Hipócrates nos trópicos: as práticas médico-assistenciais no Estado Português da Índia (1869 – 1911)
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1. Introdução
Esta comunicação parte da tentativa de analisar os mecanismos e processos de auxílio aos pobres e doentes nas colónias portuguesas, analisando especificamente o caso do Estado da Índia, tendo como âmbito cronológico a reforma do sistema de saúde ultramarino, em 1869, até à promulgação do decreto com força de lei, de 25 de Maio de 1911, a chamada Lei da Assistência, pouco depois da instauração do regime republicano. Entrecruzar as realidades assistenciais num quadro mais alargado de compreensão das representações mentais no império colonial português é igualmente um dos objectivos a que esta investigação se predispõe. A dicotomia bárbaro/civilizado é usada e produz hierarquias e desigualdades, podendo ser passível de análise no campo do controlo da saúde pública. Seguindo a análise de Pierre Bourdieu1, a cultura é frequentemente usada como mecanismo de produção de desigualdade social, ao que chamará “um racismo de classe”, existindo um conjunto de grupos sociais que se apropriam das práticas culturais, construindo um discurso segregador que separa a sociedade em sujeitos cultos e incultos. Tentar ver nas questões sociais e assistenciais do Estado da Índia esse tópico será também objecto de escrutínio ao longo desta investigação a que se junta um interessante tópico de análise pois nesta sociedade mescla-se duas mundividências: a cristã e a hindu.
2. A assistência e saúde pública no regime liberal português De acordo com Jorge Crespo, entre os finais do Antigo Regime e a instauração plena do liberalismo em Portugal, “a emergência do corpo processa-se no quadro de uma profunda crise de civilização e civilizações e, à primeira vista, poderia entender-se como um reflexo da crise do próprio Estado”2. Deste modo, assiste-se a uma paulatina discussão, sobretudo entre as elites intelectuais e políticas, sobre a incorporação, dentro da estrutura do Estado, do controlo da higiene, assistência e saúde pública do reino e seus domínios. A natureza das entidades que compõem a constelação médico-assistencial é, na sua generalidade, de matriz religiosa, de onde se destacam as misericórdias, mas onde coabitam confrarias, ordens terceiras ou irmandades. Este universo possuía certas características 1
Cf. BOURDIEU, Pierre - «Le racisme d’inteligence” in Questions de sociologie. Paris : Minuit, 1980, pp. 264-268. 2 In CRESPO, Jorge – História do Corpo. Lisboa: Difel, 1990, p. 7
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escatológicas, onde, segundo a doutrina cristã, a caridade seria uma via para a construção da santidade no quotidiano. Contudo, apesar de ter uma base religiosa, as misericórdias portuguesas nunca se encontraram sob a tutela religiosa, sendo da competência das câmaras municipais o controlo e regulação destas instituições. Este foi um tópico debatido pelos liberais com o objectivo de controlar, de forma mais efectiva, o auxílio aos pobres e doentes, algo que durante o consulado pombalino já se verificara, mas que não se instalara de forma plena. Assim, com o advento da Revolução Liberal, dá-se uma mutação no campo da protecção dos desfavorecidos, onde o Estado chama a si a tarefa de zelar e cuidar das chamadas classes desvalidas. Dentro das prestações sociais, deveria englobar-se a saúde, o cuidado das crianças, órfãos, inválidos e viúvas, mas igualmente, o combate aos indigentes, mendigos e vagabundos, os «falsos pobres». Através desta premissa, compreende-se a razão pela qual os médicos começaram a adquirir um lugar de destaque na sociedade, “como dos factores de governabilidade que permitiu a construção do Estado Moderno”3. A preocupação pelos cuidados médicos já se denotava nas cortes constituintes de 1821/22 onde “pela primeira vez foi seriamente considerada, apesar de não ter vingado, a promulgação de um regulamento geral de saúde pública”4. Assim, no que concerne às práticas médicas, é neste período que o desenvolvimento científico proporciona um melhor conhecimento do corpo e, por extensão, da prevenção e controlo da saúde dos povos. A área assistencial englobava várias formas de apoio às «classes desvalidas» desde a saúde até ao apoio pecuniário a viúvas e desempregados. Partindo da análise de Maria Antónia Lopes5, as categorias dos infortunados que se podem ver na sociedade portuguesa da época são: indivíduos que não podem prover o seu sustento (crianças, doentes, velhos, presos); indivíduos sem garantia de se sustentarem (viúvas) e pedintes e vagabundos. Uma das medidas mais significativas neste período foi a extinção das rodas dos expostos, em 1867. Com o decreto de 18 de Abril de 1901, o esforço de “estatização” dos serviços de assistência permanece dado que “ […] a despeito das leis, se têm introduzido no país comunidades e congregações religiosas, noviciados e profissões, apostolados e catequeses, escolas e institutos de toda a ordem, que vivem sem autorização que os legitime, sem fiscalização, e até sem conhecimento do Estado” 6. Neste esforço de tornar a assistência num verdadeiro desígnio do Estado, a lei de 24 de Dezembro de 1901, os serviços de saúde são reorganizados, tendo sido criados dois organismos 3
In GARNEL, Maria Rita Lino, “O poder intelectual dos médicos: finais do século XIX - inícios do século XX” in Revista de História das Ideias, vol. 24, 2003, pp. 213-253. 4 In OLIVEIRA, Luísa Tiago de – A saúde pública no vintismo. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1992, p. 14. 5 Cf. LOPES, Maria Antónia, «Os pobres e a assistência social» in História de Portugal (dir. José Mattoso), Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, volume 5 – O Liberalismo (1807-1890) (coord. de Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque), pp. 503-507. 6 In Diário do Governo, n.º 87, de 20 de Abril de 1901, p. 112.
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estatais: o Conselho Superior de Beneficência Pública e a Repartição de Beneficência. A centralidade que o Estado adquire nas questões da assistência, leva a que, em 1905, seja realizado o Primeiro Congresso Português de Beneficência, onde as misericórdias reagem, afirmando-se como “os órgãos de assistência do país, reclamaram maior autonomia e rendimentos, mas reconheceram dever estar subordinadas à supervisão […]” 7, sendo um importante passo para a incorporação destes serviços dentro da orgânica do Estado. Mas nas vésperas da implantação da República, o retrato da protecção social em Portugal não era abonatório. Nas palavras de Curry Cabral, “[…] não há em Portugal uma lei geral de assistência pública e de beneficência que ponha em convergência e em colaboração os diversos ramos d`estes serviços, de sua natureza complexos. A intervenção do Estado no exercício da beneficência pública e da assistência é essencialmente de protecção aos estabelecimentos de caridade e de fiscalização das suas contas. Há estabelecimentos que são do Estado e são por ele sustentados por fundos próprios ou por iniciativa particular, e recebem alguns subsídios do Governo”8. Deste modo, ao longo do constitucionalismo monárquico, a protecção e assistência social sofrera avanços, mas encontrava-se ainda num estado rudimentar. Será depois da revolução republicana que, com o decreto de 25 de Março de 1911, que o governo republicano estipula, de forma clara, quais as suas atribuições na questão da assistência pública, assumindoa como uma missão inerente à construção de um novo modelo de Estado.
3. A protecção médico-social no espaço colonial português oitocentista
Tendo em conta o quadro descrito anteriormente surge a seguinte questão: como é que se estruturavam as formas de assistência médico-social no Império português de Oitocentos, tendo em conta as mutações e redefinições do imperialismo europeu neste período? Desde o início do processo de expansão marítima e posterior territorialização das possessões ultramarinas, o colonialismo português teve, na assistência social, corporizada nas misericórdias e confrarias, umas das suas facetas mais perenes. Com a independência do Brasil, o império sofre uma redefinição, no que concerne às suas prioridades, depois da contracção do espaço colonial, com a independência brasileira, em 1822. Mas o que na realidade que se verifica
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In SÁ, Isabel dos Guimarães e LOPES, Maria Antónia, História Breve das Misericórdias Portuguesas: 14982000, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, p. 97. 8 In CABRAL, José Curry da Câmara - “Assistência publica e Hospitalização” in Notas sobre Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1908, vol. 1, pp.629-630.
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é que “[…] nem o país está atento às colónias, nem estas se organizam nas dinâmicas imperiais que se desenvolvem nos espaços circundantes de África e Ásia” 9. Deste modo, a construção de um verdadeiro sistema colonial, onde a primazia da matriz cultura europeia se implanta ou se reforça apenas é constatada nas vivências da segunda metade do século XIX. Este é um aspecto que se repercute nos diversos domínios das colónias portuguesas, onde a assistência social e as práticas médicas não foram olvidadas. Como refere Miguel Bandeira Jerónimo, o que ocorreu, sobretudo numa fase final da Regeneração foi uma “imperialização da nação” e uma “nacionalização do império” 10. Este foi um processo eminente político e diplomático, embora a redescoberta das potencialidades das colónias se tenha repercutido nos vários domínios da vida das populações dos vários territórios espalhados pelo globo. Assim, a questão da protecção social e da saúde pública foram também alvo da atenção da intelligentsia política do liberalismo no que concerne à governação do Império. Aquando do processo de instauração do liberalismo, as estruturas de assistência que existiam eram herdeiras do esforço de missionação que se verificara, nos séculos XVI e XVII, onde a Companhia de Jesus se destacara. Deste modo, por decreto publicado a 2 de Dezembro de 1869, o então Ministro da Marinha e Ultramar, Luís Rebelo da Silva determina a organização do Serviço de Saúde das Províncias Ultramarinas, num esforço de modernização das estruturas, bem como de descentralização administrativa, facto que havia sido exposto na Carta Orgânica das Províncias Ultramarinas de 1 de Dezembro do mesmo ano. Já em 1844 e 1851 tinha existido reformas no quadro da saúde ultramarina, mas será a reforma de Rebelo da Silva que se opera uma mudança mais profunda, no sentido do reforço das estruturas existentes, através do aumento de número de médicos e facultativos que deveriam estar presentes em cada uma das possessões coloniais. Já com a reforma de 1895 é expresso, de forma evidente, que o governo poderia mandar inspeccionar, anualmente, ou de forma esporádica, o serviço de saúde de cada uma das colónias portuguesas, algo que, até à data, não ficara devidamente expresso. Importa referir ainda que a questão da assistência médica e da saúde nas colónias, ao longo da segunda metade do século XIX, as diversas leis que se centrava na questão assistencial deram cada vez mais importância ao papel dos médicos, isto é “um conjunto de indivíduos cada vez mais preocupados com a regulação das competências dos especialistas, a quem eram delegadas
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In BASTOS, Cristiana - «Corpos, climas, ares e lugares: autores e anónimos nas ciências da colonização» in BASTOS, Cristiana & BARRETO, Renilda (eds.) - A Circulação do Conhecimento: medicina, redes e impérios. Lisboa : Imprensa das Ciências Sociais, 2011, pp. 25-58. 10 Cf. JERÓNIMO, Miguel Bandeira, «Portugal no Mundo» in História Contemporânea de Portugal (dir. António Costa Pinto e Nuno Gonçalo Monteiro”, Lisboa : Objectiva/Fundación Mapfre, 2013, volume 2 – A Construção Nacional (1834-1890) (coord. de Pedro Tavares de Almeida), pp. 77-108.
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responsabilidades e atribuído maior poder de intervenção sobre as sociedades” 11. Conjugando este tópico com a questão da “missão civilizacional” do colonialismo português, compreende-se que a gestão e controlo do corpo foi uma das ferramentas essenciais na tentativa de colocar as populações coloniais no que então se designava como o “grémio da civilização”. As mentalidades perderiam a sua capacidade performativa, adquirindo contornos apenas europeus, articulados com noções estilizadas de raça e onde a ciência seria um meio para tal.
4. As práticas médico-assistenciais na Índia portuguesa (1869-1911) Joaquim Vieira define, de forma curiosa, a reciprocidade das relações entre as colónias asiáticas e a metrópole portuguesa: “o Oriente está tão longe que os seus actos têm em Lisboa o impacte de um perfume”12. Contudo, e ainda que a distância pudesse dirimir os intentos do governo, o Estado Português da Índia, bem como Macau e Timor não eram olvidados das discussões políticas que decorriam em Lisboa. Ainda que as colónias indianas não constituíssem uma prioridade na política colonial portuguesa onde “a administração colonial portuguesa da Índia no século XIX mais parecia uma representação burlesca”13, não estavam completamente esquecidas pelo governo central. Deste modo, as páginas que se seguem esboçaram o retrato das políticas de saúde e assistência na região indiana, emanadas pelo poder político vigente. Mas ainda que não permanecesse incólume às mutações advindas da introdução do regime liberal, na primeira metade do século XIX, o Estado da Índia não desempenhou um papel relevante nas dinâmicas político-económicas da metrópole, mantendo as características sociais dos tempos da penetração portuguesa na região, apenas destacando-se a mudança de capital de Velha Goa para Pangim, por alvará de 22 de Março de 1843.
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In CASTRO, Ricardo Themudo - A Escola de Medicina Tropical de Lisboa e a afirmação do Estado português nas colónias africanas (1902-1935). Lisboa: FCT/UNL, 2012 (dissertação de doutoramento texto policopiado), p. 1. 12 In VIEIRA, Joaquim – Portugal Século XX : crónica em imagens, 1900-1910. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 92. 13 In BASTOS, op. cit., p. 29.
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4.1.
Breve caracterização social da região
Uma questão incontornável no estudo das dinâmicas sociais no microcosmos indiano é a questão das castas14, que se mantinham praticamente incólume nos territórios da Índia portuguesa. No topo da cadeia social, encontravam-se os brâmanes, casta associada a letrados e ao exercício de funções politico-governativas, seguindo-se os quetrys, consideradas como as castas guerreiras, mas com um pendor político. Logo depois existem os vaixás, ligados às actividades mercantis, necessária para prover alimento às restantes castas, para se encontrar, no fim da pirâmide social indiana, os sudras, conotados com o trabalho servil e destinados a servir as outras castas. Já os grandes grupos étnico-sociais de matriz local e europeia que compunham este território eram os hindus e os indianos cristãos; os descendentes e os europeus e os parses, embora estes últimos fossem em número muito reduzido. A visão da intelectualidade portuguesa sobre questão das castas não era abonatória, culpando este regime da estagnação intelectual, política e social que se vivia naqueles territórios asiáticos: “cai então sobre a Índia uma longa noite, durante a qual a decomposição social e política, em que a precipitara o regime atrofiante da casta, se foi consumando até à degradação mais repelente. As ciências e a cultura estavam mortas. A literatura entrou em plena decadência” 15. A inércia e a anulação da ascensão social que o regime das castas, visto como algo natural e intrínseco à condição indiana, determinava eram vistas como um mal a que a governação europeia não poderia ficar indiferente. Há que referir ainda que, à época, no que concerne às representações mentais que vigoravam, a dimensão natural dos povos seria aquilo o que corresponde à corporalidade biológica e identitária de todos e cada um, do domínio inato, tendencialmente adstrita a um forte determinismo, ou seja, o mundo colonial necessitava de conhecer a civilização e sair da sua natureza, rotulada como primitiva. Também no caso português, é possível vislumbrar laivos destas teorias sociais. Num relatório do físico-mor do Estado Português da Índia, Eduardo Freitas e Almeida, datado de 15 de Abril de 1861, este demonstra a intenção de “dirigir pelos meios que julgar os mais convenientes a sua educação, de modo que os habilite a entrar no verdadeiro caminho da civilização”16, perdurando assim uma ideia da superioridade intelectual da colonização europeia, mas igualmente a sua necessidade nos vários territórios espalhados pelo globo. O 14
Cf. BAYLY, Susan - Caste, Society and Politics in India from the Eighteenth Century to the Modern Age. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 15 MENEZES, Bragança - «A Educação e o Ensino na India Portuguesa» in Índia Portuguesa. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1923, vol. II, p. 13. 16 Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1983.
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monopólio dos serviços de saúde poderá ser visto como uma das formas de incutir os valores civilizacionais europeus nos confins da Ásia, onde o domínio do corpo, enquadrado nas normativas ocidentais, era uma forma privilegiada de moldar os comportamentos quotidianos. Além disso, certos agentes administrativos, como o físico-mor e os médicos, ajudaram a produzir, estabilizar e reproduzir, nas sociedades coloniais, uma mundivisão assente num conceito muito próprio de “civilização”.
4.2. As instituições locais de assistência a) os hospitais A realidade hospitalar do século XIX é muito distinta da actual. Desde logo, a população a que se destinavam estas instalações eram pobres. Os hospitais ofereciam socorro gratuito a estas camadas populacionais pois os estratos sociais mais elevados podiam curar-se às suas expensas, não se estranhando que a rede hospitalar coeva estivesse, com algumas excepções, ligada a misericórdias ou a confrarias. Já no que toca à Índia portuguesa, os hospitais era poucos, estando situados nas áreas urbanas e nos arrabaldes de Goa, tendo sido criados, inicialmente com a intenção de tratar as elites dirigentes. Deste modo, existiam os seguintes hospitais: o Hospital Militar de Goa; os hospitais regimentais de Damão e Diu, o Hospital da Misericórdia e ainda os recolhimentos administrados pela Misericórdia. A documentação consultada demonstra que as condições materiais destes edifícios eram más, onde a fiscalização era algo quase inexistente. O hospital militar de Goa encontrava-se, segundo um relatório de 21 de Março de 1879, em “perigosas condições higiénicas, como por vezes tendo ponderado: faltam latrinas, faltam reservatórios de água filtrada, faltam quartos para enfermeiros, falta acomodação ao capelão e para criados e serventes e falta mobília”17, prosseguindo o documento na enumeração de variadíssimos defeitos que o efeito possuía como. Noutro relatório, de 1 de Junho de 1879, acrescenta-se ainda que “nas enfermarias de medicina expostas ao poente há uma parede que ameaça ruína e que parecia conveniente fosse imediatamente inspecionada pelos competentes”18. Tal facto demonstra que, a nível hospitalar, a vivência na Índia poucas mudanças sofreu com a transição para o regime liberal,
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In «Documentos relativos ao edifício do Hospital e duas dependências – 1873 a 1880» in Arquivo Histórico Ultramarino, maço 1983. 18 Idem, Ibidem.
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notando-se, na documentação, um apelo, por parte do governo local ao governo central, às melhorias matérias destes locais que, muitas vezes, custava a operacionalizar-se.
b) A importância da Escola Médico-Cirúrgica de Goa Ainda que o quadro geral não fosse positivo, a principal instituição médica que existia no Estado da Índia era a Escola Médico-Cirúrgica de Goa, fundada pelo governo local, a 5 de Novembro de 184219, constituindo uma marca a nível colonial. Contudo só foi oficialmente reconhecida pelo Decreto de 23 de Setembro de 1844, inscrevendo-se num contexto “da maior importância organizar o serviço de saúde nas províncias ultramarinas de forma que quanto é possível se proporcionem aos habitantes dos diversos lugares os necessários socorros” 20. Apesar de tudo, a intenção da criação de uma escola deste género partiu, acima de tudo, da vontade do governo do Estado da Índia, à época, sob o comando do 1º conde das Antas. A importância desta escola é vista pela opinião das elites intelectuais do governo provincial que tinham a plena consciência de que “nas nossas colónias, os socorros médicos são prestados, na maior parte, pelos facultativos da escola de Goa e sem esta escola nunca as nossas possessões terão a necessária assistência médica”21. Outro factor que parece ter sido determinante para a criação desta instituição terá sido a tentativa do monopólio dos cuidados médicos da região, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista institucional, pois, como afirmou Wolfango da Silva “a clínica rural vai-se também emancipando das mãos de ervanários e charlatães, e entrando no domínio da ciência, felizmente para ela e para os enfermos. E todos os benefícios se devem à Escola”22. A medicina tradicional era assim combatida pelo governo provincial, através da criação deste tipo de instituições, bem como de um controlo mais aguerrido, tentando deslindar quem eram os praticantes do exercício ilegal de medicina e farmácia, composto por “sangradores, algebristas, herbolários, curandeiros, exorcistas, tiradores de olhado, parteiras”23. O controlo estatal das práticas médicas era necessário pois alguns “droguistas e herbolários têm nos seus estabelecimentos muitas substâncias venenosas e outras prejudiciais à saúde pública”24, vendendo-as e ministrando-as sem autorização das autoridades competentes.
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Cf. Boletim do Governo do Estado da índia, n° 51, 14 de Novembro de 1842. In CORREIA, Alberto Silva - História do Ensino Médico na India Portuguesa, p. 81. 21 In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1983. 22 In SILVA, Francisco António Wolfango da – A evolução da medicina e cirurgia contemporâneas. Nova Goa: Imprensa Indiana, 1894, p. II. 23 In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1983. 24 Idem, Ibidem. 20
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Deste modo, a criação de uma escola de medicina tentava dirimir e mitigar os efeitos para a população deste tipo de práticas tradicionais. Contudo, e apesar do reconhecido pioneirismo que presidiu à fundação deste estabelecimento e a sua excelência científica, existiam alguns problemas difíceis de solucionar. Segundo os relatos coevos, datados da década de 1870, “o hospital tem grandíssimos defeitos; nas enfermarias há falta de luz e de ventilação; muitos leitos são em parte de madeira; faltam latrinas, quartos para as oficinas e para os enfermeiros, falta sala para operações […].”25. Todavia, apesar das dificuldades, a Escola Médico-Cirúrgica de Goa revelou-se como algo pioneiro no panorama da saúde pública pois em conjunto com a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, fundada no inicio do século XIX, era as únicas instituições em que se lecionavam medicina fora da metrópole portuguesa e a única fora da Europa. O seu mérito pedagógico e científico desta instituição era atestado por várias personalidades, reconhecendo-se “os dotes científicos dos filhos da Minerva goense”26.
c) A Misericórdia de Goa No que concerne especificamente ao Estado Português da Índia, grande parte da sua acção assistencial resume-se à Misericórdia de Goa, fundada em 1510, nos anos da construção da talassocracia portuguesa na região, assim se mantendo ao longo da Época Moderna e boa parte do século XIX, pois até meados da década de 1890 ainda se regia pelo compromisso de 1633. Tal facto demonstra a imutabilidade das funções que eram conferidas à misericórdia goense, possuindo um hospital, que era uma das principais formas de auxílio aos doentes da região que, em 1830, o vice-rei conferiu um novo regimento, substituindo o que se encontrava em vigor, desde 1584. Um outro aspecto que caracterizou a Misericórdia foi o monopólio de esquifes e tumbas, sendo a principal responsável pelas cerimónias fúnebres que se realizavam na região, a que se juntava a gestão das missas pedidas para a “cura das almas” dos fiéis. Ainda no quadro das responsabilidades da Misericórdia de Goa conta-se a procuradoria dos defuntos e ausentes que “consistia em efectuar contactos entre os falecidos no Império e os seus potenciais ou declarados
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In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1983. In Diário da Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, nº 24, 26 de Fevereiro de 1902, p. 20. 26
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herdeiros, através de correspondência entre as Misericórdias interessadas, usando como intermediárias as Misericórdias mais importantes”27. Também ao contrário das restantes misericórdias espalhadas no Oriente, tanto a Misericórdia de Goa como a Misericórdia de Macau revestem-se de uma enorme importância pois foram pólos agregadores e difusores da mundividência europeia, afirmando-se como um dos principais esteios da colonização portuguesa nessas regiões, sustentando a introdução dos hábitos e preceitos religiosos cristãos, que se encontravam em minoria. Entre as dependências assistenciais da misericórdia goense contam-se o recolhimento de Nossa Senhora da Serra, fundado em 1598, que recolhia mulheres entre os 15 e os 30 anos, incluindo órfãs e viúvas de extração social elevada, tendo sido transferido para Pangim, para um convento carmelita, em 1841. As restantes mulheres ficavam no recolhimento de Santa Maria Madalena, fundado em 1611, destinado a recolher órfãs de grupos sociais mais desfavorecidos. A estas duas instituições junta-se, em 1884, o asilo de São Francisco Xavier, da ilha de Divar. Em Dezembro de 1895, o hospital da Santa Casa é fundido com o hospital militar de Goa28. Apesar de ter continuado a zelar pelo auxílio aos desvalidos, a situação da misericórdia de Goa era idêntica a muitas outras espalhadas pelo território continental e ultramarino português. Sendo instituições com um poder pecuniário acentuado, através de um vastíssimo património que lhe foi legado ao longo dos anos, rapidamente estas foram alvo da cobiça e de interesses mundanos. Como refere Charles R. Boxer, “Mesmo em Goa dizia-se que quem quisesse viver bem devia tentar tornar-se vereador do conselho municipal, ou então irmão da Misericórdia – ou, de preferência, ambas as coisas”29. Ainda que aplicada à época moderna, esta afirmação não se distancia e demonstra a realidade da situação socioeconómica da Misericórdia de Goa no século XIX, mas algo que já se fazia notar em anos anteriores. Deste modo, em meados da década de 1870, a situação da misericórdia goense era bastante grave, com um elevado deficit que nem a Fazenda Real conseguia por cobro.
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In SEABRA, Leonor Diaz de – A Misericórdia de Macau (séculos XVI-XIX): irmandade, poder e caridade na idade do comércio. Macau: Universidade de Macau, 2012, p. 27. 28 Cf. Boletim Oficial do Estado da Índia, nº 43, 18 de Abril de 1896. 29 In BOXER, Charles R. - O Império Colonial Português. Lisboa: Edições 70, 1981, p. 275.
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d) As confrarias As confrarias foram um importante suporte na assistência e saúde pública ao longo dos anos, remontando a sua origem à era medieval. Sendo um grupo de fiéis, às confrarias competia, entre outras funções, a promoção das actividades e do culto religioso, como procissões, bem como o auxílio aos doentes e carenciados, concorrendo, por vezes, com as próprias misericórdias. Estas estavam reguladas por estatutos ou compromissos, devidamente aprovados pelas autoridades eclesiásticas locais. A ingerência estatal nas questões da assistência, uma das marcas do regime liberal, engloba todo o tipo de instituições de cariz religioso, a que as confrarias não constituem excepção. Já nos finais do Antigo Regime, a provisão de 1801 determinava que as confrarias ficavam sob tutela da administração régia, facto consumado com a portaria de Agosto de 184530. Pouco depois, será o governo central português a regular a situação, com a portaria de 30 de Dezembro de 1852 que determinava que “as confrarias, que se instituírem de novo, deviam pedir ao governo não só a aprovação dos estatutos como requerer também licença para se constituírem, sem a qual nenhuma associação politica ou religiosa pode licitamente reunir-se”31. Já no que toca ao Governo da Índia, as confrarias estiveram sempre presentes no quotidiano devido ao esforço de conversão que se verificou nos séculos XVI e XVII, tendo sido a Confraria da Conversão à Fé, a primeira a ser fundada em 1541, sediada em Goa. No período cronológico em estudo, o funcionamento das confrarias será novamente alvo de controlo, através do regulamento publicado em 1879, onde o carácter de progressiva burocratização do processo pio se denotava de forma clara. Estas instituições para existirem necessitavam que “os respectivos compromissos ou estatutos sejam aprovados pelo governador-geral em conselho de província”32. Em 1880, dá-se uma tentativa de desamortização dos bens das confrarias, isto é, a alienação de bens em hasta pública, o que não se chegou a efectuar, no que se poderá ver uma tentativa de obtenção de lucro, por parte do Estado, num longo processo que advinha da revolução liberal.
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Cf. Regulamento das confrarias do Estado da Índia. Nova Goa: Imprensa Régia, 1845. In ROCHA, Leopoldo da – As confrarias de Goa (séculos XVI-XX). Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973, p. 236. 32 In Regulamento para as confrarias, misericórdias, instituições de beneficência ou de piedade, asilos e albergues do Estado da Índia. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1917, 2ª edição, p. 10. 31
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5. O quadro nosológico da região indo-portuguesa A intervenção estatal nos domínios da saúde pública repercutia-se, evidentemente, no controlo e prevenção de epidemias e doenças. No Estado Português da Índia, o carácter tropical da região propiciava um confronto biológico entre a impreparação física dos europeus e um clima que dava lugar ao aparecimento de determinadas doenças, a que se juntavam doenças do foro sexual que serão analisadas mais adiante. A cólera foi umas das patologias mais presentes no quotidiano indo-português pois, nos analisados, contabilizam-se dezasseis surtos no território da índia Portuguesa. Logo em 1869, dáse uma epidemia colérica, principiando em Damão, estendendo-se, ainda que de forma mais reduzida, a alguns territórios vizinhos, a que se seguiram vários surtos, a um ritmo quase anual. Como se vê numa carta do Visconde de Paço d’Arcos, onde, em 1883, surge a ameaça da cólera, levando a que se tomasse medidas, de forma imediata: “no território de Goa tem sido tomadas as providências para impedir a propagação do mal e até para a combater se vier a aparecer” 33, sendo algo que recorrentemente se verificava. Em 1884, dá-se um surto de cólera, “na região onde prosseguem os trabalhos do caminho-de-ferro, principal entre operários vindos da Índia inglesa, abrangendo a zona infestada os concelhos de Quepém e Sangém”34. Este último tópico reforça uma das conclusões a que Alberto Silva Correia havia chegado em 1921, isto é, grande parte das epidemias que grassavam no território português eram oriundos dos territórios indo-britânicos limítrofes35. Seguindo o boletim sanitário de 1906, este diz-nos que “em segundo lugar vem a diarreia coleriforme que se manifestou em alguns concelhos, tendo adquirido em certas localidades caracter maligna e marcha avassaladora, filiando-se o seu aparecimento da alimentação insuficiente e viciosa da população proletária”36, pois esta alimentação era pobre em vitaminas e rica em calorias, o que não contribuía para uma defesa imunológica. Evidentemente que as condições climáticas proporcionavam o aparecimento de certas doenças, num determinado período do ano. Como é referido no boletim sanitário de Julho de 1906, “devido às torrenciais chuvas caídas durante a segunda quinzena do mês findo, ficou profundamente alterado o estado da saúde pública em geral da província, tendo recrudescido d’uma forma espantosas o paludismo sob suas variadas manifestações mais ou menos graves”37,
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In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1983. In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1983. 35 In CORREIA, Alberto Germano Silva – Nosografia da Índia Portuguesa. Nova Goa: Ed. do Autor, 1921, pp. 99-269 36 In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1984. 37 In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1984. 34
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situação recorrente no período da monção de Sudoeste ou de Verão, formando-se baixas pressões, na costa oriental africana, que originam ventos fortes e húmidos que sopram de Sudoeste em direcção ao sul da Índia, despoletando chuvas torrenciais. Refere-se ainda que “as casas dos gentios sobressaem pelos defeitos higiénicos, todavia os seus moradores parecem sentir já uma tal ou qual necessidade de higiene no meio em que vivem”, marca a que se poderia associar uma interpretação da boa obra civilizacional dos portugueses no Oriente. Ainda assim, do ponto de vista higiénico, até à República, a falta de condições era notória, sobretudo na região das Novas Conquistas, onde o tipo de habitação, nas classes mais desfavorecidas era caracterizado pela cobertura de capim e a falta de luminosidade que associada aos defeitos citados contribuía para que o paludismo grassasse. Entre outras doenças que assolaram a região no período estudado contam-se a varíola, mas ocorreram igualmente alguns surtos de peste bubónica no território indo-português. Segundo o boletim do estado sanitário do Estado da Índia de 1898, o governo tomou “medidas adequadas contra a importação da peste bubónica que dia a dia se vai recrudescendo em Bombaim, distritos circunvizinhos britânicos e no nosso território de Damão: lasarêlo [?] no forte dos Reis Magos onde se procede à inspecção rigorosa dos passageiros e desinfecção das duas bagagens, e uma observação vigilante nas respectivas residências durante 10 dias, a contar da entrada no nosso território de passageiros dos territórios suspeitos”38. Ao controlo da circulação de pessoas, sobretudo oriundas da Índia britânica, juntava-se a vacinação sendo esta uma prática corrente para combater as doenças endémicas que atacavam a população local39. Também a varicela foi das doenças que mais perturbou a sociedade luso-indiana, verificando-se surtos, em Goa, em 1870, 1871, 1872, 1882, 1884, 1889, 1891 e 1897.
38
In Arquivo Histórico Ultramarino, sala 12, Índia, serviços de saúde, maço 1984. Cf. SAAVEDRA, Mónica - «Percursos da vacina na Índia portuguesa: séculos XIX e XX» in História, Ciências, Saúde, 2014, vol. 11, pp. 165-82. 39
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6. O controlo dos “desvalidos” – prostitutas, vagabundos e pedintes A progressiva ingerência do Estado repercutia-se nos mais diversos domínios da vida quotidiana, Tal como nos diz Jorge Crespo, “a civilização do corpo traduzia-se num conjunto de preceitos e técnicas, de gestos e maneiras de viver que podiam reconhecer-se nos mais variados momentos da vida humana”40. Deste modo, o controlo da sexualidade era também uma questão a que as instituições políticas também se encontravam atentas, atenção essa materializada no controlo legislativo e judicial da prostituição. A mendicidade e a vagabundagem são também outras faces do poliedro da intimidade das populações que eram escrutinadas pela vigilância estatal. A legislação da época definia como prostitutas e meretrizes “as mulheres que se entregam a uns e a outros por dinheiro”41, apresentando esta actividade “nas suas linhas gerais, salvo poucas diferenças, quási os mesmos traços nosso-sociais, económicos e etnográficos, que se podem ver no Império indo-britânico, circunvizinho”42, sendo precoce a iniciação na prostituição, rondando entre os 15 e os 25 anos43. A partir de meados do século XIX, segundo Rui Gomes Barbosa, “o corpo passou a estar sujeito a um conjunto de agressões e de contaminações”44 de que as doenças sexualmente transmissíveis são exemplo. Até 1870, a incidência de doenças venéreas entre a população revelava-se pequena: em 1870, de 2563 hospitalizados, apenas 97 eram doentes venéreos. Contudo entre 1873 e 1878, verifica-se um aumento progressivo, mas significativo deste tipo de doenças devido ao aumento de algumas expedições militares na região. O controlo do governo provincial sobre a prostituição materializa-se no decreto de 1878 que, entre outros determina a obrigação de “toda a prostituta é obrigada a apresentar-se à visita de saúde uma vez por semana” e “apresentar a carta de visita sanitária todas as vezes que a autoridade o exija”45, de modo a minorar possíveis focos de doenças. Além deste regulamento, o decréscimo do envio de forças expedicionárias para o território leva a que o número de doentes venéreos diminuiu-se nas décadas de 1880 e 1890, aumentando novamente em meados de 1913, aquando da campanha militar de Satari, que decorreu em 1912. 40
In CRESPO, op. cit., p. 504. In Regulamento das meretrizes e casas toleradas no Estado da Índia. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1903, 2ª edição, p. 5. 42 In CORREIA, Alberto Germano Silva – Prostituição e profilaxia anti-venérea. Nova Goa: Tipografia Bastorá, 1938, p. 61. 43 Cf. Idem, Ibidem, pp. 71-773 44 In GOMES, Rui Machado - «A transparência do corpo: tornar visível o invisível» in GODINHO, Paula, BASTOS, Susana Pereira, FONSECA, Inês (coord.) – Jorge Crespo: estudos em homenagem. Castro Verde; 100 Luz, pp. 383-400. 45 In Regulamento…, p. 14. 41
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A fiscalização e vigilância dos vadios, vagabundos e mendigos passava, sobretudo, pelo controlo policial, através do decreto provincial de 13 de Agosto de 1870, onde ao Estado Provincial competia, igualmente, auxiliar “sem faltar ao que deve à caridade em favor dos desvalidos, mas não consentindo que a falsa mendicidade se aproveite do óbolo que só à verdadeira é devida” 46. Todavia, o policiamento da mendicidade era da alçada directa dos administradores dos concelhos indo-portugueses, sendo proibido mendigar “ a todo e qualquer individuo que seja capaz de ganhar meios de subsistência pelo trabalho”47. Contudo, quando este facto não se verificava, os mendigos deviam estar devidamente identificados da restante população, transportando uma chapa com as letras P.M. (pobre mendigo), fornecida pela administração municipal. O mendigo que não cumprisse com as disposições legais e vigor era considerado vagabundo, sendo presente ao administrador do concelho que tomaria as providências necessárias que passavam, na maioria dos casos, por uma passagem no presídio local. As disposições socio-legais expostas anteriormente mostram qual a praxis do discurso civilizacional do colonialismo português. A criação de conceitos baseados em preceitos em que se interligavam ciência e eurocentrismo enuncia este género de práticas, onde o completo domínio sobre os aspectos mais íntimos da população autóctone anulava, o que se poderia considerar, como do domínio do selvagem e da bestialidade. Assim, a legislação é o veículo formativo para a civilização, contribuindo para a cristalização de uma ideia de sociedade, transpondo para os trópicos, normas e valores europeus.
7. Considerações finais A realização deste ensaio demonstrou, entre outras, uma persistência das estruturas médico-assistenciais oriundas do Antigo Regime, onde as mudanças verificadas apenas se situavam ao nível da legislação e regulamentação, denotando-se uma ausência de novos edifícios e novas políticas, como no caso da Misericórdia de Goa, ainda que o estudo desta instituição necessitasse de comprovação empírica mais detalhada pois a sua documentação está patente no Historical Archive of Goa, que não foi possível consultar em tempo útil. Contudo, poder-se-á verificar que a situação desta instituição não se distanciava das suas congéneres, quer em
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In Regulamento acerca dos mendigos, vadios e vagabundos. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1903, 2ª edição, p. 5 47 Idem, Ibidem, p. 5
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Portugal, quer nas suas colónias, sendo um foco de elitização política e financeira, ainda que não descurasse as obrigações. O controlo do corpo, nas suas diferentes acepções, desde o controlo das doenças, passando pelas prostitutas e mendigos, foi outros dos pontos a que a política local e central esteve atenta. Contudo, o que a documentação transparece é o reconhecimento legal destes indivíduos não existindo, contudo, uma política sistemática de auxílio e socorro. Uma certa exclusão social, ostentada através de sinalefas, como no caso dos mendigos, era a atitude vigente no meio lusoindiano. Já no caso das prostitutas, estas eram igualmente reconhecidas pela lei, que se limitava ao seu controlo, sendo consideradas como um mal necessário, a que se juntava a comprovação empírica que esta ocupação remontava a séculos passados. Em suma, a saúde pública e assistência poderão ser consideradas, simultaneamente, como uma forma de fomentar a “missão civilizadora” colonial, mas também como uma marca de um certo esquecimento a que as colónias asiáticas estavam votadas, patente nas condições materiais dos locais assistenciais.
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