, os 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

Vira-Latas procuram redescobrir lugares “achados” taticamente; espaços que a princípio “eu passava, mas não enxergava”, como argumentou uma frequentadora assídua dos encontros. E continuou: “ali tem vida, ali tem pessoas. O que eu posso fazer para humanizar este lugar?”. Esse desejo de reconstruir a paisagem urbana através da experimentação artística e cidadã concreta perpassa o imaginário destes jovens artistas que enxergam, na festa e na arte, meios de transformar uma cidade considerada hostil e impessoal num espaço de expressão de indignações e formação artística. A poesia transcrita abaixo nos ajudará a compreender como os saraus se configuram como um espaço de narrativas e poéticas da rebelião, momentos de expressão de indignações e troca artística. DESENLACE Então, não deixe que se desenlace aquilo que nasce, Cada gesto de afeto, descarado ou discreto, não merece entrave! Numa cidade de aço e concreto, é melhor você ficar esperto. Não fuja da luta, mas cuidado com os “truta”, que quase sempre são filhosda-puta... A cidade, que já foi um jardim, quase nem tem mais “Passarim”! E o verde deu lugar ao cinza, talvez por isso sejamos tão ranzinzas! Estamos embasbacados, verdadeiros idiotas, com essas tais obras da Copa. Mas o que pouca gente sabe, e me atreveria a chamar de verdade, é que estamos sendo roubados. O câncer que nos guia, virou político da noite pro dia e foi eleito e reeleito na democrática apatia. Não dá pra acreditar, BH! Sem saber por que está lá, vê o povo se afogandoe paparica marajá! Nem precisa comentar que não sabe governar e no fundo, no fundomesmo ele queria era ser babá! O seu nome e sobrenome nem precisa mencionar, mas se gostas de charada escuta essa que vou lançar: Ele pisca quando mente, e mente que nem sente, mas dica maneira e esperta, muito melhor do que esta. Daquelas que é pra não ter erro de você não dar a resposta certa, é que seu nome começa com “M” e termina com “ERDA”! Xô, satanás! Com este merda não dá mais e ainda restam quatro anos de chuvas incidentais? 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

E eu nem moro na favela, mas conheço uma galera, da zona sul, do subúrbio e uns caras que nem me lembro bem de onde eram E que na sexta-feira passada conheci no Duelo. Tinha uns dois lá de cabelo amarelo que me hipnotizaram com seu estilo livre sincero, Pode até parecer lero-lero, mas aqui está bem claro, ou aprende a nadar ou morre afogado, e o que é pior: Junto com os ratos! Apesar de toda essa dor e desilusão, apesar de sermos governados por vereadores corruptos e um prefeito paspalhão, a parada nas alterosas não está tão ruim assim não... Tem a Praia da Estação, o Bloco do Manjericão, e querendo ou não, muita gente boa e bonita pra amizade, amor ou paixão! Nosso carnaval de rua já nasceu uma sensação, alegre, politizado e cheio de azaração E nessas horas nem importa se é bonito ou feio, porque o que conta mesmo é o recheio, o de dentro, o que vem primeiro E sem parecer vulgar digo sem receio, que o melhor do corpo humano não está na cara e sim no meio. Do futebol eu também queria falar! Apesar de não termos segurança, saúde, educação, o Mineirão está prestes a voltar, mas depois dessa é melhor eu parar, porque essa poesia, apesar das rimas, está parecendo mais uma conversa de mesa de bar E por mais que essa seja a vocação de BH, e que da poesia você venha a gostar, não era isso o que eu queria lhe passar! Então, não deixe que se desenlace aquilo que nasce, Cada gesto de afeto, descarado ou discreto, não merece entrave! Betto Fernandes

Nessa espécie de combinação entre poesia e manifesto político, o artista acusa a decadência da cidade, a falta de vida nas ruas, a derrocada do homem público. A narrativa constitui um grito de indignação em relação ao espaço público hostil a “cada gesto de afeto, descarado ou discreto”, que “não merece entrave!”. Ainda ataca abertamente o prefeito da cidade e as obras realizadas em Belo Horizonte na ocasião das preparações para a Copa do Mundo de 2014, processo que desabrigou diversas famílias, configurando um contexto de grande tensão e lutas em diversas cidades brasileiras. Por fim, o poeta enaltece a imanência da rua, o “tomar a rua” supracitado, a periferia, os “espaços comuns” da cidade (Duelo de MC's, Praia da Estação etc.) que 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

se encontram na contramão da vigilância e das medidas restritivas (RAPOSO, 2014) que cerceiam a vida nas sociedades contemporâneas, transformando o comum no privado, ou “público-privado”, numa espécie de imperialismo urbano. Tudo isto declamado em meio a uma combinação de gestos ora serenos, ora convulsivos e acusadores, se movimentando ativamente pela praça improvisada de palco, buscando expressar todas essas tensões através de seu corpo em movimento.

Durante a minha experiência de campo entre poetas, ativistas, performers e apreciadores de diferentes lugares e disposições que participam dessa espécie de “boemia literária” (DARNTON, 1987) proporcionada pelos membros do Sindicato, acompanhei diversos encontros, entre saraus, intervenções dos Vira-Latas, rodas de conversa e fóruns de debates. Como já foi comentado, a relação dos Vira-Latas com instituições e eventos culturais formais tais quais museus, centros culturais e festivais artísticos é complexa e às vezes ambígua, transitando tanto dentro quanto fora do que Pierre Bourdieu (1992) chamou de espaços de consagração e reprodução da arte. Uma ocasião particular demonstra de maneira peculiar esses contrastes em torno da atividade desses jovens artistas: a celebração de “um ano de Sarau Vira-Lata”, solenidade que aconteceu no Museu Inimá de Paula e, após algumas horas, migrou para a Praça Afonso Arinos, ao lado do museu. Um retorno ao caderno de campo será necessário para essa espécie de mergulho neste “submundo das letras”, para utilizar outra metáfora de Robert Darnton.

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O Museu Inimá de Paula se encontra na Praça Afonso Arinos, próximo ao Edifício Arcangelo Maletta (espaço lúdico que comporta bares e restaurantes, além de residências), na fronteira entre o centro da cidade e o bairro Lourdes. Lugar de passagem e convivência de artistas como Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alphonsus Guimaraens – que “subiam Bahia” para trabalhar nos centros administrativos da Praça da Liberdade e “desciam Floresta” rumo à região da Lagoinha, antigo epicentro boêmio da cidade.

Figura 5 - Museu Inimá de Paula. Fonte: desconhecida

Recordo-me que nunca tinha visitado este museu antes, apesar de viver há mais de 10 anos em Belo Horizonte. Cheguei ao centro à noite para participar do sarau, com certa antecedência. Não tinha ideia de como os membros do Sindicato iriam “encaixar” tantas pessoas dentro daquele pequeno museu, fato que me deixou bastante curioso. Porém, algo me deixou surpreso: o sarau seria dividido claramente em dois momentos, o que eu nunca tinha presenciado – e creio que realmente nunca tinha acontecido.

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Figura 6 - Interior do Museu Inimá de Paula. Foto retirada do site oficial do Museu.

O primeiro momento da celebração ocorreu no interior do museu, contando com performances de Vira-Latas mais “consagrados”; artistas que fizeram parte da ainda curta história do emergente Sarau Vira-Lata. Devido às limitações espaciais do museu, algumas pessoas ficaram do lado de fora, aguardando na praça o fim desta fase preliminar do evento. Não obstante, o público que conseguiu adentrar o museu foi grande e contribuiu para uma cena formidável: jovens de diferentes lugares da cidade, que geralmente tomam a rua como palco, ocupam agora um espaço do cânone das artes para um evento de poesia marginal – muitos empunhando garrafas de vinho e conhaque; artistas marginais ocupando um centro artístico, um belo contraste.

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Figura 7 - Aniversário de um ano do Sarau Vira-Lata (Museu Inimá de Paula). Foto retirada da página do facebook do Sarau.

As intervenções – ou performances – seguiram uma sequência previamente estabelecida pelos organizadores do sarau, o que não concordava com a já tradicional seleção pelo “papelzinho” (ver adiante) e acentuava o caráter extraordinário e comemorativo da ocasião. Depois de algumas declamações de poesias, cantorias, repentes de rap e performances teatrais dos artistas selecionados para a celebração, todos migraram para a supracitada praça Afonso Arinos e, assim, adentramos em mais uma “noite impossível de Belo Horizonte”, relembrando as palavras de Pedro Nava. Na praça (habitat natural dos Vira-Latas), tudo recomeçou como de praxe: nomes foram recolhidos em pequenos papéis assinados pelos frequentadores interessados em participar das rodadas de performances enquanto todos conversam, bebiam e fumavam espalhados pelo arco que compõe a pequena praça. Reunidos os “papelzinhos” num chapéu, um dos membros do Sindicato começa uivar e latir, metamorfoseando-se em cachorro de rua e convidando todos para se juntarem a roda do sarau. As pessoas se sentam e o indivíduo grita: “Boa noite cachorrada!”. Todos começam a imitar latidos de cachorros convulsivamente, entrando num frenesi coletivo através desta espécie de performance canina. Muitas vezes algum recado é repassado e algumas instruções são dadas, a mais importante: todas as pessoas que não escutaram o convite para depositar seu nome ou pseudônimo escrito no 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

“papelzinho” chapéu dos sorteios e tiverem interesse em se apresentar no centro da roda durante o sarau devem fazê-lo prontamente, para que possa ter início os sorteios e rodadas de performances. O sarau é apresentado e, assim, começa mais uma edição do Sarau Vira-Lata.

Figura 8 - Aniversário de um ano do Sarau Vira-Lata (Praça Afonso Arinos). Foto retirada da página do facebook do Sarau.

Analisando os gestos, movimentos, regras e procedimentos que conduzem os encontros dos Vira-Latas, um elemento se destaca dentre os demais: a imitação do latino ou uivo canino. Símbolo manipulado tanto na chamada para o evento (virtual e in loco) quanto na ovação (após uma apresentação) e nos cumprimentos ordinários, este dialeto canino – parafraseando Evans Pritchard (2013) – funciona como “símbolo dominante” desta experiência, manipulado a fim de trazer para a experiência artística a ideia do vira-lata errante pelas ruas da cidade; imagem crucial tanto para a identidade do grupo quanto para as relações simbólicas que organizam a experiência nos saraus. Podemos dizer que, através deste dialeto canino, os vira-latas evocam e mobilizam a imagem do cachorro de rua e da sarjeta das grandes metrópoles. Cachorro que vive no abandono em seu nomadismo errante, “se virando” nas ruas com o que pode – o poeta vira-lata também é um notívago errante, que “se vira na vida” e segue nas ruas da cidade. Este símbolo dominante marca fortemente as vivências entre os artistas vira-latas, 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

constituindo categoria cabal – e tática – para a construção da identidade destes jovens: poetas errantes que fazem da rua seu palco, entre tragos e poesias, latidos e silêncios. A materialidade do símbolo está na ação, na metamorfose que se dá nos encontros, onde os frequentadores uivam e latem em um frenesi contagiante. Assim, a estética urbana é reinventada pela intervenção performática dos vira-latas e a evocação do cachorro de rua se apresenta como alegoria vital para tal releitura do urbano, retomando as características comuns da cidade através da arte e da imagem do cachorro de rua. A sociabilidade, a troca e alteridade são resgatadas pela combinação entre poesias, latidos e tragos. De sua “liminaridade constitutiva” os Vira-Latas tiram a sua potência, constituindo-se como atores liminóides, representando, no sentido teatral e simbólico do termo, a contramão dos veículos oficiais das artes, construindo espaços comuns de atividade criativa, performática e crítica. Como lembra John Dawsey, “no drama se encontram as fontes do poder liminar, consideradas por Turner imprescindíveis à recriação de um mundo pleno de significado” (DAWSEY 2007: 541). Em momentos de estranhamento experimental nos deparamos com a alteridade e transformação. As performances liminares (no caso, liminóides), como afirmam Turner e Schechner, abrem um leque de possibilidades criativas em momentos de rupturas sociais, promovendo transformações nos contextos sociais em que ocorrem. O “como se” das ficções erigidas pelas dramatizações de performances liminóides se apresentam como vetores de transformação social, num movimento de sobreposição dramática entre o real e ficção. A inventividade das margens constrói novos caminhos. Experiências de liminaridade podem suscitar efeitos de estranhamento em relação ao cotidiano. Enquanto expressões de experiências desse tipo, performances rituais e estéticas provocam mais do que um simples espelhamento do real. Instaura-se, nesses momentos, um modo subjuntivo ("como se") de situar-se em relação ao mundo, provocando fissuras, iluminando as dimensões de ficção do real f(r)iccionando-o, poder-se-ia dizer revelando a sua inacababilidade e subvertendo os efeitos de realidade de um mundo visto no modo indicativo, não como paisagem movente, carregada de possibilidades, mas simplesmente como é. Performance não produz um mero espelhamento. A subjuntividade, que caracteriza um

estado

performático, surge como efeito de um "espelho mágico" (DAWSEY 2006:

136). Ficção, Fricção, F(r)icção. Os encontros dos Vira-Latas servem como uma espécie de plataforma para dramatizações de inquietações, indignações e rebeliões. A experimentação e 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

inversão se mostra tanto nas formas de (re)ocupar o espaço urbano como nas próprias performances e narrativas dos Vira-Latas. Vetores de crítica social e deslocamento sensível da experiência pela experiência, os jovens Vira-Latas embaralham e invertem relações sociais (incluindo aqui relações estéticas e poéticas), extendendo e (re)inventando mundos possíveis: felino é macho e é bicha e gosta de mulher que é mulher e é macho e adora homem que é homem e é bicha e odeia homem que é macho e é homem e não gosta de mulher que é homem e é homem e gosta de menino que é menino e é adulto e gosta de adulto que é menino e é menino e gosta de mulher que é mulher e é mulher e gosta de traveco que é homem e é mulher e gosta de homem que é homem e é homem e gosta de traveco que é homem e é menina e gosta de menino 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

que é menina e é menino e gosta de felino Renato Negrão

Jogo de inversões e sobreposições, a poesia de Negrão trabalha um ponto de contato crucial para a compreensão da lógica simbólica que serve de fonte de potência performática das intervenções dos Vira-Latas. De uma matéria-prima ínfima, o artista justapõe e sobrepõe possibilidades que são, sempre, relacionais, abrindo um leque de possibilidades, perspectivas e, sobretudo, dúvidas, questões a serem enfrentadas e reinventadas. Parafraseando Roberto DaMatta (1973) num artigo sobre o Gato Preto de Edgar Allan Poe, Negrão também pode ser considerado um bricoleur 8 e, nesta condição, “um excelente combinador de elementos e acontecimentos em estruturas” (DAMATTA, 1973, p. 28). Da simplicidade dos elementos recombinados na e através da poesia, o artista se apresenta como um riquíssimo bricoleur, transformando o simples em complexo, o aparentemente dado em relacional, o lugar comum em extraordinário, sob a luz de uma imaginação sempre fervilhante e criativa. Como vimos, os Vira-Latas utilizam incansavelmente as táticas de bricolagem supracitadas, tecendo novas práticas e usos do espaço e da arte. O “uso incansável da imaginação” e da inversão de relações sociais convencionais possibilita os Vira-Latas a extenderem sentidos e, extraindo, “dos significados vigentes nos elementos com os quais trabalha, novas conotações capazes de expressar o que eles têm em mente e de produzir” (DAMATTA, 1973, p. 15), como observa Lévi-Strauss em relação aos bricoleurs, resultados “brilhantes e imprevistos” (LÉVI-STRAUSS apud DAMATTA, 1973, p. 15). Esta lógica da inversão atua como estrutura organizadora da experiência entre os Vira-Latas, proporcionando um deslocamento sensível nas maneiras de ver, pensar e sentir as paisagens urbanas e práticas artísticas. A rua como palco, ocupada e transformada através de experimentos artísticos, funciona como vetores potentes de crítica social e construção coletiva de novas relações sociais.

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Citando novamente DaMatta: “Na linguagem corrente, “bricolage” é a operação que consiste em remendar coisas ou fazer objetos de pedaços de outros objetos. Não possuindo planos preestabelecidos, nem instrumentos especiais, o “bricoleur” opera com o material que tem à disposição ou com aquele que acumula. Assim, ele improvisa constantemente sua reduzida matéria-prima e seus instrumentos de trabalho o que, como consequência, marca suas produções com traços peculiares, que revelam, na obra acabada, os pedaços ou os objetos que anteriormente possuíam outra serventia, e significado” (DAMATTA, 1973, p. 14). 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 1983-7518

Conclusão: a inversão como estratégia do imaginário Vimos como as experiências proporcionadas pelas intervenções dos movimentos “Sarau Vira-Lata” e “Praia da Estação” buscam, de maneiras distintas, reclamar a cidade através da (re)ocupação performática da cidade, numa combinação entre arte, festa e ativismo político. Apesar das diferenças processuais e simbólicas que caracterizam as particularidades empíricas de cada uma destas manifestações, podemos dizer que uma estrutura comum organiza e orienta essas formas de rebelião, uma “lógica da inversão” que embaralha e recodifica os sentidos convencionais associados ao espaço urbano e às práticas artísticas. Tal lógica da inversão alimenta, nos casos interpretados aqui, um imaginário potente e transformador, concebido enquanto “processo criativo”, que “reconstrói ou transforma o real”. Pois “o imaginário”, afirma Laplantine, “ao libertar-se do real que são as imagens primeiras, pode inventar, fingir, improvisar, estabelecer correlações entre objetos de maneira improvável e sintetizar ou fundir essas imagens” (Laplantine, 2003, p. 27). Sob essa lógica, a experimentação performática opera como potência primordial da arte nas lutas urbanas enfrentadas pelos coletivos tratados neste texto, invertendo relações e inventando novos usos e sentidos para práticas e paisagens, os Vira-Latas e os banhistas da Praia da Estação concorrem para a construção de novos contextos e relações. Uma espécie de deslocamento da experiência sensível resulta dessas intervenções, deslocando não só nossos olhares, mas as formas de enxergar e experienciar o mundo. Como escreveu Antonio Candido, a arte é uma “transposição do real para o ilusório”. Nos casos trabalhados neste texto, esta relação ocorre pela ocupação performática da cidade, explorando a potência – e as possibilidades – dos corpos não só como meios de reinventar a vida na cidade, mas vetores criativos que configuram novas formas de conceber práticas artísticas. Para finalizar, essas insurgências artivistas apresentam-se, como argumenta Miguel Chaia, “como uma forma de micropolítica que conduz tanto para o reino da hiperpolítica quanto para o campo das heterotopias” (Chaia, 2007, p. 11).

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