História da Ciência: Arqueologia como política

September 15, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Historia da Ciência, Arqueologia
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1 MENEZES, L. ; FUNARI, P. P. A. ; FUNARI, P. P. A. . Arqueologia como prática política. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 4, p. 1-4, 2009.

História da Ciência: Arqueologia como prática política

Pedro Paulo A Funari1

A Arqueologia iniciou-se, como disciplina científica, na esteira do imperialismo das grandes potências. A empreitada arqueológica inseria-se no domínio colonial, como parte de disputas estratégicas. Não à toa, os arqueólogos ligavam-se aos serviços militares ou de informação e serviam a agendas voltadas para o controle material e ideológico das periferias. Ao lado desta vertente imperial, a disciplina, ab initio, esteve imbricada na construção de identidades nacionais, de cunho masculino, tendo como objetivo a coesão social e a uniformidade, no presente e no passado. A disciplina, assim, surgia e firmava-se como parte do amplo espectro de agenciamentos das normatizações, tanto em âmbito interno, em cada estado nacional, como na relação com os sujeitos externos da opressão, nas periferias asiática, africana, médio-oriental e latino-americana.

Esse quadro mudou, de forma radical, nas últimas décadas. Nas potências centrais, emergiram grupos sociais e de interesse que implodiram as pretensões de homogeneidade e subordinação às normas, tão bem articuladas no primeiro século e meio da incipiente Arqueologia. Nas sociedades ocidentais, as mulheres, antes ausentes ou subjugadas, emergiram como sujeitos sociais cada vez mais ativos. Se até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) as arqueólogas eram raras e em posições subalternas, depois disso 1

Professor Titular e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas.

2 multiplicaram-se e assumiram, muitas vezes, um protagonismo notável. Quem não há de lembrar-se de Katheen Kenyon, notável pioneira que inspirou tantas jovens arqueólogas, a partir da década de 1940 2. Rompida esta barreira, outras muitas foram superadas, com o reconhecimento da diversidade de grupos humanos: hoje não causa espanto a Arqueologia de Gênero, Queer ou a variedade de sexualidades, tanto dos arqueólogos, como dos seus temas de investigação3.

No âmbito internacional, essas modificações não foram menos importantes. A Arqueologia tornou-se prática também periférica, não apenas das elites das antigas colônias, mas a disciplina espraia-se para os povos indígenas, as minorias, para os subalternos. Um passo decisivo para essa nova configuração foi dado pela constituição do Congresso Mundial de Arqueologia, em 1986, com seu combate às hierarquias entre ricos e pobres, acadêmicos e público ou outras quaisquer 4. A Arqueologia, de estudo do antigo, passou, como propugnavam em 1987 Michael Shanks e Christopher Tilley 5, a ser o estudo das relações de poder. Michel Foucault e sua Arqueologia do Saber 6 tornaram-se parte da reflexão da disciplina.

No Brasil, para além dessa trajetória universal, as particularidades de uma sociedade colonizada, periférica e hierarquizada se fizeram sentir de forma particular. Durante o escravismo, em ambiente cortesão e aristocrático, em atmosfera de ancien régime, o

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Kathleen Kenyon, Beginning in Archaeology. Londres, Aldine, 1952. Robert A. Schmidt, Barbara Voss, Archaeologies of Sexuality. Londres e Nova Iorque, Routledge, 2000. 4 Cf. Pedro Paulo A Funari, The World Archaeological Congress from a critical and personal perspective, Archaeologies, 2, 1, 2006, 73-79. 5 Michael Shanks e Christopher Tilley, Re-constructing archaeology. Cambridge, Cambridge University Press, 1987. 6 Michel Foucault, Archéologie du Savoir. Paris, Gallimard, 1969. 3

3 dernier cris e o contato com os maiores intelectuais do mundo assinalavam tanto a modernidade como a particularidade do abismo entre um mundo burguês distante e uma realidade local marcada pela escravização e pelo compadrio.

Os impulsos contrários ao

culto às elites viriam tardiamente, na esteira do humanismo de um Paulo Duarte 7, mas sempre envoltos nas contradições de uma das sociedades mais desiguais da face da terra. O último período de arbítrio, de 1964 a 1985, aprofundou algumas contradições, puniu a dissidência, inibiu o que poderia ter sido, mas não foi, consolidou hierarquias e normatizações. Ao final, contudo, a liberdade restaurada, a disciplina integrou-se à diversidade das outras ciências humanas e sociais. Quebraram-se hierarquias, insurgiram vozes subalternas, o caráter político e social da disciplina passou a ocupar cada vez mais o lugar de destaque.

Nestas circunstâncias, entende-se este volume. A diversidade de vozes, ou multivocalidade, mostra a relevância da reflexão crítica às voltas com a violência tantas vezes subjacente à pesquisa arqueológica. A quem pertence um esqueleto antigo? Se o arqueólogo o encontra em terra indígena, à ciência; se está num campo santo, não será escavado ou será, ao menos, restituído à comunidade que autorizou a escavação 8. Violências despercebidas. A interação com as comunidades e um olhar crítico são, portanto, essenciais. Por isso, multiplicaram-se os estudos, como nesta obra, que incluem as pessoas e comunidades nas pesquisas, assim como as reflexões históricas sobre a trajetória da disciplina. A Amazônia, em particular, constitui um tema de estudo na encruzilhada das

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Cf. Pedro Paulo A Funari e Glaydson José da Silva, Nota de pesquisa sobre o Projeto de Pesquisa do Acervo de Arqueologia e Patrimônio de Paulo Duarte, www.historiaehistoria.com.br, 06/03/2007. 8 Cf. Lúcio Menezes Ferreira, Patrimônio, pós-colonialismo e repatriação arqueológica, Ponta de Lança, Memória e Cultura, 1, 2008, 37-62.

4 contradições acenadas. Região periférica da periferia, com a imensa diversidade ambiental e humana, foi objeto de políticas coloniais internas e externas. Participou dos turbilhões dos últimos dois séculos, na constante expectativa de uma Anschluss por forasteiros. Foi sempre prenhe, contudo, de desafios às hierarquias, a começar do próprio nome e do destaque que as arqueólogas aí exerceram e exercem.

Este volume do Boletim Emílio Goeldi organizado por Lúcio Menezes Ferreira mostra toda a diversidade das histórias e identidades em jogo na Arqueologia amazônica. Demonstra a vitalidade das reflexões contemporâneas e antecipa ainda novas perspectivas, críticas às hierarquias e abertas à interação com os grupos sociais. Boa leitura!

Agradecimentos

Agradeço a Lúcio Menezes Ferreira, Michael Shanks e Christopher Tilley e Barbara Voss. Menciono, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos, World Archaeological Congress, CNPq e FAPESP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

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