História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Culturas

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Pedro Paulo A. Funari Margarida Maria de Carvalho Claudio Umpierre Carlan Érica Cristhyane Morais da Silva

III História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Culturas

São Paulo 2010

SUMÁRIO VOLUME TERCEIRO

História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Culturas HISTÓRIA MILITAR DO MUNDO ANTIGO: UMA INTRODUÇÃO Os Editores ...................................................................................................................

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Guerras e Culturas 1. O GUERREIRO GREGO E SEU EQUIPAMENTO Patrícia Boreggio do Valle Pontin ..................................................................................

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2. MILITARIZAÇÃO DOS CONTATOS ENTRE GREGOS E ITÁLICOS NO FINAL DO SÉCULO V° A.C.: O CASO DA NECRÓPOLE DO GAUDO DE POSEIDONIA-PAESTUM (CAMPÂNIA, ITÁLIA) Airton Pollini ...............................................................................................................................

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3. PLATÃO E O DEBATE SOBRE A REFORMA MILITAR ATENIENSE Gabriele Cornelli e Rodrigo Batagello ............................................................................

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4. O ‘CRIME’ DA HOMOSSEXUALIDADE NO EXÉRCITO E AS REPRESENTAÇÕES DA MASCULINIDADE NO MUNDO ROMANO Renato Pinto ....................................................................................................................

75

5. AS RELAÇÕES ENTRE JUDEUS PALESTINOS E O PODER ROMANO NOS SÉCULOS I A.C.-I D.C.

Monica Selvatici .............................................................................................................

96

6. EXÉRCITO ROMANO NA BRETANHA: O CASO DE VINDOLANDA Renata Senna Garraffoni .................................................................................................

111

7. UM REINO DE JESUS, UM REINO POLÍTICO Roberta Alexandrina .......................................................................................................

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8. O FORTE ROMANO DE GHOLAIA (BU NJEM): EXÉRCITO, SOCIEDADE E CULTURA NA TRIPOLITÂNIA ROMANA Julio Cesar Magalhães de Oliveira ..................................................................................

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9. GUERRA E MILITARISMO NA ÁREA MAIA: DEFINIÇÃO, CONCEITO E USO Alexandre Navarro ..........................................................................................................

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10. O DESENVOLVIMENTO DA EGIPTOLOGIA A PARTIR DA CAMPANHA MILITAR DE NAPOLEÃO NO EGITO Nathalia Monseff Junqueira ............................................................................................

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HISTÓRIA MILITAR DO MUNDO ANTIGO: UMA INTRODUÇÃO

Pedro Paulo A Funari1 Margarida Maria de Carvalho2 Cláudio Umpierre Carlan3 Érica Cristhyane Morais da Silva4

O estudo da guerra possui larga tradição e continua mais atual do que nunca. Nos últimos anos, as abordagens sobre a guerra multiplicaram-se. A própria humanidade foi ligada, por diversos estudiosos, ao surgimento e diversificação dos conflitos bélicos, há milhares de anos, no Pleistoceno5. O economista Mark Bowles liga o altruísmo humano ao combate entre grupos humanos e relaciona, portanto, o surgimento da cultura, daquilo que caracteriza os agrupamentos humanos, com a guerra. Não precisamos estar de acordo com tais argumentos para percebermos a relevância, no século XXI, da famosa frase de Heráclito: polemos pater paton (a guerra é o pai de todas as coisas6). Como lembra Heidegger, ao comentar este passo, polemos, a guerra, não é uma luta individual, agon, mas coletiva, a luta (Kampf), a guerra (Krieg)7. O tema da guerra e da vida militar permanece central para a reflexão sobre a vida em sociedade. Não é nosso objetivo realizar uma apologia a guerra, mas ampliar a noção de documento ao analisar a cultura material de uma sociedade, através do ponto de vista militar. No mundo onde os momentos de guerra eram mais longo que os de paz, que possuíam valores e costumes diferentes dos atuais, a militarização de uma sociedade não era apenas um dever cívico, mas um fator importante para sua sobrevivência.

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Professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 2 Professora da Universidade Estadual Paulista, UNESP/Franca e pesquisadora-colaboradora do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 3 Professor da Universidade Federal de Alfenas e pesquisador-colaborador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 4 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca sob a orientação da Profª Drª Margarida Maria de Carvalho. 5 Cf. Jung-Kyoo Choi & Samuel Bowles, The coevolution of parochial altruism and war, Science, 318, 5850, 26th October 2007, 636-640; Samuel Bowles, Did warfare among ancestral hunter-gatherer groups affect the evolution of human social behaviors, Science, 324, 5th June 2009, 1293-1298. 6 Fr. 53. 7 Martin Heidegger, Gesamteausgabe, 36/37, Sein und Wahrheit, p. 90.

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Em seus diálogos, Platão descreve a discussão entre Sócrates e Ião: “...na guerra precisa de um estratego ou um poeta ?”8. No mundo antigo nem todos os cidadãos eram poetas, mas todos eram soldados. Muito semelhante à música do compositor Geraldo Vandré, para não dizer que não falei das flores, “...ou morrer pela pátria ou viver sem razão...”. Na Antiga Grécia, temos vários exemplos desses fatos. Um deles retrata a impaciência de uma mãe espartana que perde seus cinco filhos na guerra. Quando o mensageiro do exército apresenta a triste notícia, ela pergunta pelo resultado do confronto. Vitória dos espartanos. Então, ela responde, “meus filhos não morreram em vão”. Temática similar que Steven Spielberg utiliza em seu filme “Resgate do Soldado Ryan” de 1998. Antes de mais nada, o cidadão greco-romano era um soldado, pronto para entrar em combate, quando sua cidade precisasse. Desde a mais remota infância, tinha todo o treinamento militar disponível. Era preparado para arte da guerra, sabia usar a lança, a espada e o escudo. Usava também a intelegência como estrategista. Arcava com os custos do equipamento básico para o combate. Porém, como prêmio, tinha direito ao butim e os demais despojos de guerra (escravos, ouro e prata, entre outros). Cada arma tinha a sua função específica e simbólica. O escudo, por exemplo, era uma arma defensiva, passiva e protetora. Ele representava o cosmo, o universo que o guerreiro apresentava ao inimigo. As forças figuradas estavam presentes, o couro, o metal, como no escudo de Aquiles: o céu, mar e a terra (lema dos Fuzileiros Navais Brasileiros). Tudo que se perde ao morrer se ganha ao triunfar (arma psicológica que ajudou a Perseu derrotar Medusa). Posteriormente, na Irlanda Medieval, por influência celta, foram associados aos escudos animais fabulosos (mais tarde aos brasões familiares e a heráldica), considerados como elemento decorativo mais importante nos salões da nobreza. No renascimento italiano, o escudo é representado como a força, vitória e a castidade, justamente pelo seu papel de defensivo9. A espada foi símbolo da bravura, da virtude e do poder. Associada à balança, ela separava o bem do mal e golpeava o culpado10. Além do guerreiro, simbolizava a guerra santa e, hoje em dia nas Forças Armadas, é símbolo dos oficiais subalternos, superiores e generais. Ao termínio do curso nas Academias Militares, o jovem Aspirante ou Guarda Marinha, recebe a espada do seu padrinho e ou madrinha. No caso dos oficiais generais, a espada é dourada, para diferenciar dos demais. 8

Platão, Diálogos. Critão – Menão Híspias Maior e outros. Tradução Direta do grego por Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2007, p. 233. 9 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora S.A., 1997, pp. 387,388. 10 Idem ibidem – op.cit. p. 392

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Dentro desse contexto simbólico, as ideias de poder e potência eram fundamentais. Em um mundo onde a oposição e rivalidade eram constantes, forças lutavam entre si. Durante dado momento, o soberano mais poderoso do que outro vai impor a sua lei11. É o caso de Hamurábi, governador e legislador do Império Babilônico no século XVIII a.C. Depois de conquistar os reinos rivais, Hamurábi estabeleceu um sistema de leis, conhecido como Código que leva seu nome, comum a todo seu Império. Na realidade, não se tratava de um código de leis propriamente dito, e sim tradições locais que o governante babilônico transformou em leis. Anteriormente, em Lagash, Urukagina, século XXIV a.C., já havia realizado uma reforma na legislação. O próprio Vernant descreve um processo de mudança não apenas no pensamento grego, mas nos combates e rivalidades entre as cidades. Durante o Período Micênico, tendo como modelo o duelo entre Aquiles e Heitor, os confrontos são individuais. Dois herois decidem a sorte da batalha. Acreditando ou não nos textos homéricos, a partir dessa formação, os guerreiros aristocratas aqueus dominaram todo o Mediterrâneo Oriental. Com as invasões dóricas e jônicas, definida por alguns historiadores como Idade das Trevas Grega, ocorre uma alteração no eixo do poder, localizado no Mediterrâneo Ocidental. As cidades localizadas entre Troia e Gaza são completamente destruídas. O soldado deixa de ser um combatente solitário em busca da honra e glória, e aos poucos, vai se tornando um soldado-cidadão. Luta em um exército organizado, com armas de ferro, precursor da famosa falange macedônica. Porém, as mudanças mais significaticas ficaram por conta das primeiras reformas militares romanas, segundo a tradição, durante o reinado de Sérvio Túlio (578 – 534), sexto rei de Roma. Sérvio Túlio organizou a sociedade dividindo em cinco classes, por rendas, cada classe com um número de soldados, que se reuniriam no campo de marte, hoje onde está localizada o Partenon de Adriano, próximo a Escola Espanhola de Roma. Essa divisão serviu de modelo para as reformas militares de Napoleão Bonaparte no início do século XIX. Em teoria, 8 legionários formariam um contubérnios; 10 contubérnios uma centúria; 6 centúrias uma coorte; 10 coortes uma legião. O número de legionários de uma centúria poderia variar entre 80 e 120, dependendo do período histórico. Napoleão realizou uma mudança semelhante no exército francês. Uma companhia (infantaria) ou bateria (artilharia) seria composta por 100 homens, comandadas por um capitão. Hoje, não muito diferente, as companhias e baterias seguem esse modelo. 11

Jean-Pierre Vernant. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Muracho. 2ª . ed. São Paulo: Editora da USP, 2002, p.211.

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Dentro desse contexto, segundo Miranda, o Estado justo será aquele que buscar o bem de todos e de cada um. Nesse Estado ideal, princípio e fim se harmonizam perfeitamente.

“...O princípio: a liberdade de cada um assegurada na medida em que também é assegurada a liberdade de todos. O fim: a virtude do mais alto significado político, a justiça entendida como bem comum...12”

Para manter essa liberdade, sua e de seus familiares, o cidadão no mundo antigo, precisa ser um soldado. Seu peito é a última muralha entre viver livre ou morrer escravo. O estudo da História militar, de forma particular, está na origem da própria disciplina histórica, tanto como gênero literário antigo, como no período moderno. Heródoto e Tucídides13 criavam a narrativa histórica como parte de uma descrição da guerra, dos seus antecedentes e conseqüências14. Durante toda a Antiguidade, História e Guerra estivem sempre interligadas, tanto na literatura em língua grega como latina15. No século XIX, quando o positivismo viria a fundar a moderna historiografia, a guerra viria a assumir novas funções, mas sempre no centro da pesquisa histórica. A História política não podia prescindir de uma atenção particular aos conflitos militares. Nas últimas décadas, o interesse pela História militar encontrou novos temas, ênfases e interesses, da vida sexual às identidades sociais, do colonialismo às relações de gênero, do simbolismo às subjetividades16. No que se refere ao mundo antigo, essa renovação chegou com grande força, questionando discursos normativos e monolíticos, os modelos que enfatizam a coesão social, o respeito às normas e a criticam os desvios de comportamento17. Sobretudo, as narrativas passaram a valorizar a diversidade de pontos de vista, a História do Outro, para usar uma bela expressão de Pierre Vidal-Naquet18. A História Militar do mundo antigo passou a incorporar temas como a masculinidade19 ou abastecimento como práticas culturais. 12

Mário Miranda Filho, Politeia e Virtude: as origens do pesnamento republicano clássico, Clássicos do Pensamento Político, org. por Célia Galvão Quirino, Claudio Vouga e Gildo Marçal Brandão. São Paulo: Editora da Usp, 1998, p. 36. 13 Pedro Paulo A Funari, A Guerra do Peloponeso, História das Guerras, org. Demétrio Magnoli, São Paulo, Contexto, 2007, PP. 19-45; Pedro Paulo A Funari, 14 Cf. Pedro Paulo A Funari & Glaydson José da Silva, Teoria da História, São Paulo, Brasiliense, 2008. 15 Cf. Pedro Paulo Funari & Renata Senna Garraffoni, Salústio e a historiografia romana In: História e Retórica, Ensaios sobre historiografia antiga ed.São Paulo : Alameda, 2007, p. 65-76. 16 Cf. Robin Osborne, Greek History, Londres, Routledge, 2004, pp. 70-84. 17 Cf. Bryan Hanks, The past in later prehistory, Prehistoric Europe, Theory and Practice, Chichester, Wiley-Blackwell, 2008, pp. 255-284, p. 278: “the study of warfare during the Bronze and Iron Ages has had a long tradition of scholarship in Europe, however it is only in recent years that more attention is being placed on the relationship of warfare to cultural responses to this category of practice”. 18 Pierre Vidal-Naquet, Préface, Histoire de l’autre, Paris, Liana Levi, 2008, pp. 13-16. 19 Cf. D. Ogden, Homosexuality and warfare in ancient Greece, Battle in Antiquity, ed. A. B. Lloyd, Londres, 1996, pp. 107-168.

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No Brasil, os últimos anos testemunharam o surgimento de uma massa crítica de estudiosos, muitos deles bem inseridos na ciência internacional como interlocutores autônomos, com domínio, de primeira mão, da documentação antiga20. Estes dois aspectos estão na raiz desta História Militar do Mundo Antigo, que congrega, a partir de eixos temáticos, o que há de mais consolidado e inovador na ciência brasileira e uma mostra da interação internacional, com capítulos de grandes referências dos estudos da História Militar do Mundo Antigo. Desse modo, a História Militar do Mundo Antigo que se apresenta nesta coleção, constituída de três volumes, se fundamenta em debates atuais considerando objetos a partir de novas perspectivas. Restituindo à dimensão militar a relação estreita e íntima desta última com as outras esferas consideradas social, política, religiosa e econômica.21 Além disso, introduz e/ou revisita temáticas que, por vezes, foram negligenciadas ou desconsiderados como pertencentes à uma história dita militar. Só muito recentemente, poderíamos imaginar uma História Militar construída a partir de estudos sobre gênero, identidade, considerando tanto as documentações textuais quanto a arqueológica, nesta última incluindo-se a Numismática, a Iconografia e a Epigrafia redundando na inserção de uma rica cultura material. Todos os textos que aqui se apresentam propõem e abrem debates, instigam à investigação de novas e infinitas possibilidades discursivas.

AGRADECIMENTOS Agradecemos a Demétrio Magnoli, Glaydson José da Silva, Fábio de Barros Silva, Olavo Pereira Soares e a todos os autores do volume. Mencionamos, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Franca, Universidade Federal de Alfenas, CEIPAC da Universidade de Barcelona, FAPESP, CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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Cf. Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo A Funari, Os avanços da História Antiga no Brasil: algumas ponderações, História, 26, 1, 2007, pp. 14-19. 21 Como nos ensina Balandier (1997:156-7) foram as teorias de mundo modernas acerca do homem e da sociedade que “operaram rupturas, geraram fissuras e cisão” caracterizando-se como um “pensamento dissociativo”, numa “setorização de conhecimentos”.

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Bibliografia

Documentação Impressa

HERÁCLITO. Fragmento 53. PLATÃO. Diálogos. Critão – Menão Híspias Maior e outros. Tradução Direta do grego por Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2007.

Obras Gerais

BALANDIER, Georges. A desordem: elogio ao movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BOWLES, Samuel. Did warfare among ancestral hunter-gatherer groups affect the evolution of human social behaviors, Science, 324, 5th June 2009, 1293-1298. CARVALHO, Margarida Maria de & FUNARI, Pedro Paulo A. Os avanços da História Antiga no Brasil: algumas ponderações, História, 26, 1, 2007, pp. 14-19. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora S.A., 1997. CHOI, Jung-Kyoo & BOWLES, Samuel. The coevolution of parochial altruism and war, Science, 318, 5850, 26th October 2007, 636-640. FILHO, Mário Miranda. Politeia e Virtude: as origens do pesnamento republicano clássico. In: QUIRINO, Célia Galvão, VOUGA, Claudio & BRANDÃO, Gildo Marçal (org.). Clássicos do Pensamento Político. São Paulo: Editora da Usp, 1998. FUNARI, Pedro Paulo A. A Guerra do Peloponeso. In: MAGNOLI, Demétrio. (org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2007. ______. Antigüidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: UNICAMP, 2003. FUNARI, Pedro Paulo A & SILVA, Glaydson José da. Teoria da História. São Paulo: Brasiliense, 2008. FUNARI, Pedro Paulo A. & GARRAFFONI, Renata Senna. Salústio e a historiografia romana In: JOLY, Fabio Duarte (Org.). História e Retórica, Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 65-76.

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HANKS, Bryan. The past in later prehistory. Prehistoric Europe, Theory and Practice, Chichester, Wiley-Blackwell, 2008, pp. 255-284. HEIDEGGER, Martin. Gesamteausgabe, 36/37, Sein und Wahrheit. OGDEN, D. Homosexuality and warfare in ancient Greece. In: LLOYD, A. B. (ed.). Battle in Antiquity. London: Duckworth, Classical Press of Wales, 1996, pp. 107-168 OSBORNE, Robin. Greek History. Londres: Routledge, 2004. VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Muracho. 2ª . ed. São Paulo: Editora da USP, 2002. VIDAL-NAQUET, Pierre. Préface. In: Histoire de l’autre. Paris : Liana Levi, 2008, pp. 13-16.

História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Culturas

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O GUERREIRO GREGO E SEU EQUIPAMENTO Patrícia Boreggio do Valle Pontin Pós-doutoranda em Arqueologia Histórica MAE-USP

Introdução

O estudo da guerra no mundo grego antigo, com todos os seus componentes táticos, sociais, econômicos e simbólicos tem despertado grande interesse e são muitos os trabalhos que tem se dedicado ao tema. Por outro lado, o estudo das armas antigas, que segundo acreditamos, oferece enormes possibilidades de informação para a reconstrução do passado foi pouco explorado dentro do contexto ideológico, estético, religioso, social e econômico da sociedade grega. O presente capítulo tem por objetivo um estudo aprofundado sobre o escudo grego visando explicitar a natureza deste equipamento defensivo para melhor compreender o universo guerreiro e a disposição do homem grego diante da guerra. Deste modo, decidimos começar este estudo com uma breve introdução sobre o guerreiro e seu equipamento militar, a excelência e a beleza de suas armas e armadura, os inconvenientes do equipamento do hoplita, seu custo e status social. Pretendemos, no decorrer do texto, situar os diversos tipos de escudo que foram usados predominantemente pela infantaria no curso da guerra grega. Estudaremos principalmente os casos do escudo em “oito”, do escudo Dipylon, do escudo beócio e do hoplon. Traçando a evolução deste equipamento pretendemos considerar o escudo sob diferentes aspectos, tais como seu valor como equipamento de proteção na guerra, seu valor econômico, seu valor social, seu caráter religioso e simbólico, pois, percebemos por um levantamento bibliográfico mais sistemático que os escudos foram muito descritos como objetos, e em sua função no contexto da guerra e da falange, porém, não existe nenhum estudo realizado sistematicamente pelos pesquisadores sobre o escudo num contexto mais amplo da sociedade grega. Analisaremos a presença de armas do equipamento militar, principalmente dos escudos, nos santuários gregos. Para tratar da questão das armas nos contextos de culto no mundo grego, contaremos não só com os documentos arqueológicos e epigráficos, muito

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abundantes, mas também com a enorme riqueza das fontes clássicas que nos informam sobre a prática grega de dedicar o armamento aos deuses. Nos serviremos de um rico elenco de fontes de informação que abarcam desde o período geométrico até o período helenístico, nos centrando fundamentalmente nos períodos arcaico e clássico, já que a maioria das armas documentadas nos santuários gregos datam destes períodos. Para tratar da questão dos escudos no mundo grego e proporcionar uma interpretação mais segura desse equipamento no contexto da cultura material, consultaremos e confrontaremos as referências recolhidas na literatura grega, os documentos arqueológicos, epigráficos, o testemunho das moedas e da cerâmica ática, que oferece uma abundante iconografia de guerra. Os escudos como veremos mais adiante eram construídos de materiais perecíveis (pele bovina esticada sobre uma armação de madeira), portanto são raríssimos os exemplares encontrados nas escavações, daí nossa necessidade neste trabalho de recorrer a outros testemunhos que conservem as representações de escudos. Sobre este universo guerreiro, a cerâmica ática fornece uma abundante iconografia. A produção de vasos áticos foi das mais importantes da antiguidade em qualidade e volume num longo período que vai do século VI ao IV a.C.. Algumas cenas são repetitivas, mas seu estudo indica os traços fundamentais que permitem cercar as coerências que se estabelecem em volta da figura do guerreiro. Na cerâmica ática as imagens não são simplesmente um adorno destinado a decorar a superfície dos vasos; elas constituem um conjunto de representações antropomórficas, representando as atividades divinas, heróicas e humanas. A precisão anatômica de algumas dessas imagens, particularmente nas figuras vermelhas, mostram com riqueza e fidelidade de detalhes alguns objetos, dentre eles, os escudos. Em nosso estudo levaremos em conta as mais recentes pesquisas, debates, polêmicas e os trabalhos mais relevantes sobre o assunto que nos interessa. Assim como consideraremos os novos enfoques que hoje se aplicam na Arqueologia, contaremos com o apoio das fontes históricas e da Antropologia para um maior e melhor conhecimento dos contextos culturais nos quais os escudos estão inseridos. Acreditamos que a investigação que nos ocupa se presta especialmente à conjunção harmoniosa de ambos os tipos de fontes (escritas, arqueológicas, epigráficas, iconográficas) e da utilização da metodologia arqueológica e histórica.

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I. A panóplia do guerreiro

Para os gregos antigos, a excelência e a beleza exterior de seus equipamentos militares eram os sujeitos naturais de altivez. O poeta lírico Alceu escreveu com uma admiração evidente “A grande morada resplandeceu do bronze” (Fr. 137). Os especialistas da Antiguidade que fizeram o catálogo das armas e armaduras gregas descobertas pelos arqueólogos, os que coletaram as referências na literatura grega e os que examinaram a cerâmica pintada ficaram impressionados pela magnificência das realizações dos Gregos. Sua técnica sem igual no trabalho com os metais, a beleza da forma e dos acabamentos, a proteção sem igual proporcionada pela panóplia de bronze, que segundo Hanson (1990: 87-88), dava ao hoplita grego de época clássica, a certeza da suficiência e superioridade natural de suas armas sobre todas as outras do mundo mediterrâneo. Tanto os autores antigos quanto os modernos falaram muito sobre este feito extraordinário dos gregos, mas nenhum deles debateu os inconvenientes das armas e da armadura do hoplita. Pesada, desconfortável, contendo o calor de uma maneira intolerável, a panóplia era pouco adaptada ao verão mediterrâneo. Ela restringia até mesmo os movimentos mais simples. O peso do equipamento do hoplita, que compreendia as perneiras, o escudo, a couraça, o elmo, a lança e a espada era de cerca de vinte a trinta quilos. Para um soldado de infantaria que não devia pesar, segundo Hanson (1990: 89), mais de setenta quilos, era um peso incrível para ser suportado. Para Hanson (1990: 89-90), quatro realidades básicas nos fazem ver claramente o desconforto que eram as armas para os hoplitas. Primeiro, a tendência gradual e contínua, de alterar, modificar e depois abandonar inteiramente certos elementos da couraça. O costume compreensível de retardar até os últimos segundos o momento de armar-se antes da batalha. A utilização regular de serviçais pessoais para transportar o equipamento do hoplita. E o movimento natural que impulsionava o hoplita a tirar a todo instante sua dispendiosa armadura, no geral, comprada pelos cidadãos, e não fornecida pelo Estado. As proteções para os tornozelos e os revestimentos protetores para as coxas e o alto dos braços foram os primeiros a desaparecer, pois eram mais adequados ao duelo que à batalha na falange. Segundo Hanson (1990:89), seu desaparecimento foi consumado no século VI a.C. Os hoplitas do século V a.C. jamais fizeram uso de tais proteções auxiliares. Seus escudos, suas couraças e perneiras eram mais polidas, mais leves, e às vezes desapareciam completamente.

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De acordo com as pinturas dos vasos do meio do século V a.C., e as descrições de Tucídides, certos soldados de infantaria da falange íam à batalha sem perneiras, sem o elmo coríntio ou sem a couraça. Em substituição, eles usavam o πιλος (pilos) ateniense, um chapéu cônico, talvez em bronze, mas provavelmente em feltro, e uma couraça em bronze mais leve, mais ajustada ao tronco, ou um corpete de linho com uma pequena proteção em metal incorporada. Para Hanson (1990:90), sem dúvida, as cifras perturbadoras das perdas nas batalhas em época helenística são o reflexo da tendência do abandono da couraça entre os homens da falange. Não é verdade que todos os hoplitas carregavam obrigatoriamente um equipamento idêntico, o que não é surpreendente quando consideramos que os homens levavam seu próprio equipamento. A maior parte devia ter suas preferências pessoais por certos modelos que proporcionavam um maior conforto e menor custo. Os soldados de infantaria, os mais pobres, não levavam muitas vezes a couraça, pois não tinham os meios para adquiri-la. Existia uma espécie de rivalidade entre os hoplitas quando preparavam seu equipamento pessoal, dando a entender que os homens modificavam ligeiramente suas armas ofensivas e defensivas. O arranque do hoplita e da falange, onde os homens da mesma origem se agrupavam em formação não significava que seu armamento era sempre idêntico, nem mesmo que, ao arrumarem-se em colunas, eles tinham o mesmo aspecto: “Os três monarcas, conquanto feridos, também se apresentaram, ao nobre Atrida, o divino Odisseu e o Tidida valente, que, percorrendo as fileiras, cuidavam da troca das armas, aos mais valentes as boas, aos fracos as menos prestantes” (Il., XIV, 379-82). Segundo Pritchett (1971-1991, I, 49-51), um outro sinal que as armas e a armadura do hoplita eram carregados somente durante o combate era a presença durante toda a batalha, de serviçais pessoais, tanto dos soldados regulares quanto dos oficiais. Sua função principal era de transportar as armas de seu patrão e entregar-lhe somente nos últimos segundos antes do exercício. Ainda de acordo com Pritchett (1971-1991, I, 49-51), a prova desta presença constante de homens de serviço e de criados pessoais acha-se presente entre quase todos os autores gregos. Outro indício de que os hoplitas nem sempre eram capazes de carregar o peso elevado de sua própria panóplia antes do exercício aparece nos curiosos equipamentos que eram utilizados para transportar as armas. Levavam tanto o escudo quanto a lança embrulhados dentro de sacos de couro para facilitar seu transporte quando não utilizados. Temos conhecimento também de trípodes de madeira destinados exclusivamente para servir de suporte para os escudos (Aristófanes, Acarnenses. 574, 1120, 1128).

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O escudo era, sem dúvida, o elemento do qual o hoplita desembaraçava-se primeiro, pois era o mais fácil de desatar e deixar de lado. O escudo era por sua vez o elemento da panóplia mais embaraçoso de transportar e o menos caro para substituir, pois era em sua maior parte feito de madeira. Os outros elementos como o elmo, as perneiras e mesmo a couraça também eram abandonados. Para Hanson (1990: 98), a particular insistência sobre o escudo na literatura se justifica pela idéia comum entre os gregos, de que sua perda afetava todos os homens dentro da formação, e portanto era em certo sentido, um crime contra todos os cidadãos presentes na falange.

II. Vestido para impressionar

Na véspera da expedição ateniense à Sicília, Tucídides diz, ‘a infantaria estava empenhada em uma intensa rivalidade uns com os outros em matéria de equipamento e vestuário’ (6.31.3). Sem dúvida os hoplitas atenienses faziam um esforço especial quando se equipavam para combater nessa guerra nova e ambiciosa, mas sua competitividade não era rara. Os estados gregos, não tinham, como regra, dar equipamento para seus cidadãos, mas cada homem comprava para si mesmo as melhores armas e armadura que podia dar-se ao luxo. O resultado era uma série de equipamentos tão diferentes quanto o status social que eles representavam. A demanda era alta o bastante, especialmente em uma grande cidade como Atenas, para criar algo como uma indústria de armas – em pequena escala e primitiva para os padrões modernos, mas num nível de sofisticação econômica raramente visto no mundo grego antigo. O equipamento militar era produzido em quantidade pelas grandes oficinas: o pai de Lísias fez funcionar uma fábrica de escudos com 120 trabalhadores e 700 escudos em estoque no período em que foi confiscada (Lísias 12.19). O pai de Demóstenes foi proprietário de uma fábrica de espadas que tinha 30 trabalhadores escravos (Dem. 27.9). Na verdade, a demanda em Atenas era tão alta que podia sustentar o comércio especializado que somente vendia armas e armaduras. Nos mercados, lojas, e bazares de outras cidades, também, colocava-se à venda uma ‘grande quantidade’ de armas, ‘pilhas de escudos e caixas cheias de punhais’ (Enéias Tacticus 30.1-2). Até na fortemente organizada Esparta, espadas eram vendidas livremente na praça comercial, na seção de ferragens ao lado de espetos e foices (Xenofonte, Helênica 3.3.7). O escudo e a lança que o cidadão precisava para combater como hoplita, em preços clássicos, começava em torno de 25-30 dracmas, o equivalente ao salário mensal de um

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trabalhador especializado ou soldado. O pilos e o colete de couro ou linho eram acréscimos relativamente não dispendiosos, mas o custo de toda a panóplia de bronze clássica foi estimada em torno de 75-100 dracmas, o equivalente a cerca de três meses de salário. Os recursos gastos tornavam a armadura do hoplita não só um item de uso prático mas também um símbolo de status. De fato, uma das razões para adotar a armadura de bronze era precisamente que esta não era barata (van Wees, 2004: 52). O gasto notável no campo de batalha ia além do custo do equipamento básico do hoplita. O rico desejava uma armadura ornada e dourada, e ostentavam elmos decorados com três penachos e um par de penas de avestruz, ou exibiam túnicas militares em cores exóticas. Xenofonte nota que o equipamento militar podia refletir o próprio status social (Xenofonte: Anabasis 3.2.7). A preferência pelo precioso ao prático pode traçar todo um caminho de volta a Homero, a quem o valor material da armadura era tão importante que ele dava a alguns de seus heróis escudos custosos, mas maleáveis, pesados e pouco apropriados de ouro maciço e grevas de estanho (Il., 8, 192-3) “o áureo broquel de Nestor conquistar, que tem ouro maciço as braçadeiras; há muito, o alto céu alcançou sua fama.”; (Il., 18, 613) “e, finalmente, umas grevas formadas de dúctil estanho”; (Il., 21, 592) “A dura greva de estanho, construída de pouco e mui bela, soa terrível”. A armadura não era só para proteger a roupa do homem e exibir sua riqueza, mas também intimidar o inimigo projetando uma imagem apavorante. Muitos tipos de elmo, contudo não o pilos, tinham cimeira de crina de cavalo – alguns tipos mais antigos de penachos eram particularmente altos – e o que seu efeito intentava fica claro pela reação do filho pequeno de Heitor diante da visão do elmo de seu pai (Il., 6, 467-70) “Mas teve medo a criança do aspecto do pai; e, gritando, ao seio da ama acolheu-se, de bela cintura. Estranhara o inusitado fulgor do elmo aêneo de grande cimeira, pelo galhardo e oscilante penacho de crina encimado.” O que a visão da panóplia polida tencionava era fazer com que o inimigo ao olhar para as fantasias mitológicas da armadura divina se assustasse. O efeito era realçado pela modelação, que sempre enfatizava a musculatura do corpo, no desenho estilizado na armadura arcaica e impressivamente moldada na couraça-musculada de idade clássica. Elementos decorativos tais como modelos de serpentes em couraças, cabeças de carneiro em peças da face, e cabeças de Górgonas protegendo os joelhos, todos adicionados à imagem. A túnica dos soldados era frequentemente tingida de vermelho escuro, a cor do sangue, um matiz valoroso ‘tendo o mínimo em comum com a vestimenta feminina e sendo mais belicosa’ bem como porque seu efeito psicológico podia fazer dele ‘acostumado à visão do sangue fluindo’ (Aristófanes, Paz 303), e porque podia fazer seu oponente atemorizar-se.

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Segundo van Wees (2004: 53-54) os emblemas dos escudos, pintados, entalhados no bronze, ou mesmo modelados em relevo, muitas vezes promoveram a difusão de mensagens ameaçadoras.

III. O formato dos escudos gregos

O escudo era uma peça defensiva da armadura que protegia o corpo do guerreiro, sendo a mais antiga das armas defensivas. Feito de madeira, de juncos trançados, de pele ou de metal, de forma circular, oval ou oblonga, era preso no pescoço do guerreiro ou levado em seu braço esquerdo para protegê-lo dos golpes do inimigo. Diversos tipos de escudo foram usados no curso da guerra grega, predominantemente pela infantaria. Os principais tipos de que iremos tratar são: o escudo em “oito”, o escudo Dipylon, o escudo beócio e o hoplon. O escudo em “oito” caracterizava-se por sua grande dimensão (ele atingia às vezes o talhe do próprio guerreiro). Podemos identificá-lo nesta passagem da Ilíada (Il., XV, 644647): “Com sua morte ele deu glória excelsa ao guerreiro troiano, pois ao voltar-se, disposto a fugir, na orla extrema tropeça do grande escudo que aos pés lhe chegava, defesa eficiente.” Arredondado em suas partes superior e inferior, aberto dos dois lados até o centro, ele era carregado suspenso sobre os ombros por uma correia comprida de couro (telamon). Era construído de camadas de couro de boi, coladas e esticadas sobre uma estrutura de madeira. A estrutura possuía uma madeira horizontal reforçando a peça pelo centro. (imagem 1)

Imagem 1 Escudo em oito. Afresco de Tirinto. (G. Rodenwaldt, Die Kunst der Antike, p. 143).

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O escudo Dipylon, um escudo profundamente cavado, que era comparado a uma ampulheta, é considerado por alguns estudiosos como o descendente do escudo em “oito” micênico, veremos mais adiante a polêmica em torno disso. Alguns estudiosos argumentam que o escudo Dipylon nunca existiu e que era uma forma puramente artística usada para denotar um herói ou uma cena heróica. Contudo, a consistência das representações nos vasos, e a existência de muitos modelos realísticos de terracota do século VIII a.C. encontrados no cemitério ateniense, o Cerâmico, sugerem que este escudo existiu e foi usado por algum tempo antes da introdução do hoplon. O escudo Dipylon é a peça do equipamento militar mais comumente representada em cenas de batalhas, paradas, e funerais na Arte do Período Geométrico Médio e Tardio. O escudo Dipylon é considerado o ancestral do escudo beócio. (imagem 2)

Imagem 2 Escudo Dipylon. Estatueta em bronze, Beócia, c. 700-650 a.C. (Atenas, Museu Nacional inv. no. 12831).

O escudo beócio era um escudo oval, com uma superfície curvada, provido de recortes laterais, e de contornos possivelmente derivados ou traduzidos do escudo Dipylon. O escudo beócio, como sendo uma peça do equipamento do guerreiro foi quase que unanimemente posto de lado por alguns estudiosos que o consideravam como sendo uma convenção artística extraordinariamente duradoura sem qualquer base na realidade, um escudo supostamente

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heróico. Essa objeção de alguns estudiosos quanto ao escudo beócio, foi convincentemente rebatida por Boardman como veremos mais adiante. (imagem 3)

Imagem 3 Escudo beócio. Hoplita com panóplia completa. Figura de bronze de Dodona, c. 510 a.C. (Staatliche Museen zu Berlin, misc. 7470).

A partir do século VII a.C. aparece um novo tipo de escudo: o hoplon (escudo redondo e côncavo), que segundo Snodgrass, era a principal arma do aparato do guerreiro hoplita (Snodgrass, 1991: 66). Feito de madeira e bronze (inicialmente só nas bordas, depois a cobrir todo o escudo), pesava algo por volta dos oito quilos, seu diâmetro médio era de aproximadamente 90 cm. Outra de suas características era o emblema, o stemma que decorava sua face externa. (imagem 4)

Imagem 4 “Vaso Chigi”: Vaso protocoríntio da metade do século VII a.C. A mais antiga representação de uma falange hoplítica. No centro, uma fileira de hoplitas a empunhar seus escudos redondos (hoplon) com o braço esquerdo marcha no ritmo marcado pelo auleta, à esquerda (Fonte: Hurwit, 2002: 15).

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Segundo comentamos anteriormente existe uma polêmica sobre a existência real do escudo Dipylon. De acordo com T.B.L. Webster (1955: 38-50), a forma do escudo Dipylon foi inspirada por representações descobertas de figuras de escudos em “oito” da Idade do Bronze, e para o autor este nunca existiu exceto na arte, e que foi “propriedade heróica”. A. Snodgrass (1964: 58-60), que têm sido o principal defensor da teoria de Webster, fez algumas modificações importantes e acrescentou novas evidências a essa discussão. Snodgrass interpreta alguns objetos (algumas contas, um pequeno relevo em pedra) que foram reunidos por P. Càssola Guida (1973: 38-44), como representações produzidas de escudos curvos micênicos verdadeiramente idênticos ao Dipylon. J. Boardman (1983: 15-36) revendo esta controvérsia uma vez mais, conclui que o escudo Dipylon, ao contrário do que Webster e Snodgrass acreditam, era real e completamente usual. O escudo Dipylon, segundo Hurwit (1985: 122), foi de fato um escudo real, mas este não era usual. Foi um meio de abrir um abismo cronológico (e talvez psicológico) entre os heróis da Idade Micênica e os aristocratas do Período Geométrico que o usavam. O escudo Dipylon os fazia sentirem-se como heróis. Certamente a conexão entre o escudo Dipylon e a Idade do Bronze não pode ter sido a mesma que Webster imaginou: altamente estilizado, o escudo Dipylon pode não ter nada a ver com o sinuoso escudo em “oito” (Lorimer, 1950: 15667). O tipo de escudo representado nos objetos que Snodgrass cita nunca aparece nas mãos de nenhum dos guerreiros representados na arte micênica (E. Vermeule e V. Karageorghis, 1982: 135). Mas existe outro objeto da Idade do Bronze que pode ter inspirado a forma do escudo Geométrico Dipylon: o machado duplo minóico-micênico. Muitas representações encontradas nos vasos reproduzem exatamente a forma do machado duplo com o gume voltado para fora, ocasionalmente espadas ou lanças eram carregadas horizontalmente sobre conchas igualmente sugerindo o cabo de um machado duplo (B. Schweitzer, 1971). É claro que se pode atribuir tudo isso a mera coincidência. Mas a equivalência visual é forte. Se desejássemos conservar o argumento de Webster e Snodgrass sob algum tipo de influência material da Idade do Bronze sobre a arte e cultura do Período Geométrico, as representações de machados duplos parecem as mais prováveis de terem sido responsáveis pela forma do escudo Dipylon do que o escudo em “oito” ou a forma rara da conta que Snodgrass cita (C.Mavriyannaki, 1983: 195-228). (imagem 5)

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Imagem 5 Desenho de machado-duplo. Minóico Tardio I. (Marinatos and M. Hirmer, Crete and Mycenae (London 1960) pl. 81).

O escudo Dipylon pode ser autêntico e extraordinário ao mesmo tempo: este pode ser um caminho da elevada vida diária, um modo de fabricação dos nobres do século VIII a.C. mais semelhante às figuras de suas lendas e épicos. Com escudos Dipylon em seus ombros, nobres do século VIII a.C. vão para a batalha ou para o ritual. Para Hurwit (1985: 125), as representações do Geométrico que incluem guerreiros Dipylon, então, não são narrativas mitológicas, elas não são imbuídas por uma aura heróica, e elas não são versões engrandecidas da vida cotidiana. Elas são representações de uma vida cotidiana contemporânea que tinha certamente sido engrandecida e “heroicizada”. O escudo Dipylon, para Hurwit (1985: 125), foi propriedade heróica é certo, mas próprio de aristocratas reais. Como suporte o escudo Dipylon era ótimo, mas como armamento, este provou ser inferior ao escudo redondo hoplítico. Representações do Período Geométrico que mostram o escudo Dipylon e o escudo hoplítico lado a lado sugerem que a adoção da nova variedade foi gradual, mas a transição parece ter sido completa pelo fim do século VIII a.C. O escudo Dipylon começou a desaparecer da arte depois de 725 a.C. porque este começou a desaparecer da vida. É provável, ainda, que nunca tenha desaparecido completamente. Exemplares verdadeiros devem ter sido dedicados em santuários ou templos ou em sepulturas e permanecido à vista por gerações. O escudo é visto de tempos em tempos na arte do século VII a.C. e muito mais frequentemente na arte do VI a.C. Depois de 700 a.C., em outras palavras, o escudo Dipylon realmente tornou-se o que Webster e Snodgrass argumentaram que sempre tinha sido:um escudo de arte significando identidade heróica, específica ou geral (Hurwit, 1985: 125). Documentos por muito tempo negligenciados evidenciam a facilidade com a qual o escudo Dipylon foi transformado de objeto real a puro símbolo, unicamente propriedade

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das narrativas heróicas pintadas pelos artistas, e sua evidência sugere que a transformação tenha começado igualmente depois do fim do Período Geométrico, quando presumivelmente, escudos Dipylon ainda existiam em algum número (Hurwit, 1985: 125126). Na pança de uma ânfora do Benaki Museum, hoplitas marcham firmemente para a direita. Seus escudos redondos negros são decorados com brasões brancos pintados. O cavalo é um emblema claro (um venerável símbolo aristocrático). Permanece visível no escudo do guerreiro muito no centro da parada um escudo Dipylon branco, no momento (ca. 710-700) uma peça obsoleta do equipamento militar, mas, contudo um potente símbolo. E em uma ânfora proto-ática de Hymettos em Berlim, pintada duas ou três décadas depois da ânfora Benaki, outro guerreiro, desta vez em combate, carrega um escudo hoplítico similarmente emblasonado com um escudo Dipylon (J.N. Coldstream, 1977). Carregar um escudo Dipylon na batalha ou igualmente em uma parada cerimonial faz muito sentido, assim como carregar um escudo decorado com um escudo Dipylon. Devemos pensar que fosse um herói qualquer guerreiro que se apresente carregando, a partir do século VIII a.C., um escudo Dipylon decorando seu próprio escudo. O emblema pintado na superfície do escudo hoplítico eleva-o e enobrece-o; o próprio escudo em si oferece proteção. (imagens 6 e 7)

Imagem 6 Escudo Dipylon emblasonado. Ânfora do Benaki Museurn (Benaki 7675). Geométrico Tardio II.

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Imagem 7 Escudo Dipylon emblasonado. Ânfora Proto-Ática de Berlim. (J. Böhlau, JdI 2 (1887) Taf. 5).

Segundo Hurwit (1985: 126), pintados bem próximos do período em que os escudos Dipylon estavam realmente em uso, os emblemas heráldicos dos escudos dos guerreiros do Benaki e Berlim sugerem não somente que o escudo Dipylon tenha sido simbólico e genuíno, mas também que depois do último quartel do século VIII a.C. e Arcaico, no campo de batalha, este simbolismo heroicizado permanece intacto, para ser explorado e intensificado pelos pintores de mito do Período Arcaico. O modo como os artistas arcaicos tratavam os escudos heróicos levantou uma questão interessante sobre a possível criação deliberada de um tipo de escudo supostamente heróico. Este seria o então chamado escudo beócio. Ele aparece muitas vezes como um escudo heróico e possui um brasão elaborado. Na arte, segundo Boardman (2002: 157-182), ele é pintado realisticamente. O escudo beócio era mais pesado que o escudo Dipylon, uma vez que sua estrutura de madeira seria coberta com couro ou metal. Existem algumas braçadeiras de bronze encontradas na Beócia que podem adaptar-se a este escudo, e este aparece carregado pelos soldados persas no século V a.C. Artistas persas e armeiros não podiam ter copiado uma invenção irreal dos artistas gregos. Segundo Boardman (1983: 27-33), os artistas fazem e tem suas convenções, mas uma coisa é argumentar que eles eram seletivos no que representavam e completamente outra coisa dizer que eles continuavam a representar peças do equipamento que estavam fora de uso há muito tempo, especialmente quando elas aparecem em cenas que eram por outro lado altamente inovadoras e meticulosas ao mostrarem detalhes

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contemporâneos (ver estatueta de bronze do hoplita com panóplia completa (imagem 3)). Além disso, se o escudo beócio existiu só na mente dos artistas como um símbolo marcando uma imagem como ‘heróica’, por que esses artistas pararam de aplicar este antigo costume às cenas heróicas no começo do século V a.C.? A evidência faz muito mais sentido se, muito depois da adoção difundida do escudo pesado, a minoria dos hoplitas continuasse a usar versões modificadas do equipamento leve o qual foi a norma antes do século VIII a.C. Além disso, o escudo beócio foi regularmente usado como um emblema de moeda na Beócia. Desde o século VI a.C., os beócios utilizaram como tipo monetário um escudo de forma oval, sobre uma superfície curvada, provida de duas aberturas laterais, o escudo beócio. Este escudo é o emblema da confederação beócia, segundo Lacroix (1958). Notaremos sua presença sobre o numerário batido sob o nome dos Boiôtoi durante a segunda metade do século IV a.C. (Head, 1881). Ele figura também, dentre outros símbolos, sobre as moedas de bronze do século IV a.C. que carregam, no anverso, uma cabeça de Héracles e, no reverso, uma clava (Head, 1881: 71). O reencontramos sobre as moedas fabricadas com os tipos de Alexandre o Grande e sobre outras moedas do século III a.C., onde ele acompanha a imagem de Posidão sentado, de Atena lançando o raio e de Posidão em pé (Head, 1881: 81, 83, 86). No século II a.C., os beócios ainda bateram moedas com o tipo do escudo (Head, 1881: 90). Por que esta arma de um tipo particular foi escolhida como emblema pelos beócios? Em 1881, em seu estudo sobre a moedagem da Beócia, B.V. Head emitiu a opinião de que o escudo escolhido como emblema pelos beócios tinha uma origem tebana e que ele deveria dizer respeito ao culto de Héracles, o herói nacional de Tebas (Head, 1881: 10). Esta interpretação foi mantida por Head no catálogo do British Museum (Head, BMC, Central Greece, p. XXXVI) e foi repetida depois por muitos estudiosos. Entretanto, uma outra solução foi adotada por Head na primeira edição de Historia Numorum, publicada em 1887. O eminente numismata lembra que o escudo devia ter um significado religioso, mas ele propõe dessa vez de reconhecê-lo como símbolo de Atena Itonia (Head, 1887: 291). O santuário dessa deusa, situado próximo a Coronéia, servia de lugar de reunião aos beócios, que lá celebravam em comum as festas das Pamboiotia. Na segunda edição de Historia Numorum, Head faz uma inserção de uma inscrição publicada por P. Foucart, acrescentando uma nova hipótese, segundo a qual se tratava do escudo de Ares (Head, 1911: 343). (imagem 8)

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Imagem 8 Moeda de prata de Tebas mostrando um escudo beócio. Séc. IV a.C.. (Boardman, J. (2002) The Archaeology of Nostalgia, p. 165).

Escudo de Héracles, escudo de Atena Itonia ou escudo de Ares? Lacroix coloca que podemos nos afastar sem hesitação da última dessas hipóteses, pois Dittenberger mostrou, já há muito tempo, que não existia nenhuma referência particular entre o culto desse deus e as festas Pamboiotia (Lacroix, 1958: 7). As outras duas hipóteses merecem ser examinadas mais atentamente. Infelizmente, temos poucas informações sobre o culto de Atena Itonia na Beócia. Uma lekáne de figuras negras (CVA, Great Britain, fasc. 2, IIIH e, pl. 7, fig. 4) mostra um cortejo que se dirige a um altar sobre o qual empoleira-se um pássaro. Atena está em pé atrás do altar; ela brande uma lança com a mão direita e tem um escudo na mão esquerda Como se trata de um vaso beócio, podemos pensar que o artista tinha representado as cerimônias das Pamboiotia e o ídolo de Atena Itonia. Mas, se admitimos essa interpretação, somos obrigados a reconhecer que a deusa porta um escudo de forma circular, não um escudo beócio. (imagem 9)

Imagem 9 Sacrifício a Atena Itonia. Lekáne beócia.

As moedas nos fornecem um pouco mais de informações. O culto de Atena Itonia é originário da Tessália e a deusa está figurada com uma lança e o escudo sobre o numerário da

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confederação tessaliana, mas os gravadores são contestados ao reproduzir um tipo arcaizante de Atena combatente muito espalhado em época helenística (Lacroix, 1949: 127). Mais interessante é a representação de uma deusa alada, lançando um raio, que decora as moedas de bronze batidas pelos beócios no século III a.C., mas a égide substitui, nesse caso, o escudo (Head, 1881: 83). Segundo Lacroix, não existe nenhum testemunho que nos autorize a considerar o escudo das moedas beócias como um atributo característico de Atena Itonia. Possuímos numerosas imagens de Atena portando um escudo, mas poucas vezes a deusa têm uma arma análoga àquela que decora as moedas da Beócia (Lacroix, 1958: 9). É também difícil de acreditar que o escudo de aberturas possa ser atribuído a Héracles. Vestido com pele de leão, Héracles combate habitualmente com o arco e a clava. Quando ele se serve de um escudo, é para lutar com armas iguais contra um adversário que porta também um escudo. Os preparativos do combate contra Cicno foram descritos pelo autor de o Escudo de Héracles: o herói veste o armamento completo do hoplita, as perneiras, a couraça, o elmo, o escudo. Os termos empregados pelo poeta indicam que se trata de um escudo redondo, mas as pinturas dos vasos parecem conceder a esse detalhe uma significação particular; Héracles lutando contra Cicno é representado tanto com um escudo redondo, como com um escudo beócio (Vian, 1945: 5). Que se tratasse de Ares, Atena ou de Héracles, chegamos cada vez mais a resultados enganosos. Homero não nos diz nada de muito particular sobre o armamento dos beócios. É só mais tarde que aparecerá uma referência a ele, na parte do Catálogo hesiódico que nos foi conservada pelo autor de o Escudo de Héracles, onde eram os beócios “que respiravam por cima de seu escudo”.

De outra parte, os chefes beócios citados na Ilíada não podiam

sustentar a comparação com os grandes heróis da epopéia. Uma passagem da Ilíada merece nossa atenção. Descrevendo o escudo de Ájax, Homero toma cuidado ao especificar que o autor desse escudo é Tíquio, originário de Hila (Il., VII, 219): “Como uma torre era o escudo que Ájax sobraçava, todo ele de couro e bronze, composto que fora por Tíquio, o mais hábil dos correeiros, que em Hila morada opulenta possuía. De sete couros de boi bem-nutridos o escudo fizera, e, com oitava camada, o cobrira com bronze batido”. A fabricação de uma arma desse gênero exigia seguramente uma habilidade excepcional na arte de trabalhar o couro. Quanto à pátria desse personagem, ela não é

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desconhecida. Hila é citada como uma cidade beócia, o que parece indicar que os artesãos beócios eram particularmente renomados como fabricantes de escudos (Lacroix, 1958: 13). Essas observações conduzem-nos a pensar que o tipo monetário adotado pelos beócios podia comemorar não somente sua glória militar, mas também a habilidade de seus artesãos. Entretanto, nos resta determinar as razões que levaram os beócios a escolher como emblema o escudo de aberturas laterais. Esse escudo tinha para os gregos um significado particular que é importante precisar. Os poemas homéricos trazem numerosas informações sobre a forma e sobre o emprego do escudo, mas se chocam com sérias dificuldades quando procuramos colocar essas informações em comparação aos dados da arqueologia. A abundante literatura que é consagrada a esse assunto revela a complexidade de um problema, que não chegamos a resolver de uma maneira satisfatória. Lacroix nos informa que W. Reichel representa os escudos dos heróis de Homero sob o aspecto de armas gigantescas cujos documentos creto-micênicos conservaram a lembrança. Outros estudiosos insistiram sobre a aproximação que podemos estabelecer entre as descrições do poeta e as representações que nos oferece a pintura dos vasos de estilo Geométrico (Lacroix, 1958: 14). Para designar o escudo, Homero se utiliza de dois termos principais, ασπις e σαχος cujo significado exato é singularmente difícil de determinar. Ασπις pode-se dizer tanto de um escudo redondo como de um escudo alongado. Σαχος aplica-se ao escudo de Ájax, que o poeta compara a uma torre, mas a mesma palavra é empregada, em um caso pelo menos, a propósito de uma arma circular. Entretanto, ασπις e σαχος , são diferentes em suas origens e parece provável que foram designadas primitivamente a armas de tipos diferentes. Σαχος é uma palavra indo-européia, que deve datar de uma época onde utilizava-se habitualmente o escudo alongado. Ele cedeu lugar a uma palavra de origem desconhecida, ασπις, e seu desaparecimento parece ligado ao do escudo alongado, geralmente substituído pelo escudo redondo (Lacroix, 1958: 14-15). Os documentos arqueológicos, segundo Lacroix (1958-15), atestam que o escudo redondo, já conhecido no fim do Período Micênico, era utilizado durante a segunda metade do século VIII a.C. Mas, a arma que era mais vezes figurada sobre os vasos de estilo geométrico era um escudo profundamente cavado, que era comparado a uma ampulheta. O escudo que dava um aspecto tão estranho à silhueta dos combatentes e dos condutores de carros, era o ancestral direto do escudo beócio. Escudo redondo e escudo alongado alternados sobre as

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pinturas dos vasos de figuras negras, sem que seja possível determinar em cada caso as razões que podiam levar o pintor a escolher um ou outro tipo (Lacroix, 1958: 15). Contudo, G. Lippold mostrou que os decoradores atribuíam de preferência o escudo beócio aos grandes personagens da epopéia (G. Lippold, 1909: 425). É suficiente citar aqui alguns exemplos presentes na cerâmica grega dos séculos VI a.C. e V a.C. Sobre a famosa ânfora do Vaticano (Beazley, 1951: 66), a simetria da composição, que mostra Ájax e Aquiles jogando, é sublinhada por dois escudos beócios, dispostos de uma parte e de outra. Notamos a curvatura do escudo de Ájax sobre uma ânfora da Filadélfia (Beazley, 1951: 68, pl. 30), onde o herói inclina-se para levantar o corpo de Aquiles. Sobre uma ânfora de Bolonha (Beazley, 1951: 69, pl. 32,1), ao lado de Ájax que se prepara para se lançar sobre sua espada, levanta-se um grande escudo beócio ornado de um gorgoneion. Reencontramos o escudo beócio sobre outra ânfora do Vaticano (Beazley, 1951: 74, pl. 33), onde uma mulher lamenta-se diante do corpo de um guerreiro morto, deitado sobre uma cama de folhagem. Esse escudo que evocava as proezas realizadas pelos heróis da epopéia podia servir de emblema; sua silhueta se desenha então como um episema sobre um outro escudo. Enfim, quando os habitantes de Salamina quiseram comemorar a lembrança de Ájax, filho de Telamão, eles simplesmente representaram sobre suas moedas um escudo beócio (Lacroix, 1958: 16). Mas isso não é suficiente para precisar a significação do escudo beócio. Ele convida ainda a examinar os materiais que o compõem e as particularidades de sua estrutura. A. J. Reinach (1909: 341) mostrou que uma pele de animal podia facilmente se transformar em arma defensiva: “É suficiente a estender no fim do braço para fazer uma espécie de escudo e a persistência com a qual o gesto é emprestado a Pallas Atena mostra a que seus adoradores deviam conservar por muito tempo esse modo de defesa. Afastando essa parte do carneiro e fixando-a sobre uma armação de madeira, obtinham esses escudos de couro que deviam, sem dúvida, ser de diversas peles as quais eles tinham dado seus nomes de sakos, laiséidon, byrsos, e aígis. Desses dois últimos somente o nome é bastante transparente para que possamos assegurar que o boi e que a cabra forneciam respectivamente a matéria-prima”. Esse procedimento permitia confeccionar os grandes escudos em “oito” ou em forma de semi-cilindro dos cretenses ou dos micênicos, porque essas armas tinham sido inutilizáveis se tivessem sido fabricadas de metal. As manchas que marcavam a pele do animal são claramente indicadas sobre os escudos pintados que decoravam os muros dos palácios de Cnossos e de Tirinto. Para as armas desse gênero, que atingiam quase o tamanho de um

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homem, feito necessariamente de peles de grandes dimensões, provavelmente de peles de touros (Lorimer, 1950: 136). O escudo de aberturas laterais assemelha-se ao escudo em “oito” dos micênicos tanto por sua forma como por sua estrutura, pois ele também é feito em pele de animal. G. Lippold mostrou que esta pele era fixada sobre um caixilho formado de duas travessas horizontais e de uma vertical. Estendendo a pele, exercia-se sobre as travessas uma tração que as obrigava a curvarem-se. Na parte comprimida entre as extremidades das travessas, o couro se curvava, dando assim à arma sua forma particular (Lippold, 1909: 415). A epopéia homérica oferece numerosas indicações sobre a estrutura do escudo e sobre os materiais que o compunham. É suficiente percorrer a lista de epítetos aplicados às palavras

ασπις e σαχος e de se transportar as descrições dos escudos para perceber que a pele de animal intervinha ao lado do metal na confecção da arma. Idomeneu, Il., XIII, 406: “...com se acolher sob o escudo redondo por todos os lados feito de peles de boi recobertas com bronze lustroso, de alto lavor, com dois fortes braçais colocados por dentro”. Heitor, Il., XIII, 804: “... o pavês sustentado na frente com muitos couros forjado e uma espessa camada de bronze”. Enéias, Il., XX, 275-276: “... que foi bater no meio do escudo redondo de Enéias, próximo da orla exterior, onde é fina a camada de bronze e a táurea pele, também mais delgada”. O escudo (ασπις ) de Sarpedão, que é obra de um ferreiro, é reforçado de múltiplas peles, Il., XII, 294: “Diante de si, logo o escudo redondo o guerreiro sustenta, todo de bronze batido, de bela feitura, trabalho de hábil bronzista que peles de boi colocara por dentro, por varas de ouro seguras em toda a extensão da orla grande”. E o σαχος de Ájax, executado por um célebre correeiro, é coberto de uma placa de metal, Il., VII, 222, 245: “De sete couros de bois bem-nutridos o escudo fizera, e, com oitava camada, o cobrira com bronze batido”; “... que foi no escudo terrível de Ájax encravar-se, de sete couros de boi, transpassando a camada de fora, de bronze”. Aqui ainda somos tentados a crer que não existe nenhuma distinção entre ασπις e

σαχος . Entretanto, a palavra σαχος devia designar primitivamente um escudo de pele, como indica a comparação com o sânscrito tvak, e a pele de animal é considerada pelo poeta como um elemento essencial, sobre o qual ele insiste em sublinhar a solidez de uma arma e o vigor do guerreiro que a maneja (Lacroix, 1958: 19). Quatro peles deviam ser sobrepostas em

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um σαχος τετραθελυµνον, como aquele de Teucro, Il., XV, 479: “Teucro obedece ao conselho, na tenda o arco, logo, deixando; põe sobre os ombros o escudo de quatro camadas de pele”, e calculamos até “sete peles de touros bem-nutridos” em uma arma excepcional como o escudo de Ájax (Il., VII, 220,222, 245, 266; XI, 545). A palavra “pele”, ρινος ou ρινον, pode ser suficiente para designar um escudo e às vezes o poeta determina que tratava-se de pele de boi (ρινοισι βοων). Il., XII, 263: “mas com os escudos de pele de boi protegidos”. O epíteto ταλαυρινος convém a um combatente como Ares, que faz prova de resistência portando seu escudo (Il. V, 289; XX, 78; XXII, 267; VII, 239). E o guerreiro terrível merece ser chamado 〉ινοτορος, “rompedor de escudos”, Il., XXI, 392: “Ares, que fura paveses”. Alguns termos indicam claramente a natureza da pele utilizada na fabricação da arma.

βοαγρια é empregada no sentido de “escudos” na Ilíada e na Odisséia (Il., XII, 22; Od. XVI, 296) e deve-se atribuir a mesma significação a βοεη em uma passagem onde o poeta descreve Heitor e Eneu marchando em combate: Il., XVI, 492 “Ambos, então, se adiantaram, com as largas espáduas envoltas em couros secos de boi, recobertos por fúlgido bronze”. A palavra βους deve às vezes ser entendida no sentido de escudo e esta significação, própria a epopéia, é nitidamente atestada em inúmeras passagens da Ilíada. No canto VII, Heitor exclamou dirigindo-se a Ájax: Il., VII, 237 “Tenho bastante experiência de como prostrar o inimigo. Sei sustentar meu escudo de pele de boi tanto à destra como à sinistra, que é o modo de sempre lutar com bravura”. No canto XII, os troianos que se preparavam a dar de assalto o campo dos gregos, avançavam “sobraçando seus escudos de couro” (Il., XII, 105) e, enquanto que um de seus chefes, Àsio, procura forçar a passagem que guardava os Lápitas, Polipetes e Leonteu, os exércitos aproximando-se da muralha: Il., XII, 137 “Contra a muralha bem feita, com grande alarido, avançavam os inimigos, que no alto os paveses redondos sustiam”. No canto XVI, o poeta descreve o enredo furioso em que se colocam ocupados gregos e troianos em torno do corpo de Sarpedão: Il., XVI, 633 “Do mesmo modo que ao longe ressoa o barulho dos golpes dos lenhadores, nos vales, quando árvores grandes abatem: na terra, assim, de amplas vias, soava o clangor da peleja, das armas brônzeas, dos largos paveses de couro bovino, e o ruído seco dos gládios, das lanças de dúplices pontas”. Para Lacroix tocamos aqui na solução do problema. Os estudiosos modernos admitem que os beócios deviam seu nome ao Boion, um maciço montanhoso do norte da Grécia, onde eles se estabeleceram no curso de suas migrações. Mas os antigos prenderam o nome dos

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βοιωτοι a palavra βους e as explicações não faltavam para explicar essa etimologia. Os espíritos maldosos viam no nome dos beócios uma alusão a sua lentidão de espírito. Outros interpretavam o nome da Beócia fazendo apelo a história de Cadmo e da bezerra que o conduziu ao local da cidade de Tebas. Outros ainda fizeram intervir a lenda de Boiôtos e de Aiolos, os gêmeos que Melanipe teve de Posidão. Por seu nome estar ligado manifestadamente, ao nome do bovino, compreendemos que os beócios podiam considerar o escudo em pele de boi como uma arma nacional. Adotando esse emblema, eles podiam de resto invocar as tradições relativas a Tíquio e a fabricação do escudo de Ájax. Mas é na etimologia do nome dos beócios que encontramos a razão principal que determinou a escolha do tipo monetário. O escudo dos beócios acha assim seu lugar nessa categoria de tipos monetários que os numismatas designam sob o nome de “tipos falantes” e que é abundantemente representado na numismática grega (Lacroix, 1950: 5). A alusão teria sido sem dúvida mais fácil de compreender, se os beócios estivessem contentes em colocar sobre suas moedas a imagem de um bovino. Mas eles preferiram adotar um emblema guerreiro, que atestava sua ligação a gloriosas tradições e que simbolizava o poder de sua confederação. A partir do século VII a.C. aparece um novo tipo de escudo: o hoplon. O hoplon ou aspis era a peça central do equipamento do hoplita. O elemento mais importante de seu armamento defensivo. O hoplon era um pedaço de madeira arredondado, côncavo, de cerca de um metro de diâmetro, seu tamanho exato dependia um pouco do comprimento e da força do braço daquele que o carregava. A espessura, o tipo de madeira empregada e o peso real do escudo não são realmente conhecidos, pois a maior parte das peças centrais feitas em madeira desapareceram. Mas seu peso foi estimado em cerca de sete quilos (Donlan e Thompson, 1976: 341). Levado pelo hoplita em armas, era um exercício considerável. Sua superioridade sobre os modelos anteriores em couro de boi documentados para a Idade do Ferro grega, era a maior proteção contra os golpes de lança e de espada clássicas que davam ao guerreiro a possibilidade de aproximar-se mais de seu inimigo. Em sua origem,

segundo Hanson

(1990:99), o escudo era cercado de uma faixa de bronze sobre a borda externa a fim de evitar que esta corrompesse ou estilhaçasse. No século V a.C., as referências literárias e os modelos arqueológicos sugeriram que, como os antigos escudos homéricos, a maior parte de sua superfície era recoberta por uma fina folha de bronze, tendo muitas vezes a forma de um emblema. Isso pouco acrescentou à capacidade de proteção do escudo, mas se o polido do

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bronze podia deslumbrar, ou mesmo assustar o adversário, isso conferia ainda mais ferocidade e ardor aquele que o usava. O πορπαξ (porpax) e a αντιλαβη (antilabé) distribuíam o peso do escudo sobre o braço esquerdo em lugar de concentrá-lo somente sobre a mão e o punho. Essas inovações permitiam segurar na mão um objeto tão incômodo durante a batalha. Contudo, seu manejo apresentava sérios inconvenientes para os homens sobre o terreno. Os movimentos de todos os corpos estavam comprometidos pois eles tinham que manter o braço esquerdo, o mais desajeitado e o mais fraco para a maior parte dos homens, hirto e levantado na altura da cintura, o cotovelo dobrado e o antebraço reto, paralelo ao solo, a mão fortemente crispada sobre o punho. Se o hoplita se curvava ou escorregava, a borda inferior do escudo raspava o solo, o que acontecia realmente, segundo Hanson (1990:100), pois a altura do hoplita não ultrapassava cerca de um metro e sessenta e seis. O equilíbrio também estava comprometido, pois era difícil acocorar-se ou mesmo inclinar-se. Depois que a batalha já havia começado, não se conseguia mais manejar o escudo satisfatoriamente, pois havia a necessidade do braço inteiro para sustentar seu peso elevado. Não se conseguia colocar o escudo sob nenhum ângulo que permitisse proteger o lado direito do homem, e falanges inteiras foram tomadas sem poder fazer nada por um ataque de flanco pela extremidade direita, onde a última fileira de soldados não tinha absolutamente nenhuma proteção sobre seu lado desprovido de escudos (Xenofonte, Helênicas, IV, 2, 22 e V, 13). Segundo Cartledge (2002: 255), o aforismo de data desconhecida que cita a mãe espartana exortando seus filhos a voltar da batalha com, ou sobre seu escudo, revela igualmente a fixação e o incômodo intrínseco do escudo. O escudo do hoplita não podia ser transportado de maneira isométrica, e o gasto de energia considerável requeria limitar a distância que as tropas podiam aguentar o esforço (Donlan e Thompson, 1976: 341). Mesmo com as empunhaduras para mão e para o braço, a única maneira para o soldado de infantaria conseguir sustentar o escudo por mais que alguns minutos em uma batalha era fazendo-o repousar de tempos em tempos sobre o ombro esquerdo. Isso era possível devido à extrema concavidade do escudo. O rebordo do escudo fazia quase um ângulo reto, resultando em uma cratera antes que uma forma plana. Essa forma de cratera ajudava a desviar os golpes e oferecia uma proteção ao antebraço, ela permitia que o peso elevado do escudo repousasse sobre o ombro.

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Outros tipos de escudo de menor tamanho e de menor peso, como por exemplo o macedônico, o romano e o persa, eram desprovidos desta concavidade radical, talvez porque não existisse a necessidade de aliviar o braço. Uma vez que os dois exércitos estavam combatendo, resultava em geral em uma competição de empurrões, e podemos imaginar que o hoplita fazia repousar naturalmente todo o peso do escudo sobre seu ombro esquerdo enquanto se apoiava sobre os homens diante dele. Talvez, segundo Hanson (1990:102), essa concavidade tenha constituído a verdadeira revolução em matéria de armamento, e não a dupla empunhadura para mão e braço como afirmado muitas vezes. Ela permitia que um elemento do equipamento de uma envergadura desproporcional fosse carregado mesmo por um homem de pequeno porte (sessenta e seis quilos) e permitia encontrar a superfície ideal para criar um eixo, com sua força, entre as costas dos homens que estavam diante dele. Um escudo de hoplita quase completamente restaurado do Museu do Vaticano confirma que um homem podia suspender a borda interior em seu ombro esquerdo (Hanson, 1990: 102-103). Vemos muitas vezes esta postura nas pinturas dos vasos onde os homens faziam repousar seu escudo sobre o ombro quando estavam imóveis e quando combatiam. Esta importante função da borda do escudo do hoplita pode explicar seu desaparecimento mais tarde, em época helenística, no final do século IV a.C. e nos séculos III a.C. e II a.C., quando os soldados de infantaria penduravam seu escudo, menor, no pescoço a fim de pegar com as duas mãos a sarissa, ou lança, que eram mais longas e mais pesadas. A corrente em volta do pescoço e o peso menor não requeriam que eles sustentassem o escudo com o ombro. As histórias de exércitos transmitidas de pai para filho (Plutarco, Morália, 214 F17), de armamentos pendurados em cima da lareira ancestral (Aristófanes, Acarnenses. 57, 278), de escudos expostos centenas de anos mais tarde nos santuários (Pausânias IX, 16,3; II, 21,4; I, 15,4; Diodoro XVII, 18) são todas plausíveis, pois a maior parte dos hoplitas não estavam posicionados na primeira fileira e não submetiam seu equipamento ao terrível choque inicial onde o ferro da lança chocava-se em cheio com o escudo, a couraça, o elmo e as perneiras. Em compensação, para alguns homens que afrontavam o exército inimigo diante da falange, existia a probabilidade de que seu escudo, assim como sua lança rachasse ou caísse em pedaços sob o impacto. Vemos os escudos arrebentados nas pinturas dos vasos e em relatos na literatura. Existem exemplos de exércitos inteiros reequipados depois de uma batalha ou apressados em trocar seu armamento, o que indica que um número não sem importância de escudos eram quebrados ao choque inicial (Diodoro XVIII, 39,2).

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IV. Armas em contextos de culto

Desde sempre chamou a atenção o fato de que muitas das armas da antiguidade que chegaram até nós procedam de contextos arqueológicos definidos por seu caráter ritual. Assim, as armas aparecem como uma importante categoria de objetos nos achados das sepulturas em muitas culturas da Proto-História européia. De igual modo, muitas peças do equipamento militar procedem de santuários, de depósitos votivos, de contextos fluviais ou lagos (Gabaldón Martínez, 2005: 10). No mundo grego a maior parte das armas que conhecemos, datadas entre os séculos VIII a.C. e V a.C., procedem dos santuários. Graças às fontes escritas sabemos que muitas dessas peças foram levadas aos lugares de culto como oferendas aos deuses, no geral como dízimo do botim de guerra, ainda que seja certo que a presença de armas em lugares de culto pode também corresponder a outras circunstâncias (assaltos militares, santuários como armazéns de armas, etc.) (Gabaldón Martínez, 2005: 10).

V. Armas e santuários

Para entender porque muitas armas foram dedicadas em santuários consideramos oportuno fazer algumas anotações sobre o significado e simbolismo das armas no mundo grego antigo, especialmente as que caracterizavam o combate hoplítico. O interessante trabalho de van Wees (1998) intitulado “Greeks bearing arms. The state, the leisure class, and the display of weapons in archaic Greece” através de fontes iconográficas faz um estudo do uso social das armas e sua exibição pública desde o período geométrico até época arcaica. Portanto, para começar temos que levar em conta que o grego da Antiguidade valorizava suas armas por muitas razões: militares, sociais, simbólicas, econômicas. O equipamento hoplita (se era metálico) era caro como já tivemos oportunidade de assinalar. Além disso, o custo das armas indica que a participação na guerra era algo restritivo no seio da comunidade (Bowden, 1993: 47). Contudo, no período arcaico muitos levavam um equipamento mais leve e barato formado por peças de outros materiais, como o couro (Storch, 1998: 4). Além disso, com o passar do tempo e com as transformações na prática de combater, fundamentalmente a partir do século IV a.C. o armamento se aligeira e se faz mais acessível. Com efeito, segundo Gabaldón Martínez, as armas eram também apreciadas por sua beleza e por ser símbolo de prestígio ou um emblema pessoal ou do grupo. Mesmo agora, a

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decoração de equipamento militar não era só uma questão de estética; não há que duvidar que se procurava combater, tanto em combates singulares como em formação, com as melhores armas, as mais luxuosas e chamativas, que davam a quem as portava um sentimento de superioridade e de orgulho, sem descartar as finalidade de caráter tático (Gabaldón Martínez, 2005: 112). Em muitos povos da antiguidade as armas não eram só um instrumento de luta; seu valor simbólico e protetor tem sido sempre muito valorizado. Assim, decoravam-se e adornavam-se as armas com diferentes motivos, tanto de caráter apotropaico como emblemático (Gabaldón Martínez, 2005: 112). Assim, adornavam-se os escudos com motivos, como o rosto frontal da Górgona, o Tifão, Fobo (personificação do medo), um trisquele, uma águia, um grande olho, que tinham, além de um destino decorativo, um sentido apotropaico e serviam para inspirar medo, isto é para petrificar simbolicamente o adversário (em especial o temível rosto da Górgona). As armas dos povos ibéricos ou celtibéricos também levavam decorações simbólicas (Quesada, 1990). Já nos escudos das estelas tartésicas é possível, talvez, falar de escudos como elementos de identidade ou emblemas (Bendala, 1987). Muitos povos da atualidade decoram seus escudos, elmos e lanças com distintos motivos como símbolos de identidade, de prestígio ou de idade, elementos protetores ou para serem utilizados em rituais distintos, como danças iniciáticas (Feest, 1980: 17), etc. Desta maneira, entre os Lotuxo, povo africano situado no sudeste do Sudão, o escudo e o elmo eram os sinais mais óbvios de identidade tribal (Spring, 1993: 120-121). Entre os Zulus da época de Shaka (1816-1828) se distinguiam os regimentos pela cor de seus escudos. Assim, os regimentos veteranos tinham escudos brancos com um ou dois pontos negros; todos os guerreiros jovens levavam escudos negros e os guerreiros inferiores portavam escudos vermelhos (Spring, 1993: 128). Os dois textos que melhor nos informam a respeito dos emblemas nos escudos dos gregos são: a obra de Ésquilo, Os sete contra Tebas com a descrição dos distintos emblemas dos heróis desta tragédia , e o clássico de Chase (1902), que passa em revista o testemunho literário, reunindo representações de duzentos e sessenta e oito motivos diferentes de emblemas de escudos, originalmente pintados nos vasos. Em um grande número de vasos de figuras negras e, sobretudo, de figuras vermelhas aparecem guerreiros portando escudos decorados com emblemas. Os motivos que levavam os escudos podiam ter um sentido protetor, ser emblemas heráldicos de um personagem ou de uma família, como é o caso do escudo do tebano Epaminondas que levava um dragão por emblema. Mais tarde, utilizaram-se

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símbolos ou letras na frente dos escudos para identificar o exército de uma polis. Assim, os escudos lacedemônios levavam um lambda; Sicione um sigma. O tridente era o símbolo de Posidão e de Mantinéia e a clava de Héracles o dos tebanos. No santuário de Olímpia foram encontrados alguns emblemas de bronze com esses motivos, especialmente Gorgoneia (Mallwitz e Hermann, 1980: 108-111, lam. 70-72). Por outro lado, na Ilíada pode-se reconhecer os heróis por suas armas (van Wees, 1996: 32). Por exemplo, é possível distinguir Diomedes por seu escudo, seu casco de alta cimeira e seus cavalos (Il., V, 180-183), Aquiles é conhecido por sua magnífica armadura (Il., XI, 798-800). Os epítetos, tão freqüentes no poema, se referem a miúdo ao armamento; os aqueus de formosas grevas (Il., VII, 41). Lemos o seguinte texto referido ao armamento da Pátroclo (Il., XVI, 130): “Pátroclo o bronze brilhante cingiu, obediente ao Pelida. As caneleiras, primeiro, lavradas, nas pernas, ataca, belas de ver, por fivelas de prata maciça ajustadas; em torno ao peito coloca, depois, a couraça magnífica do veloz Eácida, cheia de ornatos em forma de estrela; lança nos ombros a espada de bronze com cravos de prata, e um grande escudo sobraça, maciço e de largos contorno; o elmo fino lavor na cabeça admirável coloca, no qual, por modo terrível, penacho de crina ondulava; torna, por fim, de uma lança bem forte, de fácil manejo.” A riqueza do armamento oferece uma visão de espetacularidade ao mesmo tempo que distingue a quem o porta. Os próprios epítetos, ainda que, com sentido poético, que acompanham as armas são bastante expressivos. Assim, o herói homérico leva uma couraça cintilante e uma cimeira com um penacho “terrível”. O adjetivo “terrível” ratifica o efeito que produziam no campo de batalha os cascos com seus penachos, recordando aos cavalos, ainda que não se combatesse com eles. Segundo S. Mitchell (1996: 90) os guerreiros entravam na batalha com seus penachos como galos com as cristas levantadas. Do registro arqueológico procedem muitas armas decoradas que confirmam o gosto grego pela ornamentação de peças do equipamento militar. A maioria delas procedem de lugares de culto. A. Snodgrass (1964: 63-64) sugeriu que os escudos de Olímpia seriam selecionados entre os mais ricos e mais elaborados do botim.

VI. O escudo nas oferendas

A respeito das peças do equipamento militar achadas nos santuários, as armas que aparecem mais são os escudos, cascos, couraças, grevas e outros elementos de proteção, lanças, espadas, pontas de flecha, arreios de cavalo. Segundo as fontes escritas e os dados

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arqueológicos, parece que determinadas peças eram especialmente destinadas aos santuários (Gabaldón Martínez, 2005: 115). O escudo, segundo os textos clássicos, era a peça do armamento que mais se dedicava aos deuses. De fato, em santuários como Olímpia e Delfos foram encontrados numerosos escudos, principalmente do período arcaico. Em Olímpia foram encontrados cerca de 280 escudos (Jarva, 1995: 111). Lonis (1979: 158-160) atribui esta predileção pelo escudo a seu significado especial. Com efeito, o escudo, tinha um elevado valor simbólico e era decorado com motivos emblemáticos e apotropaicos. Desde épocas anteriores esta arma defensiva era altamente considerada, podendo falarse inclusive de hoplolatria (Reinach, 1909-1910). Desta maneira podemos citar o chamado escudo em forma de oito micênico (Cassola Guida, 1973) ou o escudo beócio que tornou-se distintivo da Beócia, como podemos apreciar nas moedas (Sekunda, 1994:46). Dentro do simbolismo do escudo devemos assinalar seu significado no âmbito funerário. O escudo é uma insígnia que honra o defunto. E consagrar o próprio escudo depois da morte em combate era considerado uma honra para o defunto (Gabaldón Martínez, 2005: 115). O escudo foi por excelência a arma defensiva da falange grega. O escudo hoplita (aspis) se caracterizava por sua forma circular, geralmente de uns 90 centímetros de diâmetro. Era fabricado com lâminas de madeira e sua face externa podia ser pintada ou coberta por uma lâmina delgada de bronze (Blyth, 1982). Se tratava de um escudo embrasado: o antebraço passa por uma braçadeira ou porpax situada no centro do escudo e a mão agarra uma correia periférica ou antilabe. Com este escudo o guerreiro só dispunha de um dos braços para manejar suas armas ofensivas e seus flancos ficavam praticamente descobertos. Esse lado se protegia em formação cerrada pelo escudo de um companheiro. Esse valor protetor não só individual como também do companheiro devia outorgar ao escudo um valor simbólico especial e tático. Em uma passagem de Plutarco (Moralia 220 A 2) pergunta-se ao espartano Demarato porque cai em desgraça o que joga fora o escudo mas não abandona as couraças e os cascos. Ele responde que o escudo protege a toda formação, é para o bem do grupo, não só o individual. A formação cerrada e poder proteger-se com o escudo do companheiro era uma garantia. Bem o sabia o historiador e militar Tucídides (V, 71): “(...) cada soldado, por medo, trata de cobrir o mais que pode seu lado descoberto com o escudo do homem que está alinhado a sua direita e pensa que a apertada união de uma formação bem cerrada constitui a máxima proteção”. Além disso, devemos levar em conta

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que o escudo é uma arma defensiva ativa (Quesada, 1997: 483) já que a diferença das armas que protegem “vestindo” o corpo (couraça, casco, grevas, etc.) o escudo pode ser movido por seu portador; empurrando-o numa pressão coordenada (othismos) podiam abrir e romper as estreitas filas inimigas. O escudo era, portanto, a arma defensiva emblemática da tática hoplítica, a que protege a vida do companheiro imediato e a do próprio portador. O escudo não podia ser abandonado por uma questão de honra, mas também porque não era tão simples em um momento de perigo correr e desprender-se do escudo com emblema (Hanson, 1989: 27). Contudo, o fato de não abandonar o escudo no campo de batalha era um símbolo de coragem do guerreiro. Esse valor simbólico do escudo pode explicar sua consideração para ser uma das armas mais dedicadas às divindades. Os escudos, podiam ser ofertados como parte do botim, e dos despojos coletados no campo de batalha (Gabaldón Martínez, 2005: 117). São muitas as fontes escritas que mencionam a oferenda de escudos capturados no lugar onde se desenvolveu o enfrentamento bélico. Em Olímpia, por exemplo, foram achados numerosos fragmentos de escudos de época arcaica, entre eles numerosas braçadeiras de bronze decoradas geralmente com motivos mitológicos (Kunze, 1950). No santuário também foram recuperadas várias lâminas de bronze que deviam estar fixadas, como emblemas, no corpo de madeira dos escudos. Tal é o caso de uma Górgona alada armada (Osborne, 1996: 172, fig. 43). (imagem 10)

Imagem 10 Escudo de lâmina de bronze de Olímpia, século VI a.C. Cabeça de Górgona, com patas de leão e rabo de peixe

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O escudo podia também ser dedicado, como oferenda pessoal, depois de cumprir sua vigência ou se estragasse (Gabaldón Martínez, 2005: 117). Por outro lado, os escudos oferecem um bom campo epigráfico que possibilita que se pudesse inscrever as circunstâncias pelas quais foram consagrados em um lugar de culto (Gabaldón Martínez, 2005: 117). Em alguns casos, as fontes falam de escudos de ouro que adornavam os templos. Assim, Pausânias (V, 10,4) fala de um escudo de ouro com a Górgona esculpida colocada no frontão do templo de Zeus de Olímpia; o escudo leva uma inscrição indicando quem o ofereceu Pritchett (197, 278), aponta que os gregos às vezes com os lucros obtidos com a venda do botim faziam dedicações em forma de escudos de metal precioso, em tamanho miniatura. Finalmente, os escudos podiam ser encontrados nos santuários por outras razões não diretamente relacionadas com a esfera bélica. Assim, seguramente se guardavam os escudos das chamadas corridas de armados (hoplitodromoi), que consistiam em corridas a pé portando um escudo. Pausânias (V, 12,8) nos conta que no templo de Zeus em Olímpia havia vinte e cinco escudos de bronze para a corrida dos armados. Os escudos eram marcados com cifras indicando seu peso exato e para assegurar que ninguém corria com um escudo mais leve (Sekunda, 1994: 24). Neste tipo de competições (agones) participavam os jovens ou efebos que se adestravam na arte da guerra. Também se realizavam danças armadas nas quais se utilizava o escudo, como as chamadas danças pírricas (Pritchett, 1985:61-63), que além de ter um indubitável componente ritual, como rito iniciático, serviam como treinamento no manejo das armas.

Conclusão

Neste capítulo não pretendíamos fazer um estudo que tratasse exclusivamente do escudo como instrumento de guerra, pois este já foi fonte de estudos tecnológicos e táticos. Nossa intenção foi de enquadrá-lo em um âmbito cultural mais amplo. Certamente, o armamento não está só relacionado com a luta. Ainda que grande parte de seu valor simbólico e de seu aspecto formal (incluindo sua decoração) estejam intimamente relacionados com o espaço bélico. Por outro lado, o significado da guerra na cultura grega não pode medir-se só por sua freqüência, por sua intensidade, por seus aspectos técnicos, como o armamento, ou inclusive por sua aparição nas referências literárias. Seu verdadeiro significado deve ser buscado em

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seu estreito vínculo com quase todas as expressões da cultura helena, incluindo sua religiosidade e sua estrutura social, assim como, seu poder simbólico e suas implicações. A guerra é, portanto, um fenômeno social que têm, como outros aspectos de uma sociedade concreta, componentes sociais, religiosos, econômicos e políticos. As armas tinham para o homem grego um especial significado, não só pelo seu custo ou porque com elas se protegia e lutava no campo de batalha, mas também porque o equipamento militar do guerreiro grego, especialmente do hoplita, o definia e o identificava. Este vínculo do combatente com suas armas pode explicar em parte porque não era muito freqüente consagrar aos deuses o armamento pessoal. Aos santuários eram levadas principalmente as armas tomadas no campo de batalha, os despojos do inimigo. As armas eram colocadas nos templos e pórticos para deixar constância do agradecimento aos deuses e como metáfora da vitória. As armas tinham também um sentido simbólico e formavam parte dos aspectos religiosos e rituais. O escudo, como vimos, era a peça do armamento que mais se dedicava aos deuses. De fato, como Lonis (1979: 158-160) destacou, o escudo tinha um elevado valor simbólico e era decorado com motivos emblemáticos e apotropaicos. Dentro do simbolismo do escudo podemos assinalar seu significado no âmbito funerário, o escudo era uma insígnia de honra ao defunto. Seu valor protetor dentro da falange, não era só individual mas também coletivo, isto devia outorgar ao escudo um especial valor de proteção simbólico e tático. Como vimos, existem inúmeros testemunhos seja de época arcaica, clássica ou helenística, que mostram como os gregos se valiam do escudo em diferentes níveis de atuação. Seja na batalha, como armamento defensivo, para deslumbrar e assustar o adversário e conferir ao seu portador mais ferocidade e ardor. Seja como objeto emblemático, impregnado de funções mágicas ou religiosas. O escudo como emblema heráldico evocava as proezas realizadas pelos heróis da epopéia, evocava tradições gloriosas e simbolizava o poder de uma confederação.

Armamento real ou em miniatura, o escudo era dedicado nos

santuários como oferenda ao culto dos heróis associado à divindades femininas. Nos rituais de iniciação para venerar as deusas armadas, protetoras do domínio militar, os escudos em miniatura possuíam um valor simbólico quando ofertados. Portanto, ao considerarmos os escudos sob diferentes aspectos como seu valor como equipamento de proteção na guerra, seu valor econômico (era muito custoso), seu valor social (identificava e dava status ao hoplita), seu caráter religioso (oferendas nos santuários, no campo de batalha e nos rituais de iniciação), seu poder apotropaico e mágico (emblemas fixando energias divinas e invocando

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proteção), podemos entender melhor seu caráter, sua natureza, contribuindo assim para melhor entendermos a sociedade grega.

Referências Bibliográficas

Fontes Escritas

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MILITARIZAÇÃO DOS CONTATOS ENTRE GREGOS E ITÁLICOS NO FINAL DO SÉCULO V° A.C.: O CASO DA NECRÓPOLE DO GAUDO DE POSEIDONIA-PAESTUM (CAMPÂNIA, ITÁLIA)

A. Pollini Université de Haute Alsace, Mulhouse, França

Introdução à história de Poseidonia

Segundo Estrabão (V, 4, 13), geógrafo grego da época de Augusto, a cidade grega de Poseidonia foi fundada por colonos vindos de Sybaris, ela mesma uma colônia situada na atual Calábria e habitada por Gregos de origem aquéia, que emigraram da Acaia, região situada no noroeste do Peloponeso. O indício mais importante utilizado para comprovar a veracidade do relato de Estrabão é a análise das mais antigas inscrições encontradas na cidade, que foram escritas em dialeto aqueu (ARDOVINO, 1980: 50-66; ARDOVINO, 1993: 287293; ARENA, 1996: 41-61). A pesquisa arqueológica permitiu também o estabelecimento de uma datação para a fundação da cidade em torno do ano de 600 a.C. Os mais antigos vestígios arqueológicos encontrados no centro urbano, nas principais necrópoles da cidade, assim como nos santuários extra urbanos de Agropoli, ao sul, e da Foz do Sele, ao norte, são todos contemporâneos e podem ser datados do primeiro quarto do século VIo a.C. (GRECO, 1987: 476). Seguindo o relato de Estrabão, a história da cidade foi bastante movimentada, pois esta foi tomada por Lucanos, um povo itálico de origem samnita. Novamente, a pesquisa arqueológica permite corroborar a informação dada pelo geógrafo. A análise dos vestígios depostos nas tumbas, assim como a existência de pinturas murais como decoração de algumas dessas tumbas, mostra um ritual funerário diferente daquele praticado pelos colonos gregos (PONTRANDOLFO, 1987a: 241; PONTRANDOLFO e ROUVERET, 1996: 159-183; PONTRANDOLFO e ROUVERET, 1992: 17). A partir do material encontrado nas tumbas, esse novo ritual funerário pode ser datado dos anos finais do Vo século a.C. e, por conseguinte, nos permite afirmar que a conquista da cidade grega pelos Lucanos se situa nesse período. Finalmente, o terceiro momento importante de Poseidonia é a transformação da cidade, que passa a se chamar Paestum, em colônia de direito latino, em 273 a.C., descrita por Estrabão na mesma passagem, mas também por autores latinos, principalmente Tito Lívio (Periochae, 14). Os vestígios arqueológicos que confirmam a passagem da cidade em colônia latina são numerosos e a reestruturação do centro urbano constitui sem dúvida o mais visível,

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com o deslocamento do centro político da antiga ágora, com a obliteração do ekklesiasterion (GRECO e THEODORESCU, 1983; GRECO e THEODORESCU, 1996: 21-36), em direção ao sul e a construção do fórum romano e de um comitium (TORELLI, 1987: 33-115; TORELLI, 1999). Este artigo tem por objetivo analisar certos vestígios arqueológicos provenientes da necrópole do Gaudo, no território de Poseidonia, e que apresenta sinais eloquentes de militarização da cidade em uma época um pouco anterior à conquista da cidade pelos Lucanos no final do Vo século a.C.

Populações itálicas da região de Poseidonia

Um discurso sobre a história militar implica necessariamente uma referência ao Outro, a quem a sociedade estudada se opõe. A análise das fontes arqueológicas das populações indígenas da região da Magna Grécia se enriqueceu enormemente nas últimas décadas. Sem querer retomar aqui essas pesquisas que constituem um campo de estudos por si só, nosso objetivo é somente de apontar para as modalidades de instalação dessas populações e de sua interação com os Gregos de Poseidonia. Um esboço das populações itálicas da região de Poseidonia se faz ainda mais necessário pois os colonos não se estabeleceram em uma zona deserta: o conceito de éremos chora no seu sentido absoluto, ou seja, de terra desabitada ou deserta, não se aplica aqui. A expressão éremos chora é utilizada no contexto colonial do ocidente somente do ponto de vista estritamente grego: o termo faz referência a uma região desprovida de população grega e não a uma zona deserta, sem população. Existe, então, uma associação entre terra deserta e região não ocupada por Gregos. Para estabelecer um breve panorama da situação das populações indígenas, é interessante começar pelos núcleos instalados na zona que se tornará em seguida o centro urbano de Poseidonia. A pesquisa arqueológica mostrou a existência de importantes traços de estabelecimentos e de necrópoles indígenas tanto no que virá a ser o centro urbano de Poseidonia como no seu território (GRECO, 1992: 63-65 ; LONGO, 1999: 368). Na zona do centro urbano, sem que possamos identificar claramente os setores de ocupação, diversos objetos de fabricação indígena foram encontrados: vasos geométricos do tipo de Sala Consilina, fíbulas, ânforas de impasto do tipo de Pontecagnano, entre outros. Mesmo que essa lista não seja muito longa, esses indícios são suficientes para atestar uma ocupação regular indígena na região da implantação da colônia grega de Poseidonia. Algumas tumbas datadas da idade do Ferro também foram encontradas no território de Poseidonia, sobretudo um

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pequeno núcleo de tumbas com um ritual de incineração próximo à fonte do rio Capodifiume. O ritual atestado nessa necrópole pode ser comparado àquele presente ao norte do Sele, sobretudo em Pontecagnano. De fato, a região próxima de Poseidonia é muito importante para o conhecimento das sociedades itálicas da idade do Ferro, especialmente os grandes centros de Pontecagnano e de Sala Consilina, situados respectivamente ao norte e a leste da cidade grega. Os colonos de Poseidonia estavam certamente em contato com essas populações e o objetivo desse trabalho é justamente de apresentar uma importante mudança nas formas desse contato. As pesquisas sobre as populações antigas da Campânia evidenciam um desenvolvimento complexo e não seguem uma evolução homogênea em todas as áreas. Primeiramente, é interessante sublinhar a pluralidade cultural dessas populações: Œnotrios, Oscos, Samnitas, Campanos e Etruscos (D'AGOSTINO, 1987: 23-39 ; CERCHIAI, 1987: 41-53 ; LA TORRE e COLICELLI, 2000 ; BUGNO, MASSERIA, e POCCETTI, 2001). Sem aprofundar a questão da diferenciação étnica, devemos lembrar que as populações não gregas em contato com os colonos de Poseidonia são, elas também, o resultado de uma matriz étnica mista, que combina diversos elementos em diferentes níveis, em função da localização geográfica e da cronologia. Apesar dessa diversidade de populações, e sem querer dar uma definição étnica rígida ou homogênea, escolhemos, à maneira dos autores gregos e segundo o uso corrente da bibliografia acadêmica atual, reagrupá-las nos termos genéricos de itálicos ou de indígenas. Um parâmetro adicional deve ser considerado para compreender as relações entre populações no contexto colonial. Se a região ao sul do Sele, que marca a fronteira norte da cidade, conheceu a colonização grega de Poseidonia, as terras ao norte desse rio sob hegemonia de populações etruscas, mas que não são autóctones. De fato, o elemento etrusco impõe sua hegemonia na Campânia entre o final do século VII° e o início do século VI° a.C. (D'AGOSTINO, 1987: 30.), relativamente pouco tempo antes da chegada dos Gregos em Poseidonia. Por conseguinte, os habitantes de Poseidonia entram em contato com populações variadas e que apresentam graus diferentes de assimilação ao elemento etrusco. Para toda a área ao norte do Sele, fala-se assim de populações etrusco-campanas para tentar evidenciar esse aspecto híbrido e variado. Esse caráter misto é perceptível sobretudo na justaposição de inscrições itálicas e etruscas, assim como na utilização dos alfabetos etrusco ou grego para transcrever a língua osca (CERCHIAI, 1987: 42-43).

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Pontecagnano, centro etrusco-campano

Pontecagnano parece ter tido um papel central para essas populações. Este centro apresenta uma ocupação ininterrupta da 1ª idade do Ferro até a época histórica, ao menos até o final do século VI° a.C. Observa-se uma organização bem articulada da ocupação do setor, com uma definição dos espaços funerários e sacros, assim como dos lugares de agregação do habitat (CERCHIAI, 1987: 44-45). Tal distribuição espacial é um índice importante que nos permite sugerir uma grande capacidade de organização social. Essa capacidade, por seu lado, indica que a diferença entre os níveis de desenvolvimento das populações de Pontecagnano e dos colonos gregos não era muito grande; essa diferença é sem dúvida muito menor que aquele que podemos supor em relação a certas populações do interior das terras, em contato com outras colônias gregas. O reconhecimento de um nível elevado de organização das populações etrusco-campanas do norte do Sele induz a uma percepção diferente dos Gregos em relação a esse povo. As relações de fronteira dos habitantes de Poseidonia com outros centros caracterizados por uma forte matriz etrusca parecem diferentes daquelas com outras populações instaladas a leste da cidade grega. A organização social de Pontecagnano é perceptível no seu alto grau de desenvolvimento, em particular se consideramos a existência de um certo número de tumbas « principescas », que evidenciam uma riqueza notável (D'AGOSTINO, 1977). No estado atual das pesquisas, nenhum outro testemunho tão espetacular foi encontrado nos sítios indígenas da região de Poseidonia. Por outro lado, a existência de um porto em Pontecagnano certamente também favoreceu o desenvolvimento econômico e social deste centro assim como favoreceu os contatos com Gregos, e não somente aqueles vindos de Poseidonia. O período de apogeu da economia desse centro se situa na segunda metade do século VII° a.C., justamente às vésperas da chegada dos colonos gregos em Poseidonia. Esses indícios mostram que a atividade econômica de Pontecagnano se distinguia claramente daquela dos centros indígenas do interior. Tal situação provavelmente marcou os novos habitantes do sul do Sele ao ponto de escolherem a localização da sua colônia em função da existência do centro de Pontecagnano, tanto em relação às possibilidades de intercâmbio econômico, quanto às dificuldades de estabelecimento em uma área já ocupada por uma população tão desenvovida. A partir da metade do século VI° a.C., Pontecagnano apresenta diversos sinais de declínio, por meio dos dados provenientes tanto das necrópoles, quanto do habitat e dos santuários, que mostram um número mais reduzido de estruturas datadas na segunda metade do século VI° a.C. (CERCHIAI et alii, 2005: 208). Esses sinais são ainda mais visíveis a partir

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da derrota dos Etruscos em Cuma em 474 a.C. e do consequente enfraquecimento de sua hegemonia em toda a região da Campânia. O centro de Pontecagnano sofre, desde o final do século VI° a.C., uma diminuição do seu papel de federativo na região também por causa do desenvolvimento do centro etrusco de Fratte, assim como do apogeu da cidade grega de Poseidonia. Entretanto, o testemunho fornecido pelas tumbas e pelos santuários, sobretudo o santuário meridional dedicado a Apolo, atesta a manutenção de um certo poderio econômico e de uma organização social de pelo menos um grupo de seus habitantes (CERCHIAI, 1987: 45 ; CERCHIAI et alii, 2005: 193-214). Esse centro conhece um verdadeiro declínio somente na segunda metade do século V° a.C., certamente depois da derrota de Cuma, e conforme um fenômeno observado igualmente em Fratte e em Poseidonia na mesma época. A retomada de uma ocupação mais intensa de Pontecagnano se verifica em meados do século IV° a.C. (CERCHIAI et alii, 2005: 209-213) mas, dessa vez, a influência cultural de Poseidonia sob hegemonia lucana parece ser muito maior, como mostra a presença da cerâmica de Poseidonia, inclusive vasos do ateliê de Asstéas e de Python, nas necrópoles dessa época. Finalmente, é a criação da cidade romana de Picentia em 268 a.C. que marca o golpe decisivo sobre esse centro etrusco-campano. Apesar de Pontecagnano apresentar sinais de enfraquecimento em meados do século VI° a.C., de uma maneira mais geral, pode-se observar uma intensificação dos intercâmbios entre Gregos e indígenas a partir do final do século VI° e início do século V° a.C. Da mesma forma que A. Mele (MELE, 1996b: 18), A. Pontrandolfo (PONTRANDOLFO, 1996: 37) sublinha o papel de Poseidonia depois da derrota e da destruição de Sybaris. Ao invés de Crotone ou de Laos, as cidades que poderíamos supor como herdeiras « naturais » do poderio de Sybaris, Poseidonia foi candidata ao controle do mundo indígena do interior. No final do século VI° a.C., a cidade reforça seu papel de pivô entre as cidades gregas de origem aquéia, especialmente Metaponto, e o mundo não grego da Itália meridional: aquele dos Œnotrios e dos centros campanos da planície de Salerno e Cápua. Esta influência de Poseidonia em relação à Itália meridional é perceptível pela presença de um material, ou produzido em Poseidonia, ou inspirado por este, em diversos centros indígenas, sobretudo a Fratte (PONTRANDOLFO, 1996: 37-39).

Outros centros etruscos ao norte do Sele

As tumbas de Fratte (GRECO e PONTRANDOLFO, 1990) representam um das melhores manifestações da influência de Poseidonia na Campânia. Esta influência grega é visível não

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somente no comércio, mas também nos contatos de natureza cultural, até mesmo do âmbito privado. A descoberta em 1963 de uma inscrição em alfabeto aqueu em uma pequena olpè datada do primeiro quarto do século V° a.C. na tumba número 26 é bastante significativa. Além da simples presença de um material cerâmico grego em uma tumba de Fratte, esta inscrição faz referência às relações pessoais entre pessoas de diversas etnias. A. Pontrandolfo (PONTRANDOLFO, 1987b: 58-59) interpreta o texto e restitui duas frases: « Apollodoros ama Ksyllas / Vulcas sodomiza Apollodoros » e « Onatas ama Niksos / Ybricos amou Parmynios ». O estudo da onomástica mostra que ao lado do nome grego Apollodoros, encontramos Ybricos e Parmynios, que são nomes totalmente ausentes do repertório grego; e Vulcas se refere certamente a um nome etrusco. Além da origem étnica dos personagens, esta olpè indica o consumo do vinho e a prática da pederastia, pois essa forma cerâmica é associada ao symposion grego. Como sublinhou A. Pontrandolfo (PONTRANDOLFO, 1987b: 6263), esta olpè inscrita é importante porque ela atesta a existência de relações de reciprocidade que ultrapassam as simples trocas comerciais. De fato, as primeiras importações de material cerâmico grego em ambiente etrusco-campano datam do segundo quarto do século VIII° a.C. e demonstram um comércio intenso entre esses centros itálicos e as primeiras colônias gregas estabelecidas nas costas do mar Tirreno (GRAS, 1985: 486-488). Além de Pontecagnano e de Fratte, outros centros etruscos ao norte do Sele chamam a atenção, em particular Arenosola e Eboli (PONTRANDOLFO, 1996: 37 ; GRECO, 1987: 474475). O primeiro é de fato o centro itálico mais próximo do Sele, situado a apenas quatro quilômetros ao norte do rio. Durante as escavações dos anos 1929 a 1931, 139 tumbas foram encontradas e datadas, na sua maioria, entre o século VII° e o início do século VI° a.C. Uma análise mais recente do material disponível (HORSNAES, 1992: 9-16), e que inclui igualmente o material deposto em onze tumbas encontradas por P.C. Sestieri no início dos anos 1950, propõe um arco cronológico mais amplo para a utilização dessa necrópole: desde a segunda e terceira fases da idade do Ferro até a época histórica, entre 700 e 575 a.C. Depois de uma interrupção de diversas gerações, o material encontrado em outras seis tumbas permite de datá-las do século III° a.C. Esta necrópole não pode ser comparada às descobertas de Pontecagnano, pois estas são muito mais simples e não possuem a mesma riqueza. A maior parte do material encontrado é de produção local, mas mostra sinais de influência dos modelos gregos e fenícios (HORSNAES, 1992: 11). Contudo, graças ao progresso da pesquisa arqueológica em Pontecagnano, é possível fazer a comparação entre os dois centros e afirmar que ambos pertencem à mesma esfera cultural. Dada a falta de informações sobre Arenosola, somente a

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retomada das pesquisas arqueológicas, com as técnicas atuais e em uma área mais vasta permitirá uma restituição mais fiável de sua ocupação e de sua organização espacial e social. Entretanto, uma observação pode ser feita em relação à cronologia da utilização da necrópole de Arenosola. Se ligarmos o contexto histórico dos dois centros de Arenosola e Pontecagnano e se tomando por base a cronologia estabelecida pelo material disponível atualmente, podemos perceber as consequências do estabelecimento da colônia de Poseidonia. Dentre os diversos acontecimentos da primeira metade do século VI°, não podemos definir qual foi o determinante, mas há uma grande possibilidade que a fundação de Poseidonia tenha contribuído de forma decisiva para o declínio relativo de Pontecagnano e para o abandono da necrópole de Arenosola. A comparação com as consequências das fundações coloniais gregas sobre os centros indígenas nas regiões de Sybaris e de Metaponto, para citar apenas as mais conhecidas, permitem compreender melhor o caso de Poseidonia e a área ao norte do rio Sele. Como se pode ver nos exemplos das outras duas cidades aquéias, o resultado quase imediato da chegada dos Gregos é o deslocamento das populações itálicas da costa em direção ao interior: é o caso de Amendolara e de Francavilla Marittima na região de Sybaris e de Incoronata na região de Metaponto. Para as cidades do litoral do mar Jônio, o deslocamento dos indígenas não acarreta necessariamente o final do intercâmbio comercial e cultural. Ao contrário, a cerâmica grega encontrada nos centros indígenas do interior demonstra a intensidade desses intercâmbios. Essa comparação nos leva a propor a hipótese que o desenvolvimento de Fratte, centro mais distante de Poseidonia que Arenosola e Pontecagnano, possa ser o resultado mais visível para as populações itálicas da fundação da colônia grega. Esta questão é muito complexa e não temos elementos suficientes para sustentar qualquer explicação para o abandono de Arenosola e para a diminuição relativa da importância de Pontecagnano. Entretanto, a hipótese que a fundação de Poseidonia tenha tido um impacto importante deve ser considerada. Região da Campânia no século Vo a.C.

A pesquisa arqueológica no território de Poseidonia identificou poucos traços de ocupação durante o século Vo a.C. Por conseguinte, as análises relativas a esse período são bastante reduzidas e nos informam relativamente pouco sobre a evolução da ocupação das terras: quase todos os sítios arqueológicos que mostram sinais de ocupação durante o Vo

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século a.C. já apresentavam atividades durante a segunda metade do século anterior, mas é importante ressaltar que diversos sítios utilizados durante o século VIo a.C. não apresentam nenhum vestígio datado do Vo século, mas serão reocupados durante o século IVo a.C. No estado atual da pesquisa arqueológica, não possuímos nenhum elemento de resposta para esse “vazio” relativo durante o século Vo a.C. Como esses lugares apresentam vestígios importantes datados do século IVo a.C., não podemos falar de abandono total e eles indicam que diversos elementos deveriam ser ainda visíveis. Contudo, a história da cidade de Poseidonia e da região da Campânia, principalmente com a conquista dessa região pelos Lucanos, nos permite propor uma hipótese para explicar essa diminuição de frequentação. Desde meados do século Vo a.C. a Campânia é palco de diversos conflitos (PONTRANDOLFO e D'AGOSTINO, 1987; DE JULIIS, 1996: 230-238). Em primeiro lugar, percebe-se, no início do século, uma vontade de expansão do domínio dos Etruscos na região, marcada principalmente pela batalha de Cuma em 474 a.C. Essa batalha opôs os Etruscos, que atacaram por mar, a Cuma, que foi obrigada a pedir ajuda para a grande potência grega ocidental da época, Siracusa. Como relata Diodoro Sículo (XI, 51), a frota de Hieron de Siracusa conseguiu vencer os Etruscos ao largo de Cuma. Duas consequências dessa batalha podem ser observadas: um enfraquecimento relativo dos Etruscos na região do mar Tirreno e o respectivo aumento da influência de Siracusa nesta região, inclusive com transferência da ilha de Pithecussae (atual Ischia) para o domínio direto do tirano de Siracusa e a instalação de um posto militar siracusano (Estrabão, V, 4, 9). Em seguida, o apogeu do sítio de Fratte (nos arredores de Salerno) indica a existência de uma população etrusca sempre muito ativa na zona próxima à Poseidonia, mesmo depois da derrota de Cuma. Outro indício de uma forte presença itálica próxima à Poseidonia é dado pela existência de uma tumba, dita “tumba principesca”, em Monte Pruno, em Bellosguardo (SCHEICH, 1995), na região a leste de Poseidonia. Esses são alguns dos elementos mais importantes, mas os sinais de contatos entre Poseidonia e as populações itálicas são numerosos e datados antes da conquista lucana. É preciso mencionar também a presença da população campana, de origem osca, mas diferente dos Samnitas (D'AGOSTINO, 1974). Ao menos desde 438 a.C., os Campanos possuem uma organização política suficientemente desenvolvida para atrair a atenção de Diodoro (XII, 31, 1). Essa população conquista uma parte considerável da região, inclusive Cápua em 423 a.C. (Tito Lívio, IV, 37, 1-2 e XXVIII, 28, 6) e Cuma em 421 a.C. (Diodoro Sículo, XII, 76, 4), cujos habitantes se refugiaram em Nápoles. Os Campanos conquistam a cidade que os Etruscos não conseguiram alguns anos

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antes: Cuma é de fato a primeira colônia grega da Itália meridional a passar para a dominação de uma população itálica. Finalmente, os Lucanos, povo de origem samnita, deviam estar no interior das terras próximas à Poseidonia desde meados do século Vo a.C. e constituíam provavelmente uma ameaça constante. Progressivamente e desde essa época, os Lucanos conquistam um vasto território que vai até o mar Jônio e o testemunho de Polyeno (II, 10, 2 e 4) a respeito da ameaça que eles representavam para a nova colônia pan-helênica de Thourioi, fundada em 444 a.C. é a prova da presença e da força militar dessa população desde meados do século. Em resumo, podemos enumerar as diversas etnias em conflito na região no final do século V° a.C.: Gregos, Etruscos, Campanos e Lucanos; esses últimos parecem na verdade constituir o elemento militarmente mais consistente. Deve-se sublinhar que, além da ocupação de Poseidonia, os Lucanos também conquistaram Laos, colônia grega situada no litoral Tirreno da atual Calábria, no início do século IVº a.C.: provavelmente em torno de 390 a.C. de acordo com Diodoro de Sicília (XIV, 101, 3) (ASHERI, 1999: 365). Sua expansão continua até pelo menos meados do século, quando eles chegam a ameaçar diversas cidades das costas do Tirreno e do Jônio, até Thourioi e Taranto. Um traço importante da comunidade lucana é justamente seu aspecto militar. Sua organização era bastante eficaz durante os tempos de guerra, com um governo central para comandar o exército (MELE, 1996a: 68). Em meados do século IVº a.C., os Lucanos possuíam uma cidade com atributos de capital em Petelia (atual Strongoli), no espaço anteriormente sob controle de Crotone. Depois de 356 a.C., com a separação dos Bruttii, que ocupavam a maior parte da região da atual Calábria, o território dos Lucanos se reduz no sul, chegando somente até as margens do rio Laos. Em compensação, os Lucanos se estendem até o rio Bradano, que faz a divisão entre as atuais regiões da Basilicata e da Puglia. No que diz respeito à história da região, as guerras do final do século IVº e do início do século IIIº a.C. marcam as contradições da situação política, territorial e étnica da Itália meridional, sobretudo quando se observa as múltiplas oposições e alianças entre os povos itálicos (Lucanos, Samnitas, Bruttii), os Gregos (em especial aqueles de Taranto e de Nápoles) e os Romanos. Finalmente, esses últimos ganham as guerras e conquistam essa região durante o segundo quarto do século IIIº a.C. A dedução de Poseidonia, que se transforma na colônia de direito latino Paestum, data de 273 a.C. Enfim, a cidade que constituía a principal rival de Roma no sul da Itália, Taranto, é conquistada em 272 a.C.

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Um artigo recente de M. Crawford (CRAWFORD, 2006) questiona em grande parte essa explicação. Seu argumento é que as transformações políticas e militares, a partir da conquista de Poseidonia pelos Lucanos, em seguida pelos Romanos, não têm um impacto direto e imediato nos monumentos e vestígios visíveis ainda hoje. Esse especialista afirma que as mudanças perceptíveis pela pesquisa arqueológica são o resultado de um processo de longo termo e que intervém indiretamente. Por conseguinte, M. Crawford nega a possibilidade de distinguir claramente as diferentes fases de vida de Poseidonia (as conquistas lucana e romana). Sem entrar nos detalhes do debate dos seus argumentos, é importante ressaltar os resultados da pesquisa arqueológica em Poseidonia dos últimos 30 anos, o que a faz uma das cidades mais bem estudadas do mundo grego. Apesar da continuidade de utilização da maioria dos monumentos do centro urbano da cidade e das necrópoles e santuários do território entre as épocas de hegemonia grega e lucana, vale sublinhar que podemos apreender uma transformação importante no modo de organização e ocupação da cidade. Os vestígios oferecidos pelas tumbas lucanas são eloquentes a esse respeito.

Mercenários na cidade: o testemunho da necrópole do Gaudo

Neste contexto de diversas populações com ambições na Campânia, a necrópole do Gaudo (CIPRIANI, 2000), no território de Poseidonia, representa um indício claro da participação dessa cidade nos conflitos da região durante o século Vo a.C.. A necrópole do Gaudo (n° 47) se situa a aproximadamente um quilômetro de distância ao norte da muralha da cidade de Poseidonia, ao longo da estrada que ligava o centro urbano ao santuário dedicado a Hera, na Foz do Sele, e às populações itálicas instaladas ao norte desse rio. A mais antiga tumba grega dessa necrópole é datada entre o final do século VIo a.C. e o início do seguinte; podemos identificar analogias entre seu ritual funerário (objetos depostos e cadáver incinerado) e os contextos funerários da região etrusco-campana. Desde o início do século Vo a.C., essa necrópole mostra sinais de uma utilização estável e regular que dura até o final do século IVo. Entretanto, deve-se notar a presença de dois modos diferentes de utilização dessa necrópole: até meados do século Vo, as deposições e o material deposto nas tumbas não se distinguiam do ritual praticado nas necrópoles urbanas de Poseidonia, situadas em torno da muralha da cidade. O mais provável é que se trate aqui de uma necrópole destinada a um pequeno núcleo de população que não participava da vida política da cidade, visto o número reduzido de deposições assim como a curta distância que a separa do centro urbano e da

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necrópole urbana de Arcioni (n° 50), de utilização contemporânea. Os cidadãos tinham o hábito de serem enterrados nas necrópoles mais próximas da muralha da cidade e poderiam ter sido enterrados na necrópole de Arcioni. Por outro lado, o grande cuidado praticado na construção das tumbas assim como o fato notável de pintar o interior de algumas delas indicam uma utilização por um grupo pertencente a um estrato social composto de privilegiados, suficientemente abastados para oferecer sepulturas caras para seus defuntos. As pinturas atestadas aqui se limitam a cores únicas ou a bandas coloridas; nenhuma apresenta desenho, seja de motivo vegetal ou de elementos figurados. Duas hipóteses mais verossímeis são propostas para explicar o fenômeno particular desta necrópole: estamos defronte de um grupo de ex-cidadãos marginalizados depois de uma querela política, ou então se trata de um núcleo de população de origem itálica, que não possuía a cidadania de Poseidonia (CIPRIANI, 2000: 211). Tendo em vista a proximidade com os centros de cultura etrusco-campanos e o grande número de sinais de interação cultural entre Gregos e não Gregos em Poseidonia, somos tentados a privilegiar a segunda hipótese (assim como CIPRIANI, 2000). É importante notar que os sinais de anomalia da necrópole do Gaudo não se limitam ao século Vº a.C., mas perduram durante o século IVo a.C.. Aqui, mais que um simples sinal de interação cultural entre comunidades de diferentes etnias (grega, etrusca e campana), as tumbas do Gaudo atestariam a presença de populações não Gregas instaladas no interior do território da cidade, tendo o direito de enterrar seus defuntos nas terras sob a autoridade direta da cidade e tendo um estatuto econômico privilegiado. Este mesmo tipo de interação cultural pode ser afirmado em Poseidonia com o caso da necrópole de Tempa del Prete (n° 62) e, em particular, com o exemplo da tumba do Mergulhador (ROUVERET, 1974; GRECO, 1982; POLLINI, 2004). A segunda fase de utilização da necrópole do Gaudo, durante a segunda metade do século Vo a.C., é caracterizada por um ritual funerário completamente divergente. O material deposto não se resume mais à austeridade precedente, que se limitava a um número reduzido de vasos, mas passa a conter uma grande quantidade de vasos no interior de cada tumba, assim como armaduras e armas depostas junto com o defunto. O material destas tumbas se refere, em grande medida, à tradição que se encontra nos centros indígenas do interior, sobretudo aqueles situados na Campânia, em particular de populações da região do litoral meridional (CIPRIANI, 2000: 211). A importante presença de armas, a análise de alguns esqueletos indicando indivíduos provavelmente empenhados em atividades militares, assim como a provável datação dos afrontamentos entre Poseidonia e a cidade grega vizinha de Velia (Estrabão, VI, 1, 1), tudo isso faz pensar em um núcleo de mercenários que teriam

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lutado ao lado dos cidadãos de Poseidonia. A passagem de Estrabão não contém nenhuma informação quanto à datação dos conflitos entre as duas cidades gregas vizinhas, mas a fundação de Velia é datada em 540 a.C. e foi feita com o acordo dos cidadãos de Poseidonia, segundo a interpretação corrente do passo de Heródoto (I, 163-167) que descreve as condições para a fundação desta cidade (GRAS, 1991; AMPOLO, 1993; GRECO, 2000; Velia, 2005). Como os conflitos entre as duas cidades devem ser situados em certo tempo depois da fundação de Velia e antes da conquista lucana de Poseidonia, um dado momento na segunda metade do século Vº a.C. constitui a melhor data possível e que concorda com essas duas condições.

Conclusão

A confrontação das fontes escritas e da cultura material da região da Campânia desde o século VII° até o final do século V° a.C. permite certo número de propostas. Em primeiro lugar, podemos reforçar o impacto da fundação da colônia grega de Poseidonia para os centros itálicos da região. Não somente os indígenas instalados na área que será ocupada pela cidade grega são subjugados pelos novos colonos, mas os centros localizados além do território sob dominação direta dos gregos também sofrem consequências drásticas, como o total abandono de Arenosola e um relativo declínio de Pontecagnano. Entretanto, os intercâmbios comerciais e culturais entre populações de etnias diferentes florescem. Num segundo momento, de forma progressiva durante grande parte do século V°, diversas populações se opõem em conflitos cujos resultados têm grande impacto na região. Cuma passa sob o controle do Campanos, os Etruscos perdem progressivamente sua influência e os Lucanos constituem a principal ameaça para as cidades gregas do sul da Itália. Neste contexto de grandes conflitos, relatados pela tradição literária, podemos observar uma mudança importante no ritual funerário de uma importante necrópole do território de Poseidonia, com indícios claros de uma grande militarização de parte de sua população. Com base nessa confrontação entre fontes escritas e arqueológicas, podemos afirmar que, em casos particulares como o exemplo da necrópole do Gaudo, mesmo se a cultura material não nos permite identificar de forma precisa um acontecimento específico, é possível estabelecer relações diretas entre certo contexto histórico e os vestígios arqueológicos.

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ANEXOS

Fig. 01: Mapa da Magna Grécia: colônias gregas do sul da Itália. © Elaboração A. Pollini.

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Fig. 02: Mapa do território de Poseidonia-Paestum no século Vº a.C. © Elaboração A. Pollini a partir de um fundo da NASA.

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Fig. 03: Necrópole do Gaudo, tumba 174. Couraça e capacete depostos na tumba. Diversos elementos demonstram o estatuto privilegiado do defunto: traços de pintura branca, espada típica dos membros da cavalaria e um strigillum (utilizado pelos atletas para tirar o óleo depois da prática esportiva). © Missão arqueológica franco-italiana de Poseidonia-Paestum.

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PLATÃO E O DEBATE SOBRE A REFORMA MILITAR ATENIENSE

Gabriele Cornelli Filosofia-UnB

Rodrigo Batagello Filosofia - FCH/UNIMEP

Introdução: algumas anotações historiográficas

Tema que sempre esteve presente nos manuais de História, o estudo de história da guerra perpassa praticamente toda a produção historiográfica ocidental – muitas obras da historiografia grega e latina se destinaram à análise das causas e às explicações sobre o desenrolar das guerras (DUCREY, 1999: 9). Não menor foi a influência deste tema na literatura: a primeira obra literária da tradição ocidental é, justamente, o canto homérico sobre as batalhas de Tróia. O helenista Victor Davis Hanson explorou, em sua obra intitulada Por que o Ocidente venceu – Massacre e cultura – da Grécia ao Vietnã, o desenvolvimento do modelo militar ocidental e as razões de sua hegemonia sobre os outros modelos (HANSON, 2002: 628). Segundo o autor, esta hegemonia encontra seus principais fundamentos em determinados traços culturais, os quais ele julga “exclusivos” da tradição ocidental e determinantes para a “letalidade singular da cultura ocidental em guerra quando comparada com outras tradições” (HANSON, 2002: 9).

Muito embora algumas das perspectivas do autor sejam bastante

controversas (o próprio autor adianta alguns possíveis problemas no prefácio da obra), seu trabalho tem o mérito de demonstrar que a guerra é um signo importante para a compreensão da cultura ocidental. O reconhecimento da dimensão sociológica, antropológica e religiosa das práticas militares no mundo antigo provocou uma profunda revisão no modo como os historiadores passaram a abodar esses eventos. Sobre a historiografia contemporânea da guerra, por exemplo, Ducrey afirma que nos últimos cem anos foi possível observar essa gradual mudança de postura entre os estudiosos,

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mas ela se intensificou após a Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, as pesquisas sobre as guerras e sobre os fenômenos militares realizadas nos últimos tempos ultrapassam os limites estreitos impostos pelos temas tradicionalmente vinculados à história da guerra - a investigação das causas, a reconstituição topográfica, dos itinerários e cronologia, enfim, à reconstrução técnica e minimalista de determinadas guerras e batalhas - e que propiciavam ao tema uma leitura estritamente “militarizada” (DUCREY, 1999: 10). Esta mudança foi particularmente significativa para os estudos clássicos. Ao fazer um balanço da influência dos historiadores militares sobre os estudos da guerra na Grécia antiga, Hanson ressalta que aqueles especialistas pecaram por produzir leituras totalmente equivocadas das práticas militares antigas. Estas abordagens - de acordo com ele, “heranças da geração de 1914” - fragmentaram e acondicionaram em compartimentos estanques as experiências bélicas antigas. Para os historiadores daquela geração, a história da guerra deveria ser a história da estratégia, da logística, da tática e das armas, ou seja, deveria ser uma história das técnicas militares (HANSON, 1993: 10). O predomínio dessa perspectiva proporcionou a desvinculação da compreensão do fenômeno militar e dos estudos e quadros teóricos construídos para analisar os conjunto de outras práticas sociais. Tecendo comentários sobre estas limitações que pesaram sobre a compreensão da guerra na Grécia antiga e, em particular, referindo-se àquelas leituras e estudos que pretenderam descrever uma Grécia belicosa, Yvon Garlan aponta que uma das explicações para a difusão de tal perspectiva decorre das distorções produzidas por “questões documentais” (GARLAN, 1994: 50). Segundo o autor,

o homem grego que nos é familiar [...] é o de Atenas e, em menor grau, de Esparta da época clássica, que se viu empenhado em vastos recontros de caráter imperialista (GARLAN, 1994: 50).

Neste sentido, Hanson argumenta que as fontes que nos chegaram sobre o período clássico retratam uma escalada de violência que é própria apenas dos anos da Guerra do Peloponeso. O autor também entende que os excessos (como os eventos ocorridos em Córcira, por exemplo) e as características que marcaram os confrontos deste período não eram a regra, mas devem ser compreendidos como a exceção (HANSON, 1993: 5). Ainda de acordo com ele, “Esparta e Atenas eram, para empregar um clichê, sociedades atípicas”, na medida em que ambas, em função de suas estruturas peculiares, não

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eram (no período clássico) totalmente dependentes do trabalho agrícola e, portanto, não estavam submetidas às regras “da batalha hoplita, que era agrária na configuração e na prática” (HANSON, 1993: 5). De outro modo: os confrontos empreendidos entre atenienses e espartanos ocorreram segundo uma estrutura peculiar, que fugia totalmente daquela que provavelmente marcou as batalhas em outras regiões da Grécia Antiga. E diante destes problemas, qualquer tentativa de estabelecer generalizações a partir destes casos tão singulares, como foram o de Atenas e de Esparta, deve ser colocada em perspectiva. Pois,

Todas estas limitações, de direito ou de fato, ajudam-nos a compreender que a omnipresença da guerra não significa de forma alguma que a totalidade da Grécia tenha estado permanentemente a ferro e fogo (GARLAN, 1994: 51).

Segundo Ducrey (1999: 277), um dos primeiros trabalhos a iniciar este processo de revisão e reorientação historiográfica sobre os fenômenos militares na Grécia foi o de Lorimer, intitulado The Hoplite Phalanx with special references to the poems of Archilochos and Tyrtaeus. De acordo com Detienne, ao relacionar documentos arqueológicos e fontes literárias, Lorimer abriu campo para uma série de discussões sobre os impactos causados pelo surgimento da falange hoplita na estrutura social grega (DETIENNE, 1985: 120). Entre as discussões mais importantes, destacam-se aquelas que investigam a relação entre a adoção deste modelo de organização militar e a própria organização das póleis gregas (DETIENNE, 1985: 120). O fenômeno da guerra, na medida em que vai deixando de ser objeto quase que exclusivo de especialistas militares, passa a ser avaliado em relação a outras práticas culturais e estruturas sociais. A partir deste contexto é que se deve avaliar, por exemplo, o surgimento de obras que se tornaram referência, tais como Problèmes de la Guerre en Grèce Ancienne, coordenada por Jean-Pierre Vernant em 1968. Seguindo essa tendência, os estudos mais recentes têm buscado novos enfoques metodológicos, de modo que novos problemas e perspectivas estão sendo desenvolvidos e estão alimentando o trabalho de muitos pesquisadores (DUCREY, 1999: 274). Para apontar esta realidade, a análise de um conjunto bibliográfico que tratava apenas da temática da guerra na Grécia clássica permite afirmar que: −

os estudos buscam compreender a prática da guerra como uma forma de expressão de uma cultura (HANSON, 1998);

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investigam como os fenômenos militares se articulam com outras formas de expressões culturais, como a religião e a arte, por exemplo. (JAMESON, 1993);



buscam encontrar espaços de interação que possibilitem compreender a dinâmica que rege as relações de mútua determinação entre a organização do sistema militar e as outras estruturas sociais. Para exemplificar, poderíamos citar os estudos que tratam das interações entre a estrutura militar e o sistema educacional das cidades (WHEELER, 1993). Além disso, a possibilidade de lançarmos um olhar mais amplo para os problemas

envolvendo as práticas militares e o fenômeno da guerra no mundo antigo, permite que se explore problemas que surge no limite (na realidade sempre muito tênues) das diferentes áreas do conhecimento. E a abordagem destes problemas, necessariamente, depende da colaboração entre os diferentes campos do saber.

O sistema militar ateniense em debate

Vários autores afirmam que após a o final da Guerra do Peloponeso, Atenas se viu tomada por “uma mentalidade defensiva” (OBER, 1985). Para os atenienses, o século IV a.C. foi profundamente marcado por crises políticas em diversos âmbitos. A derrota para os peloponésios foi amarga e, associada ao golpe oligárquico, produziu cisões graves entre diferentes facções políticas no interior de Atenas (STRAUSS, 1989). O horizonte que emoldurava essas tensões era o da necessidade de reestruturar a pólis em suas diversas dimensões. Orientados por essa necessidade de restabelecer os fundamentos da pólis, os participantes das assembléias travaram longas discussões sobre os mais variados assuntos. Contudo, um assunto específico deve ter sido de peculiar interesse e objeto de imensos debates:

a necessidade de

se

consolidar

um

projeto

de

reorganização

militar

(CHEVITARESE, 1997; OBER, 1985). Gravitando no entorno do problema central, uma série de debates corolários se disseminaram. E através deles é que podemos divisar o modo como os textos de Platão guardam fragmentos daquele contexto. Um dos temas corolários trataria dos requisitos necessários para que um cidadão assumisse o posto de estratego ou comandante/conselheiro do exército, questão fundamental

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após a morte de Péricles e das divergências que suas estratégias durante a guerra suscitaram entre os atenienses. E mais: a Guerra do Peloponeso e o período imediatamente anterior, foram marcados pelo rompimento com a estrutura exclusivamente agrária e pelo fortalecimento do comércio e império marítimo. Isso implicou na necessidade de se produzir uma síntese entre a falange hoplítica e a estrutura da frota ateniense, o que não significou a substituição do sistema de falange hoplítica, mas sua adaptação às novas condições e, portanto, resultou no aumento de sua complexidade (WHEELER, 1993). Conforme a estrutura da falange aumentava em complexidade, as funções de comando foram se tornando cada vez mais necessárias e específicas. Para atender a aquelas novas necessidades que foram impostas – a realização de sítios, perseguições etc. –, as tropas ligeiras foram aumentando sua participação no corpo da falange e foi incorporado um maior número de arqueiros e “lançadores”. A coordenação destas tropas demandou cada vez mais uma formação especializada e, portanto, cargos que se ocupassem destas coordenações (WHEELER, 1993: 138). Isto significa que os principais postos de comando – estratego e taxiarca –, que sempre foram eletivos e temporários, exigiram cada vez mais profissionalização, estando ligados às habilidades do indivíduo (WHEELEER, 1993: 142). Por sua vez, esta necessidade impulsionou a disseminação de um processo educativo específico: a hoplomaquia (ANDERSON, 1993). Estes exercícios eram ministrados por profissionais que se dirigiam à restrita parcela de jovens abastados que pretendiam se tornar lideranças político-militares. Uma vez que eram oferecidos por sofistas, o acesso a este “curso preparatório” só dependia da condição financeira do interessado. A hoplomaquia consistia em uma série de exercícios realizados pelo estudante (devidamente equipado com os adereços típicos do hoplita) e que eram inspirados nas obras de Homero. O catálogo homérico de modelos heróicos serviu como referencial para o desenvolvimento de uma “arte do estratego” (WHEELER, 1993). Nos textos de Platão encontramos várias referências a essa prática (destaque para Laques e Eutidemo) e, além disso, outras tantas acerca do caráter de “manual de treinamento” que a obra de Homero havia adquirido entre os atenienses (destaque para o diálogo Íon).

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Platão e uma “dialética militar”

Foi no interior dessas circunstâncias que o pensamento dos filósofos socráticos se desenvolveu e, como demonstra Canfora, a própria trajetória biográfica dos filósofos do círculo socrático pode ser considerada um indício dessas tensões que marcaram Atenas no pós-guerra, uma vez que todos eles participaram, de um modo ou de outro, de movimento ativamente (CANFORA, 2003). Entre eles, talvez em posição de especial relevância, há Platão. Em suma, defendemos a idéia de que a crítica à “arte do estratego” de inspiração homérica e às técnicas elaboradas para seu ensino, que foram práticas difundidas entre os jovens atenienses do século IV a.C., constitui um importante um importante eixo históricohermenêutico para a análise da obra de Platão. Além disso, pretendemos demonstrar que é possível encontrar na República uma definição de quais seriam, segundo Platão, os componentes fundamentais dessa “arte do estratego”. A obra de Platão nunca foi considerada um documento histórico fidedigno, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu com Xenofontes e Aristóteles. Tal situação é conseqüência de uma soma de diversos fatores, entre os quais destacamos o fato da história da Filosofia ter eleito Platão como sendo um dos maiores representantes do idealismo e difundido a premissa de que a metafísica sempre foi o alicerce a partir do qual as teorias do filósofo foram estruturadas. Como um agravante, os textos de Platão, na sua maioria, apresentam-se em forma de diálogo, o que torna ainda mais difícil a sua aproximação da definição mais tradicional de “documento”. As únicas exceções, talvez, sejam algumas de suas famosas Cartas, cuja autenticidade é todavia altamente discutível (ISNARDIPARENTE, 2002). Contudo, os debates sobre os problemas relacionados à organização e à formação militar na Grécia Antiga têm trazido novos elementos que podem permitem uma modificação, ainda que parcial, nesse quadro. Ao longo da República, um diálogo que – na opinião dos comentadores – foi mais importante e significativo de Platão, são apresentadas críticas às influências que os poetas podem desempenhar, negativamente, na formação dos jovens de uma cidade imaginária. Não que esse seja o tema principal, mas sem dúvidas é um dos assuntos mais recorrentes. Entre os estudiosos, esse assunto geralmente é tratado no interior do campo mais vasto teoria do conhecimento. Contudo, relendo o texto no interior do campo discursivo delimitado pelas questões

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apresentadas anteriormente, podemos extrair algumas conclusões. Ao longo da República, encontramos passagens onde Homero foi apontado pelo filósofo com sendo alguém capaz de falar com propriedade da “arte da estratégia”, mesmo sem conhecê-la (Rep., X, 601 b). Sendo Homero um simples imitador, o que o colocaria distante “três pontos” de qualquer arte (no primeiro ponto está aquele que utiliza o instrumento, e no segundo aquele que o confecciona), ele não tinha, segundo Platão, nenhum conhecimento dos assuntos sobre os quais discorreu. Desta forma, muito embora parecesse ser um profundo conhecedor das batalhas, do modo de condução dos exércitos, da disposição dos acampamentos, da arte da equitação, em função de seus poemas, na realidade Homero não tinha o mínimo conhecimento sobre estas atividades. E, sarcasticamente, faz Sócrates indagar ao seu interlocutor:

Mas há alguma guerra de que se tenha lembrança, no tempo de Homero, chefiada por ele, que o tivesse por conselheiro e que fosse levada a bom termo? (Rep., X, 600 a).

O exercício de argumentar a favor da incapacidade de Homero nos assuntos referentes à formação militar, remete justamente à denúncia da incompetência da educação tradicional, e principalmente a hoplomaquia, para preparar os jovens para deliberar sobre esses assuntos e, mais especificamente, a sua ineficácia para a formação dos futuros estrategos, uma vez que a obra do poeta era o principal esteio desses processos. O mais interessante, porém, é que na República Homero não foi acusado ou cobrado pelos equívocos que potencialmente ajudou a provocar em artes como medicina e outras mais. O que preocupava o filósofo é o “retrato” que Homero e os outros poetas fizeram dos “assuntos mais elevados”:

Por conseguinte, não vamos pedir contas a respeito de outros assuntos a Homero ou a qualquer outro dos poetas, perguntando se algum deles era médico, e não só imitador da linguagem dos médicos [...], tão-pouco façamos perguntas sobre as outras artes; deixemo-los. Mas acerca daqueles assuntos mais elevados e mais belos, sobre os quais Homero se abalançou a falar, guerras, comando dos exércitos, administração das cidades e educação do homem, é de certo modo justo dirigirmonos a ele [...] (Rep., X, 599 d).

Somada a essa crítica, devemos destacar que no texto da República se faz a defesa de que o acesso aos postos mais importantes da pólis deveriam ser restritos aos que conseguissem superar uma série de etapas seletivas, de modo que sua posição na hierarquia da

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cidade fosse proporcional à sua capacidade intelectual e sua retidão moral. Nas palavras de Platão, nem a riqueza nem o nascimento seriam condições suficientes para que alguém assumisse o “governo da cidade ou o comando dos exércitos” (Rep., IV, 423 d – 424 a). Assim, a separação entre os níveis hierárquicos na estrutura de poder da cidade imaginária de Platão seriam sustentados por diferentes níveis de conhecimento. A hierarquia entre esses diferentes níveis foi representada por Platão através da conhecida metáfora da linha seccionada (Rep., VI, 509 e). Segundo essa metáfora, os saberes se reúnem em dois grupos, divididos de acordo com seus respectivos objetos: visíveis e invisíveis. Cada um desses grupos se relaciona com um determinado campo ou nível de conhecimento. No caso do grupo dos objetos visíveis, temos aí o campo da dóxa; já no grupo dos invisíveis, temos dois campos: o da dianóia e do nous. Os conhecimentos do primeiro campo, muito embora não estejam “desalojados da potência lógica”, não têm um estatuto de epistême, em função da própria precariedade de seus objetos (ANDRADE, 1993). Para o desenvolvimento do nosso tema, é necessário investigar um pouco mais a fundo o campo da dianóia. De acordo com a definição de Platão, este campo consagrava-se ao estudo das “technaí para hipóteses, saberes matemáticos e afins”. Por sua vez, o campo do nous seria o espaço da manifestação das essências sendo, por isso, restrito aos filósofos (ANDRADE, 1993: 123). Sobre a dianóia, devemos destacar a relação dessa “potência da alma”, ou dýnamis, e o conhecimento das chamadas téchnai. Essa potência era intermediária na medida em que se encontrava a meio caminho entre o nous e a dóxa, uma vez que ela englobava técnicas que partem de “afirmações hipotéticas e não podem dispensar o visível”. Ou seja, o campo da dianóia reuniria saberes que se dedicam a objetos inteligíveis e à reflexão, mas que guardariam um estreito laço de interação com as atividades práticas (ANDRADE, 1993: 141). É justamente num saber deste tipo que se apoia a “téchnê do estrategós”. Tanto que Platão estabeleceu o plano de educação dos comandantes militares somente após fazer um minucioso apontamento sobre a hierarquia entre esses saberes e explicitar que os estudos que recomendara não deveriam ser “inúteis aos guerreiros” (Rep., VII, 521 d). Os saberes dianoéticos têm a dupla função de servir de propedêutica à dialética visando ao preparo do “filósofo-rei” - mas também guardam uma extrema utilidade para a guerra, atendendo às necessidades dos estrategos, como demonstrou Platão (Rep., VII, 522 c). O primeiro dos saberes dianoéticos era a aritmética ou “a ciência dos números e dos cálculos” (Rep., VII, 522 c). Na República, esta ciência era recomendada para que o

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estratego pudesse compreender “alguma coisa de tática” (Rep., VII, 522 e). No texto lemos:

Com efeito, é forçoso que o guerreiro as aprenda, por causa da tática, e o filósofo, para atingir a essência [...](Rep., VII, 525 b).

Como conseqüência desse argumento, Platão ridicularizou a figura de um comandante militar da importância de Agamenon, que, de acordo com o filósofo, parecia não saber sequer “quantos pés tinha” (Rep., VII, 522 e). O segundo saber dianoético que Platão propôs - e que guarda certa proximidade da aritmética -, é a geometria, cuja importância para as questões relativas à guerra exaltou expressando-se nestes termos:

Na medida em que se aplica às questões de guerra, é evidente que [a geometria] nos convém. Efetivamente, para formar um acampamento, para conquistar uma região, para cerrar ou dispor as fileiras e quantas evoluções fazem os exércitos nas próprias batalhas ou em marchas, há uma diferença entre quem é geômetra e quem não o é (Rep., VII, 526 d).

Essa afirmação é particularmente interessante se pensarmos na constituição das falanges, que se organizavam com sólidos geométricos (retângulos). Até aqui, o quadro da “educação superior” compunha-se primeiro pela aritmética e depois pela geometria. Uma terceira ciência foi chamada a fazer parte deste currículo: a astronomia (Rep., VII, 527 d). Apesar de destacar a conveniência de “uma perfeita compreensão das estações, meses e anos” para a arte militar, Platão não se estendeu sobre o assunto (Rep., VII, 527 d). Estes estudos matemáticos deveriam ser seguidos pelo grupo de jovens que foram selecionados aos vinte anos até a idade de trinta anos, quando uma nova seleção revelaria aqueles que possuíam a capacidade de se empenhar na dialética, disciplina na qual dedicar-seiam por mais cinco anos, completando quinze anos de estudos (Rep., VII, 537 d). Após essa última etapa, Platão defendeu que os homens deveriam descer “à caverna” e assumir “os comandos militares” (Rep., VII, 539 e). Esta espécie de estágio deveria durar mais quinze anos e somente após esse período é que seriam escolhidos os governantes (Rep., VII, 540 a).

[...] dentre eles serão soberanos aqueles que mais se distinguiram na filosofia e na guerra (Rep., VIII, 543 a).

Ou seja, antes de se tornar um “filósofo-rei”, o governante de Platão seria um comandante militar. E mesmo para aqueles que assumiriam essa última função, Platão

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propunha um ciclo de formação que se estendesse praticamente da infância até os trinta e cinco anos. Isso apenas demonstra a importância que foi atribuída ao problema da formação e da escolha dos estratego, revelando uma preocupação com as relações que se estabeleciam entre a formação dos militares e a própria dinâmica da cidade. Preocupação que estava em total consonância com os problemas daquele momento e que também foi objeto de discussão em outras obras (basta lembramos Xenofonte). Além disso, essas indicações parecem permitir supor a existência e a concorrência entre diferentes “modelos teórico-pedagógicos” de formação militar durante o período clássico.

A formação do guerreiro enquanto questão teórica e prática

Com relação ao debate militar de seu tempo, debate intimamente relacionado com as condições políticas de Atenas, conforme acenamos acima, portanto, Platão demonstra-se um observador atento e perspicaz: por um lado utiliza o tema como exemplificação de sua metodologia de pesquisa (dialética), por outro lado insere a problemática militar no âmago de sua teoria dialético-política. Um trecho da Carta Sétima, talvez a única original, não pode ser mais claro com relação à postura existencial de forte preocupação com a situação política que o “idealista” Platão demonstrava:

Observava tudo isso e os homens que se ocupavam de política, e as leis, e os costumes – e quanto mais eu observava e avançava nos anos, tanto mais parecia difícil que pudesse ocupar-me de política honestamente. Não se podia fazer nada sem amigos, sem companheiros dignos de confiança, e era difícil achar amigos deste tipo entre as pessoas daquele tempo, dado que a cidade não era mais governada com base nos costumes tradicionais, e era igualmente difícil criar novas usanças. Quanto às leis escritas e às regras, elas estavam se corrompendo com extraordinária rapidez, de tal maneira que apesar de desejar me ocupar da vida pública, vendo como tudo estava desgovernado, acabei ficando perdido, me senti desamparado; e todavia continuava a esperar que pudesse haver uma melhoria nas usanças e nos costumes, e sobretudo no governo: e esperava a ocasião propícia para agir. (Carta Sétima 325 c-e)

A espera de uma ocasião propícia, de um kairós, não impediu Platão de avançar teoréticamente na organização antes filosófica e depois prática (uma cidade que devia ser antes construída en lógois, pelos discursos): e para este projeto a matemática era absolutamente fundamental. Assim nos lembra já Proclo:

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Platão [...] deu um imenso impulso a toda a ciência matemática e em particular à geometria, pelo apaixonado estudo que a isso dedicou e que divulgou quer recheando seus escritos de raciocínios matemáticos, quer despertando em toda parte a admiração por estes estudos naqueles que se dedicam à filosofia (In pr. Eucl. P. 66 Friedl).

Consoante com o projeto político-pedagógico de Platão, a matemática – como as armas – não deviam estar nas mãos de qualquer um. Mas para isso será necessário dar um novo poder, uma nova dýnamis a elas: transformando-as de saber prático em saber teorético, insistindo em sua natureza puramente teórica e intelectual, platonista, no sentido que nos tempos modernos se dá ao termo (CORNELLI &

COELHO, 2007). Está aqui,

provavelmente, a explicação da necessidade de aliar a aritmética e a geometria à formação da elite político-militar ateniense: a matemática (como a paideia em geral) devia ser ensinada “somente às melhores naturezas” (526c), isto é aos aristoi: à elite, portanto. Entre outros, a figura do jovem matemático teórico (isto é filósofo) e militar, Teeteto, como apresentado no prólogo do homônimo diálogo platônico, é certamente um bom exemplo do produto deste projeto político-pedagógico para a pólis. Ao mesmo tempo,uma imagem que Sócrates e Glaucon muito utilizam para a descrever a dýnamis do mathema é a de sua força de reboque (holkon): procurar aquele saber que permita “rebocar a alma daquilo que devém para aquilo que é” (521d) (CATTANEI, 2003). Da mesma forma a geometria “deve ser apta para rebocar a alma para a verdade” A imagem é evidentemente próxima do jargão da logística e engenharia militar. Da mesma forma pode ser considerada a imagem da “capacidade de esticar uma corda”, que está ligada à homologia que a ela segue imediatamente entre os dois interlocutores, pela qual “número e calculo são úteis para a arte da guerra”. Confirma-se nestas imagens a profunda coincidência teórica entre a paidéia pelas matemáticas e o mundo das “técnicas militares”: o reboque (holkon) da alma exercita sobre ela uma força de guia (agein, 522b, 523a, 525a, 525b) em direção de uma meta; a geometria, de sua parte, se expressa como uma força que tenciona (teinein, 526e) para um certo objetivo, e submete a alma a uma mudança de curso, uma conversão forçada (metastrophe, 525a 525c, 526e). Matemática e arte militar seguem portanto as mesmas técnicas e respondem a paralelas funções políticas no pensamento platônica de República.

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Conclusão

Conclui-se assim que, para Platão, a reforma militar (da mesma forma como outras questões práticas) não era simplesmente um tema externo e tangencial à sua filosofia política e ao projeto de uma nova Atenas: a filosofia de Platão deixa-se desafiar metodologicamente pelos problemas de seu tempo. A recorrência do debate sobre a hoplomaquia e sobre o papel dos poetas na orientação da formação dos comandantes militares - principalmente de Homero - nos diálogos de Platão, permite-nos introduzir-los em um horizonte discursivo mais amplo e no interior do qual os textos de Platão estabelecem relações com temas que até então não figuraram, na história da Filosofia, como sendo próprios da obra do filósofo. A leitura dos textos de Platão sobre o fundo da discussão sobre a reforma da organização militar ateniense, abre a possibilidade de associarmos esses textos, em particular a República, a um outro conjunto de obras e autores que compuseram verdadeiros manuais de formação militar (entre eles podemos apontar Tucídides e Xenofonte). Além disso, abre-se um vasto campo para pesquisar o tema dos “modelos teórico-pedagógicos de formação militar” no abundante conjunto dos escritos dos sofistas. Com essa contribuição esperamos resgatar a obra de Platão dos limites impostos por uma tradição hermenêutica ortodoxa e abrir novas perspectivas para a investigação de sua obra.

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O ‘CRIME’ DA HOMOSSEXUALIDADE NO EXÉRCITO E AS REPRESENTAÇÕES DA MASCULINIDADE NO MUNDO ROMANO.

Renato Pinto1 Doutorando/ UNICAMP/ Bolsista Fapesp

Tibi nondum uir est, qui Mario iam miles est?

As coisas pareciam estar indo muito bem para o general Mário. Os bárbaros haviam fugido para a Espanha e o general romano poderia, enfim, exercitar os corpos de seus soldados, elevar a moral da tropa, incutir-lhes mais coragem para as batalhas por vir. Todavia, o mais importante era estar mais próximo de seus subalternos, dando-lhes a oportunidade de melhor conhecer seu comandante. De fato, já lhes parecia que a severidade e a inflexibilidade no exercício da disciplina que impunha era mesmo salutar. Já estavam se acostumando com as aplicações de punições exemplares, munido que estava o general de uma autoridade inquebrantável. Seu temperamento explosivo, o timbre poderoso de sua voz e a ferocidade de suas feições, tudo isso ficava mais familiar com o tempo para os soldados e estes logo aprendiam que eram os inimigos de Roma e de seu exército quem deveriam temê-lo. Mário consolidava-se como um comandante enérgico, porém, justo. Sua capacidade de julgamento era muito apreciada por seus comandados. Sentiam-se seguros naquele ambiente de sábio poder de discernimento. Podiam até mesmo fazer uso de histórias como a do desafortunado oficial de alta patente Caio Luso para fortalecer ainda mais a confiança na justiça promovida pelo comando. Em muitos aspectos, Caio Luso havia sido um oficial muito respeitado. E sua boa reputação não parecia ter vindo do fato de ser sobrinho de Mário. Mas possuía uma fraqueza. Não conseguia resistir à beleza dos jovens e, desta forma, seus olhos se voltaram para o soldado Trebônio. Mais do que isso, Luso já tentara seduzí-lo outras vezes, sempre sem sucesso. Em uma noite de irresistível desejo, Luso mandou que um servo chamasse Trebônio até sua tenda. Não podendo recusar a convocação de um superior, o soldado para lá se dirigiu. Ao entrar na tenda, 1

Bacharel em História pela FFLCH/USP, mestre em Arqueologia pelo MAE/USP e doutorando em História sob orientação de Pedro Paulo A. Funari pelo IFCH/UNICAMP.

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contudo, Luso tentou capturá-lo com violência, selando seu trágico destino. Trebônio puxou então seu gládio e matou o sobrinho de Mário. O general estava ausente, mas tratou de levar Trebônio ao tribunal assim que voltou a se reunir com suas tropas. Havia muitos que estavam ali para acusar o soldado, mas ninguém para defender a figura do assassino do sobrinho do grande general. Coube a Trebônio fazer corajosamente sua própria defesa. Trouxe testemunhas que deram conta das inúmeras tentativas de sedução pelas quais havia passado, e reafirmou que jamais cedera às ofertas para se prostituir. Contou tudo aos presentes sobre sua provação, entre os quais estava o próprio Mário. Após o relato, o general não apenas inocentou o acusado como pediu que lhe trouxessem a coroa das bravas façanhas e com suas próprias mãos colocou-a sobre a cabeça de Trebônio. Tomado de admiração e júbilo pela atitude de seu soldado, Mário ressaltou sua coragem e honradez. E teria dito que acabara de testemunhar um ato de grande nobreza em um tempo tão necessitado de tais coisas. Este relato sobre Mário, Caio Luso e Trebônio chegou até nós pela obra de Plutarco, Vidas (C. Marius, 14). Mas houve outros autores do período do Império, dos séculos I e II d.C., que também fizeram menção ao incidente que teria ocorrido em período Republicano, ainda que tenham utilizado nomes distintos para a vítima da desonra. Calpúrnio Flaco, por exemplo, fala em Declamationes (Declamationes, 3) que à época da guerra com os Cimbros havia um soldado de Mario que atendia pelo nome de Mariano. Assim como Trebônio, Mariano também tivera sua honra ameaçada por um tribuno ligado à família do general. Calpúrnio elabora perguntas que devem ser feitas no tribunal que julgou o assassinato do oficial infrator. A primeira pergunta retórica é dirigida ao próprio morto: “Ele não é ainda um homem para você, embora já seja um dos soldados de Mário?” Assim como contou Plutarco sobre o caso de Trebônio, o general Mario também perdoou e recomendou a atitude do soldado Mariano. Calpúrnio continua sua história como que ressaltando para Mário que o tribuno havia ameaçado um dos seus soldados de stuprum, um perigo muito mais grave ao exército romano do que a invasão dos Cimbros, segundo o autor. Outros autores do primeiro século a.C, como Valério Máximo (Facta e Dicta Memorabilia, 6.1.12. Cícero também menciona o julgamento em Pro Milone, IV,9) e do segundo, Quintiliano (Institutio Oratoria, 3.11.14), citaram a mesma história, mais uma vez alterando o nome do soldado. Valério Máximo relembra como o filho da irmã de Mário fora

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morto com razão pelo soldado Caio Plócio quando este se sentira ameaçado de sofrer abuso sexual. Da mesma forma, Quintiliano lembra o caso do soldado Arruntio, que matou o tribuno Caio Luso quando este ameaçou sua honra. Quintiliano explora como se deu o julgamento, como a defesa do soldado foi baseada no ataque à honra do réu e como a decisão final do juiz foi fundada no questionamento da morte sem julgamento de um tribuno por um soldado. Todas essas versões podem ser acompanhadas ou servir de base documental para afirmações modernas sobre a proibição da prática da homossexualidade no exército romano, punida com a morte. O crime seria comparável ao roubo de um camarada, ou ao abandono das funções de vigilância (Goldsworthy 2002:53). Mas havia mesmo alguma lei que assim punisse o ato sexual entre dois homens? Seria este o caso para a aplicação da obscura Lex Scantinia? Como definir o stuprum no Mundo Romano da República e do alto Principado? E mais ainda, como definir a ‘homossexualidade’ e as ideologias de masculinidade daquela época? O que dizem os textos e a cultura material? Podemos contar com algo mais além das representações discursivas? Em que medida os (pré)conceitos modernos sobre a sexualidade humana afetam nossa interpretação do passado? Há outros relatos que apontam para a punição de atos sexuais entre dois homens fora do exército, ainda que envolvendo figuras militares. Podemos voltar a Valério Máximo (Facta e Dicta Memorabilia, 6.1.10) para contar a história da prisão e morte de Caio Cornélio, acusado de cometer stuprum contra um jovem romano livre. Ainda que Cornélio tivesse sido um graduado militar, chegando até mesmo à primeira centúria, Caio Pescênio, tribuno da capital, não hesitou em mandar prendê-lo quando o caso tornou-se conhecido. Em sua defesa, Cornélio não negou o ato, mas fez saber que o jovem em questão vendia seu corpo publica e abertamente nas ruas. Tudo em vão. Os tribunos condenaram Cornélio a morrer na prisão, dado que o estado romano não deveria compactuar com homens daquele tipo, ainda que tenham mostrado seu valor em batalhas no exterior. Valério Máximo (Idem, 6.1.11) continua contando um caso semelhante, o do tribuno militar Marco Letório Mergo, que denunciado por Comínio, tribuno da plebe, por incitar relações carnais com seu secretário, preferiu o desterro e o suicídio antes que pudesse passar pela humilhação do julgamento. Para Valério Máximo, cumpriu-se a lei natural, e as insígnias militares, as águias sagradas e a disciplina militar que protegem Roma perseguiram o tribuno libidinoso até os infernos por tentar corromper a pureza de quem deveria ter sido o guardião.

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Tendo esses relatos como ponto de partida, será preciso, então, interpretar os conceitos de stuprum, analisar como a homossexualidade se inseria nos ideais de virilidade no Mundo Romano. Para isso, não se pretende tratar apenas dos casos envolvendo militares, mas, também, das fontes textuais que apontam para aquilo que era o esperado da sociedade do período tardio da República e início do Principado. E mais, devemos, também, perscrutar a cultura material que aponta para várias representações do masculino e das relações homossexuais no mesmo período. É de fundamental importância trazer os documentos textuais e a cultura material para o estudo e reconstrução do Mundo Antigo (Funari 1994: 252 e Laurence 1998: 1 e 8). De fato, parece oportuno fazê-lo no momento em que arqueólogos pós-processuais fomentam aproximações com questões atinentes à História Pós-Moderna. O Pós-Modernismo na História e o PósProcessualismo na Arqueologia nos permitem tratar da contextualização histórica da própria pesquisa histórico-arqueológica, melhor avaliando como os discursos de procedência e de sucessão se fundamentam na forma como os estudiosos se apropriam do passado e o aproximam (ou o afastam) das práticas sociais do presente (Funari et al 1999: 10-1). Neste trabalho, para facilitar a compreensão e dada a restrição de espaço, evitou-se tratar de algumas questões que envolvem a aplicabilidade da terminologia moderna para explicar fenômenos da Antigüidade e, assim, foi preciso usar, muitas vezes, a palavra ‘gênero’ com o mesmo sentido de ‘sexo’, como costuma acontecer na língua portuguesa. Sabemos, contudo, que nem sempre esses termos se coadunam, não são intercambiáveis. Sexo e gênero não se sobrepõem em determinadas culturas, e suas definições variam em diferentes contextos históricos, criando um emaranhado complexo e dinâmico de relações que tornam proibitivas as analogias simplistas entre nossa cultura e aquelas do passado (Alberti 2005: 107-20). Certos termos em latim são também de difícil tradução, como a palavra stuprum, já que carregam conceitos e ideologias específicas de um tempo histórico diferente do nosso. São conceitos complexos que não podem ser reduzidos a uma só palavra em nossas línguas modernas (Williams 1999: 6). Da mesma forma, aqui, o termo ‘homossexualidade’, quando usado no contexto romano, apenas se refere à prática sexual entre dois homens ou duas mulheres, não tendo em mente a categorização do indivíduo que pratica o ato sexual em questão, como aconteceu na modernidade.

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O ideal masculino romano na literatura.

Um dos mais profundos estudos sobre as ideologias de masculinidade no Mundo Romano foi realizado por Craig Williams em sua obra publicada em 1999, Roman Homosexuality: Ideologies of Masculinity in Classical Antiquity. A obra é resultado de seu trabalho de dissertação e concentra seus esforços na interpretação de textos clássicos de período romano, em especial, dos períodos republicanos e início do período imperial. Enquanto Williams não negligencia as representações materiais, elas não são seu campo de investigação principal. A obra de Williams se sobressai ao interpretar demoradamente os textos greco-romanos e seus autores munido de um olhar mais crítico das normatizações sobre a homossexualidade feitas na modernidade. Desta forma, ainda que tenha feito, ele próprio, suas reconstruções, como não poderia deixar de ser, elas tendem a desviar-se das visões preconceituosas e, não raramente, homofóbicas que assombram o tema em nosso tempo. Sua obra nos servirá de base neste segmento. Podemos fazer usos variados das diferenças entre conceitos sobre a masculinidade em tempos modernos e os da Antigüidade. O estudo do passado não está livre de pretensões modernas e, muitas vezes, vemos como há um grande interesse em enfatizar muito mais certos aspectos sob o signo de continuidades, que no fundo não passam de construções e reapropriações, do que mostrar as diferenças entre o passado e o presente. É fato que tais reapropriações acabam por servir para definir ou redefinir as práticas humanas, também na área da sexualidade. Tem sido assim com as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Todavia, não se deve cair na armadilha de acreditar que ao estudarmos tais práticas no Mundo Romano estamos fazendo uma História da experiência moderna gay. Além de ser extremamente complexo definir o que é ‘gay’ atualmente, é certo que tal conceito não existia na Antigüidade. Podemos compreender porque alguns estudiosos da Cultura Gay, se é podemos assim rotular tudo que cerca o termo, preocupam-se em mostrar como tem havido uma continuidade de discursos de opressão desde o patriarcado romano até a homofobia da contemporaneidade, ao menos no Ocidente. Todavia, talvez seja mesmo mais eficaz tratarmos das sempre existentes representações do desejo entre pessoas do mesmo sexo e a busca pelo espaço da sobrevivência ou pelos laços de união com seus parceiros masculinos ou femininos. Contudo, todo estudo do tema tem de ter em mente que as ideologias e os discursos têm sido gerados histórica e culturalmente ao longo da

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existência humana. Desta forma, são os atos e os atores das práticas homossexuais que sofrem julgamentos e ganham definições e categorizações, que, ao que se percebe, são fluídas na História (Williams 1999:13). Qualquer estudo sobre a sexualidade tem, ainda, de ter em mente que há diferenças entre as representações literárias ou materiais e a vida no cotidiano de seus participantes. Por isso, ao estudarmos nos textos os relatos das práticas homossexuais masculinas em Roma, estamos, na verdade, não observando as ‘verdadeiras’ práticas, mas, antes, suas representações discursivas. Nossas analises nada mais são do que fruto de nossa realidade moderna. O passado está perdido para nós enquanto realidade. Não podemos ‘vivenciar’ o passado. Todavia, as representações podem ser úteis na medida em que permitem entrever o que era considerado adequado ou não na esfera pública, conceitos e argumentos que poderiam ter sido utilizados nos julgamentos de crimes e, talvez, nos comentários e fofocas que circulavam nos campos sociais mais distantes do privado (Idem: 9). É fato, também, que os textos clássicos geralmente representam a elite. São poucas as referências às classes menos abastadas. Neste aspecto, a cultura material pode fornecer mais dados (Clarke 1998: 85). Ainda que tenhamos essas relativizações em mente, podemos sempre pressupor que um ato que estivesse em contrariedade com o que os textos comandam, poderia ser encarado como um desvio de conduta no meio público, levando a punições ou mesmo ao escárnio. Essas representações criam um sistema de normas e valores que seriam instrumentais para os romanos e que podem ser atribuídas a um legado cultural. Neste aspecto, esse sistema, no que ele nos diz das práticas sexuais dos homens romanos, pode ser aproximado de uma ideologia de masculinidade, por exemplo. Foram essas normas e valores, em um mundo de representações, que definiram as práticas sexuais consideradas adequadas ou não para o homem romano. Não foram os ditames biológicos que definiram com quem o homem romano faria sexo. Ainda que não sejam exploradas certas questões terminológicas aqui, é de bom tom lembrar que generalizações como ‘romano’ ou ‘praticas sexuais’ exigem um olhar crítico. Quem era o homem ‘romano’? O que era uma ‘prática sexual’? Podemos responder apenas parcialmente essas questões, quer seja por falta de dados ou espaço, quer seja porque fogem do escopo principal do tema aqui proposto. A história romana se estendeu por séculos e tem, também, de dar conta de um vasto território. Seria extremamente arriscado e até espúrio esperar que a ideologia

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de masculinidade tenha permanecido plasmada ao longo de toda a história romana (Williams 1999: 4-9). Williams defende que podemos fazer algumas constatações no que se refere às mudanças nas práticas sexuais entre a República e o Império. Para o autor, não há evidencias robustas que mostrem uma ruptura entre um período e outro neste aspecto. O período republicano tardio e o período de Augusto e, de seus imediatos sucessores, parece ter compartilhado a mesma ideologia de masculinidade. Nem todos concordam. Conforme Williams, para Saara Lilja (1983: 12. Cf. Williams 1999: 11), houve uma grande influência estrangeira nos valores morais logo após o período de Augusto. Já Eva Cantarella (1992:148-64. Cf. Williams 1999: 12) procura mostrar como parece ter havido um crescimento de homens romanos fazendo o papel passivo no período de Augusto. Williams refuta tais afirmações, considerando as evidencias, quase sempre baseadas em Juvenal e Marcial, insuficientes, embora ele mesmo faça uso desses autores, por vezes, não dizendo, portanto, que são fontes desqualificadas, a priori. O mesmo pode ser dito sobre a suposta influencia grega na pederastia, geralmente apresentada como uma prática exclusivamente ‘grega’, infame e fortemente desaprovada pelos autores latinos. Para Williams, o principal preceito da ideologia masculina romana continuou intacto no período de Augusto: a impenetrabilidade do corpo do homem livre romano. (Williams 1999: 11-3) Seja como for, parece ser ponto pacífico que o séc. II d.C apresentou significativas diferenças na forma de ver as práticas sexuais masculinas. Entre essas mudanças, podemos falar da preocupação em preservar o rapaz romano virgem até o casamento, algo não comum na literatura da República e do início do Principado (Veyne 1990: 171 e 175).

O papel do uir romano.

Se pudermos tomar a maioria das fontes textuais romanos como referência, poderíamos afirmar que os romanos não possuíam inclinação para julgar ou categorizar o homem romano a partir do gênero de seu parceiro sexual. É preciso lembrar que falamos aqui do homem livre de nascença, o ingenuus. O que os textos indicam é o que se esperava do homem romano, do uir: seu papel de dominante no ato sexual e o status de submissão atribuído ao seu ‘objeto’ de sedução e desejo, por assim dizer. Este sujeito submisso do uir poderia ser do gênero feminino ou

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masculino. Desta forma, categorias modernas como ‘homossexual’ ou ‘heterossexual’ não eram aplicáveis ao homem romano livre. Segundo Williams, qualquer associação direta entre nossos conceitos do que é um ‘homossexual’, um ‘heterossexual’ ou mesmo um ‘bissexual’ e a ideologia de masculinidade do uir romano seria imprecisa e enganosa. O mesmo poderia ser dito da ‘homofobia’ moderna. Interessante notar como o autor aqui destoa de uma certa tradição acadêmica que persiste nas utilizações de termos modernos para definir ou aproximar-se de outros usados no passado. Autores como Elaine Fantham (1991: 279, 285 e 286. Cf. Williams 1999: 5), Amy Richlin (1993: 526 e 530. Cf. Williams, idem), Rabun Taylor (1997: 322, 326-7 e 348-9. Cf. Williams, idem), Eva Cantarella (1992: vii. Cf. Williams, idem) e Saara Lilja (1983: 122. Cf. Williams, idem), todos fazem uso de termos modernos sem as precauções necessárias, ainda que reconheçam, por vezes que seria um erro incorrer em tais comparações. Williams utiliza termos como ‘homossexualidade masculina’ para se referir à prática sexual entre dois indivíduos do sexo masculino, por razões de clarificação e também reconhece o peso ideológico que carregam as terminologias. Outrossim, jamais usa o termo ‘homossexual’, que caracterizaria o indivíduo, fenômeno moderno, não a prática sexual entre dois homens ou duas mulheres (Williams 1999: 4-5). Seria impossível escaparmos de nossas próprias ideologias, mas devemos ser críticos dessa condição. Devemos avaliar como certas categorizações se tornaram ‘normais’ em nosso tempo. Embora as relações sexuais com pessoas do gênero feminino e masculino não fossem inteiramente simétricas, não há nenhuma indicação de que o gênero do parceiro sexual do homem livre romano pudesse categorizá-lo, como aconteceu na cultura ocidental do séc. XIX, por exemplo. A conceituação do que é um homossexual e do que é um heterossexual como ‘entidades’ separadas surgiu com o advento da Psicologia como uma ciência na era Vitoriana, como apontam Michel Foucault em seu primeiro volume da obra História da Sexualidade (2005: 43-4), Sinfield (1994: 12-3) e Jeffrey Weeks (1977: 2-3. Cf. Williams 1999:7). Como ressalta David Greenberg (1998: 14. Cf. Williams, idem), muitas culturas desconhecem a classificação do individuo como um ser humano diferente dos outros quando este participa de práticas sexuais com alguém do mesmo sexo. Isto pode ser dito da situação na Grécia e na Roma Antiga, mas, também, da vida em Florença na Renascença, do Japão pré-moderno, de certos povos melanésios e de certas tribos de ameríndios (Williams 1999: 7). A identidade masculina em Roma estava baseada em uma espécie de distinção binária entre os homens livres, que deveriam penetrar sexualmente, e qualquer outra pessoa, de qualquer

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gênero e de status inferior, o penetrado. Havia, é certo, restrições com relação ao status social do penetrado, mas não ao gênero deste. Desta forma, escravos de ambos os sexos, prostitutas, prostitutos ou moças solteiras de classe inferior, todos esses poderiam se tornar ‘objetos’ da penetração. O sexo possuía um aspecto hierárquico de classe onde as forças eram representadas por paradigmas que reforçavam o gênero do penetrador e ignoravam o gênero do penetrado (Williams 1999: 7-8; Bersani 1995: 105; Veyne 1990: 182). Nas representações textuais das práticas sexuais, Roma estava dividida entre o uir e todos os outros, submissos e, portanto penetráveis. Vale a pena relembrar que tais aspectos são o que deveria acontecer e dificilmente encontrariam perfeito eco na realidade da Roma Antiga. Cabe apenas dizermos que se atos desviantes se tornassem públicos, poderia haver algum tipo de dificuldade para o acusado. De fato, as aparências pareciam dizer muito mais do que a realidade em Roma. A chave para o sucesso seria manter relações mal vistas em segredo a todo o custo. Um homem romano livre, acusado de ter assumido papel passivo, quer seja forçadamente ou de bom grado, ainda que fosse apenas um rumor, poderia ser vítima de chacotas ou até mesmo de ruína política e social, pois seria marcado pela mácula do stuprum, de não ser um ‘homem’. (Williams 1999: 10-4). Assim, não podemos deixar a impressão de que na Antigüidade não havia repressão aos atos sexuais considerados impróprios (Veyne 1990: 181).Voltarei à questão do stuprum mais adiante.

Considerações sobre a pederastia e o ‘passivo’.

Um estudo sobre qualquer aspecto cultural romano não poderia deixar de tocar na relação entre Roma e Grécia, especialmente após a anexação da última no final do período Republicano. Mesmo autores romanos sabiam da influência que a cultura grega havia imprimido em Roma. Há uma tendência de autores modernos em associar a essa conexão não apenas a existência da pederastia em Roma, mas, também, a forte presença de relações ‘homoeróticas’ na sociedade romana. Desta forma, tem-se a impressão de que antes da anexação da Grécia, o ideal masculino romano era predominantemente ‘heterossexual’. L.P. Wilkinson (1978: 136) e Ramsay MacMullen (1982: 488 e 491) são alguns dos autores que defendem a presença da pederastia em Roma como um presente insidioso que acompanhou a assimilação da cultura grega. Embora autores como Paul Veyne (1990: 178-9) e Eva Cantarella (1992: 104) descartem essa tese, é

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significativo o número de classicistas que atribuem a existência da homossexualidade masculina em Roma à influência grega, ainda que apontem para uma certa dose de condescendência dos romanos com a prática (Williams 1999: 15-6). Essa tradição acadêmica poderia ser um reflexo da obsessão moderna com a taxonomia das práticas sexuais e de seus praticantes, categorizando seres humanos como ‘homossexuais’, ‘heterossexuais’ ou bissexuais’, por exemplo. O fato é que a aceitação da atitude sexual masculina em seu relacionamento sexual quer seja com pessoas do mesmo sexo ou do oposto precede, em muito, o séc. II a.C.. A crítica que os autores romanos faziam das relações homossexuais gregas era dirigida ao ato sexual de um homem livre com outro homem ou jovem rapaz, também livre. Ou seja, o sexo entre um ingenuus e outro ingenuus. A restrição não existia quando o sujeito ‘passivo’ da relação era um escravo ou um prostituto. De fato, cortejar uma prostituta também era considerado um costume ‘grego’ para os romanos. A própria pederastia como uma ‘presente grego’ deve ser questionada. Textos de autores romanos conservadores que escreveram perto do período de anexação da Grécia, como Catão, o Censor, Scipião Emiliano e Caio Graco não apresentam a pederastia como uma noção estrangeira (Idem: 16-7 e 22). É possível dizer que restrições ou contextualizações para as relações homossexuais masculinas são comuns ao longo da história da humanidade. Porém, foram as sociedades ocidentais modernas que as transformaram em práticas estritamente proibidas. A preocupação que existe hoje com as preferências sexuais do homem não existia em Roma, desde que o homem livre não fizesse o papel de ‘passivo’ na relação. Neste momento, torna-se de suma importância ressaltar que as restrições eram também válidas para as práticas que chamaríamos de heterossexuais hoje em dia. Para Cato, um homem que beijasse sua esposa em público estaria afrontando a moralidade e deveria sofrer uma severa reprimenda. As regulamentações para a prática sexual, do ponto de vista do homem livre, existiam independentemente do gênero do parceiro sexual passivo (Idem: 17-8). Na ideologia masculina que encontramos nos textos, jovens rapazes ou moças, homens ou mulheres livres não poderiam servir como parceiros sexuais do uir romano. À exceção da mulher, se ela fosse sua esposa. Como já foi dito, o fato dessas regras existirem não significa que o homem romano se circunscrevia somente ao que lhe era recomendado. De fato, as regras parecem reforçar que a realidade do quotidiano poderia ser bem diferente da ideologia. Nos protocolos da masculinidade romana, o homem deveria exuberar sua aparência de ‘penetrador’

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nato. Ser o ‘penetrador’ de mulheres (sua esposa, escravas ou prostitutas) e homens (escravos ou prostitutos) era uma prerrogativa e função esperada do homem livre romano. Abdicar-se de tal papel significaria se submeter a humilhações e ao escárnio público. Tudo isso se relaciona com o conceito de penetrar como um símbolo de controle, de poder. Desta forma, ser penetrado significava subjugação (Idem: 18-9).

As representações de masculinidade e homossexualidade na Cultura Material.

Existe sempre um risco de tomarmos o papel do ‘penetrado’ como essencialmente submisso, cristalizado em sua inferioridade e sempre vítima de sua condição como passivo, inoperante na relação sexual (Feitosa 2005: 15). Pedro Paulo Funari desafia a opinião comum de que a matriz do poder fálico sempre funcionou como vetor unilateral para a agressividade contra o ‘passivo’, suposta vítima da dominação patriarcal. Ao chamar nossa atenção para as representações parietais de Pompéia, Funari sugere que algumas mulheres poderiam mesmo mostrar um certo orgulho de terem sido penetradas várias vezes, mostrando uma interpretação alternativa àquelas que sempre mostram a mulher no papel de submissa e inerte (Funari 2003b: 323). Enquanto John Clarke afirma que procuraríamos em vão na literatura, eminentemente um veículo para a elite, pelo ponto de vista do ‘penetrado’ e seu status social (Clarke 1998: 84), o mesmo não se pode dizer daquilo que podemos encontrar na cultura material. Além das pinturas nas paredes de Pompéia, Funari também analisa um vaso encontrado na atual Inglaterra, de período romano. (Fig. 1). Nele, uma mulher, munida de um chicote pronto para fustigar, comanda uma quadriga puxada por diversos pênis (Funari 2003b: 321). Ainda que não possamos afirmar peremptoriamente que a mulher do vaso esteja no ‘controle’, como poderia parecer aos nossos olhos, e represente um golpe de morte à imagem da sociedade patriarcal romana que se moldou nos estudos sobre Roma, esta imagem pode, ao menos, apresentar um cenário mais complexo e ambíguo na arena das identidades de gênero e sexualidades do que o tradicionalmente difundido. Grafites bem explícitos que mostram a penetração masculina podem ser encontrados em várias partes do Império Romano, como nas atuais Espanha e Alemanha, tornando a representação do ideal de masculinidade do homem romano um fenômeno conhecido mesmo em

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províncias distantes (Williams 1999: 20-1). De fato, as representações fálicas são abundantes em todo o Império. Enquanto alguns autores procuram distanciar algumas dessas representações do ato sexual, especialmente atribuindo, por vezes, à imagem do pênis um papel meramente apotropaico (Clarke 1998: 143 e Williams 1999: 91), Funari alerta para essa perigosa dissociação entre o sagrado e o ato sexual na Roma Antiga. Para Funari, o próprio ato sexual representado pelo pênis poderia ser a fonte do poder apotropaico que ele carrega. A separação das funções religiosas e sexuais pode muito bem ser fruto de nosso preconceito moderno (Funari 2003b: 3234). Talvez uma das mais fascinantes representações materiais da homossexualidade em Roma no período imperial esteja na Warren Cup, uma espécie de skyphos (uma taça com alças) ou cântaro de prata, oval e com aproximadamente 15 centímetros de altura, encontrado nas proximidades de Jerusalém, em um pequeno lugarejo, datado do início do séc. I d.C.. (Fig. 2). Muito tem se discutido como o cálice teria ido parar onde foi encontrado, há mais de 20 pés de profundidade em um lugarejo onde não se esperaria encontrar artefatos usados pela elite romana. O artefato foi comprado pelo colecionador americano Edward Perry Warren, no início do séc. XX, em circunstâncias ainda pouco claras. Warren fixou residência no sul da Inglaterra, com seu parceiro, o arqueólogo John Marshall.Logo após a morte de Warren, em 1928, a peça, com relevos que mostram duas cenas homoeróticas, teve de enfrentar grande resistência de curadores de museus em comprá-la e muito mais em exibí-la. Em 1953 a peça chegou de forma suspeita à Nova Iorque, tendo sido lacrada e considerada pornográfica pela alfândega americana. A peça foi devolvida à Inglaterra no ano seguinte. Foi oferecida ao Museu Britânico, que se recusou a adquirí-la pelo que mostrava em seu relevo. Outros museus na Inglaterra também a recusaram por causa das cenas homoeróticas, consideradas escandalosas. Em 1966, a Warren Cup foi vendida a um colecionador particular que a levou para fora da Inglaterra. Em 1992, a peça foi doada anonimamente ao Metropolitam Museum of Art de Nova Iorque, de onde foi removida seis anos mais tarde, sem explicações, e vendida a um comerciante britânico. Foi finalmente comprada pelo Museu Britânico em 1999 por quase dois milhões de libras esterlinas, que a exibiu em 2006 (Williams 2006). É sintomático que a Warren Cup tenha tido tanta dificuldade em ser exibida ao longo do séc. XX. Outras peças romanas consideradas inapropriadas também foram segregas em salas secretas nos museus da Europa, em especial na Itália (Cavicchioli 2008: 55-61).

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Os relevos da Warren Cup podem ser resumidamente divididos em três segmentos. No lado A, vemos uma cena que apresenta um homem barbado penetrando analmente um outro, sem barba. A idade dos dois não parece ser muito diferente. No lado B, vemos um rapaz sem barba penetrando um menino de cabelos longos, mostrando, portanto, uma clara diferença de idade entre os dois. Entre as duas cenas vemos uma porta por onde um outro menino, vestindo uma túnica, espia a cena que se desenrola no lado A. (Clarke 1998 61-7). Não se pretende descrever exaustivamente a Warren Cup aqui. Basta dizer que a peça tem sido estudada com mais atenção nos últimos anos e tem produzido variadas interpretações. Não faltam também quem duvide de sua autenticidade. O lado B não parece suscitar grandes discussões já que há um certo consenso em dizer que o menino penetrado é um escravo, fato que seria comprovado por seu longo cabelo. Todavia, o lado B se torna muito mais complexo. Para aqueles que defendem que o homem romano mostraria horror às práticas sexuais de um homem livre adulto com outro da mesma idade ou classe, a cena é uma afronta. Algumas interpretações defendem que se trata de uma cena que ocorre em um bordel, sendo, desta forma, o homem penetrado um prostituto. O fato de o penetrador ter barba também confunde mais as coisas já que era extremamente incomum aos homens livres de Roma cultivarem a barba à época de Augusto (Idem: 86-9). Para Williams, a barba seria a marca de superioridade e força dominante do homem penetrador na cena em questão. Williams argumenta que a cena do lado A reforça sua tese de que a prática homossexual masculina em Roma não estava restrita apenas ao cenário de sexo entre homens livres e meninos escravos, antes, estendia-se sem problemas para o sexo entre dois homens adultos, desde que o penetrado fosse de status social inferior (Williams 1999: 94-5). Existem muitas outras representações de cenas sexuais entre homens do Mundo Romano que sobreviveram ao tempo. Enquanto podemos argumentar que a Warren Cup seja uma representação usufruída pela elite romana, vasos de cerâmica arretina tinham um custo menor e podiam circular em meios sociais menos abastados. Muitas vezes, tais vasos copiavam as cenas sexuais, entre elas as homoeróticas, que apareciam em artefatos feitos de material mais caro e raro, como metais e vidros-camafeu (cameo glass), indicando que não parecia haver um repúdio ao que as cenas mostravam, embora pudessem, por vezes, contrariar o que os textos do período de Augusto aparentemente pregavam como valores a serem seguidos ou práticas a serem evitadas (Clarke 1998: 72, 79 e 90).

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Stuprum e a Lex Scantinia.

Já vimos no início deste texto como foram punidos aqueles oficiais romanos que atentaram contra a honra de outro romano livre, geralmente seus subalternos, especialmente os casos dos soldados. A ameaça sempre foi implícita ou explicitamente a de abuso sexual, a violação da pudicitia do homem livre. A partir de tais relatos encontrados nos textos dos autores, especialmente aqueles do período do fim da República e início do Império, muitos autores modernos decorreram sobre a proibição da homossexualidade no exército e até do repúdio generalizado a essa prática em toda a sociedade romana. Baseando-se quase que exclusivamente nos textos do dramaturgo romano Plauto (Clarke 1998: 85), o historiador americano aposentado da Universidade de Yale, Ramsey MacMullen, chega mesmo a afirmar que a sociedade romana abominava a ‘homossexualidade’ e que não se podem encontrar representações significativas de casos de relações homossexuais aceitáveis em Roma, em contraste com o que se poderia encontrar na literatura grega (MacMullen 1982: 493. Cf. Williams 1999: 305 n.1) Williams critica esta visão argumentando que MacMullen prefere silenciar-se sobre as ubíquas representações de Adriano e Antino, por exemplo, além de ignorar as distinções feitas nas próprias fontes antigas sobre o status de homem livre, do escravo, do ‘penetrado’ e do ‘penetrador’.

Williams também acusa MacMullen de estar tentando impor à Antigüidade

categorizações modernas como ‘homossexual’ ou ‘heterossexual’, chegando mesmo a confundir a primeira com ‘efeminação’ (Williams 1999, idem). Mas no que estariam baseadas as punições impostas aos atos sexuais considerados impróprios para os romanos? Faz-se mister esclarecer o leitor sobre o conceito romano de stuprum e procurar mais dados sobre a chamada lex Scantinia. Para Pierre Grimmal, stuprum era a mácula do sangue, irreversível, que poderia recair sobre homens e mulheres livres. Os escravos e as prostitutas estavam fora do alcance dessa marca. O stuprum era o crime das relações sexuais, voluntárias ou não, consideradas indignas. Tanto homens, quando faziam sexo com uma mulher casada que não fosse sua esposa legítima, com uma honrada viúva ou renunciavam à sua condição de virilidade, quanto mulheres, quando cometiam adultério ou envolviam-se com atos sexuais fora do casamento, podiam ser acusadas de stuprum (Grimmal 1991: 118-9; Pomeroy 1995: 160). A pederastia poderia ser um tipo de stuprum, mas não porque o penetrado era do sexo masculino, mas, sim, por causa do status de

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ingenuus do jovem penetrado. Por vezes, autores clássicos associam a palavra stuprum a atos sexuais masculinos com escravos, prostitutos e prostitutas também. Contudo, o tom é de recriminação ao excesso, não ao gênero do parceiro (Williams 1999: 98; Veyne 1990: 178). Assim, as acusações de stuprum poderiam afetar o homem livre romano, quer seja por manter relações sexuais com outro homem, quer seja com uma mulher que lhe fosse proibida. O fator determinante para a acusação era o status do parceiro e se o homem havia renunciado a seu papel de uir, ou seja, de ativo na relação (Williams 1999: 101). Ainda sobre os casos de stuprum no meio militar, Williams argumenta que o problema não era o fato de um homem ter tido desejo por outro, mas, sim, o do rompimento da disciplina militar e o rompimento da impenetrabilidade do corpo de outro romano livre (Idem: 102, 111-2). Durante a República, não parece ter havido nenhuma lei que puniria o stuprum. Todo o processo de punição se daria no meio privado, pelos paterfamilias, sem intervenção direta do governo romano (Idem: 119). Com a edição, em 18 a.C, da lex Iulia de adulteriis coercendis, o adultério feminino ganhou punições específicas, provando que se tratava de um stuprum considerado grave naquela sociedade (Idem: 113). Contudo, havia uma lei que coibia atos sexuais impróprios já mencionada por Cícero em 50 a.C (ad Familiares, VIII, 12) chamada Scantinia, geralmente associada por autores modernos à proibição da homossexualidade em Roma. O fato é que não sabemos muito sobre a lei, não sabemos quando teria sido editada e nem o que punia, exatamente. Como aponta Williams, autores modernos mostram grande divergência sobre a natureza da lex Scantinia e sua aplicabilidade. L. P. Wilkinson (1978: 136) argumenta que a lei punia a ‘homossexualidade’. Todavia, Eva Cantarella (1992: 108) ressalta que Cícero teria feito menção à lei em suas acusações contra a conspiração de Catilina, por exemplo, caso ela fosse uma lei relevante contra atos sexuais entre homens (Williams 1999: 120). Mas o que poderia punir a lex Scantinia então? Poderia punir o stuprum de jovens livres, a chamada ‘pederastia’? Williams acredita que a lex Scantinia punia o stuprum cometido tanto por homens quanto por mulheres, indistintamente. Para o autor, a lex Scantinia representava a codificação das sanções tradicionais romanas contra o stuprum, de forma geral e sem restrição de gênero. Porém, como o adultério feminino teria se mostrado muito mais problemático na visão dos valores morais daquela sociedade, uma outra lei, específica para esse caso, teria sido urgida por Augusto, a lex Iulia (Idem: 121).

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Considerações finais.

Quando contrastamos e confrontamos os relatos dos ‘crimes’ homossexuais cometidos pelos oficias militares com outras representações textuais e de cultura material a respeito do contato sexual entre homens no Mundo Romano, parece que temos em mãos um cenário bem mais complexo do que tradicionalmente se apresenta no meio acadêmico. Mais do que isso, percebemos como nossas pressuposições modernas afetam a forma como interpretamos o passado. Existem muitas diferenças entre a forma como os antigos pensaram a sexualidade humana e a nossa. Como aponta Paul Veyne, as estruturas da sexualidade antiga não podem se associar às nossas, nem serem por elas sobrepostas. Não há um continuum entre passado e presente (Veyne 1990: 181). A preocupação com a sexualidade do indivíduo tornou-se um elemento fundamental para a sociedade a partir do séc. XIX, especialmente depois de Freud e, assim, chega a causar surpresa que um autor que trata de tantas biografias como Plutarco tenha dado tão pouca importância às práticas sexuais de seus biografados (Duff 2002: 94). Seria fácil imaginarmos que a (suposta) punição de atos de homossexualidade no exército romano citados neste texto não cause espanto em muitas sociedades atuais. Pareceria até mesmo ‘natural’ que ocorressem as punições se levarmos em conta a crença moderna de que atos de homossexualidade corrompem a moral militar. Contudo, como nos lembrou John Boswell, há inúmeros relatos de aceitação de tal prática no meio militar do Mundo Antigo, como entre os espartanos, ou o Batalhão Sagrado de Tebas, do séc. IV a.C., formado por casais de homens, para ficarmos apenas com alguns exemplos. Além disso, podemos supor que os romanos se escandalizariam ao ver mulheres servindo no exército, como acontece hoje em dia em muitos regimentos ocidentais (Boswell 1995: 63 e 65). Ramsey MacMullen, que, como vimos procura mostrar a pouca aceitação da homossexualidade em Roma, escreve sobre a presença de escravos particulares no exército romano. Assim, os soldados poderiam trazer seus próprios escravos ou escravas para o acampamento (MacMullen 1963: 106 n.29). Considerando-se o que as fontes antigas nos dizem, não parece haver nada que pudesse impedir ou proibir eventuais atos sexuais entre os soldados e seus escravos, quer fossem homens ou mulheres. Antes de afirmarmos que o ‘crime’ da homossexualidade no meio militar romano era punido com a pena capital, devemos repensar o quanto de nossos preconceitos estão envolvidos

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na interpretação moderna do ato sexual entre dois homens a partir dos textos e da cultura material dos antigos. Como vimos acima, podemos crer que o passado possuía diferentes formas de ver as práticas e identidades sexuais, não podendo ter seus conceitos e ideologias transferidos para o presente sem levar em conta nossa própria forma de ver como o sexo e os gêneros se encontram na dependência histórica da sexualidade humana (Foucault 2005: 147, minha ênfase; ver também: Butler 1990: 6 e 140-1). Na Roma antiga, o homem livre viril, o uir, fará sexo com homens ou mulheres, e, portanto, não se adequa ao nosso conceito moderno de heterossexual. De fato, Suetônio (Claud., 33.2) não logra encontrar uma palavra específica para definir o imperador Cláudio, que segundo o cronista romano, só buscava o sexo com mulheres, algo que o diferenciava do usual, do esperado (Parker 1997: 55) Ao mesmo tempo, os cinaedi não podem ser imediatamente associados a nossa visão moderna de homossexual afeminado, muito menos de gay. As classificações de gênero como normais ou anormais estavam mais associados aos atos e ao parceiro com quem era praticado, e não a um desejo sexual específico (Idem: 60-2). Assim, o uir romano poderia (e esperava-se que o fizesse) penetrar um menino escravo, mas não um que seria um romano livre na idade adulta, quando então se configuraria o delito do stuprum cum masculo (Walters 1997: 33-5; Skinner 1997: 135). Está, também, demarcada aqui a questão do status social. Nas represntações textuais, a relação entre o ‘ativo’ e o ‘passivo’ refletia a mesma relação entre superiores e inferiores na hierarquia social romana (Bersani 1995: 105; Veyne 1990: 182) A Arqueologia e a História precisam buscar em suas fontes o diverso, fazer perguntas pertinentes à compreensão das diferenças, de como elas foram construídas e, nessa busca, enriquecer nosso conhecimento com tudo o mais que possamos encontrar, inferir e interpretar (Kohl 1997: 15a/b). Incapazes de entrever as diversas nuances existentes dentro de uma mesma cultura, autores freqüentemente tomam como natural as formas de representar a sexualidade na Antiguidade, revelando seus próprios (pré)conceitos modernos. Não é muito alentador encontrar em Grimmal a explicação, sem qualquer base documental adequada ou crítica, de que o ‘amor’ entre homens só existia no exército romano por causa do rigor das campanhas militares, que expunham os soldados ao frio e a longos períodos longe de seus familiares (Grimmal 1991: 120). Os estudos históricos e arqueológicos precisam chamar nossa atenção para essas diferenças entre presente e passado, para as descontinuidades, para as diversidades de gênero e de sexualidades, e para a necessidade de fugirmos das homogeneizações dos discursos autoritários e

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preconceituosos, muitas vezes justificado e propagado no nosso meio acadêmico atual (Feitosa 2000: 239-40; Rago 2002: 257). É preciso que sejam desconstruídos os discursos tradicionais sobre a Antigüidade que colocam a imagem moderna do homem heterossexual como a parte suprema das negociações sociais, que se mostram, na verdade, muito mais complexas, múltiplas e dinâmicas do que poderíamos imaginar (Feitosa 2000: 249; Rago 2002: 265). Da mesma forma, os discursos panfletários que garantem ver no passado paralelos com o presente sem embasamento documental devem ser evitados (Kohl 1997: 15b; Chevitarese 2003: 13). A repulsa que marcou a história do trajeto moderno da Warren Cup pelas mãos de vários curadores de museus e colecionadores do início do séc. XX de artefatos, por exemplo, tem muito a nos dizer sobre como nossa sociedade tem tratado a sexualidade humana e, em especial, a homossexualidade moderna e os ‘crimes’ à ela associados na Antigüidade.

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ANEXOS

Figura 1 – Quadriga puxada por série de pênis. Journal of Roman Pottery Studies, 1996. In: Funari et al (2003a), Artigo 14, fig. 16.

Figura 2 – Detalhe da Warren Cup. Coleção do The British Museum. In: Williams, D. (2006), p.8.

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AS RELAÇÕES ENTRE JUDEUS PALESTINOS E O PODER ROMANO NOS SÉCULOS I A.C.-I D.C.

Monica Selvatici1 Universidade Estadual de Londrina

O presente capítulo tem por objetivo discutir a relação entre os judeus e o poder romano entre os séculos I a.C. e I d.C. por meio de um estudo de caso dos judeus palestinos e suas diferentes reações a esse poder ao longo de tal período. Neste sentido, o enfoque será dado à questão da particularidade dos judeus como grupo étnico e social, dotado de crenças e valores muito específicos, na Palestina dominada pela administração e pelo exército romanos. Esta região se diferenciava do restante do Império Romano na medida em que a maioria da população ali residente era judaica. No restante do território sob domínio de Roma, também se encontrava uma população judaica, porém de forma localizada, sobretudo nas cidades da parte oriental da região mediterrânea. Nesses locais, os judeus viviam em comunidades próprias e constituíam a minoria da população. A questão numérica (maioria X minoria) tem reflexos importantes sobre a forma como os judeus responderam à atuação do poder romano. De igual maneira, ela tem reflexos fortes sobre a forma como os judeus construíram progressivamente a sua identidade judaica. Os estudos antropológicos recentes acerca das identidades étnicas demonstram que fenômenos sociais e culturais mais amplos interferem diretamente na definição da identidade de grupos minoritários, isto é, condições favoráveis ou hostis têm relação direta sobre a forma como tais grupos interagem com o meio circundante.

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Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, pesquisadora junto ao Programa de Estudos Judaicos da Universidade de Brasília, integrante do grupo de pesquisa Oracula em Apocalíptica Judaica e Cristã da Universidade Metodista de São Paulo e pesquisadora do Grupo de Pesquisas sobre o Jesus Histórico e sua recepção da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professora adjunta de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Pelotas.

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O recorte espacial adotado – a Palestina judaica – tem implicações sobre a análise, quais sejam: a região da Palestina, assim nomeada pelos romanos no século II d.C., é aquela conhecida pelo nome Canaan e, também, terra de Israel nos livros da Bíblia hebraica – considerada pelos judeus, desde muito remotamente como solo sagrado destinado, pelo próprio Yahweh, a ser residência do povo hebraico. O aspecto sagrado da terra, assim entendido pelos judeus, envolvia uma série de concepções e regras de pureza, dentre elas, a idéia de que os gentios (não judeus) eram impuros e, por isso, maculavam/poluíam a terra. Como se verá adiante, esta questão comporá o quadro de múltiplos fatores que levarão a uma expressiva deterioração das relações entre judeus e romanos na Palestina ao longo do período analisado. As fontes para este estudo de caso são as obras do historiador judeu do século I d.C., Flávio Josefo, além de fontes latinas como decretos imperiais destinados aos judeus (reunidos no Corpus Papyrorum Judaicarum) e evidências arqueológicas da cidade de Jerusalém (sobretudo, aquelas ligadas à reconstrução do templo por Herodes, o grande).

I. O início do domínio romano sobre a Palestina judaica:

O domínio romano sobre a Palestina se inicia com a tomada de Jerusalém por Pompeu em 63 a.C. Isto acontece após a morte de Alexandra Salomé, esposa do rei e sumo sacerdote da dinastia asmonéia, Alexandre Janeu (103 a 76 a.C.), e o tumulto criado pela disputa entre seus filhos, Aristóbulo e Hircano, pelo trono judaico que ela deixara vago: o primeiro ascende ao trono, e o segundo, aliando-se a Antipáter, o idumeu, resolve conquistar o posto e empreende batalhas contra o irmão. Ambos pedem o auxílio aos romanos de forma a resolver a situação. Pompeu, o general romano no Oriente próximo, ao intervir, decide fornecer apoio a Hircano. Ele cerca Aristóbulo no templo de Jerusalém e consegue tomar a cidade no outono de 63 a.C. Jerusalém e todo o território judaico ficam sujeitas ao domínio romano e, com isso, ao pagamento de impostos. A extensão do território é sensivelmente reduzida. Todas as cidades costeiras, de Rafia a Dora são separadas dele e, de igual maneira, as cidades não judaicas a leste do rio Jordão como Hipo, Gadara, Pela e também Citópolis, Samaria e espaço considerável a seu redor. Todas essas cidades são colocadas imediatamente sob jurisdição do governador da recém estabelecida província romana da Síria. O que resta do território judaico é conferido a Hircano, que adota o

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nome de Hircano II. Ele passa a desempenhar a função de sumo sacerdote embora sem o título real. Isto se deve a um decreto de Aulo Gabínio, governador da Síria entre 57 e 55 a.C., que divide o estado judaico em cinco distritos e liberta os judeus do ‘governo monárquico’ ao instaurar uma aristocracia no poder (ou seja, um administrador em cada distrito), de acordo com Josefo (Guerra Judaica I.170). Hircano tem o apoio do grupo farisaico, ao contrário de seu irmão Aristóbulo que liderara antes de subir ao trono a oposição antifarisaica. Os fariseus compunham um movimento leigo que remontava à figura dos ‘hassidim’ do período dos macabeus. O desenvolvimento deste grupo está diretamente ligado, nas palavras de Will e Orrieux (1986: 226), aos “problemas de aculturação e de resistência à aculturação que, desde o Exílio, se colocam ao povo da Aliança”. Por isso, eles mantinham como modelo de vida a purificação exigida dos sacerdotes quando eles adentravam o templo. De acordo com Josefo (Guerra Judaica I.107-111), os fariseus ascenderam politicamente durante o governo de Alexandra, que os adotou como conselheiros reais e governou de acordo com suas indicações. Josefo afirma que estes gradativamente tomaram o poder da rainha, tornando-se os verdadeiros administradores do reino. Em 61 a.C., Pompeu celebra sua vitória em Roma levando consigo Aristóbulo (que acaba por se tornar o último sumo sacerdote da dinastia dos asmoneus) como prisioneiro de guerra, além de muitos outros judeus trazidos de Jerusalém. Segundo E. Schürer (em obra revisada por Geza Vermes (1973): 241), quando estes foram libertados, formaram a base de uma extensa comunidade judaica na capital do império. Ainda assim, é sabido que as origens da comunidade judaica em Roma remontam a data anterior a 61 a.C., na medida em que dinheiro judaico era já exportado da Itália para Jerusalém um ano antes. De 65 a.C. a 70 d.C. a Palestina, embora não diretamente anexada à província da Síria, permaneceu sob controle do governador dela. Em 47 a.C., César decreta a nominação de Hircano II como etnarca dos judeus e também confirma seus direitos enquanto sumo sacerdote segundo a lei judaica. A Antipáter, seu aliado, é conferido o posto de procurador da Judéia. Estas posições são fruto da política de aproximação em relação ao ditador romano empreendida pelos dois dinastas, que tinham um ano antes se juntado ao partido de César. A Antígono, único filho sobrevivente de Aristóbulo, nada é dado. A posição de aliado de guerra dos romanos, que mantinha Hircano, lhe permitiu receber em 45 a.C. novos privilégios para os judeus, melhor

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dizendo, concessões. Assim, a cidade de Jope, importante cidade portuária, e vilas da Grande Planície foram restituídas ao território judaico.

II. Privilégios e isenções aos judeus no início das relações com as autoridades romanas:

Os favores atribuídos por César aos judeus, dentro e fora da Palestina, faziam, na realidade, parte de sua política de satisfazer os provinciais de modo a salvaguardar os territórios sob domínio romano. Além disso, nas províncias orientais do império, os judeus formavam uma porção significativa dos súditos de Roma. Por isso, aos judeus de Alexandria, foi assegurada a posse de seus direitos, e aos da Ásia Menor o pleno direito de exercício de sua religião. De fato, ao conquistar territórios na região mediterrânea oriental, os romanos necessariamente se viram envolvidos com a questão do separatismo judaico e do sentimento antijudaico suscitado por ele. Esta situação os obrigou a formular uma política específica para o caso dos judeus dentro de seu território. De acordo com E. M. Smallwood (1999: 169),

não havia necessidade de supressão da religião judaica, já que como culto ela preenchia os pré-requisitos romanos para sua sobrevivência: moralmente ela não criava objeções e na diáspora era politicamente inofensiva.

Assim, a decisão foi, já no fim do período republicano, a adoção da tolerância reforçada por medidas de proteção aos judeus contra a hostilidade gentílica. A legislação de César, confirmada depois por aquela de Augusto, estabelece o Judaísmo como religio licita –termo que, segundo Smallwood (1999: 702, nota 89), aparece nas fontes romanas somente a partir do século III d.C., mas que, de fato, descreve a situação dos judeus no império já na segunda metade do século I a.C. A religião judaica usufruiria deste status durante mais de três séculos, com exceção apenas de um pequeno período de restrição sob o imperador Adriano. A tolerância romana para com os judeus se traduziu na permissão do recolhimento do imposto para o templo de Jerusalém, na permissão da construção de novas sinagogas (que eram uma instituição baseada na participação pública e administrada pela comunidade judaica em geral na qual se fazia a leitura das escrituras e a oração) e da reunião no sábado para o culto e para as festividades do calendário judaico. E, principalmente, os romanos declararam a santidade das escrituras judaicas. Também isentaram os judeus do serviço militar. Segundo Smallwood, todas

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estas medidas foram impostas pela legislação de César de 44 a.C., que deveria ser estabelecida em todo o império. Outros autores, no entanto, como Miriam Pucci Ben Zeev (1998: 440-1), acreditam, de forma mais plausível, que alguns direitos judaicos, como a isenção do serviço militar, tiveram, ao contrário, apenas uma aplicação local e temporária. Com efeito, Eduardo Arens (1997: 161, nota 11) recorda certa evidência de soldados judeus em serviço em Emesa, na Síria, em período posterior à concessão dos privilégios por César.

III. As relações entre os romanos e Herodes, o grande:

De volta ao contexto político da Palestina, embora Hircano mantivesse o título de etnarca dos judeus, quem exercia influência de fato sobre o território era Antipáter. A sua iniciativa de nomear seus filhos Fasael e Herodes como governadores, respectivamente em Jerusalém e na Galiléia desagradou a aristocracia judaica. Ainda assim, anos mais tarde, Antônio, que ascende ao poder após a morte de César, nomearia Fasael e Herodes tetrarcas do território judaico sem no entanto destituir Hircano de sua posição. Em 40 a.C., os partos promoveram uma grande invasão que transtornou todo o Oriente Próximo. Antígono aproveitou a situação e persuadiu-os, através de grandes promessas, a ajudálo a conquistar o trono judaico. Além disso, conseguiu arrebanhar aliados entre a nobreza judaica, desgostosa de Fasael e Herodes. Presos Fasael e Hircano pelos partos, Herodes resolve fugir para a fortaleza de Massada. Fasael se suicida e Hircano é destituído do posto de sumo sacerdote e levado como prisioneiro para o reino parto. Antígono alcança seu objetivo e é, assim, nomeado rei pelos invasores, de acordo com a evidência das moedas do período que atestam o reinado de Matatias, seu nome hebraico, entre 40 e 37 a.C. Herodes, por sua vez, consegue chegar a Roma e lá solicita apoio de Marco Antônio. Conseguido o suporte do triúnviro, ele é nomeado rei da Judéia, após o consentimento de ambos Marco Antônio e Otaviano, em sessão formal no Senado. No entanto, o poder real sobre o território ele só adquire anos mais tarde, quando após retornar à Palestina e reunir um exército, ele é apoiado pelos legados da Síria – Ventídio (39-38 a.C.) e Sósio (38-37 a.C.), que já haviam expulsado os partos desta província – sob ordem de Antônio, e progride na tomada dos territórios.

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Herodes finalmente toma Jerusalém em 37 a.C. e Antígono é levado por Sósio para Antioquia, capital da Síria, e lá é morto. O reinado de Herodes foi longo e lhe conferiu o epíteto ‘o Grande’. Mantendo sempre as boas relações com os romanos – princípio que ele tornou inviolável em seu governo – Herodes (ele próprio um cidadão romano de nascença) foi capaz de consolidar seu poder frente à hostilidade do povo judaico que não apreciava o governo de um idumeu, meio judeu. De fato, Josefo o caracteriza como um hemiioudaios no livro XIV (403) das Antiguidades. A população entendia a sujeição a um governo estrangeiro como punição divina e, dentre os nobres locais, ainda havia adeptos de Antígono. O soberano eliminou seus oponentes dentro do território judaico (membros da família dos asmoneus) e venceu os de fora (Cleópatra, do Egito, que pretendia conquistar territórios na Palestina judaica). Uma vez estabelecida a segurança de seu governo, ele iniciou um programa de construções, que pode ser inserido num contexto maior, o das províncias do império que competiam entre si quanto às demonstrações de honrarias ao poder romano. Assim, Herodes erigiu templos ao imperador (Kaisareia), teatros e hipódromos. Novas cidades foram fundadas em homenagem a César e assim nomeadas, como Cesaréia no litoral do território. Outras cidades foram fundadas e nomeadas em honra a parentes seus como Fasaelis (uma homenagem a seu irmão). Herodes também reconstruiu cidades, como a antiga cidade de Samaria, que ele renomeou Sebaste, a antiga Cafarsaba que ele reconstruiu e lhe deu o nome Antipátrida, em homenagem a seu pai. Outros empreendimentos foram levados adiante, um teatro em Jerusalém, um palácio real para uso dele, com o objetivo também de fortificação para a cidade alta. Tais obras mantinham também propósitos militares, na medida em que ele instalava em tais cidades colônias militares. E mesmo obras arquitetônicas fora do território judaico foram presentes seus. Assim, as cidades de Tiro, Sidônia, Biblos, Beritos, Trípole, Ptolemaida no litoral palestino, Damasco e Antioquia na Síria receberam dele várias construções. A obra arquitetônica mais impressionante foi a reconstrução do templo de Jerusalém que Herodes iniciou em 20 ou 19 a.C. e só foi completada no período do procurador Albino (62 a 64 d.C.). De acordo com Schürer (1973: 308), a grandiosidade do monumento suscitou na época o provérbio: “Quem nunca viu o templo de Herodes, nunca viu nada belo”. Duane W. Roller (1998: 216) argumenta que Herodes desejava imitar, de uma certa maneira, nas stoas em torno do templo em Jerusalém, os pórticos que, em graus variados de monumentalidade, corriam ao longo

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das ruas da Roma contemporânea, especialmente as lojas em torno do Forum Iulium e as colunas do Saepta e do Teatro de Pompéia. Pode-se dizer que Herodes tenha seguido os modelos de seu tempo, ou seja, aqueles ditados pela era augustana, porque ele rapidamente instituiu os jogos olímpicos, não apenas em Cesaréia, mas também em Jerusalém. Este fato foi considerado ofensivo pelos judeus mais piedosos e apenas tolerado por eles em razão da pressão da autoridade externa romana. É interessante notar que a lealdade de Herodes aos romanos garantiu, por influência sua, a proteção destes sobre os direitos dos judeus residentes na diáspora contra a constante opressão da parte da população gentílica circundante. Emil Schürer (1973: 319) observa, de forma perspicaz, que o poder do rei dos judeus se fez benéfico apenas para os judeus não diretamente sob seu governo. Por essa época, Augusto viria a acrescentar à legislação de César um importante privilégio para os judeus: a isenção do culto imperial, que estava sendo estabelecido em todo o território romano. Todavia, a concessão de tantos privilégios e de proteção especial aos judeus por parte de Roma, ao invés de conseguir reprimir o sentimento antijudaico geral, só fez aumentá-lo. Assim, no fim do principado de Augusto, uma série de delegações judaicas apelou junto ao imperador contra muitas infrações das autoridades citadinas aos seus direitos e também contra várias manifestações de violência da população gentílica em relação às suas comunidades nas províncias da Ásia e de Cirene. Em cada caso, Roma respondia aos apelos com decretos reafirmando os direitos judaicos. Tantos foram esses decretos que tal legislação acabou, finalmente, por ser obedecida pelos provinciais (autoridades locais e a população em geral), datando o último documento neste sentido de 2/3 d.C.

IV. A deterioração das relações entre romanos e judeus na Palestina:

O fim do governo de Herodes foi caracterizado por dissensões domésticas: a conspiração de Antipáter, seu filho mais velho, contra os outros herdeiros do trono (seus meio-irmãos Alexandre e Aristóbulo) leva Herodes a uma atitude suspeita em relação a eles a ponto de prendêlos sob a acusação de alta traição e aplicar-lhes a sentença de morte, após a permissão do imperador em Roma. Ainda assim, a posição de único herdeiro não satisfaz Antipáter que resolve, então, abreviar a longa vida do pai. Porém, seu plano é descoberto e ele é preso e, de

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igual maneira, morto sob ordem de Herodes. Este, já bastante idoso, morre em seguida, não sem antes fazer um último testamento, pelo qual confia a sucessão do trono judaico a seu filho Arquelau, que se torna, assim, rei do território que compreendia as regiões da Judéia, Samaria e Iduméia. A seu filho Herodes Antipas, Herodes delega a tetrarquia da Galiléia e Peréia, e a Felipe, a tetrarquia do território que compreendia as regiões de Gaulanítide, Batanéia, Traconítide, Auranítide e Ituréia.

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Apesar de Herodes ter planejado a sucessão do trono judaico e territórios anexos, após a sua morte, houve um período turbulento de disputas entre Arquelau e Antipas. Estes reivindicavam para si, cada um conforme um testamento diferente de seu pai, o mesmo território. A decisão cabia a Augusto, que demorou em tomá-la. Todavia, precavido, o imperador tratou de enviar um procurador, Sabino, para a administração da Judéia enquanto a questão da sucessão não se resolvesse. A convulsão social ganhou mais força em razão da opressão por parte deste interventor. Arquelau já reprimira uma primeira grande revolta por parte da população, que eclodira após a morte de seu pai e antes de sua partida para Roma e tivera como motor a vontade de punir os conselheiros de Herodes pela execução dos rabinos Judas e Matias. Agora, aproveitando a maior concentração de pessoas em Jerusalém em razão da festa das Semanas (que no calendário cristão, ficou fixada como o Pentecostes), os rebeldes resolvem atacar os romanos. Estes, em contrapartida, rapidamente encurralam os revoltosos no pátio do templo. Houve resistência ainda, mas os romanos avançaram e tomaram o monte do templo, usurpando os seus tesouros. A rebelião aumenta e ganha força quando alguns soldados de Herodes resolvem se unir aos rebeldes. Eles submetem Sabino e seu destacamento num cerco no palácio de Herodes. A revolta social eclode também nas regiões da Galiléia e Peréia, incitada por líderes locais. Ao tomar conhecimento desses fatos, Varo, o governador da Síria, ruma para a Judéia, acompanhado de duas legiões de soldados. Além disso, o rei Aretas IV, soberano dos nabateus, envia tropas para auxiliá-lo. Munido de força suficiente, Varo consegue suprimir a revolta na Galiléia e, ao entrar em Jerusalém, os revoltosos que mantinham o cerco às tropas romanas no palácio real, fogem. Sabino se retira rapidamente. Varo persegue ainda os rebeldes fora da cidade. Após crucificar os insurretos, ele retorna a Antioquia. Em Roma, além de Arquelau e Antipas, uma embaixada judaica aparece posteriormente e tenta intervir junto ao imperador. Reivindicando que nenhum herodiano assuma o governo na Palestina, já que Herodes havia em muito desrespeitado suas tradições ancestrais, a delegação afirma que os judeus anseiam por viver segundo o cumprimento fiel de suas leis. Em razão disso, pedem a proteção e governo de Roma. Augusto ouve também os argumentos de Nicolau de Damasco (orador grego e antigo conselheiro de Herodes) em defesa de Arquelau e decide confirmar, em linhas gerais, o testamento de Herodes: Felipe recebe a posição de tetrarca da Gaulanítide, Traconítide, Auranítide, Batanéia e Ituréia; Antipas é nomeado tetrarca da Galiléia e

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Peréia e a Arquelau é conferido o poder sobre a Judéia, Samaria e Iduméia, embora sem as cidades de Gaza, Gadara e Hipo (que seriam anexadas à província da Síria). Porém, ao invés de receber o título de rei, ele é nomeado etnarca deste território. Este título detinha um valor mais alto que o de tetrarca (muito mais comum) e já havia sido usado pelos príncipes asmoneus antes destes adotarem o título de reis. No território da Judéia, Samaria e Iduméia, reinou Arquelau, que tinha a pior reputação dos filhos de Herodes em razão de sua brutalidade. Também tinha o hábito do pai de designar e tirar do cargo sumos sacerdotes. Seu governo tirânico foi denunciado em Roma por uma delegação da nobreza judaica e samaritana e ele foi punido por Augusto com o exílio para a Gália. A partir de então, o território foi colocado – com exceção dos anos 41 a 44 d.C. em que Herodes Agripa I governou também a Judéia por concessão do imperador Cláudio – sob governo direto de Roma, através da instituição de procuradores (prefeitos/governadores) romanos. Como estes nada conheciam dos costumes judaicos, suas menores medidas administrativas incomodavam a população judaica que começou a acreditar que o governo deles era incompatível com os princípios da teocracia. Hershel Shanks (1996: 13) observa, ao longo do século I d.C., a proliferação de grupos político-religiosos na Palestina judaica. O autor identifica, além daqueles grupos retratados por Josefo em suas obras – saduceus, fariseus e essênios –, a existência de outros movimentos: zelotas, sicários e boetusianos, além do grupo dos seguidores de João Batista. Estes movimentos personificavam as diversas e variadas reações judaicas à realidade cada vez mais opressora do domínio do poder estrangeiro. Embora de forma geral, os imperadores – com exceção de Gaio (Calígula) – procurassem fazer concessões ao particularismo do povo judaico, a tensão social e religiosa cresceu e também a hostilidade mútua. Em relação aos não judeus que residiam em Jerusalém e suas proximidades, a caracterização deles como impuros em termos morais os igualava, na opinião judaica, aos cananeus que haviam poluído moralmente o solo judaico em tempos remotos. Richard Bauckham (2005: 98) recorda que o destino merecido deles deveria ter sido a total destruição e a expulsão da terra santa. Em razão disso, é bastante provável que, para muitos judeus (principalmente os judeus palestinos), a simples presença de gentios no solo sagrado da Palestina judaica fosse indesejada e responsável por grandes males.

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V. A guerra judaica e a instituição do fiscus iudaicus:

O governo direto romano sobre a Judéia (no interior da Palestina) implicou, ao longo dos sessenta anos até a eclosão da guerra, a cobrança constante de impostos devidos ao império. Ademais, tudo aquilo que os procuradores romanos conseguissem coletar além da devida quota destinada ao tesouro romano, eles poderiam tomar para si. Desta forma, eles se conferiam o direito de impor uma série de impostos confiscatórios à população. Tais confiscos, aliados aos pesados tributos habituais, causaram o empobrecimento generalizado dos judeus palestinos, fossem eles camponeses ou habitantes de Jerusalém e outras cidades. O privilégio de apontar o sumo sacerdote do templo de Jerusalém que as autoridades romanas haviam arrogado para si era igualmente ofensivo aos olhos judaicos. Como resultado, tais sumos sacerdotes que, na noção judaica, representavam os judeus diante de Yahweh nas celebrações sagradas do templo, foram progressivamente recrutados dentre os grupos judaicos colaboradores de Roma. Esta situação foi o motor primeiro da tensão religiosa entre o governo romano e a população da Judéia, que passou a considerar a nobreza sacerdotal corrupta e indigna do serviço sagrado. O evento que representou a ‘gota d’água’ para a eclosão da revolta judaica contra Roma foi o confisco em 66 d.C. de uma parte do tesouro do templo pelo procurador na Judéia, Gessio Floro, supostamente (ou realmente) em nome do imperador Nero. Josefo relata que o governador se irritou com uma manifestação de zombaria de alguns judeus ao passarem um cesto pedindo esmolas para ‘nosso pobre procurador Floro’ (Guerra Judaica II.295). Ele exigiu que eles fossem punidos, mas seus soldados não foram capazes de encontrar os zombadores. Com isso, ele decidiu prender muitos transeuntes e os crucificar. Tal ato brutal suscitou a grande revolta da população. Assim, no ano 66 d.C., eclodiu a revolta que culminou com a destruição de Jerusalém e do templo judaico em 70 d.C. Já no ano seguinte ao início da revolta, mais um grupo judaico se definia, de acordo com Richard Horsley e John Hanson (1985: 220): os zelotas, que se uniram muito provavelmente após a reconquista romana da Judéia em 67 d.C. A guerra seguiria até 73 d.C., quando o último foco de judeus rebeldes é debelado no monte Massada, próximo ao mar Morto.

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A partir de 70, a Palestina se torna uma província separada sob governo direto de um legatus pro praetore. Como forma de punição e de recuperação dos gastos com a guerra contra os judeus, as autoridades romanas decretam que os judeus residentes no império paguem um tributo pelo simples fato de ali estarem. Tratou-se do fiscus iudaicus – o antigo imposto do Templo que, naquele momento, passava a ser coletado por oficiais romanos para o benefício de Roma e não mais de Jerusalém. Mais duas revoltas judaicas ocorreriam na primeira metade do século II d.C.: a primeira entre 115 e 117 e a segunda entre 132 e 135, esta sob a liderança de Simão Bar Kokhba, entendido pelos revoltosos como um messias que os libertaria finalmente do opressivo domínio romano. Neste segundo episódio, os revoltosos conseguiram estabelecer um breve governo judaico sobre a província da Judéia, mas rapidamente as tropas romanas reverteram o quadro e, como resultado final, os judeus foram definitivamente proibidos de residir em Jerusalém. A cidade foi reconstruída em moldes romanos e renomeada Aelia Capitolina.

VI. Conclusão:

Em termos de conclusão, vemos o início das relações entre judeus e autoridades romanas ser distante em função da derrota da dinastia asmonéia diante do exército do general Pompeu. No entanto, esta primeira derrota não dificulta as relações posteriores porque no contexto das guerras civis e da desestruturação do regime republicano em Roma, o fato de os judeus se aliarem ao partido de César lhes confere muitas vantagens: o respeito romano às particularidades judaicas, traduzido em inúmeras isenções e privilégios especiais conferidos aos judeus dentro e fora da Palestina. Ao longo da segunda metade do século I a.C., o governo do rei cliente de Roma, Herodes o grande, dá continuidade às excelentes relações judaicas com os romanos. No entanto, após a morte dele e a confusão que se estabelece entre seus herdeiros na partilha de seu território, o imperador Augusto decide instituir um governo direto sobre a região de maiores conflitos, aquela que compreendia a província da Judéia e onde se localizava Jerusalém. A simples presença de procuradores romanos e, obviamente, de grandes destacamentos do exército romano na região da Judéia já devia ser entendida pelos judeus como ofensa e

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poluição do solo sagrado próximo a Jerusalém. Além disso, as medidas de tais autoridades sempre esbarravam em minuciosas prescrições rituais da lei mosaica, desrespeitando-as. Soma-se a esta questão de ordem ritual, o aspecto religioso de uma progressiva corrupção, aos olhos judaicos mais piedosos, da nobreza sacerdotal saducéia que era conivente com o poder romano. Por fim, a questão social deve ter um espaço destacado dentre os fatores que contribuíram para a nítida deterioração das relações entre judeus e romanos: a alta cobrança de impostos e os confiscos perpetrados pelos procuradores romanos exauriram a população da Judéia em particular, e também os outros judeus palestinos, que habitavam regiões com seus próprios governantes (descendentes de Herodes) que também coletavam altos impostos para seu usufruto e para Roma. A primeira e mais forte crença judaica – aquela do pacto de Yahweh com seu povo – implicava aos judeus a obediência a uma série de regras e normas de vivência, sobretudo no espaço físico da terra santa. O contexto de tensão e fragilidade vivido pelos judeus dentro do Império Romano e, sobretudo, na Palestina judaica foi por eles interpretado como uma forma de punição de Yahweh por seus pecados, particularmente, por seu descuido em relação à Lei. A obediência parecia ser a única solução para os judeus naquele momento, esperançosos como eles estavam de que o seu Deus viesse modificar tal situação de crise e os protegesse contra o perigo de violência iminente. Tal obediência se traduzia em forma de protestos contra muitas medidas das autoridades romanas que eram desrespeitosas a Yahweh e às regras da Torá, na opinião dos judeus mais devotos. E isto, na visão romana, constituía insubordinação e deixava o judaísmo com ares de superstitio, algo que os romanos entendiam como a forma errônea de relação com os deuses. Diante dos fatores analisados, o desenrolar da história das relações entre judeus palestinos e autoridades romanas possuía o destino inevitável de uma grande guerra judaica (e até revoltas posteriores) a ser combatida pelo exército romano com a sua implacável eficiência.

Agradecimento: Eu agradeço aos colegas Pedro Paulo Funari, Margarida Maria de Carvalho e Cláudio Umpierre Carlan o convite para redigir este capítulo. A responsabilidade pelas idéias desenvolvidas no texto recai sobre a autora.

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EXÉRCITO ROMANO NA BRETANHA: O CASO DE VINDOLANDA

Renata Senna Garraffoni Universidade Federal do Paraná.

Militat omnes amans Todo enamorado é um soldado! (CIL, IV, 3149)

Introdução A relação dos romanos com o universo bélico e militar sempre esteve presente em diferentes momentos de sua História. Essa relação é tão estreita que não precisamos muito esforço para lembrarmos quando teria começado, pois se pensarmos em uma das lendas mais conhecida que deu origem a cidade de Roma, logo vem à memória as imagens de Rômulo e Remo, filhos de Marte, deus da guerra, e de Réia Silva. Funari (2001) destaca que, independente da veracidade dos acontecimentos narrados, cultivar uma relação próxima com o deus da guerra foi fundamental para a constituição da identidade romana e seu domínio sobre outros povos, pois ao manterem as histórias de suas origens junto aos deuses, legitimariam seu poder político diante dos vastos territórios conquistados ao longo dos séculos. A lenda de Rômulo e Remo seria, então, um exemplo bastante expressivo de como a guerra e, conseqüentemente, a moral militar estava entrelaçada a diversos aspectos do cotidiano romano. Desde o princípio de sua História, os romanos entraram em diferentes conflitos e, aos poucos, construíram um exército profissionalizado para manter o domínio nos variados territórios conquistados, expandindo-se primeiramente em direção ao sul da Península Itálica para, posteriormente, conquistar terras mais distantes. Neste contexto, o exército romano foi se consolidando a partir dos diferentes confrontos bélicos e, pouco a pouco, os líderes militares e os soldados passaram a ter um papel importante na constituição da sociedade romana.

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Quando estudamos o período imperial, esse contexto militar não pode ser ignorado. Na época de Augusto, já encontramos uma sociedade altamente militarizada, na qual o exército desempenha papéis fundamentais na política, economia e na constituição de vida das pessoas de diferentes camadas sociais e origem étnica. Como já ressaltou Paul Petit (1989), a força bélica dos romanos se concentrou nas conquistas terrenas e seu exército acabou por superar outros tipos de armadas antigas. Além disso, suas táticas militares de combate e as estratégias de manutenção das conquistas como a construção de estradas e de acampamentos fortificados marcaram sua administração ao longo de vários séculos. Essa capacidade de conquistar e manter domínios em lugares tão distantes geograficamente e diferentes culturalmente chamou a atenção de muitos líderes militares ao longo da História. Roma tornou-se modelo para Carlos Magno ao compor o Sacro Império Romano, encantou Napoleão, que admirava e estudava cada etapa das guerras Púnicas, por exemplo, assim como foi manipulada por Hitler e Mussolini de acordo com seus propósitos políticos no começo do século XX (Garraffoni 2006). Em diferentes momentos históricos Roma foi revisitada e suas guerras e estratégias de manutenção do Império reinterpretadas de acordo com os interesses políticos vigentes. Chamar atenção para esse ponto é, para mim, fundamental. Isso porque os estudos sobre as estratégias militares romanas, bem como o interesse em entender como Roma constituiu seu domínio esteve presente em diferentes campos de conhecimento ao longo da História. Muitos militares e líderes políticos estudaram tantos as estratégias de batalhas como a logística romana e muitas batalhas antigas foram ensinadas em academias militares modernas. Goldsworthy (2002), por exemplo, destaca que Von Schlieffen estudou e reproduziu, conscientemente, muitas das táticas militares empregadas nas guerras púnicas, transpondo-as para as necessidades alemãs nas guerras modernas. Da mesma maneira que há um grande interesse dos militares e políticos modernos nessas estratégias e táticas, a historiografia desenvolvida a partir do século XIX também dedicou muita atenção aos estudos das conquistas e do exército romano, fundando um dos mais abrangentes campos de estudos da História romana: a História militar. Dentro desse vasto universo de produções acerca do tema é necessário fazer alguns recortes e situar a reflexão que gostaria de propor nas próximas páginas. Não é minha intenção aqui recuperar todos os estudos acerca da História Militar de Roma, mas discutir os principais modelos interpretativos no campo historiográfico e indicar as principais renovações que o campo de estudo vem sofrendo a partir das críticas pós-coloniais. Nesse sentido, a reflexão que segue trata de um momento específico, o Império romano, e está estruturada em

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torno de um eixo bem definido: procurarei indicar a base da argumentação dos modelos interpretativos mais tradicionais fundados na visão imperialista do século XIX e construídos, principalmente a partir dos textos, e discutir a importância da Arqueologia para uma flexibilização dos modelos e a possibilidade de deslocar o foco de análise, buscando uma interpretação mais balanceada entre as conquistas romanas e as modificações locais proporcionadas por elas. Iniciarei, então, por meio de uma reflexão teórico-metológica para, em seguida, comentar sobre a presença militar na moral e no cotidiano romano e como a historiografia construiu modelos normativos a partir da narrativa dessas experiências, bem como tentar explorar outras possibilidades de análise.

Por que pensar teoria para estudar o Império romano? Antes de iniciar a análise do mundo romano, gostaria de ressaltar que a reflexão que busco construir está fundamentada em uma percepção de História profundamente inspirada na noção na qual o/a historiador/a não está isento/a de seu tempo histórico, ou seja, que o/a estudioso/a sempre olha para o passado a partir de seu momento presente. Essa postura implica em considerar que a escrita da História não é neutra, mas que está fundamentada em um campo de reflexão. Como afirmaram recentemente Funari e Silva (2008), quando o/a historiador/a considera que produz o passado a partir das escolhas de fontes e de metodologias de análise, isso implica em afirmar que o estudo dos modelos teóricos é imprescindível para fundamentar tais escolhas e construir uma interpretação. Nesse sentido, ao compartilhar com essa postura de Funari e Silva, acredito que há diferentes maneiras de se escrever a História e ao fazermos isso, assumimos um papel de intermediação entre passado e presente, baseado em filiações teóricas. Logo, aquele que escreve sobre o passado não está isolado, mas está imerso em seus valores e visões de mundo, pautado em modelos interpretativos que se constituem a partir dos fundamentos epistemológicos da disciplina História. Essa percepção ganhou força a partir do que Joyce (1998) apontou como o colapso dos modelos normativos. De fato, essa afirmação de Joyce está dentro de um contexto de finais dos anos de 1990 no qual estudiosos de diferentes áreas começaram a questionar os rumos da chamada meta-narrativa histórica. Lyotard (1997: 37/38), por exemplo, afirmou que a descrença com esta forma de produção de conhecimento acerca do passado abriu espaço refinarmos nossa sensibilidade para percebermos as diferenças e desafiou nossa habilidade de pensar sobre o que nos parece radicalmente distinto. Nesta mesma época, Baudrillard (1997)

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também desafiou os historiadores a buscarem alternativas para se escrever a História, abandonando a noção de causa/efeito em prol da construção de novas explicações sobre o passado. Munslow (2000: 189), por usa vez, chamou atenção para a urgência de pensar como construímos o passado como História e os arqueólogos Shanks e Hodder (1998) defenderam a importância da ação dos arqueólogos de maneira responsável e consciente de suas intervenções em sítios arqueológicos para a produção de interpretações multivocais do passado. Passado cerca de uma década em que reflexões como essas foram cunhadas, é possível perceber os desdobramento dessas críticas, pois nota-se cada vez mais a preocupação com o estudo da cultura como parte da construção da vida coletiva, buscando destacar os conflitos e a diversidade na qual as relações humanas se desenvolveram no passado. Nesse sentido, as revisões teóricas e metodológicas que atravessaram o campo de trabalho de historiadores têm permitido a construção de novos objetos de estudo, além de possibilitar a produção de uma reflexão sobre as repercussões políticas de cada uma das áreas de pesquisa. Embora tenha sintetizado em poucas palavras um amplo debate epistemológico, o que gostaria de enfatizar é que a reflexão que proponho acerca da História militar de Roma está fundamentada em um amadurecimento dessas discussões nas últimas décadas e na sua importância para abrirmos possibilidades novas maneiras de se pensar o poder e influência do exército romano nas regiões conquistadas. Nesse sentido, a leitura que proponho compartilha de uma percepção teórica na qual se centra na busca pela construção de modelos interpretativos mais flexíveis que procurem romper com as grandes narrativas e que enfatizem a busca por estudos da sociedade nas suas múltiplas possibilidades. Com essas idéias em mente enfoquemos, então, alguns aspectos do mundo militar romano e suas principais interpretações.

História Militar e mundo romano

A pequena cidade de Pompéia, situada ao sul da península itálica, tem surpreendido os estudiosos com a potencialidade de informações sobre o início do Império romano (Figura 1). Soterrada pelo Vulcão Vesúvio em 69 d.C., Pompéia é considerada hoje um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo, tornando-se um lugar único para se pensar os diferentes aspectos da vida social e cultural do início do Principado. As paredes que resistiram às lavas do vulcão tem se mostrado um importante corpus de pinturas de diferentes estilos e

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inscrições das mais variadas possíveis, desde as pintadas com letras grandes para serem vistas de longe, até pequenas incisões com uma espécie de estilete para ser lido de perto, os grafites (Garraffoni, 2005; 2007a; 2007b; 2007c). Escritos por pessoas das mais diferentes categorias sociais, os grafites são registros impares dos humores dos habitantes de Pompéia, pois explicitam suas paixões e ódios, seus amores e desavenças, suas piadas, suas ironias, seus desejos e sonhos. É desse contexto particular que foi destacada a expressão citada no início dessa reflexão. Militat omnes amans, que na tradução proposta por Feitosa (2005: 118) significa Todo enamorado é um soldado, me parece um ponto de partida interessante para pensar aspectos da vida militar no mundo romano. A pessoa que escreveu essa mensagem em uma das paredes de Pompéia, embora anônima e desconhecida, soube captar de forma sintética e poética um dos aspectos mais marcantes da sociedade romana, sua estreita relação com as guerras e a constituição de uma visão de mundo militar. Se considerarmos a análise filológica da sentença, logo se percebe que o/a autor/a emprega o verbo do vocabulário militar milito (militat) que significa “seguir a milícia”, isto é, “ser soldado”, mas que foi muito empregado por Ovídio em sua linguagem amorosa com significado de “dar-se a exercícios amorosos”. Essa dubiedade de sentido é algo bastante conhecido dos romanos, pois comparar a conquista amorosa a uma batalha a ser vencida aparece em diferentes situações, desde os escritos de Ovídio às sátiras como o Satyricon de Petrônio ou Asno de Ouro de Apuleio. Essa particularidade indica aspectos da visão de mundo dos autores transpassada por valores de uma moral constituída a partir das virtudes guerreiras. De fato, se pararmos um pouco e fizermos um rápido levantamento dos principais textos escritos pelos romanos, rapidamente se perceberá que o anônimo de Pompéia não está só, mas há uma longa tradição de escritos com ênfase nos assuntos militares. Enquanto Ovídio traça paralelos com as conquistas amorosas, indicando a virilidade do homem que conquista, Petrônio ou Apuleio satirizam a linguagem amorosa e os aspectos da vida dos soldados. Por outro lado, Tito Lívio e Políbio narram as guerras púnicas, Salústio relembra a guerra de Jugurta, Júlio César imortaliza as guerras na Gália, Tácito e Suetônio destacam a força do exército romano, só para destacar algumas narrativas latinas. Cada autor, em sua época e com suas características literárias próprias, compõe uma intricada gama de textos na qual conquista amorosa, virtude, virilidade, poder e força são constantemente evocadas e delineiam os contornos de uma visão de mundo masculina e vencedora. A grande quantidade de relatos militares entre os autores latinos não escapou aos

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olhares dos estudiosos do século XIX que, ao estabelecerem os rumos da moderna historiografia, tornaram o estudo das guerras e, conseqüentemente a História Militar, a essência da História do mundo antigo (Hölscher, 2003). Seguramente essa escolha não foi aleatória, pois se considerarmos que nessa época se desenvolve uma política imperialista, na qual europeus conquistaram parte do Oriente e da África, o estudo dos métodos militares e de governo dos romanos ocupou um lugar de destaque. Partindo da idéia na qual generais e políticos da modernidade poderiam aprender a manter seus domínios conhecendo a História de seus supostos antepassados, renomados estudiosos do século XIX selecionaram e analisaram textos romanos; autores antigos foram criticados e julgados por aqueles que buscavam a verdadeira história de Roma. Essa busca por uma essência, por uma verdade inquestionável, definiu os cânones para o estudo das guerras antigas, pois selecionou os textos que deveriam ser considerados imparciais para que os modernos pudessem conhecer as estratégias políticas e militares romanas, compreender e explicar como este povo, mais de dez séculos antes, havia conseguido dominar praticamente todo o mundo conhecido até então. O tema das guerras e das conquistas militares seguiu interessando os estudiosos pelo século XX e ainda hoje ainda há muitos pesquisadores do mundo romano que se dedicam a compreender a vida militar antiga. Embora o interesse ainda seja vivo entre os especialistas, as abordagens são muito distintas das desenvolvidas pelos estudiosos do século XIX. Acredito que uma das diferenças mais marcantes consiste no fato de que os especialistas vão além do estudo do domínio exercido pelos romanos aos outros povos que conquistaram, mas interpretam as guerras romanas também como fenômeno social e cultural, capaz de moldar visões de mundo. Nesse sentido, as críticas aos modelos interpretativos e o desenvolvimento das teorias sociais ao longo do século XX, que mencionei a pouco, trouxeram à tona uma série de questões alargando os horizontes a serem explorados. Para entender esses deslocamentos é preciso retomar a noção comentada anteriormente, na qual o historiador sempre olha para o passado a partir de sua experiência no presente (Jenkins, 2005; Funari e Silva, 2008). Assim, se no século XIX, época do auge do imperialismo europeu, foi fundamental pensar em políticas de domínio ou nas estratégias militares que os romanos desenvolviam para conquistar e manter seus territórios, hoje em dia, após os eventos do 11 de setembro e das inúmeras experiências de violência com o terrorismo latente em diferentes partes do mundo, muitos tem questionado as noções de violência e passam a pensar, por exemplo, como os romanos lidavam com as perdas, buscando interpretações mais balanceadas do Império,

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mostrando suas múltiplas facetas, não somente como domínio absoluto, mas expondo a exploração dos nativos e escravidão derivada desse tipo de governo (Hingley 2005). Os estudiosos do grupo do CEIPAC da Universidade de Barcelona, liderados por José Remesal, por sua vez, tem se dedicado a estudar a importância do exército e da estrutura militar organizada por Augusto para a manutenção do comércio e distribuição do azeite em diferentes partes do Império romano (Remesal, 2008; Marimon 2004; Pons 2004; Funari, 2002; Carreras e Oleste 2008 – entre muito outros). As pesquisas desenvolvidas pelo CEIPAC e seus membros espalhados por diferentes Universidades dentro e fora da Europa tem como base a cultura material, ou seja, as ânforas olearias e seus selos, indicando que a Arqueologia é uma ferramenta fundamental para se pensar outras maneiras de se aproximar do exército romano em períodos no qual não estão em campos de batalha. Os exemplos dos estudos acerca da questão da violência ou da relação entre economia e exército revelam uma faceta importante do desenvolvimento dos novos modelos interpretativos acerca da história militar romana desenvolvida nas últimas décadas: o interesse pela cultura material. Funari (2002) chama atenção para o fato de que, no início dos anos de 1980 Alföldy já afirmava ser impossível estudar o mundo antigo sem Arqueologia. Esse crescente interesse pela cultura material tem proporcionado aos estudiosos novas leituras acerca das questões militares. Nesse novo contexto, os relevos de mármore, as lápides funerárias, lamparinas, ânforas, escavação de acampamentos militares, pinturas de parede e suas inscrições tornam-se fontes primárias importantes, pois permitem enfoques que não se restrinjam a narrativa das grandes batalhas ou a comemoração das vitórias marcadas por autores da elite romana, mas que enfatizem as imagens que a guerra produziu, as reações e os sentimentos daqueles que vivenciaram tal experiência de diferentes pontos de vista, as estratégias de abastecimento e integração econômica, a religiosidade, a disseminação da língua latina, entre muitos outros aspectos que não eram abordados até então. Neste sentido, é possível refletir sobre como o exército influenciou as concepções de vida e morte dos latinos e dos povos conquistados, as mudanças alimentares e lingüísticas e provocou uma diversidade de situações e reacomodações ao longo do período do Principado. Ou seja, a Arqueologia tem ajudado os especialistas a expandir as possibilidades de estudo da história militar romana, essa não mais se circunscreve ao domínio absoluto de Roma sobre os demais povos, mas pelo contrário, as armas, a logística, as táticas e os planos antes consideradas técnicas deslocadas para o exercício do poder absoluto de Roma, passam a ser entendidas como parte integrante do Império, com conflitos e acomodações inerentes aos locais em que os acampamentos militares foram estabelecidos após a conquista dos territórios.

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O estudo da cultura material torna-se, portanto, uma ferramenta importante para compreender as particularidades de cada situação ao permitir a possibilidade do estudo de caso. São esses dois aspectos que gostaria de abordar com mais detalhes nas páginas a seguir.

Arqueologia e História: releituras do passado

A Arqueologia, quando definida como disciplina acadêmica em meados do século XIX, tinha como principal objeto de estudo os artefatos, isto é, objetos produzidos pelos homens em diferentes culturas (Funari, 1988). Seu principal objetivo naquele momento consistia, segundo Siân Jones (1997), em traçar as origens dos povos europeus. Nesse sentido, a metodologia desenvolvida era bastante característica da visão teleológica predominante na época, ou seja, partia-se do conhecido (Alemanha, Inglaterra, França do século XIX) e recuava-se no tempo com a finalidade de encontrar os primeiros registros arqueológicos destas nações, criando uma concepção de identidade homogênea e quase eterna dos povos estudados (Funari, 2007). Dessa forma, os primeiros modelos interpretativos que foram desenvolvidos no campo da Arqueologia enfatizam a busca pelas origens européias e o estabelecimento das identidades nacionais. Esta proximidade com o saber histórico do período, isto é, recorrer ao passado para uma explicação sobre as sociedades daquele presente, fez com que, durante muito tempo, a Arqueologia fosse considerada uma ciência auxiliar da História e a disciplina acabou, por muito tempo, reduzida ao status de técnica. É por isso que muitos historiadores ainda hoje defendem que o principal objetivo da Arqueologia seria recolher e classificar objetos para que, a posteriori, fossem analisados por historiadores. Assim como a historiografia passou por profundas mudanças ao longo do século XX, essa Arqueologia de cunho nacionalista também foi criticada. Tilley (1998), um dos mais influentes estudiosos no campo da teoria arqueológica, afirma que a chamada New Archaeology (ou Arqueologia processual) se desenvolveu entre os arqueólogos norteamericanos como uma clara reação aos pressupostos dessa arqueologia européia históricocultural. Fundamentada nos valores capitalistas dos EUA da década de 1960, a New Archaeology rapidamente conseguiu adeptos no mundo anglo-saxão com um objetivo bem definido: o investimento em tecnologia nas escavações e um constante afastamento da História em prol do diálogo com modelos antropológicos de cultura. Segundo Tilley, o lado positivo dessa ruptura foi a consolidação da Arqueologia como disciplina com métodos próprios, rompendo com a noção de auxiliar à História.

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Se por um lado a disciplina tornou-se mais acadêmica e autônoma, Tilley comenta que o excesso de objetividade imposto a essa nova maneira de pensar a cultura material e sua escavação fez com que a Arqueologia se afastasse de seu caráter humanístico tratando, muitas vezes, o passado de maneira mecanicista. Para Tilley, assim como Hodder e Shanks (1998) a idéia central desenvolvida pela New Archaeology, na qual o homem, independente do período em que viveu, busca a tecnologia para minimizar os esforços e maximizar os resultados, é mais um conceito absoluto fundamentado na realidade capitalista que uma realidade dos povos do passado. A crítica mais aprofundada a esses pressupostos mecanicistas da New Archaeology ocorreu a partir dos anos de 1980, com a chamada arqueologia pós-processual. Funari (2007: 81) comenta que os arqueólogos deste período se uniram às vertentes filológicas, filosóficas e históricas para uma crítica aos pressupostos não só da New Archaeology como também da arqueologia histórico-cultural (que nunca deixou de existir), argumentando que tais modelos constituíam discursos a serviço de potências imperialistas e de exploração, destacando, pela primeira vez, a dimensão política da disciplina. Nesse novo contexto, muitos arqueólogos passaram a argumentar que a Arqueologia, considerada uma disciplina autônoma e desobrigada de auxiliar a História pode fornecer dados distintos dos encontrados nos textos e trazer uma visão mais balanceada do passado, denunciando aqueles que constantemente foram excluídos das narrativas históricas. Assim, como já alertou Ucko (1995) ou Mackenzie & Stone (1990) a análise da cultura material ajuda a democratizar o estudo do passado, pois permite a captura de momentos específicos e estudos de caso, ajudando a criticar as exclusões e os silêncios muitas vezes presentes em discursos mais elitizados sobre o passado. Essas discussões no campo teórico-metodológico da Arqueologia influenciaram profundamente o estudo do mundo antigo, em especial os estudos acerca do Império romano. Hingley, em diferentes trabalhos, argumenta que o fato dos romanos terem desenvolvido a escrita e marcado a memória dos imperadores a partir de relatos das mais distintas formas literárias, constituiu-se uma tradição de interpretar o Império e seu poderio militar a partir dos textos, sem considerar que eles expressam uma visão específica: a dos vencedores (1996; 2000; 2001; 2002; 2005). Assim, desenvolve seus argumentos afirmando que há um discurso de dominação que foi tomado como verdadeiro e único, focando as análises somente no exercício de poder sobre as populações nativas, consideradas passivas e bárbaras. A proposta do estudioso é uma crítica a essa perspectiva, por isso indica a importância de entender esses textos como discursos de autoridade e poder, construindo uma perspectiva na qual o contraponto com a cultura material é fundamental para flexibilizar as perspectivas

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de poder exercidas pelo Império, explorando também seus conflitos e contradições. A cultura material pode indicar como essas relações eram percebidas de outros pontos de vista e não necessariamente do da elite, fundamentada nos textos canônicos, indicando novos espaços para se pensar os símbolos que representam a cultura militar e o exercício de poder nas comunidades nativas conquistadas. Essa estratégia seria interessante para ouvir as vozes de outros sujeitos, uma vez que os textos são escritos de um ponto de vista de uma elite masculina e vencedora, abafando outras possibilidades de relações sociais. Nesse sentido, considerar os avanços metodológicos da Arqueologia pós-processual, entendê-la como disciplina autônoma, isto é, capaz de produzir conhecimento independente da História, configura-se em uma estratégia interessante para pensar o exército romano em sua multiplicidade e os estudos de caso são fundamentais para aprofundar essas questões. O diálogo entre escrita e cultura material seria, portanto, uma aproximação teórica fundamentada em busca de uma interpretação mais crítica do Império romano e, conseqüentemente, de seu exército. Com essas considerações em mente, seria interessante, então, nos concentrarmos na Britannia, mais especificamente em Vindolanda, um forte romano situado nas proximidades da muralha de Adriano.

A Bretanha romana

A chamada Britannia ou Bretanha Romana corresponde à atual Inglaterra, País de Gales e parte da Escócia, um grande território que outrora fora habitado por diferentes povos nativos como os Icenos, Dubonni, Durotrigues, Belgae, Brigantes, entre outros (Figura 2). De maneira geral, os estudos acerca da ilha no período antigo são divididos em duas etapas: a Idade do Ferro, também conhecida como a Pré-História da ilha, e a chegada dos romanos. Nosso foco de análise se restringirá ao período da chegada dos romanos e da implementação dos acampamentos militares na tentativa de se pensar os modelos interpretativos propostos para se estudar o contanto entre romanos e bretões. Pensar essa relação a partir das relações estabelecidas com exército romano na região é uma estratégia interessante para se estudar a presença militar romana nos limites do Império e os conflitos e acomodações que os acampamentos militares provocaram ao se estabelecerem em terras distantes. Assim, antes de voltar nossa atenção à Vindolanda, gostaria de ressaltar alguns debates acerca da presença do exército romano na Bretanha. Sabemos que, embora Júlio César tenha estabelecido contatos com os bretões em meados do século I a.C., a Bretanha é anexada ao Império somente em 47 d.C., durante o

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governo do imperador Claudio, quando as primeiras colônias foram fundadas. Em 60 d.C. devido às revoltas locais lideradas pela rainha Boadicea, Nero quase perdeu o controle dos territórios conquistados por Claudio. Assim, no período dos Flavios (69 a 138 d.C) a militarização da região foi mais intensa e as relações políticas com os reis locais foram alteradas. Muitos acampamentos militares são construídos nesse período, mesmo que as populações das cidades fossem, na sua maioria, de origem bretã. O próprio recrutamento tornou-se mais intenso, pois muitos se interessavam pela possibilidade de obtenção da cidadania romana ao final do cumprimento das obrigações militares. Estudar a presença do exército romano na região é fundamental para compreendermos a administração política e econômica da província, bem como as relações étnicas e culturais que se desenvolveram em um contexto de intenso contato entre romanos e populações bretãs de diferentes origens. Nesse sentido, o exército romano não era um meio somente de conquista de territórios a partir de guerras, mas também um instrumento poderoso de organização da província. O estudo desses acampamentos e das cidades que os romanos construíram pela Bretanha tem sido alvo das pesquisas científicas desde o final do século XIX e início do XX. Hingley (2005) argumenta que o primeiro a sintetizar o significado da presença romana na Bretanha teria sido Haverfield no início da década de 1920. Os estudos de Haverfield indicaram que os romanos chegaram na Bretanha e, a partir do estabelecimento dos exércitos e da organização das províncias, teriam levado a civilização aos povos bárbaros, fenômeno que denominou de Romanization (Romanização). Em primeiro momento, a noção era de progresso, ou seja, a presença romana na região teria trazido paz e tecnologia para o desenvolvimento das populações nativas, algo considerado bastante positivo na opinião do autor. Nos trabalhos já mencionados de Hingley, o estudioso ressalta que essa idéia inicial da Romanização acompanhou os arqueólogos historiadores por todo o século XX, embora com nuances ressaltadas os modelos interpretativos construídos, em geral, enfatizavam as melhoras e a evolução, baseando-se sempre no exercício do poder. É somente na década de 1980 que Martin Millett questiona esse tipo de argumentação de maneira mais frontal. A partir de um estudo aprofundado do conceito de Romanização, Millett produziu uma crítica a essa interpretação do processo de conquista, propondo que as primeiras ciuitates tinham como base os grupos sociais da tardia Idade do Ferro pré-romana. A incorporação das elites locais teria transformado seus líderes nos decuriones dessas ciuitates. A perspectiva de Millett inovou por considerar o papel dos nativos nesse processo, algo quase ignorado nos modelos

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antecedentes, que na grande maioria das vezes focava somente no poder romano. Porém, embora Millett tenha rompido com a idéia de uma evolução técnica natural (do primitivo e bárbaro para o romano tecnologicamente superior), o autor manteve uma noção de aculturação implícita a sua interpretação. Os estudos de Millett provocaram uma série de releituras acerca as relações romanos/nativos. Atualmente muitos estudiosos argumentam que as antigas sociedades bretãs não teriam motivo para abandonar a própria cultura e, simplesmente, adotar uma superior, mas consideram sua multiplicidade, assim como entendem que a romana também era composta por uma diversidade étnica. Logo, assumir que um bretão abandonaria sua cultura para se tornar romano, implica, para esses estudiosos, em uma percepção ilusória, pois se assume que os dois povos eram homogêneos tanto étnica como culturalmente. Nas pesquisas mais recentes, muitos estudiosos têm mostrado, por exemplo, que os bretões se dividiam em grupos bastante diversificados e desde as camadas populares até as elites a noção de status social diante da presença romana era entendida de maneiras distintas. A mesma lógica pode ser aplicada aos romanos, pois mercadores, soldados e oficiais, para mencionar apenas alguns grupos, possuíam diferentes posições sociais e interesse em sua na permanência na Bretanha, indicando uma pluralidade de possibilidades de relações sociais pouco consideradas anteriormente. Pensar o caso do exército romano dentro dessa perspectiva de análise é bastante instigante. Como o exército era composto de legiões e tropas auxiliares, continham pessoas de diferentes origens étnicas e experiências, soldados e oficiais, controlados, porém, por um comando unificado em Roma. Considerar essas ambigüidades e contradições é fundamental para buscar construir modelos interpretativos alternativos, como atestam Funari e Carreras em estudos sobre a distribuição de azeite na Bretanha (1998; 2000). De acordo com os autores, os acampamentos militares na Bretanha, em geral, providenciavam seus próprios suprimentos, como indica a evidência arqueológica encontrada em Vindolanda, mas a obtenção de alguns tipos de suprimentos em específico era determinada por alguns princípios oficiais em todo o Império, conhecidos como annona. Esse seria o caso do azeite. Sua distribuição e consumo eram controlados por Roma e o exército teria uma função importante dentro desse sistema administrativo. Como argumentam os autores, o contrato para a compra de azeite de oliva poderia ser estabelecido com negociantes ou produtores específicos, sendo que o produto não configurava uma opção, mas um consumo imposto. Nas tabuinhas que contem os registros militares de Vindolanda, que discutiremos em detalhes a seguir, há referências a compra de sandálias e

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meias nas quais há uma liberdade maior de escolha no momento da compra, no entanto, o consumo do azeite seria mais controlado. As ânforas Dressel 20, proveniente dos mesmos fabricantes na Hispania indicam que os oficiais utilizavam uma rede de abastecimento militar para trazer, em alguma quantidade, um produto que deveria ser distribuído entre os soldados e descontado diretamente do soldo. A partir dessas considerações, os autores encontram duas possibilidades de interpretação, uma no campo econômico e outra na esfera da etnicidade. No que diz respeito à questão econômica, Funari e Carreras indicam o interesse dos produtores béticos e seus contratos com a administração imperial, concluindo que havia uma intervenção política do próprio imperador, iniciando com Augusto e se desmantelando somente no final do século II d.C., quando as ânforas africanas (Dressel 23) passam a ser encontradas com mais freqüência. Do ponto de vista étnico, Funari e Carreras analisam quem poderia ser os eventuais consumidores e as razões para o consumo de um produto desconhecido na região até a chegada dos romanos. No que diz respeito aos consumidores os autores afirmam que estão vinculados ao contexto militar, seriam imigrantes meridionais (legionários, administradores, comerciantes, entre outros), pessoas que acompanham os romanos e seu exército, além dos próprios soldados. Por outro lado, no que tange as razões do consumo, os autores enumeram várias hipóteses, entre elas, reduzir problemas digestivos, curar feridas, amenizar as distâncias, pois psicologicamente muitos latinos poderiam se religar as suas origens, criando solidariedade em ambiente hostil, enfim, serviria para reordenar identidades e Roma estimulava isto como uma maneira de construir um estilo de vida romano. A maneira como os autores apresentam a questão da identidade não é estanque, como o que ocorre nos modelos que apresentamos anteriormente, mas ao contrário, indicam seus conflitos e ambigüidades. Se no contexto militar o consumo era imposto, pois já vinha descontado no soldo, o azeite, por ser um produto caro, também pode ser entendido como símbolo de status entre os membros das elites bretãs que acabaram por adotá-lo. Assim, civis se diferenciavam de militares e entre os civis, membros da elite bretã acabava por também diferenciar-se das camadas mais populares que não tinham condições de obter o produto. A partir dessas múltiplas possibilidades de análise das formas de identidade é possível perceber as dicotomias que a sociedade local estava enfrentando a partir da chegada dos romanos, ou seja, como estava se reorganizando segundo sua origem, camada social e a postura diante da nova situação política. Nesse sentido, os estudos de Funari e Carreras indicam que a análise dos fragmentos das ânforas olearias pode nos fornecer, portanto, dados concretos para pensar a organização

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econômica e militar com participação direta do Estado, as dietas ou a presença das diferentes etnias e suas relações sociais diante do contato. Tais considerações são um exemplo significativo para pensarmos que, análises focadas em modelos interpretativos mais sensíveis a diversidade e a complexidade da cultura material, podem diversificar nossos olhares acerca do exército. Essa seria, em minha opinião, a grande contribuição do estudo de caso, pois ajuda a pensar uma realidade social em suas múltiplas facetas. O caso de Vindolanda é bastante interessante, pois diferentes tipos de artefatos foram encontrados na região, alterando substancialmente a idéia que se tinha da estrutura e organização de um acampamento militar romano. Assim, antes de passar para as considerações finais, gostaria de me deter um pouco mais nesse acampamento romano.

Vindolanda e sua importância para a História militar

O forte de Vindolanda, localizado próximo a muralha de Adriano, tem sido escavado há algumas décadas e se tornado uma importante fonte de informações sobre a presença do exército romano na Bretanha. Para além dos fragmentos de cerâmica das ânforas olearias que lá foram encontradas e estudadas por Funari e Carreras, o forte Vindolanda apresenta uma particularidade interessante: por estar localizado em uma região úmida e bastante pantanosa, uma série de artefatos de couro, como os calçados, e de madeira foram preservados mantendo-se quase intactos, propiciando uma série de novas informações muito raras de serem encontradas. Dentre esses artefatos, gostaria de me deter às tabuinhas de madeira. As tabuinhas são o suporte de escrita dos antigos romanos, eram de madeira e possuíam uma camada de cera onde escreviam com seus estiletes (Figuras 3 e 4). Bowman estudou e publicou várias delas. A partir do levantamento desse estudioso, percebe-se que nas tabuinhas encontradas há uma grande diversidade de temas abordados, desde questões administrativas do exército, como as analisadas por Funari e Carreras, até cartas de caráter pessoal. Ao longo de suas considerações sobre o tema, Bowman destaca que são encontradas caligrafias muito distintas nas tabuinhas, não há uma uniformidade de letras e, os temas tratados, permitem um estudo tanto da difusão do latim em territórios distantes bem como aspectos do cotidiano e do controle romano exercido por meio do exército. A partir dos exemplos anteriormente citados, encontramos nessa documentação relatos de compra e venda de produtos, da distribuição de azeite, de controle dos soldos, a disciplina do exército, correspondências que proporcionam uma visão mais ampla das atividades do

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forte entre 90 a 120 d.C. Essas cartas também permitem a análise da tensa relação entre a autonomia e o controle do exército por Roma, indicando as ambigüidades da instituição em uma região de fronteira bem distante do centro de poder. Essa cultura escrita institucional permitiu consolidar uma rede de comunicação fundamental para o domínio das regiões conquistadas, indicando várias possibilidades de se pensar o exército, além das batalhas presentes nos textos canônicos. A escavação de Vindolanda permitiu o acesso a fragmentos do cotidiano da relação entre os romanos e bretões, entre militares e civis, bem como trouxe para a cena inúmeros personagens pouco conhecidos até então: por meio de cartas sabemos sobre o cotidiano de escravos, mulheres, mercadores entre outros sujeitos que acompanhavam o exército romano e que pouco sabíamos sobre suas vidas. Mesmo que se considere que a capacidade de ler e escrever era restrita, como mesmo atesta Bowman, os registros encontrados indicam, pela forma e conteúdo, que não eram textos profundamente eruditos, como os de Plínio ou Cícero, por exemplo, mas constituíam um importante meio de comunicação entre os membros alfabetizados do império, sejam eles civis ou militares. Assim, estaríamos diante de uma documentação que expressa traços da burocracia imperial e, também, do cotidiano de moradores do forte e das redondezas. Se no caso da documentação imperial temos os relatos dos gastos do exército, como os mencionados por Funari e Carreras, exemplo de cartas de moradores da região seria o convite que Claudia Severa envia para Supícia Lepidina:

“Claudia Severa para Lepidina, saudações Convido-te a vir à comemoração do meu aniversário, no dia 11 de setembro, o que tornará o dia mais agradável, com a tua presença. Saudações a teu Cerealis. O meu Elio saúda-te e teus filhos. Espero-te irmã. Saudações irmã caríssima, espero estar bem, saudações. Sulpícia Lepidina, esposa de Flavio Cerealis de Severa”

Funari (1995), ao apresentar essa tradução diretamente do latim aqui reproduzida, comenta que ao final Severa escreve suas saudações de próprio punho, ou seja, o convite teria a primeira parte escrita por outra pessoa, mas as palavras finais e mais afetuosas teriam partido de Severa. Ressaltar esse aspecto apontado por Funari é relevante por duas razões principais: em um primeiro momento por ser um evento organizado por uma mulher e, em segundo lugar, por indicar seu conhecimento das letras. Essas duas ressalvas já seriam suficientes para repensar a historiografia que defende o silêncio das mulheres, como afirmou Finley (1990), ou

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seja, que se pauta na idéia da falta de fontes que retrate o cotidiano das mulheres, restringindo seu espaço à reclusão ou sua submissão aos homens. Por meio das palavras de Severa percebe-se sua proximidade com Lepidina, já que no convite se dirige à Lepidina de maneira bastante cordial, usando expressões como soror ou anima mea, enviando saudações ao marido e aos filhos ou comentando sobre sua alegria em recebê-la. Nesse sentido nos deparamos com um contexto muito distinto, pois se antes da escavação do forte de Vindolanda as análises destes ambientes militares eram marcadas como um espaço exclusivamente masculino, após o contato com cartas como essa a presença das mulheres nas proximidades do forte abrem novos caminhos para pensarmos relações familiares ali presente, bem como as relações de gênero. Assim, para além de indicar a possibilidade das mulheres conhecerem as letras e se corresponderem, a difusão do latim entre os moradores do acampamento e da região, esse convite nos leva a pensar em situações até então não pouco imaginada: a presença de mulheres e crianças nos fortes romanos, sua vida relativamente autônoma, sua capacidade de organizar encontros, aspectos do cotidiano feminino que indicam sua interação ao meio social no qual vive. A escavação do forte proporcionou, então, o acesso a toda uma documentação escrita que retrata questões administrativas e cotidianas, as relações de amizade, afetividade, seus laços econômicos, o controle de Roma sobre seus soldados e as distintas formas de escrita em latim. Essas tabuinhas destacam as particularidades regionais que afetaram a língua latina e indicam que a escrita foi importante na organização do forte, bem como na comunicação de seus habitantes, marcando um ponto de vista muito distinto do predominante nos textos canônicos. Embora também se trate de escrita, os documentos recuperados por meio da intervenção arqueológica expressam as particularidades locais, tanto lingüísticas, como aponta Bowman, como sociais e cotidianas que podem ser recuperadas em cartas e convites como o escrito por Severa. Assim, seja por meio da interpretação da cerâmica, como fez Funari e Carreras ou por meio das tabuinhas, a intervenção arqueológica e o estudo de caso podem nos ajudar a recuperar fragmentos da vida cotidiana de sujeitos de diferentes condições sociais e étnicas, pluralizando a nossa visão acerca do imenso território que constituiu o império. Para além disso, o estudo de Vindolanda é importante para se pensar como os romanos organizavam sua estrutura burocrática e administrativa, pensar a importância do exército nas fronteiras e em locais de distantes, do fornecimento e distribuição de alimentos e das relações afetivas. A partir do estudo da documentação de Vindolanda é possível pensar o exército e a presença militar a partir de olhares que não se restrinjam às batalhas, mas que considere a vida em suas diferentes facetas.

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Considerações Finais

Na reflexão proposta nessas páginas busquei discutir alguns temas que considero relevantes. Parti da discussão teórica e epistemológica para tentar, de alguma maneira, destacar a importância da revisão dos modelos normativos e buscar por interpretações alternativas de aspectos relativos ao exército, à ocupação romana e às relações com os habitantes nativos. A escolha da Bretanha romana não foi aleatória, mas proposital, pois a documentação de Vindolanda tem desafiado tanto os estudiosos ingleses como os de outras partes do mundo. De fato, como afirma Dommelen (1997) a cultura material, encontrada por meio das escavações arqueológicas, permite o estudo de caso e esse, por sua vez, ajuda a redefinir a situação do local no qual foi encontrado. Nesse sentido, Vindolanda, com suas peculiaridades, possibilita que pensemos a História Militar e a presença do exército na fronteira a partir de pontos de vista pouco explorados. Diferentemente do que encontramos nos textos eruditos escritos por romanos, membros da elite que viviam nas proximidades de Roma, marcados com visões e interesses próprios de seus períodos e condições políticas, os artefatos encontrados em Vindolanda possibilitam análises a partir do prisma da diversidade. Diversidade que nos desafia a buscar novos modelos de interpretação, que nos instiga a pensar sobre a relação da língua e cultura não somente pelo viés da dominação, mas também da comunicação, que nos proporciona uma miríade de sujeitos que, até então, estavam excluído do universo militar como as mulheres e crianças. Refletir sobre as particularidades das relações de gênero, econômicas e sociais abre a possibilidade de focarmos em uma multiplicidade de aspectos do cotidiano e construirmos outras interpretações acerca da presença militar nas fronteiras romanas, pensando a vida dos moradores das áreas mais distantes do centro do Império a partir de seus sentimentos, conflitos e contradições. Agradecimentos:

Gostaria de agradecer aos organizadores deste volume pelo convite para publicar as presentes reflexões, além do apoio instituicional da UFPR e do NEE/Unicamp. Cabe mencionar, também, meus agradecimentos aos seguintes colegas pelo diálogo: Cesar Carreras, Jose Remesal Rodrigues, Glaydson José da Silva, Lourdes Feitosa, Luis Pons, Pau Marimon, Richard Hingley e Siân Jones. A responsabilidade das idéias recai apenas sobre a autora.

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Bibliografia citada

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Figura 1: Localização de Pompéia – Fonte: Feitosa 2005.

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ANEXOS

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Figura 2: Mapa da Bretanha romana – Fonte: Pinto 2003.

133

Figura 3: Estiletes para escrever nas tabuinhas de madeira – Fonte: Birley 1990.

Figura 4: Tabuinhas escavadas em Vindolanda – Fonte: Bowman 1998.

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UM REINO DE JESUS, UM REINO POLÍTICO

Roberta Alexandrina Universidade Federal do Pará/Campus de Bragança

“... Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir ditames da natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos o espírito adquiri forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é crucificado um Redentor...”. (Hermann Hesse, Demian. 1977:31).

Para compreender, quais os elementos que possibilitaram o crescimento do cristianismo no Mediterrâneo e a participação feminina durante o primeiro século, e alguns problemas, posteriores, referentes às comunidades cristãs, centrei-me num ponto, a pregação. E, para isso, no primeiro momento, um ponto crucial se destina na análise da mensagem acerca da Basiléia ou Reino de Deus na Palestina. De imediato, para apreender a importância dessa mensagem, lanço mão da afirmação de Elisabeth Schüller Fiorenza:

Os exegetas concordam em geral que a perspectiva e ‘visão’ central de Jesus se expressa pelo símbolo, cheio de tensões, de Basiléia [grifo meu] (‘reinado’, ‘império’) de Deus. Jesus e o seu movimento partilhavam deste símbolo, e do leque global de expectativas evocado por ele com os outros grupos da Palestina (FIORENZA, 1992:140).

O Reino de Deus, como o aspecto central do ensinamento de Jesus, é uma representação marcante quando se consulta os Evangelhos, com uma amplitude de ocorrências maior do que nos demais textos do Primeiro e Segundo Testamentos, atrelada a várias citações como: parábolas, preces, bem-aventuranças, milagres e profecias. De acordo com Fiorenza, a esperança por um Reino Divino, também, marcou grupos

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judaicos na Palestina, concomitante ao ministério de Jesus (FIORENZA, 1992:140). O Kidduch, uma prece proferida nas sinagogas judaicas durante o primeiro século, explicita uma esperança num reino divino:

Magnificado e santificado seja o seu grande nome no mundo que Ele criou de acordo com sua vontade. Que ele estabeleça o seu Reinado [grifo meu] no tempo de tua vida e nos teus dias e nos tempos da vida de toda a casa de Israel, depressa e em prevê tempo (FIORENZA, 1992:141).

O desejo por um Reino, por parte dos vários grupos1, foi calcada na existência e na soberania de Israel, tendo, portanto, um caráter nacionalista (IDEM). Não foi, somente, uma característica do primeiro século da era cristã, remonta-se, segundo o Pentateuco, às origens de Israel em momentos de tensões e perda da soberania. O Êxodo, segundo Livro do Pentateuco, 19,6 aponta para um acordo firmado entre Yahweh e o antigo povo de Israel, a Aliança: vós sereis para mim um reino de sacerdotes [grifo meu] e uma nação santa. A Aliança, de acordo com o Êxodo foi consolidada pela Lei Mosaica entre Deus e Israel, calcada na tradição de libertação de Israel por interferência de Yahweh. Segundo Carlo Ginzburg, esta “lembrança permeia toda uma tradição cultural israelita que se associa numa experiência vivida no passado e não num conhecimento distante deste (2001:179)”. Esta relação vital com um passado libertador, como escreve Yosef Yerushalmi (1992:44), conota um significado de história aos israelitas, como se fosse:

Um amontoado de fatos a ser contemplado à distância, mas uma série de situações em que se podia imergir, ou em que um se projetava em sentido existencial (...). Isso vem à tona, sobretudo naquele exercício de memória de grupo por excelência que é a refeição pascal, ou Seder (...) a encenação simbólica de um enredo historicamente fundamentado, dividido em três grandes atos correspondentes à estrutura da Haggadah, que é lida em voz alta: escravidão, libertação, resgate final (Idem).

Para Yerushalmi, os judeus construíram uma relação vital com o passado por meio da lembrança de figuras proféticas – Moisés, Débora, Elias, Eliseu e outros – que exploraram o significado de História, e de outro modo, por meio de uma memória coletiva, transmitida por ritos (56-90). A partir deste aspecto, ao analisar os diversos grupos judaicos e, inclusive, o 1 Utilizo as terminologias movimentos e grupos em contrapartida a seitas, por compreender que nas sociedades antigas, não havia nenhuma instituição religiosa como a categoria Igreja que conhecemos atualmente. E no caso, quando falamos de cristianismo primitivo reconheço como um movimento ou grupo que saiu do Judaísmo, tendo uma conotação fluída; que cotejou, em suas origens, com alguns grupos judeus como o farisaico, essênico e terapeuta. Para tanto faço alusão aos trabalhos de Richard Horsley, em especial Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos Populares no Tempo de Jesus, por me proporcionar uma análise crítico-histórica dos grupos sociais populares no contexto da Palestina durante o Primeiro século.

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movimento de Jesus, no primeiro século da era cristã, observei que a reafirmação da Aliança era um elemento convergente entre eles, uma lembrança vital de um passado libertador. E, por isso, compreende-se, primeiramente, a revolta desses grupos frente à dominação romana e, também, a esperança depositada numa intervenção divina, de caráter imediatista e de função restauradora.

1.1. Contexto Histórico da Palestina e os Movimentos Revolucionários em Busca de um Reino.

De acordo com o Antigo Testamento, a história de Israel foi caracterizada por lutas incessantes de liberdade frente ao dominador estrangeiro. Até a época de Jesus, os judeus, os samaritanos e os galileus passaram por uma série de impérios estrangeiros como a dos assírios, dos babilônicos, dos persas, dos selêucidas, e por último dos romanos. Um dos elementos cruciais que permeiam uma certa tradição judaica, que segundo Gottwald foi introduzida pelos proto-israelitas, no qual Moisés era um dos líderes, firmou-se num discurso em que haveria um compromisso de Israel como nação de Deus (1978:370). Para Gottwald, o grande manancial que enriquece a história judaica, com uma orientação teológica, foi o Êxodo (1986:52). Desde o momento em que Moisés retira o povo israelita do Egito e seu sucessor, Josué o reintroduz em Canaã, o alicerce de várias tradições culturais na Palestina se agregavam a elementos como libertação e independência (IDEM). Mesmo no reinado de Davi e seus sucessores, os israelitas resistiram à consolidação do poder numa monarquia imperial (HORSLEY, 2004:22). Portanto, os israelitas fomentaram um mal-estar frente às dominações estrangeiras ou domésticas, pois estas poderiam arruinar a liberdade concedida, segundo o Êxodo 19, 4, por Yahweh na Aliança. Richard A. Horsley, numa obra recente para o momento atual da era Bush, Jesus e o Império: O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial, afirma que a aflição do povo judeu consistia no fato de que sua aristocracia abandonasse à forma de vida tradicional em favor do modo ocidentalizado do dominador. Com a afirmação do autor, há uma referência à esta preocupação no livro visionário de Daniel (7,7): Eu vi um quarto animal, terrível, espantoso, e extremamente forte: com enormes dentes de ferro, comia, triturava e calcava aos pés o que restava. Muito diferente dos animais que o haviam precedido, tinha este dez chifres.

A preocupação do autor da obra de Daniel, em expor os problemas que o povo judeu

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teve com o império helênico, deveu-se ao fato de temer a subjugação das suas formas culturais e políticas tradicionais pelo dominador ocidental (CHEVITARESE & ARGÔLO, 2000:112-129)2. Segundo Momigliano, a Revolta Macabéia contra o rei selêucida Antíoco IV Epífanes (171-165 a.e.c3.), seria um conflito contra a ampliação do processo de helenização4 dos súditos e transformação do Templo de Jerusalém num local dedicado a Zeus Olímpico, onde práticas tradicionais como a circuncisão e a observância do sábado eram proibidas (1991:91). André L. Chevitarese argumenta que a oração contida em Dn 9,1-9, anterior à rebelião Macabéia, deve ser entendida como uma tomada de consciência de uma parcela bem significativa de judeus, que inicialmente aderiram às reformas helenizantes, mas depois lutaram “contra a profanação do Templo, as proibições dos holocaustos, dos sacrifícios, das festas, das práticas religiosas, do sabá, da devastação de Jerusalém (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003:26)”. Novamente a questão religiosa imprime o seu caráter, pois, como o autor mencionou, os judeus não estavam contra o processo helênico, já que poucas regiões estavam imunes ao processo (27), mas à quebra de uma identidade judaica com sua tradição cultural centrada na Aliança e no medo na desolação do Templo, produziram uma consciência de revolta. Se de um lado o que se observa é uma constante retomada, ao analisar várias obras do Antigo Testamento, da observância desta lei da Aliança, de outro se pode avaliar a existência de uma relação antagônica entre dominador e dominado. Analisando a dominação romana na Palestina, utilizo a argumentação de Horsley acerca da visão de dois mundos: o Oriente e o Ocidente. A dicotomia consiste numa relação hierárquica e estereotipada, onde o Ocidente seria civilizado e democrático, em contrapartida ao Oriente como degradante e decadente, e figurava no imaginário dos dominadores gregos e romanos. Edward W. Said, ao analisar as visões fabricadas sobre o Oriente pelo Ocidente na compreensão dos discursos e das atitudes de potências atuais como os Estados Unidos, França e Inglaterra, com os povos dominados, nos expõe a sua conclusão:

2

Como argumentou o helenista André Leonardo Chevitarese, não foi Alexandre que introduziu a cultura grega na Palestina, contudo a encontrou lá. Para um melhor aprofundamento, ver página 122. 3 A opção por essa forma de sigla tem o objetivo de respeitar as diversas tradições religiosas, por isso, será usada a.e.c. – antes da era comum – e e.c. – era comum - substituindo a.C. - antes de Cristo - e d.C. - depois de Cristo. 4 O termo helenismo, helenização ou qualquer outra designação, não deve ser entendido como um processo homogêneo e único, mas como algo repleto de especificidades locais resultado do encontro da cultura grega com as múltiplas variedades culturais locais dispostas no Mediterrâneo. Contudo, concordo com Levine em que o helenismo implica adoção, refutação e adaptação desta cultura em um nível local (1998:16-17; CHEVITARESE & CORNELLI, 2003)

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Uma grande divisão, porém, como o Oriente e o Ocidente, leva a outras menores (...). Na Grécia e na Roma Clássicas, os geógrafos, historiadores, figuras públicas como César, oradores e poetas contribuíram para o fundo de saber taxonômico separando raças, regiões, nações e mentes umas das outras; grande parte disso era em benefício próprio e existia para provar que gregos e romanos eram superiores a outros tipos de povos (1990:68).

A atitude romana, no período abordado na dissertação, caracteriza-se por uma visão estereotipada e negativa do povo dominado ou conquistado. As autoridades romanas, segundo Horsley, entendiam o povo judeu basicamente como supersticiosos e exclusivistas (2004:27). O orador Cícero (PRO LEGE MANILIA, 10) e o historiador Tito Lívio (HISTÓRIA DE ROMA, 35, 49,8; 36 17,5), ambos latinos, tinham uma visão bem delineada dos judeus, sendo úteis somente como escravos. A ideologia do dominador frente ao dominado, para Said, imprime um caráter de garantia da sua superioridade (1990:64). Pois, não seria estranho entender a atitude de Pompeu em 63 a.e.c., ao invadir o Santo dos santos no Templo de Jerusalém, local reservado somente ao sumo sacerdócio.

A sujeição dos povos orientais, para os romanos era

fundamental na consolidação do seu domínio em âmbito global (HORSLEY, 2004:27-28), o orbis terrarum. A glorificação de Roma, ou seja, na forma de submissão de povos conquistados não era de forma branda. A conquista inicial significava devastação, pilhagem, queima de aldeias, morticínio e, por último, a base da economia romana, a escravidão. A continuidade desta política, caso o povo conquistado reagisse, seria desolação e genocídio. Políbio, historiador grego, depois de testemunhar uma cidade admoestada pelos romanos, coberta de cadáveres humanos e animais, disse: Tenho a impressão de que eles fazem isso para provocar terror (HISTÓRIAS, 10,15-17; c.f. também Júlio César, DE BELLO. GALLICO 4,19 e CASSIO DIO 68, 6,1-2).

E foi esta prática de terror e dominação que se contemplou na Palestina durante o primeiro século, culminando numa onda de movimentos revolucionários frente aos romanos e seus apoiadores. ***

O desejo por um Reino fazia parte dos vários grupos na Palestina, no primeiro século, devido, em especial, à turbulência ocasionada pelo colonialismo romano, pelas altas taxas de impostos e pela segregação ritualística no Templo, por parte de uma aristocracia sacerdotal, os saduceus (MÍGUEZ, 1995:30).

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Desde a morte de Herodes Magno (4 a.e.c.), Augusto, sobrinho de Júlio César, dividiu a região em quatro partes, e a dominação romana representou um ultraje aos judeus (MÍGUEZ, 1995:28). A repressão se intensifica e os movimentos adotam cada vez mais um aspecto messiânico5, até chegar à guerra aberta e a destruição de Jerusalém em 70 (FIORENZA, 1992:140). John Dominic Crossan, um dos fundadores do Jesus Seminar, utilizou a tipologia de Horsley sobre a movimentação dos grupos populares no primeiro século cristão e afirmou que:

Quando um povo colonizado é impedido de participar das decisões que definem a sua própria vida, ele pode se voltar com um ânimo redobrado para suas tradições culturais. Os ritos e as tradições religiosas passam a ter, então, uma importância especial, pois são o único aspecto da sua vida que permanece sob o seu controle (CROSSAN, 1994:160).

O redobrado interesse nas tradições culturais, como forma de superação de uma realidade conflitante e opressora, foi um dos elementos que desencadeou uma gama de teologias que se basearam na explicação da situação conflitante e os caminhos necessários para o seu fim. Nos diversos movimentos israelita-judeus, anterior e durante o primeiro século e.c., foram travados debates teológicos que ansiaram por uma retomada da identidade judaica, à volta do “verdadeiro Israel” (HORSLEY & HANSON, 1995:70; GARCIA, 2001:50). Paulo Roberto Garcia argumenta que os vários grupos foram as nuances do judaísmo antigo:

Em um período de quase quatro séculos, o judaísmo viveu um rico pluralismo teológico. Entre o II século a.C. e o II século d.C. o universo simbólico religioso do judaísmo era habitado por anjos e visões celestiais por um lado e por leis e preceitos religiosos por outro. Religiosidade popular, religiosidade legal e sacerdotal conviviam lado a lado [grifo meu]. Essa heterogeneidade, que existia sob a forma de convivência marcada pela tensão, foi profundamente alterada quando o Templo de Jerusalém foi destruído no ano de 70 d.C. Nesse período, a partir do vácuo de poder que o Templo e a classe sacerdotal deixaram, o judaísmo passou por uma redefinição profunda. Nesse processo, cada pequeno movimento buscava se estabelecer como “o verdadeiro Israel”. Isso suscitou um debate teológico riquíssimo que ficou registrado em documentos não canônicos (do cristianismo e do judaísmo), que apontam para a fermentação teológica pré-destruição do Templo e a luta por estabelecer uma nova identidade após a Destruição (GARCIA, 2001:50).

5

Tendo em vista uma noção de messiânico a aqueles movimentos que se concentraram numa esperança salvífica na figura de um Rei. No entanto, não utilizo o termo messias como uma escatologia. Para melhores detalhes C.F. HANSON & HORSLEY, 1995.

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Como o autor argumentou, as várias religiosidades conviviam. Um outro ponto que observo, tanto no comentário do autor como nos grupos abordados neste capítulo, é a não homogenização e definição clara do judaísmo. A consolidação de um judaísmo rabínico somente ocorreu após a Guerra Judaica em 70 e.c., e muitos estudiosos, como, por exemplo, Jacob Neusner, atualmente repelem o epíteto de judaísmo em prol de judaísmos, como algo vasto e fluído (c.f. NEUSNER, GREEN & FRERICHS, 1987). A pluralidade de movimentos que figuraram na Palestina no primeiro século e.c. é, de suma, importante para a análise da proposta de Reino de Deus no movimento de Jesus. E se torna fundamental observar as práticas e as atitudes destes movimentos.

1.1.1 - Zelotas

Para Flávio Josefo, escritor judeu do primeiro século, em duas passagens da Guerra dos Judeus contra os Romanos, os Zelotas surgiram com a coalizão de grupos salteadores vindos do interior.

Quando por fim os lideres dos vários bandos tiveram o suficiente ao pilhar o campo, eles se juntaram e formaram um único bloco de velhacos, então se infiltraram em Jerusalém (4.135). Outros bandidos do país foram na cidade, e juntaram as forças com os desesperados de dentro da cidade, e praticava cada crime inimaginável (4.138).

Os zelotas, segundo Míguez, queriam instaurar uma rebelião militar com o apoio dos empobrecidos e do campesinato, afligidos pelas altas taxas vindas de Roma e de Jerusalém (1995:31). O grupo foi protagonista na guerra contra os romanos, depois de 67, e resistiram ainda por mais três anos, depois da queda de Jerusalém, e organizaram a defesa na fortaleza de Massada (HORBURY, DAVIES & STURDY, 1999:370-390). Segundo Hanson e Horsley, eram de origem camponesa e originários da Galiléia (1995:1987). O livro de Atos dos Apóstolos (5,37), menciona o levante de um tal Judas, chamado de Galileu, no qual Flávio Josefo lhe atribui a fundação do movimento zelota, definindo-os como a quarta filosofia. Segundo Josefo, a origem dos zelotas dataria no inverno de 67-68, quando os romanos tentavam a reconquistar da Judéia (HANSON & HORSLEY, 1995:186-206). Os membros dos zelotas, segundo Horsley e Hanson, eram camponeses descontentes e empobrecidos pela dominação romana e pelas altas taxas da classe aristocrática e sacerdotal (201). Foram empurrados pelos romanos para as cidades, e com isso, praticavam assaltos,

141

atacando certos nobres herodianos e pessoas de altos cargos. Elegeram, por meio de sorteio, até mesmo pessoas comuns para os cargos de sumo sacerdócio, num ato de tomar o poder (188). Esta política de sorteio remete-se à lembrança da escolha de Saul como líder e também à Aliança, onde a única liderança seria de Deus, um estado puramente teocrático (200-201; HORBURY, DAVIES & STURDY, 1999:390). Seria por meio da luta armada e da resistência que conseguiriam libertar-se dos romanos e da opressão.

1.1.2 - Sicários

Novamente Josefo apresenta a sua impressão, agora dos sicários.

Quando foram eliminados da zona rural, outro tipo de bandido assaltou em Jerusalém, conhecidos como ‘sicarii’. Estes homens cometeram numerosos assassinatos à luz do dia e no meio da cidade. Sua fruade favorita era se misturar com as multidões em festivais, escondendo sob suas peças de roupas pequenos punhais com que eles apunhalavam seus oponentes. Quando suas vítimas caíam os assassinos se dissolviam entre a população indignada, e por causa da sua inteira plausibilidade desafiou a descoberta. O primeiro a ter a garganta cortada por eles foi Jonatas, o sumo sacerdote, e depois dele muitos eram assassinados a cada dia (B.J. 2,264).

Para Horsley, os sicários eram aqueles que agiam nas cidades, saqueavam e praticavam assassinatos políticos. Contudo, é necessário estabelecer a distinção entre os sicários dos zelotas; pois, há uma grande confusão sobre os dois grupos, visto que, uma boa parte dos estudiosos elaboram a idéia de bandido em Josefo se remetendo aos zelotas (174; HORBURY, DAVIES & STURDY, 1999:395). A estratégia dos sicários se direcionava a alvos, como a elite colaboracionista, com isso, apontavam para o povo a fragilidade do sistema imperial romano. As táticas dos sicários eram parecidas com os grupos de resistência do Iraque atual, consistiam em assassinatos seletivos, pilhagens dos bens dos ricos e seqüestros (HANSON & HORSLEY , 1995:178). Josefo menciona que os sicários operaram pela primeira vez em Jerusalém na década de 50. E o nome dado a eles, deveu-se ao tipo de armas que usavam parecidas com uma cimitarra persa, contudo, mais curva e semelhante a sicae dos romanos (Ant. 20.186).

1.1.3 - Essênios

Eram grupos e movimentos que muitas vezes se afastavam das aldeias e das cidades, ou faziam um movimento de retorno ao deserto, como símbolo restaurador da pureza israelita,

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vivendo em comunidades (MATEOS, 1994:26). Tinham a pretensão de que Yahweh restauraria o sacerdócio e o templo, e possuíam cerimônias particulares, como: banhos rituais e refeições como sinal de fraternidade (HORBURY, DAVIES & STURDY, 1999:464; MATEOS & CAMACHO, 1992:39). Para Mateos, a existência da comunidade se fixava no estudo da Lei, o desejo de uma fidelidade à Aliança levou, segundo o autor, a um processo de seleção de candidatos. Eram bastante severos, fomentando uma espiritualidade militante diante daqueles que consideravam como falsos chefes de Israel, e tinham um caráter de foco de resistência antiimperial (MATEOS, 1994:27-30). A resistência dos essênios contra Roma foi bem marcante e a conseqüência disto foi à destruição de Qumrã no ano de 68 (27; HORBURY, DAVIES & STURDY, 1999:467). O ato dos essênios, de irem para o deserto estava fortemente ligado à tradição israelita do Êxodo, no qual haveria a revogação da libertação prometida.

1.1.4 - Samaritanos

A Samaria, província localizada no centro entre a Galiléia, ao norte, e a Judéia, ao sul, tinha uma composição étnica que não se poderia considerá-la, segundo os irmãos do sul, como “puramente” judaica. Desde o momento que Teglat-Falasar III (721 a.e.c.) a invadiu, instalou-se aí um amalgama de outros povos e crenças. Esta mistura, foi rejeitada pelos judeus, no sul; tanto que, no período da Reconstrução do Templo de Jerusalém, o Reformador Esdras, segundo o livro homônimo, coibiu o auxílio dos samaritanos por não os considerar como “verdadeiros israelitas” (4,1-3) (MATEOS & CAMACHO, 1992:42-43). Em conseqüência disso, como aponta o Evangelho de João, ergueram seu próprio Templo (4,20), e, posteriormente, foi destruído pelos judeus, de acordo com Flávio Josefo, com a intervenção do rei da dinastia asmonéia Hircano I (129 a.e.c.) (B. J. 1,62; Ant XIII, 254). Novamente, João comenta que os samaritanos para os judeus eram considerados como hereges e gentios (4,29).

1.1.5 - Fariseus

Os fariseus, também, se faziam presentes, como aponta os Evangelhos e Flávio Josefo. Para Míguez, tinham uma postura política favorável e, muitas vezes, ambígua para com os dominantes romanos (1995:29). Levavam uma vida conforme a Lei, com toda as minúcias,

143

porque ambicionavam uma aceleração da ação divina (MATEOS & CAMACHO, 1992:36). Mesmo que criticassem a classe dirigente sacerdotal, não romperam com as instituições religiosas do Templo e do culto (MATEOS, 1994:22). Para as fontes rabínicas, os fariseus tiveram o mérito de estabelecer um “novo” judaísmo, devido a Iochanan Ben Zacai e seus companheiros, firmados numa visão de judaísmo fundado, exclusivamente, na obediência da Lei e numa interpretação própria do farisaísmo (MIRANDA & MALCA, 2001:53). Também, havia grupos de atitude profético e apocalíptico. Como alguns similares a de João Batista, que faziam prodígios e se apropriavam de personagens do Primeiro Testamento, tais como Elias, Eliseu e Moisés (MÍGUEZ, 1995:29). Enfim, outros grupos, como no caso dos Saduceus6 e os herodianos, têm uma feição negativa em várias situações nos Evangelhos. Os saduceus pertenciam à classe da aristocracia sacerdotal, representando o Grande Conselho no Templo, eram conservadores, segundo Míguez, e somente admitiam as Escrituras (23); no entanto, era umas das classes de apoio à dominação estrangeira, como foram os grupos dos herodianos - uma facção apoiada por alguns círculos de judeus e galileus abastados e beneficiários do regime de Herodes Magno e Herodes Antipas (IDEM; MATEOS & CAMACHO, 1992:34-42). Em suma, após a análise destes grupos, percebo que há uma multiplicidade de movimentos, com a esperança de mudar o curso da sua história em Israel por meio da violência, ação humana ou intervenção divina direta. Contudo, torna-se difícil sintetizar as várias maneiras que concebiam a esperança no Reino de Deus, mas, o ponto em comum está na afirmação da Aliança e na concepção de Israel como uma nação Santa, escolhida por Deus dentre todas as nações, como descrita no Êxodo 19,6. Um outro ponto abordado seria que estes grupos não eram os únicos na Palestina, pois as documentações literárias e materiais que possuímos, ainda, são escassos. Mas, de certa forma, representam, como argumentou de Jacob Neusner, o caráter plural do judaísmo antigo. A Galiléia, também, contemplou o caráter plural do judaísmo.

1.2. Galiléia: Foco de Resistência

A região onde Jesus nasceu, viveu e começou a sua pregação foi a Galiléia. A acepção de Paulo Roberto Garcia, de que a Galiléia se forma independente da 6 Os saduceus receberam este nome devido ao Sumo Sacerdote do tempo do rei Salomão, Sadoc, na qual as grandes famílias sacerdotais proclamavam sua descendência.

144

religiosidade centrada no Templo de Jerusalém, é importante, na minha análise, porque entendo que a proposta de Reino de Deus formulada pelo movimento de Jesus, representada nos Evangelhos canônicos, formou-se num espaço histórico, geográfico e cultural particular (GARCIA, 2003:05). A Galiléia gozou de certa liberdade frente ao reino de Judá, separada administrativa e politicamente de 733 até 104 (a.e.c.). De acordo com Gabriele Cornelli, esta região foi um símbolo de periferia (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003:34; c.f. também FREYNE, 1996), que não contava com uma aristocracia sacerdotal local que pudesse se opor a uma tradição popular (IDEM). Em relação à composição étnica da Galiléia, segundo Richard Horsley, há duas hipóteses: a primeira, remete-se à retirada dos “israelitas”, no caso os galileus, por TeglatFalasar III como cativos para a Assíria. A outra hipótese (HORSLEY, 2000:27), foi que o rei Teglat-Falasar III deixou um considerável contingente israelita para dar continuidade à população, que entraram em contato com outros impérios como os persas, gregos e romanos. Para o autor, galileus na época de Jesus eram descendentes dos israelitas precedentes e não necessariamente judeus (28). A questão étnica do povo galileu, afirmado anteriormente por Horsley, de não serem necessariamente judeus, explica-se, de certa forma, para alguns problemas entre a Galiléia, no Norte, e a Judéia, no Sul. Horsley, ainda, aponta para uma particularidade cultural da Galiléia, o enfraquecimento da relação com a aristocracia sacerdotal nativa. Se na Judéia, segundo o autor, a aristocracia sacerdotal era vinculada ao Templo e deteve uma grande tradição “oficial” escrita, que influenciava a tradição popular; na Galiléia, tradições populares israelitas corriam livres nas comunidades aldeãs, e, isso, não foi nenhum problema para as várias autoridades imperiais, que se interessava com o pagamento em dia do tributo (2000:27-29). Portanto, para Horsley

Os galileus não tiveram experiência semelhantes à da crise da súbita helenização forçada na Judéia sob o imperador selêucida Antíoco Epífanes e à longas guerras de guerrilha da revolta macabaica. Os galileus não tiveram nenhuma ameaça ao seu tradicional modo de vida nem um Templo central em torno do qual pudessem reunir-se. Eles também não tiveram oportunidades de desenvolver coalizões entre classes para lutar contra a dominação estrangeira e não passaram pela experiência de ter resistido com sucesso a opressão estrangeira e defendido seu modo de vida tradicional (HORSLEY, 2000:30-31).

Mesmo que, segundo Horsley, os galileus não tivessem ameaça ao seu modo de vida tradicional, obtiveram, por parte dos judeus, um estereótipo de serem rebeldes e bélicos.

145

Contudo, esta alcunha seria, de acordo com Cornelli e Freyne, que a região representava um símbolo de periferia (c.f. FREYNE, 1988:231; CHEVITARESE & CORNELLI, 2003:34). Todavia, percorria na tradição popular galiláica, segundo Chevitarese, a resistência à monarquia israelita, que, também, era partilhada pelos irmãos do sul, e, nisto, histórias como dos profetas Débora, Elias e Eliseu, eram freqüentes, por orientarem seu profetismo na ênfase à preservação da integralidade comunitária aldeã, na reciprocidade familiar e na ancestralidade da terra dada por Deus como herança (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003:33-34). As tradições do Norte utilizaram figuras proféticas como de Elias e Eliseu e, segundo Cornelli, seria um arcabouço para algumas comparações feitas com Jesus: O povo da Galiléia pode ter sido o primeiro a fazer comparações entre Jesus e Eliseu (CORNELLI, 2001:270). O ambiente Galileu incutiu em Jesus e no seu movimento a elaboração de certas características que o diferenciavam dos demais grupos rebeldes e revolucionários.

1.3. Jesus e sua proposta de Reino.

Os estudos acerca da historicidade de Jesus nos apontam para um sério problema: a questão das fontes do período. Os primeiros escritos não-cristãos sobre Jesus e o Cristianismo são raros e bastante tardios. O fato meneia para uma questão: o que Jesus e o Cristianismo não eram? No caso, inicialmente significativos, portanto, não muito distinto dos movimentos israelitas no período. A ausência de referências históricas, fora da literatura neotestamentária, indica que o movimento de Jesus foi um fenômeno local (HORSLEY & SILBERMAN, 2000:71). No interior dos vários grupos que se faziam visíveis na Palestina, a estrutura social era extremamente excludente e segregacionista. Para Elisabeth Schüssler Fiorenza, Jesus estava igualmente unido a esses grupos na esperança da intervenção de Deus em favor de Israel e da restauração da soberania davídica. Contudo, diferenciava-se deles pelo fato de que conjeturava uma práxis inclusiva de Reino, no qual possuía característica alternativa e espiritual (1992:151). Ainda que, segundo Fiorenza, o movimento de Jesus compartilhasse os mesmos desejos dos grupos – de uma restauração de Israel como reino terreno a partir da interferência de Deus –, a ênfase de que o poder e a manifestação divina estavam no meio do povo se tornou um fator diferencial (1992:151).

Neste aspecto, concordo com Leif Vaage na

146

afirmação de que o discurso de Jesus sobre o Reino de Deus foi uma proposta alternativa no judaísmo antigo, um tipo diferente de esperança (1997:14). Os vários discursos dos Evangelistas apontam para a construção de um Reino alternativo. Mesmo que os Evangelhos sejam a base da teologia cristã, contudo, não se deve reduzi-los a narrativas confessionais, embora, revelem “histórias”, ainda que aparentemente irrelevantes e imprecisas. Os autores dos textos tinham uma preocupação em adaptar os ditos de Jesus às necessidades de suas comunidades, já que estavam afastados há décadas de Jesus (CHARLESWORTH, 25-29). A

constituição

do

Evangelho

foi

um

amalgama

de

tradições

antigas

veterotestamentárias com a interpretação dos ditos e atitudes de Jesus. Por conseguinte, o desenvolvimento da teologia cristã, tanto nos Evangelhos quanto nos demais textos Neotestamentários, deram-se numa tensão entre a tradição e adição, história relembrada e fé articulada (CHARLESWORTH, 1992:30). Já que, as fontes são escassas e têm um propósito teológico, os evangelistas não se preocupavam em representar Jesus como uma pessoa no passado, mas sempre presente (SCHREINER & DAUTZENBERG, 2004:195). Em algum momento anterior à década de 70, Marcos teve a “inspiração” de compor o primeiro Evangelho, e recorreu a fatos ocorridos desde a Crucificação de Jesus, e também ações e atitudes de Jesus antes de 30. Em seguida, e com outras necessidades, os autores de Mateus, na Síria, e Lucas, na Grécia, ao terem em mãos o texto de Marcos e também outros Documentos, como a Fonte Q7, compuseram seus evangelhos (BITTENCOURT, 1967:28). Por último, o Evangelho de João, que parece desconhecer os demais, surge na última década do primeiro século, talvez escrito em Éfeso (29). Neste aspecto, os evangelhos que falam sobre o ministério de Jesus são resultados de um amplo desenvolvimento redacional. Implica dizer que eles precisam ser vistos como discursos paradigmáticos, cujos objetivos foram dar conta em explicar a origem de um movimento itinerário e missionário, que tentava se firmar perante vários grupos religiosos fossem eles judaicos e / ou greco-romanos.

7

A teoria das Duas Fontes, no caso Q e Marcos, foram um dos melhores instrumentos para a solução do problema sinótico. O modo de abordar as etapas iniciais do desenvolvimento do movimento cristão fez com que alguns estudiosos elaborassem a teoria da hipótese de “Q” que seria um material utilizado por Lucas e Mateus na composição de seus textos. Em 1907 o teólogo e historiador alemão Adolf Von Harnack publicou esta a obra Sprüche und Reden Jesu: Die Zweite Quelle des Matthäus um Lukas (Os Ditos e Discursos de Jesus: A Segunda Fonte de Mateus e Lucas). No entanto, a teoria da Fonte Q foi reativado em 1972, graças ao professor suíço Siegfried Schulz com Die Spruchquelle der Evangelisten (A Fonte de Ditos dos Evangelistas). Quando se faz alguma referência a uma passagem em particular de Q, usa-se a versificação de Lucas – quer dizer, o numero do capítulo onde atualmente se encontra o texto tomado de Q no Evangelho de Lucas. Para melhores detalhes C.f. MACK, B. L. (1993) The Lost Gospel: The Book of Q & Christian Origins. San Francisco: Harper, e, VAAGE, L. E. O Cristianismo Galileu e o Evangelho Radical de Q. Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana. nº. 22, Ano 3, Petrópolis: Editora Vozes, pp. 85-108.

147

Os Evangelhos são fontes históricas importantes e inesgotáveis na compreensão de expressões que as comunidades e os indivíduos compartilhavam no seu cotidiano, a partir da vida e dos ensinamentos de Jesus. Para John Meier, a expressão Reino de Deus parece não ser muito usada tanto no judaísmo como no cristianismo no início do século I, em contrapartida, aparece nos Evangelhos, e sempre dito por Jesus (MEIER, 1997:12). Há nos textos do Primeiro Testamento poucas referências sobre Reino, e uma ocorrência de Reino de Deus na obra Sabedoria de Salomão (10,10)8. Ela está assim constituída:

Ela [Sabedoria] guiou, por caminhos planos, o justo que fugia à ira do irmão; ela lhe mostrou o Reino de Deus (grifo meu) 9.

Com uma quase total ausência da expressão Reino de Deus nos textos veterotestamentários, apresenta-se um outro questionamento: Quais seriam outras representações? No caso, duas representações: uma, com mais referência, está na figura régia de Yahweh (Dt 9,26; Sm 12,12; Sal 24,10; 29,10; Is 6,5; 33,22; Zc 14,16). A outra, a única referência sobre a idéia de Reino de Deus similar à dos Evangelhos, encontra-se no livro de Daniel (2,44; 3,33; 4,31; 7,14); onde a esperança no Reino é presente ao longo da obra, e há um prazo para ser cumprido, abrangendo todos os povos. Contudo, as fontes Evangélicas são importantes referências, devido, em especial, pela sua temporalidade, na análise do ministério e a pregação de Jesus na Palestina. O material literário apresenta uma amplitude de ocorrências da expressão sobre o Reino, se comparado com os demais livros do Segundo Testamento. Somam aproximadamente cento e oito usos e foram agrupadas em 76 ditos diferentes, contudo, são estruturadas em três expressões como:

8

Obra deuterocânonica, escrita aproximadamente em I a.C. por um judeu helenizado de Alexandria. Sendo uma pseudoepígrafe, por utilizar o nome de Salomão na sua obra para lhe dar crédito. Era um costume antigo entre os vários escritores. 9 Este trecho está relacionado ao sonho de Jacó, em Betel, em que havia uma escada que subia até o céu (Gn 28,10-17). Ao olharmos essa citação envolvendo o Reino de Deus, percebemos a discrepância que há com várias referências contidas no Primeiro Testamento, pois aqui, o Reino se localiza no céu e é revelado ao escolhido por uma visão, sendo algo onírico e não abrangente.

148

REINO DE DEUS ή βασιλεία τοϋ Θεοϋ

REINO DOS CÉUS ή βασιλεία τόν ουρανόν

REINO Βασιλεία

1,15; 4,11,26,30; 9,1,47; 10,14,15,23,24,25; MARCOS

12,34; 14,25; 15,43.

14 ocorrências

Nenhuma

Nenhuma

3,2; 4,17; 5,3,10,19(2x),20;

MATEUS

7,21; 8,11; 10,7; 11,11-12;

4,23; 6,10; 8,12;

6,33; 12,28; 19,24;

13,11,24,31,33,44,45,47,52;

9,35; 13,19,38,41,43;

21,31,43.

16,19; 18,1,3-4,23;

16,28; 20,21; 24,14;

19,12,14,23; 20,1;

25,34; 26,29.

22,2;23,13; 25,1

5 ocorrências

32 ocorrências

13 ocorrências.

4,43; 6,20; 7,28; 8,1,10 9,2,11,27,60,62; 10,9,11;

LUCAS

11,20; 13,18,20,28,29;

1,33; 11,2; 12,31-32;

14,15; 16,16; 17,20,21;

22,29-30; 23,42.

18,16,17,24,25,29; 19,11; 21,31; 22,16,18; 23,51.

31 ocorrências

Nenhuma

3,3,5

7 ocorrências

5,36 (3x)

JOAO 2 ocorrências

Nenhuma

3 ocorrências

Como é perceptível, os Evangelhos de Mateus e Lucas são os textos que mais exploram a conceitualização de Reino, somam no total oitenta e oito citações. Mas Mateus se diferencia dos demais por exprimir a idéia de Reino de Deus por Reino dos Céus; que segundo Anthony Saldarini, seria, porque a comunidade mateana era judaica-cristã e, com isso, respeitavam as leis da Aliança (Ex 20, 1-17). A correlação entre Mateus, Lucas e Marcos, mesmo com quatorze citações, é que

149

ilustram a noção de Reino com práticas e situações cotidianas, em contrapartida João, que não se preocupa com o tema. As expressões, acima, são congruentes e, designam não um espaço geograficamente delimitado, mas, um símbolo englobador. Utilizo como exemplo, um trecho do Evangelho de Lucas (17,21) para refletir sobre a afirmação:

O Reino de Deus está entre nós.

O discurso de que o Reino está entre nós, como fala de Jesus no Evangelho, não se dirigia

apenas

aos

indivíduos,

contudo,

segundo

Charlesworth,

à

sociedade

(CHARLESWORTH, 1993:33). Um outro ponto neste trecho, ao analisar outras citações, centra-se na invalidação da idéia de Reino a um espaço circunscrito, como o Templo, mas a representabilidade do grande banquete (Mt 22,1-14; Lc 14,16-24), como inclusão de todos. O discurso da parábola do grande banquete se fixa, segundo os evangelhistas, numa atitude alternativa de Jesus, contra algumas práticas ascéticas e de segregação social, que lhe valeu os epítetos de glutão, beberrão, amigo de publicanos e pecadores, por parte de grupos que entreveram uma pureza ritualística, como os fariseus. Para Fiorenza, há uma correlação entre a Basiléia ou o Reino de Deus com uma grande comemoração, e, isso, contemplou uma experiência salvífica, segundo a autora, em que certas práticas ascéticas tradicionais foram proibidas (FIORENZA, 1992:150). Percebi outras representações de Reino que, também, tinham uma ação englobadora, como: a de um campo (Mc 4, 3, 26; Mt 13,24); uma vinha de trabalhadores diaristas com um empregador justo (Mt 20,1-16); uma pequena semente de mostarda que se torna uma árvore acolhedora dos pássaros (Mc 4,30); associação com o peixe, à rede e à pesca (Mt 13,47); uma mulher que adiciona fermento à massa (Mt 13,33; Lc 13,20-21); localidade pertencente às criancinhas (Mt 18,3-4; Mc 10,13). Portanto, todas estas representações dos Evangelistas apontam para uma construção de um Reino, que se centrou em pessoas simples, na qual, segundo Horsley, Jesus conviveu e estava à margem da sociedade e do Império (2000:57; ROSSI, 2001:42). O programa de renovação comunitária de Jesus, segundo os Evangelhos, não foi feito somente por uma pessoa. Desde o começo, Jesus, como assinalam os Evangelhos, obteve a ajuda de homens como Pedro, Paulo, André e Tiago – pescadores de Carfanaum -, que iam como emissários de aldeias em a aldeias divulgavam a mensagem do Reino de Deus e

150

assumiram o papel de profetas, inflamados pela ação do espírito. Essa tradição do norte, no caso da Galiléia, manifesta-se no mesmo modo que o profetismo de Elias, inicia um movimento de renovação individual e nacionalista, contra o governo de Acab; e no caso de Jesus, contra as depredações do rei Cliente, Herodes Antipas (71; LOPEZ, 1991:66). Jesus compartilhou e herdou alguns elementos da antiga tradição popular de Israel, como de uma nação impulsionada pela ação de Deus na história. O ato simbólico de escolher doze discípulos se refere a uma alusão direta das doze tribos de Israel, e, com isso, define uma atitude messiânica e profética (HORSLEY & SILBERMAN, 2000:57). Ao apontar para o profetismo de Jesus, tomo como foco interpretativo a atitude dos profetas como uma consciência alternativa e crítica da situação de Israel em vários momentos históricos. Desde Moisés, figura da tradição israelita, a missão profética consistiu numa consciência alternativa, em contrapartida à consciência dominante (LOPEZ, 1991:67). E, nisto, de acordo com Cornelli: A figura de Jesus (...) não deve muito à figura do herói da tradição greco-romana. Os referenciais básicos para a construção da figura de Jesus nos sinóticos encontram-se quase que exclusivamente das tradições judaicas (CORNELLI, 201:272).

O contexto da Galiléia, lugar de formação das idéias e da mensagem de Jesus, apresenta um ambiente abarrotado de pobres, endividados, famintos, rejeitados e renegado por um sistema excludente. Para os evangelistas as parábolas, as curas e os milagres operam num âmbito renovador e integralizador, em que era calcado numa solidariedade comunitária, e se valorizava o perdão das dívidas e do pecado. Neste discurso de simplicidade, que os anseios da população se manifestam por meio de uma religião popular, no qual Pedro Paulo Funari argumenta a sua importância:

A cultura popular, deste ponto de vista, não pode ser entendida como reflexo, nem mesmo como algo maquiavelicamente predeterminado pelos grupos hegemônicos (...) suas cosmovisões refletem, a um só tempo, a aceitação e a recusa das condições de exploração material e espiritual no interior da sociedade (1989:14-15).

Portanto, cultura popular não reflete, segundo Funari, a dominante e, neste aspecto, posiciono esta afirmação como importante na análise dos vários grupos e o movimento de Jesus, no primeiro século na Palestina. Um outro ponto que envolve a cultura popular seria no seu caráter de rebeldia, como apontou Bakhtin:

151

Não se pode compreender convenientemente a vida e a luta cultural e literária das épocas passadas, ignorando a cultura cômica popular particular, que existiu sempre, e que jamais se fundiu com a cultura oficial das classes dominantes. Ao elucidar as épocas passadas, somos muito freqüentemente obrigados a ‘crer em cada épocas conforme a sua própria palavra’ isto é, crer nos seus ideólogos oficiais, num grau maior ou menor, uma vez que não ouvimos a voz do povo, que não podemos encontrar nem decifrar a sua expressão pura sem mescla (BAKHTIN, 1993:418)10.

A cultura popular e subalterna cria para si identidades, em contrapartida às estéticas da ideologia dominantes. Logo, não aceito que o embate entre a cultura popular e a cultura erudita se resuma em pólos antagônicos que não dialogam que para Ginzburg, vivem num quadro de reciprocidade e circulariedade (1987:13). Cultura não é algo monolítico e muito menos fronteiriço, mas tem um caráter fluído e flexível. É nesta flexibilidade e fluidez que o movimento de Jesus dialogou, aceitou ou recusou as várias teologias dos grupos populares e situacionais tanto Galileu quanto Judeu, e definiu sua proposta de Reino, uma idéia é multifacetada.

Bibliografia Fontes Utilizadas

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10

Esta obra debruça-se sobre a multiplicidade das manifestações culturais populares, como risos, festas, obras cômicas orais ou escritas, vocabulários familiar e grosseiro, propondo uma leitura da obra de Rabelais a partir deste universo.

152

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O FORTE ROMANO DE GHOLAIA (BU NJEM). EXÉRCITO, SOCIEDADE E CULTURA NA TRIPOLITÂNIA ROMANA. Julio Cesar Magalhães de Oliveira Universidade Estadual de Londrina

1. Introdução A história social do exército romano e de suas relações com as sociedades provinciais durante o Império tem suscitado, nos últimos anos, um interesse crescente da parte de muitos historiadores e arqueólogos (Isaac 1990; Alston 1995; Pollard 2000). Pela abundância de sua documentação epigráfica e pela ausência de ocupação moderna de seus inúmeros sítios militares antigos, poucas regiões poderiam oferecer a esse tipo de investigação um campo mais propício do que a África do Norte. No entanto, apesar de avanços significativos nesse sentido já terem sido dados, inúmeras dificuldades, práticas e teóricas, têm impedido o pleno desenvolvimento desse potencial (Mattingly e Hitchner 1995, 174-176). O objetivo deste capítulo é apresentar os debates que têm marcado a historiografia sobre as relações entre o exército e a sociedade na África romana e exemplificar, a partir do estudo do caso particular do forte de Bu Njem, na Tripolitânia, as inúmeras possibilidades que a exploração arqueológica dos sítios africanos poderiam oferecer para testar as diversas teorias correntes.

2. Exército e sociedade na África romana Os estudos sobre a história militar da África romana foram profundamente marcados pela colonização européia do Magreb e pelo processo de descolonização. Isso porque em nenhuma outra região a associação entre Roma e o imperialismo moderno foi tão insistentemente levada a cabo, tanto pelas potências coloniais como pelos próprios colonizados. Durante a ocupação da Argélia e da Tunísia pelos franceses e da Líbia pelos italianos, seus próprios exércitos vieram a se considerar como herdeiros dos antigos romanos e continuadores de sua obra civilizadora. Os estudos históricos e a exploração arqueológica da região tampouco se eximiram dessa visão que transpunha para o passado projetos e realidades vividas no presente (Mattingly 1996; Munzi 2001; Lepelley, inédito). Daí resultava uma oposição sistemática entre “Romanos” e “Africanos”, uma visão positiva da colonização e

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uma imagem militarizada e quase obsessiva do mundo rural, onde as fazendas dos colonos romanos seriam sistematicamente defendidas da ameaça indígena pela presença constante de torres, pequenos fortes e fortalezas, quando não seriam elas mesmas fortificadas e habitadas por supostos “camponeses-soldados” (Cagnat 1913). A visão colonialista criou assim uma imagem dos imigrantes como únicos fatores de progresso na África romana, dos nativos da região, como perpétuos rebeldes ou como receptores passivos de uma cultura superior, e do próprio exército como uma força pacificadora e civilizadora. Os anticolonialistas e intelectuais dos movimentos de libertação nacional norte-africanos desde os anos 1960 não deixariam, naturalmente, de combater essas interpretações, mas o fariam apenas para inverter o modelo, mantendo a mesma oposição irredutível e marcadamente conflituosa entre “Romanos” e “Africanos”. A história da África romana passaria assim a ser vista como aquela de uma luta “nacionalista” incessante dos povos berberes contra uma dominação “estrangeira”, cujas maiores expressões seriam as grandes revoltas de Jugurta, Tacfarinas e Firmo (Laroui 1970). A dificuldade de romper com a visão colonialista da história do Magreb, sem recair no uso de oposições binárias e de conceitos homogeneizadores, é bem ilustrada pela obra de Marcel Bénabou, A Resistência africana à romanização (1976). Nesse livro importante e isento de qualquer consideração nacionalista, Bénabou pretendia contrabalançar a ênfase dada à conquista e “romanização” da África do Norte fazendo o inventário de todas as expressões que atestavam a recusa da dominação e a manutenção do particularismo africano sob o Império, da resistência armada das tribos berberes à sobrevivência de particularidades culturais, lingüísticas e religiosas tipicamente africanas. No entanto, ao fazer confluir num só conceito de “resistência” tanto a luta armada como os fatos materiais, sociais e culturais menos visíveis, Bénabou não somente mantinha a visão militarizada e conflituosa da história africana, como supunha a existência de um projeto de uniformização cultural da parte do Estado romano pela supressão de toda particularidade local, que parece jamais ter existido. A partir dos anos 1970 e 1980, no entanto, uma série de estudos sobre o exército e as fronteiras africanas levaram a uma revisão da concepção militarizada e conflituosa que prevalecia até então e possibilitaram a emergência de uma história social do exército na região menos marcada pela polarização assimilação x resistência. Os trabalhos de Yann Le Bohec, a partir da documentação epigráfica, mostraram que o exército encarregado do controle de toda a fronteira da Tripolitânia à Mauretânia devia ter sido composto por não mais de 12000 homens (incluindo legionários e tropas auxiliares), em sua maioria recrutados localmente, o que retirava toda plausibilidade à idéia de que o conflito com as tribos indígenas tivesse sido

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uma constante (Le Bohec 1989a; 1989b). Por outro lado, estudos regionais como os de Elizabeth Fentress, sobre a Numídia, e de Pol Trousset, sobre a Tripolitânia, combinando evidências arqueológicas, epigráficas e textuais, possibilitaram uma nova abordagem do exército estabelecido nas fronteiras e de suas relações com a população local (Fentress 1979; Trousset 1974). Os termos em que a discussão passou a ser colocada desde então podem ser ilustrados por um memorável debate entre Brent Shaw e Elizabeth Fentress publicado nas páginas da revista italiana Opus de 1983 (Shaw 1983; Fentress 1983). Shaw contestava algumas das principais teses levantadas por Fentress no seu livro de 1979 sobre O exército romano e a Numídia, onde a autora enfatizava o impacto transformador na sociedade e na economia provincial da presença do exército na região (Fentress 1979). Para Shaw a conquista romana e o estabelecimento do exército nas zonas fronteiriças não teriam implicado nenhuma transformação substancial na vida econômica e social das populações indígenas. A implantação de veteranos no campo e as cobranças de impostos não seriam capazes de alterar os modos tradicionais de produção (fundadados na arboricultura e no pastoreio) ditados pelas próprias condições geográficas e não teriam, por isso, nenhuma influência econômica significativa. As obras de construção do exército tampouco seriam importantes, uma vez que eram destinadas exclusivamente ao seu próprio uso. Por fim, o fato de que os soldados fossem recrutados cada vez mais na África, mas não entre os nativos da própria região onde as tropas se estabeleciam, não deixaria de provocar um “terrível estranhamento” entre o exército e a população local. O exército não deveria, portanto, ser visto como uma força integradora na sociedade provinciana, mas como uma “instituição total” solidificada por laços de solidariedade interna, dotada de uma ideologia e de cultos próprios e profundamente alheia às relações normais na sociedade civil. O exército romano, em outras palavras, não deveria ser visto como um intermediário entre governantes e governados, mas apenas como um “instrumento de força violenta” e de controle da própria sociedade provinciana. Fentress, em resposta, argumentava que a ênfase dada por Shaw ao determinismo geográfico e à natureza supostamente imutável da sociedade berbere não levava em conta a capacidade transformadora das pressões sociais, dos avanços tecnológicos ou das formas de organização política. Ao contrário, se examinássemos as evidências do registro arqueológico em uma perspectiva diacrônica, seria possível verificarmos a distância significativa que separa a agricultura mista e de subsistência do período pré-romano da exploração intensiva da terra e dos rebanhos que marca os séculos III e IV d.C. Nessa transformação, o estímulo inicial e decisivo poderia ser atribuído precisamente ao advento do exército e ao

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desenvolvimento de uma economia urbanizada, que facilitaram a circulação monetária e possibilitaram um aumento cada vez maior da produção para o mercado. Fentress lembrava ainda que se é verdade que o exército construía pontes, estradas, fortes, cidades, templos, termas e anfiteatros para seu próprio uso, os efeitos colaterais de muitas dessas obras poderiam beneficiar o conjunto da sociedade e da economia. Enfatizar apenas o papel repressivo do exército significaria, ademais, ignorar a capacidade da população local de utilizar essa presença militar para atingir seus próprios fins. Para as famílias mais pobres, em particular, o exército poderia representar, para quem nele ingressasse, uma via para a obtenção dos direitos de cidadania romana, bem como a possibilidade de acumular um pequeno capital ou até mesmo um lote de terra ao final do tempo de serviço. Fentress reconhecia que, desde seu recrutamento, cada indivíduo passava a ter no exército um novo sistema de referências, fora de suas antigas lealdades tribais ou familiares. Ao mesmo tempo, porém, argumentava que a insistência de Shaw em tratar o exército como um corpo repressivo homogêneo significaria ignorar a divisão estrutural (e muitas vezes cultural) entre oficiais e soldados rasos. Ao reconhecermos essa diferença, seria possível verificar que certos cultos específicos do exército, como o de Mitra, seriam restritos à elite dos oficiais, enquanto que a maioria dos soldados africanos continuaria a cultuar as mesmas divindades indígenas, como Saturno, veneradas pela sociedade civil em geral. A oposição entre esses dois pontos de vista tem marcado desde então os debates sobre o impacto da presença militar romana na África do Norte, sobretudo em suas regiões de fronteira. É assim que, em um livro publicado em 1998, David Cherry fazia pouco mais do que radicalizar a posição proposta por Shaw contra Fentress, ao associar o exército romano estabelecido na Numídia a uma mera “força de ocupação”, cujo impacto transformador na cultura, na sociedade e na economia seria pouco ou nada significativo. Cherry pretendia, na verdade, investigar em que medida o exército teria agido como fator de “Romanização”, entendida em sua acepção de aculturação ou adoção de um sistema de valores romanos pelos provincianos. Sua conclusão, naturalmente, é a de que tal processo não teria ido além do círculo estreito das elites das províncias (Cherry 1998). No entanto, ao enfatizar as atitudes e intenções e não as realidades materiais, Cherry simplifica excessivamente a natureza das interações sociais e culturais que forjaram uma nova sociedade provinciana. Fentress, ao contrário, tem enfatizado mais recentemente a habilidade das populações norte-africanas de se adaptarem e explorarem novas situações, inclusive adotando novas formas culturais, ainda que retendo aspectos centrais das antigas (Brett e Fentress 1996). Fentress tem também ressaltado a importância de se conduzir o debate sobre o impacto da incorporação das

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sociedades das províncias no Império do campo das “atitudes e intenções” para aquele da materialidade, analisando os efeitos econômicos do imperialismo romano antes de avaliarmos suas conseqüências culturais (Fentress 2006). É claro que, como ressalta Nigel Pollard (2000, 7), modelos que enfatizam a integração ou a segregação do exército na sociedade civil provincial são apenas os dois extremos entre os quais, em cada caso, poderíamos situar uma realidade muito mais complexa. No entanto, parece-me que um modelo como o proposto por Fentress, que enfatiza a heterogeneidade do próprio exército e concede às populações locais um papel mais ativo do que o de simples vítimas do imperialismo, tem a grande vantagem de apresentar as relações sociais em termos mais dinâmicos e de conceder um maior espaço para a mudança. De todo modo, para testar esses e outros modelos seria preciso muito mais do que coletar os textos e as inscrições existentes. A exploração arqueológica da implantação militar nas fronteiras em seu contexto mais amplo teria, nesse sentido, muito a contribuir. No entanto, é preciso reconhecer que o progressivo abandono dos projetos de escavação de sítios militares romanos, vistos com relativa antipatia nos países magrebinos desde a independência por suas conotações imperialistas, tem dificultado novos estudos sobre a fronteira (Mattingly e Hitchner 1995, 169). O potencial de uma investigação arqueológica intensiva desses sítios para a nossa compreensão sobre a vida de uma guarnição fronteiriça e de suas relações com os assentamentos civis ao seu redor pode ser ilustrado por dois importantes trabalhos de escavação levados a cabo nas décadas de 1960 e 1970 e que fizeram objeto de extensas e excelentes publicações: Tamusida, na Mauretânia Tingitana (Marrocos), e Bu Njem, no deserto da Tripolitânia (Líbia). Nas páginas que seguem, eu gostaria de apresentar os resultados das investigações realizadas nesse último sítio, sublinhando sua importância para nossa compreensão das relações entre o exército, a sociedade e a cultura numa região de fronteira na Tripolitânia romana.

3. O forte romano de Gholaia (Bu Njem)

A Tripolitânia pode ser dividida em três regiões geográficas: uma planície costeira, onde estão situadas as três grandes cidades de Lépcis Magna, Oea e Sabrata que dão o nome à província; um planalto interior, onde a agricultura ainda é praticável com o volume de chuvas habitual; e a zona do pré-deserto, onde o cultivo se torna dependente da irrigação. A ocupação rural dessas regiões durante a Antigüidade é hoje bem conhecida graças a dois projetos de prospecção arqueológica conduzidos nos vales líbicos entre 1979 e 1989 (Mattingly e

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Hitchner 1995, 194-195; Brett e Fentress 1996, 57-58). Na zona costeira, uma série de fazendas voltadas para a produção de azeite, base da riqueza das aristocracias das três cidades litorâneas, já havia sido implantada desde o século I a.C. Mais ao sul, na região dos vales dos ribeirões Sofegin e Zem-Zem e em uma série de vales menores na direção do golfo de Sirte, os primeiros assentamentos rurais datam apenas do século I d.C., o que sugere um processo gradativo de sedentarização de antigos nômades pastoris. As primeiras formas de ocupação nessa região são os vilarejos. Aos poucos, porém, se desenvolve toda uma hierarquia de assentamentos, que vão desde as grandes até as pequenas fazendas isoladas, quase sempre voltadas para a produção de azeite, atestada aliás por inúmeras prensas. Por fim, a partir do final do século I ou começo do século II, o mesmo processo se estende até a zona do pré-deserto. No século III, talvez em razão de uma maior insegurança, muitas dessas fazendas passam a ser fortificadas, o que naturalmente não significa que elas tenham sido ocupadas por imigrantes, e muito menos pelos hipotéticos “soldados-camponeses” imaginados pela historiografia do período colonial. Ao contrário, sabemos por muitos documentos, inclusive pelos arquivos de Bu Njem, que muitas dessas fazendas eram habitadas por indígenas, algumas delas por um povo chamado Maces, considerado pacífico pelas autoridades. Por outro lado, o grande número de cerâmica importada encontrada nesses mesmos sítios nos mostra que seus habitantes estavam perfeitamente integrados à economia de mercado romana (Rebuffat 1987). É ao sul dessa última zona produtiva que foi implantado o sistema de defesa do limes Tripolitanus (Trousset 1974). Esse setor militar não consistia em uma frente uniforme, mas em linhas de avanço no território das tribos externas. Tratava-se de uma série de fortes e postos menores implantados nos oásis, além de uma linha de barreiras descontínuas chamadas pelos estudiosos de clausurae. O objetivo da implantação dos fortes era apenas o de controlar o acesso às principais rotas e aos recursos hídricos utilizados pelas tribos, enquanto que as clausurae constituíam pouco mais do que obstáculos destinados a canalisar o movimento de pessoas para fins de contrôle da transumância, do trabalho sasonal e do comércio entre as zonas predominantemente pastoris e as zonas predominantemente sedentárias (Mattingly 1995, 77-79). As primeiras estruturas desse setor militar foram implantadas desde o começo do século II, mas é a partir do governo de Septímio Severo (193-211) que o limes conhece sua maior fase de reorganização, sob o comando de Anício Fausto como legado da III Legião Augusta. É nesse contexto que o forte de Gholaia, no oásis de Bu Njem, a 200 km da costa, foi construído no começo do século III.

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O sítio arqueológico de Bu Njem foi objeto de escavações extensivas entre 1967 e 1976 realizadas por uma equipe francesa sob a direção de René Rebuffat, o que nos permite hoje ter uma idéia bastante precisa da história do sítio e da vida dessa pequena comunidade de fronteira. Os vestígios descobertos pelas escavações consistem em uma fortaleza retangular de 138 x 93 m, ocupando uma superfície de 1,28 hectare, em torno da qual uma pequena aglomeração urbana chegaria a se estender por cerca de 15 hectares (fig. 2). O forte tinha o traçado típico de um acampamento permanente romano, com o quartel-general, compreendendo os principais edifícios administrativos e de comando dispostos em torno de uma praça central (os principia), situado precisamente no cruzamento da via principal (nortesul) com a via pretoriana (leste-oeste). No entanto, as portas norte e sul não foram corretamente alinhadas, provocando o deslocamento correspondente da via principal e das construções adjacentes (fig. 3). Também é notável o fato de que o traçado do acampamento tenha seguido não a medida romana em pés, mas a medida púnica em cúbitos à qual os construtores estavam mais habituados. O quartel-general foi escavado em sua integralidade, bem como a casa do comandante (praetorium), as termas do acampamento e um duplo celeiro ou depósito. Particularmente interessante foi a descoberta do scriptorium do forte em uma das salas dos anexos da quartel-general, contendo ainda todo o mobiliário utilizado pelo escriba ou arquivista. Um grande número de óstraca (ou cacos de cerâmica usados como suporte para anotações) foi encontrado no interior e em torno dos principia, 146 dos quais amontoados junto à parede externa do scriptorium. Esses eram os registros temporários correspondentes precisamente ao último período da ocupação do forte, sendo os cacos mais antigos despejados no grande monte de lixo e entulho encontrado do lado de fora da muralha, ao sul da fortaleza. Embora as casernas não tenham sido objeto de escavações tão detalhadas, sua disposição é bastante clara e o número de alojamentos, para além dos cômodos mais estreitos destinados às oficinas e depósitos, parece ter sido suficiente para acomodar seis centúrias ou uma coorte (cerca de 480 homens). Esse número, porém, não leva em conta a existência de uma cavalaria atestada pelos óstraca dos anos 250, nem tampouco as mudanças ao longo do tempo. Outras sondagens efetuadas fora do acampamento permitiram, enfim, a identificação e o estudo de alguns edifícios da cidade vizinha (sobretudo lojas e oficinas), além do cemitério e de cinco templos periféricos, três dos quais dedicados respectivamente a Júpiter Hammon, a Marte Canafar e a Vanammon. A história da ocupação do forte de Gholaia é conhecida não apenas pela estratigrafia do sítio, mas também por um número importante de inscrições. Sabemos assim, por uma inscrição dedicatória, que o forte começou a ser construído em 24 de Janeiro de 201 d.C., com

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a chegada à região de um destacamento da III Legião Augusta (AE 1976, 698). Os trabalhos de construção mencionados nessa dedicatória e em outros textos epigráficos prosseguiram até 205, compreendendo ainda a construção das termas e do templo de Júpiter Hammon (IRT 913, 918-920). Outras inscrições dos anos 220 a 240 mencionam diversos trabalhos de construção e de restauração, como a edificação do templo de Marte Canafar em 225 e os reparos efetuados na porta sul em 222 (AE 1979, 645 e AE 1995, 1641). Para a última fase da ocupação militar do forte, nossa documentação epigráfica consiste essencialmente de um lote de óstraca datados de 253 a 259, além do grafite gravado por um soldado em uma das construções da aglomeração vizinha. O sítio parece ter sido abandonado pela guarnição por volta de 263, quando um novo forte foi construído em Ras el-Ain Tlalet, mas as evidências arqueológicas (estruturais e de cerâmicas) atestam a permanência de uma reocupação civil da antiga fortaleza (sobretudo por artesãos) pelo menos até o final do século IV ou o começo do século V. Sabemos, pela documentação epigráfica, que a guarnição do forte de Gholaia foi inicialmente composta por um destacamento da III Legião Augusta, comandado por um centurião, e mais tarde também por um numerus collatus, pequeno destacamento recrutado em diversos lugares e encarregado de uma missão especial (cf. AE 1972, 677). Após a dissolução da III Augusta em 238 por seu envolvimento na repressão dos Gordianos, todas as menções à Legião nas inscrições foram marteladas em virtude da condenação imposta pelo imperador Gordiano III. Desde então, a guarnição parece ter sido composta apenas por uma tropa auxiliar, sem dúvida reduzida, e isso mesmo após a reconstituição da Legião, em 253. De fato, é esse pequeno destacamento comandado por um decurião de ala (ou oficial de cavalaria) que aparece nos óstraca datados do último período da ocupação militar do forte. A onomástica, ou estudo dos nomes dos soldados e oficiais atestados em Bu Njem pelos diversos tipos de inscrições, sugere que o exército acampado no forte deve ter sido composto, em todos os períodos, majoritariamente por africanos e apenas por alguns estrangeiros, muitos, no entanto, dotados de um verdadeiro estado civil romano (com prenome, nome ou gentilício e cognome) desde seu recrutamento (Rebuffat 2000, 244-251). Para o último período, em particular, é possível constatar, pelos registros em cacos de cerâmica, que 11% dos cognomes atestados tinham uma origem púnica ou líbica (é o caso, por exemplo, dos soldados Cornélio Aníbal e Tito Buzúris), sendo que 45% dos cognomes latinos eram especificamente africanos (como Dato, Donato, Fortunato, Optato e Rogato). Também boa parte dos nomes de família (gentilícios) é bem atestada na África e metade deles consiste em dois sobrenomes imperiais, Júlio e Aurélio. O fato de serem esses os gentilícios

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de três imperadores recentes, a saber Marco Aurélio Severo Alexandre (222-235), Júlio Maximino (235-238) e Júlio Filipe (244-249), e de os gentilícios de imperadores mais antigos, como Úlpio e Élio, estarem ausentes, parece indicar que os soldados de Bu Njem não eram descendentes de veteranos, mas filhos de civis que haviam adotado o gentilício do imperador reinante na ocasião de seu alistamento (Marichal 1992, 64-65). Para os anos de 253 a 259, os cerca de 150 registros em cacos de cerâmica de que dispomos nos dão uma idéia bastante precisa da vida, das obrigações e das atividades diárias da tropa. Diversos tipos de documentos compõem esses registros temporários, compreendendo listas de tarefas, relatórios diários e correspondências enviadas ao forte por soldados em missão. Uma lista de tarefas datada de um dia 16 de Junho nos ensina assim sobre as atividades de 96 soldados presentes no forte naquele momento, além dos 64 recrutas que acabavam de chegar (óstracon 5):

XVI Kal(endas) [I]ul(ias) n(umerus) LXXXXVI tirones n(umerus) LXIIII in his eq(uites) III quintanari XXII ad balneu[m] VIII de speclis I ad praepositu[m] I ad st(ationem) camellar(iorum) I optio I item Rufus I egri IIII excusantur XXVIII reliqui munifices XXVI b[a]l[n]e[us ac]c[ipit …] [furnus ?]

“Em 16 de Junho, número: 96 recrutas em número de 64 sendo cavaleiros 3 soldados em exercício 22 junto às termas 8 de vigia 1 junto ao comandante 1

164 junto à estação de cameleiros 1 assessor 1 e também Rufo 1 doentes 4 isentos 28 demais obrigados à prestação de serviços 26 [dos quais] as termas receberam… o forno…”

As atividades dos soldados mencionadas nessa e em outras listas (óstraca 1 a 62) se repartiam, como se vê, entre o serviço do comandante e demais oficiais; o serviço de informação e de contabilidade; as missões ao exterior e o correio; os exercícios, a guarda e a vigia; além dos serviços de subsistência e dos trabalhos cotidianos. São naturalmente excluídos dessas listas o comando e o próprio librarius que as redige. A guarda do forte incluía, por vezes, atribuições específicas, como a guarda das portas (ad portas), a ronda das torres (de speclis) e a vigilância da prisão (ad carcarem). Uma boa parte das obrigações dos soldados envolvia, porém, a manutenção e o serviço dos banhos e do forno comum, além do abastecimento de água e de lenha. Em alguns documentos, vemos até 21 soldados enviados às termas e de 4 a 10 homens encarregados do forno. Para assegurar os diversos serviços, o forte contava ainda, à frente dos prestadores de serviço temporários, com o trabalho de um moleiro (molendarius), de um forneiro (fornarius), de um açougueiro (laniarius), de um ferreiro (faber) e de um pedreiro (structor), mas que não aparecem em todas as listas. O abastecimento do forte era também uma das principais tarefas dos soldados em missão, como se pode constatar por boa parte das cartas enviadas ao comando da guarnição (óstraca 74 a 117). Cartas como a que segue (óstracon 76), dada aos transportadores enviados ao forte por um soldado em janeiro de 259, podem nos dar uma idéia de como o acampamento recebia seus carregamentos de trigo: Octauio Festo dec(urioni) p(rae)p(posito) meo Aemilius Aemilianus mil(es) salutem transmisi at te domine per kamellarios Iddibalis selesua tridici vii septe et semis q(uae) f(iunt) modios naginta Consules futuros post Thusco

165 et Bas[so cos(ulibus)] xii Kal(endas) Febrarias.

A Otávio Festo, decurião, meu comandante, Emílio Emiliano, soldado: saudações! Enviei a ti, senhor, pelos cameleiros de Idibal, 7 (sete) e meia selesua de trigo, o que corresponde a noventa modii. Em 21 de Janeiro do ano dos cônsules que vieram depois do consulado de Tusco e Basso.

Emílio Emiliano fora enviado aos produtores de trigo, provavelmente nos vales dos ribeirões Sofegin e Zem-Zem, a noroeste de Bu Njem, ou nos vales menores cultivados até 30 km do golfo de Sirte, a nordeste do forte. Para o transporte do trigo, Emílio requisitou nessa mesma semana de janeiro de 259 o trabalho de vários cameleiros (além de Idibal, outras cartas nos falam de Iassuchtan, Iaremaban e Macargo). Suas cartas (óstraca 76 a 79), dadas aos chefes dos cameleiros para serem entregues ao comandante do forte na entrega, seguem sempre o mesmo formulário, mencionando medidas indígenas e seu correspondente em modii. A diversidade de nomes de medidas indígenas equivalentes (selesua, sibitualis, isidarim, siddipia), parece indicar que Emílio Emiliano devia tratar com cameleiros que falavam línguas ou dialetos diferentes, com as quais o soldado estava no entanto bastante familiarizado, talvez precisamente por ter sido criado em contato com os dialetos da região (Adams 1994, 93-94). O abastecimento de azeite também é aludido em pelo menos duas outras cartas. A primeira (óstracon 75) parece indicar a chegada ao forte de um carregamento de azeite enviado por um procurador imperial, provavelmente a partir de um depósito situado na costa. A segunda (óstracon 88), ao contrário, parece sugerir um carregamento proveniente do vale do Zem-Zem ou do planalto da Tripolitânia, uma vez que seu transporte é deixado a cargo do cameleiro Macargo (Rebuffat 1997, 164-165). Outra evidência do abastecimento de azeite e de outros produtos em Bu Njem são os restos de ânforas encotrados no forte, na cidade e nos depósitos de lixo ao seu redor. Vinte e oito selos foram indentificados nos restos de ânforas escavados: 20 marcas diferentes em ânforas oleárias do tipo Tripolitana, quatro marcas em ânforas para o transporte de conservas ou molhos de peixe do tipo Africana II e uma marca em uma ânfora do tipo Africana I (duvidosa). Que essas ânforas encontradas em Bu Njem não se destinassem apenas ao abastecimento militar pode ser deduzido do fato de que sua presença não é atestada apenas no forte e nos depósitos de lixo ao sul e a oeste do acampamento, mas também na própria cidade e no depósito situado do outro lado da muralha urbana, que não parece ter sido utilizado pelos militares. No entanto, a chegada de ânforas em Gholaia cessa

166 com a retirada da tropa por volta de 263, o que comprova que o exército, de todo modo, constituía o principal responsável por esse fluxo (Rebuffat 1997, passim). Nós não conhecemos a procedência do azeite distribuído aos soldados de Bu Njem, que, em princípio, poderia provir tanto da costa como das fazendas mais próximas por qualquer uma das três formas utilizadas pelo Estado romano para o fornecimento de suas tropas: a via fiscal, a compra direta ou a requisição pontual (Pons Pujol 2004, 1667). No entanto, o fato de que a aglomeração civil tenha tido acesso ao azeite e que ânforas contendo conservas ou molhos de peixe, embora em menor número, também sejam atestadas, parece indicar que os comerciantes, transportadores ou grandes proprietários das fazendas do litoral, uma vez obrigados a fornecer o azeite para o exército, não negligenciavam a oportunidade de lucrar com o fornecimento de azeite e de outros produtos para as aglomerações e fazendas isoladas do interior (Rebuffat 1997, 164). Durante todo o período da ocupação militar do forte, nós não temos nenhuma atestação do engajamento da guarnição de Bu Njem em qualquer combate. Isso, é claro, não quer dizer que a guarnição não tivesse um papel propriamente militar, que é ressaltado pela própria existência da fortaleza. Mas são as funções de polícia, de espionagem e de controle da fronteira que parecem mais ter preocupado diariamente oficiais e soldados. A atividade de controle da fronteira aparece de modo particular em uma outra categoria de óstraca: os relatórios redigidos pelos guardas do forte e dos diversos postos militares dele dependentes (óstraca 67 a 73). Um desses documentos (óstracon 71) pode nos dar uma idéia da minúcia com que esse controle era efetuado: [… N]ouemb(res) intoierunt [Gar]amantes ducentes asinos n(umero) IIII et Egiptios n(umero) II ferentes litteras at te et Gtasaheiheme Opter seruu[m] fugitiuu[m].

Em […] de Novembro, entraram: Garamantes conduzindo burros (em número de 4); Egípcios (em número de 2) trazendo cartas para ti e Gtasaheiheme Opter, um escravo fugitivo.

Vemos, por esse registro, como o controle se preocupava não apenas com as entradas nos limites do Império de todos os tipos de pessoas (soldados, indígenas, estrangeiros, desertores ou escravos fugitivos), mas até mesmo dos animais e de suas cargas. Um outro óstracon (72), por exemplo, menciona a entrada de Garamantes conduzindo quatro burros e

167 três mulas carregadas de cevada. As cartas apresentadas pelos Egípcios são provavelmente salvo-condutos apresentados ao decurião, que, por sua vez podia concedê-las a outros transeuntes. A vigilância sobre os movimentos dos Garamantes, membros de uma grande confederação de tribos situada fora das fronteiras do Império, ia muito além desse controle de entradas. Sabemos por outras cartas que agentes de espionagem podiam até mesmo recrutar delatores entre os próprios membros da tribo para obterem informações. É o que vemos no relato transcrito a seguir (ostracon 101): Catulo ag(enti), Emili[us] Flaniminus, bice piciparis scias domine benisse a meos refuga Aban barbarus tertium idibus Febrarias trasmisi a te per M […] amb[.

Ao agente Catulo, Emílio Flanímino, vice-principal. Saiba o senhor que veio até meus homens, no terceiro dia antes dos idos de Fevereiro, o desertor Aban, o bárbaro. Enviei a ti por M…

Textos como o dessa carta e os demais citados acima são também importantes por nos darem uma idéia das línguas faladas, do nível de alfabetização e das condições do aprendizado do latim entre os soldados de Bu Njem. Como Adams tem ressaltado (1994, 1999), a situação lingüística em um acampamento militar como esse podia ser muito variada. Muitos dos soldados de Bu Njem, como vimos, eram de recrutamento local e recente, o que quer dizer que, ao contrário dos filhos de veteranos, não tinham necessariamente o latim como língua materna, mas apenas como uma segunda (ou terceira) língua aprendida no próprio exército. Daí os diferentes graus de fluência e os erros típicos de um aprendizado imperfeito do latim que podemos deduzir de muitos dos registros de Bu Njem. A carta de Emílio Flanímino, por exemplo, nos mostra um caso de um aprendizado ainda muito imperfeito do latim. Emílio parece escrever errado o próprio nome (que deveria ser Flamínimo e não Flanímino), usa os termos pice piciparis no lugar de uice principalis, benise no lugar de uenisse e a meos no lugar de ad meos, e ao completar a expressão Scias

168 domine que encontrou com toda certeza em um formulário e que pedia uma construção com acusativo + infinitivo, usa, ao contrário, o nominativo refuga Aban barbarus. As cartas de Emílio Emiliano apresentam outra série de erros, ainda que o soldado estivesse apenas preenchendo o que parece ser um formulário pré-estabelecido. Assim, as expressões fixas como transmisi ad te domine são transcritas sem alterações esperadas como a perda do n de transmisi e a síncope de domine em domne, comuns em outras situações. Porém, nas passagens variáveis, abundam os erros como o uso de naginta por nonaginta, a síncope de Februarias em Febrarias e a aspiração de nomes como o de Thusco = Tusco. Emílio Emiliano também parece não compreender muito bem a sintaxe do ablativo absoluto e quando confrontado com a necessidade de datar sua carta em um momento do ano em que os novos cônsules não eram ainda conhecidos, cria a expressão consules futuros, no acusativo, e acrescenta post sem modificar a construção do ablativo absoluto. A existência de formulários e de convenções estabelecidas para o uso dos militares da guarnição (como a especialização artificial do verbo transmitto para designar o envio de objetos e de mitto para o envio de pessoas), mostra uma preocupação do comando em minimisar as dificuldades de aprendizado do latim por parte de muitos soldados, sem prejudicar o funcionamento de uma rede de informações e de controle inteiramente dependente da escrita. Isso, porém, não quer dizer que o latim não fosse uma língua falada no acampamento. Alguns dos erros notados nas cartas citadas e mesmo nas listas diárias são foneticamente influenciados e mostram claramente que soldados como Emílio Emiliano e Emílio Flanímino estavam em contato com a pronúncia freqüênte de alguma forma de latim coloquial. Isso é evidente na transformação sistemática do ditongo ae em e, na relativa freqüência da omissão do –m final após –a e na eliminação de várias vogais em hiato. Contudo, outros erros denotam muito mais um aprendizado imperfeito da língua ou mesmo a influência de um substrato púnico ou líbico, como na substituição do acusativo pelo nominativo e na aspiração de certas palavras como Thusco = Tusco e Festho = Festo (Adams 1994, 103, 111 e passim). Outros textos provenientes de Bu Njem nos revelam um nível de instrução e de domínio do latim muito maior entre os oficiais: esse é o caso de duas inscrições dedicatórias do período anterior à dissolução da Legião que nos transmitiram os poemas de dois centuriões, Q. Avídio Quintiano e M. Pórcio Iasucthan (IRT 918 e AE 1995, 1641). O poema de Iasucthan, escrito por ocasião da restauração da porta sul do forte, em 222, é particularmente interessante por nos revelar uma das mais antigas atestações da perda da distinção sonora das quantidades das vogais no latim africano e da emergência de um novo

169 tipo de verso fundado não mais na quantidade das vogais, mas na acentuação das sílabas. Iasucthan canta os trabalhos de restauração da porta em 28 versos que formam o acróstico de seu nome. Esses versos poderiam ter sido compostos em hexâmetro, mas nenhum deles pode ser escandido corretamente. Nosso poeta, naturalmente, não tinha um conhecimento formal das regras da metrificação clássica. No entanto, pelo menos os últimos dois pés de cada verso, os mais marcantes do verso heróico para um ouvinte que não conheça suas regras de composição, parecem obedecer a uma escanção ditada pelo sistema acentual, onde uma vogal em sílaba acentuada é tida como longa e uma vogal em sílaba não acentuada é tida como breve. Santo Agostinho, quase dois séculos depois, observava que a distinção entre vogais breves e longas não era mais percebida aos ouvidos dos africanos e que só aqueles que freqüentavam a escola do grammaticus podiam distingui-las (De doctrina christiana, 4, 10, 24; De musica, 2, 1, 1). Iasucthan, que já não percibia essas diferenças e não tinha conhecimento da métrica clássica, muito provavelmente não teve a instrução de um grammaticus. Além disso, embora utilize uma ortografia e uma morfologia corretas, faz uso de um vocabulário limitado, de expressões idiomáticas pouco usuais e de uma sintaxe nem sempre correta, o que sugere mais uma vez um aprendizado do latim como segunda língua ainda imperfeito, embora certamente muito superior aos dos simples soldados mencionados nos óstraca. O fato de que o outro centurião, Q. Avídio Quintiano, soubesse fazer uso das diferenças entre vogais breves e longas em sua composição pode indicar quer um nível de instrução diferente do de Iasucthan, quer a familiaridade com uma pronúncia que ainda fazia essas distinções (Adams 1999). Iasucthan comemorava em sua inscrição o “vigor dos jovens guerreiros da III Legião Augusta” que com seu “zelo e entusiasmo” ergueram as novas torres de Gholaia. É difícil saber se os soldados realmente partilhavam desses sentimentos, mas um impressionante grafite deixado nas termas representando o próprio forte parece de fato sugerir um certo orgulho pelo pertencimento à guarnição da fortaleza (fig. 4). Não há dúvida, de todo modo, de que o exército constituísse para esses soldados seu principal sistema de referências, o que devia ser reforçado por alguns dos cultos celebrados no acampamento, como o do gênio (ou duplo divino) de Gholaia, do gênio do destacamento militar ou do Sol Invicto. A cerimônia do “altar do círio”, em particular, celebrada na primeira metade do século III pelos legionários na noite de 3 de maio, último dia da festa de Flora (deusa do mel e da cera), é o melhor exemplo desses cultos próprios à coletividade dos soldados e propícios a reforçar sua fraternidade e espírito de corpo (Rebuffat 1982). No entanto, a construção pelos próprios legionários de Bu Njem de um templo à Júpiter Hammon e de outro a Marte Canafar, mostra-

170 nos também que os soldados de Gholaia permeneciam em contato com os fiéis do deus das caravanas e do deus da guerra dos povos da Líbia interior (Rebuffat 2000, 237). E inversamente, certos cultos militares podiam se encotrar fora do forte, como o sugere a descoberta de uma capela dedicada à Vitória em uma loja de um pequeno comerciante do burgo vizinho (Rebuffat 2000, 242). Trata-se aqui de um civil que adotou um culto militar ou de um veterano que se dedicava ao comércio na vizinhança do forte? Em qualquer das hipóteses, nós temos aqui um dos mais vívidos testemunhos da proximidade (e até mesmo da identificação) que poderia haver entre soldados e civis em uma região de fronteira.

4. Soldados e civis: relações e transformações A imagem da fronteira da Tripolitânia que podemos deduzir do caso particular de Bu Njem é portanto aquela, amplamente aceita na atualidade pela historiografia, de um sistema de defesa destinado menos a impedir as incursões vindas do deserto do que a vigiar e dividir as tribos do exterior e controlar os movimentos de pessoas e de mercadorias entre as zonas predominantemente nômades e as zonas predominantemente sedentárias. Porém, o impacto desse tipo de presença militar na sociedade provinciana pode ser e tem sido interpretado de diferentes maneiras pelos estudiosos. Poder-se-ia, por exemplo, afirmar que essa rede de controle não era mais do que a obra de um “exército de ocupação” destinada a favorecer a cobrança de impostos sobre os nômades, sem, no entanto, alterar os modos de produção tradicionais e a vida cotidiana das populações locais (Cherry 1998). Parece-me, porém, que as evidências de Bu Njem nos revelam uma situação muito mais simbiótica e geradora de profundas transformações na vida de soldados e de civis, sejam eles nômades ou sedentários. É evidente que o exército tinha uma função de controle social. Tribos como as dos Garamantes viam-se de fato constantemente vigiadas. No entanto, em tempos normais, os nômades que adentravam as fronteiras do Império não deixavam de tirar proveito desse controle, obtendo dos oficiais responsáveis garantias que lhes permitissem encontrar trabalho nas fazendas dos provincianos. Esse tipo de relação, que se pode deduzir dos arquivos de Bu Njem, ainda prevalecia quase dois séculos mais tarde nos confins da Tripolitânia e da Bizacena, como vemos em uma carta de um correspondente de Santo Agostinho que se refere ao juramento, aparentemente recíproco, que os nômades prestavam diante de um tribuno ou decurião nos postos de fronteira em troca de um salvo-conduto que lhes permitia encontrar trabalho na guarda das colheitas, no transporte de mercadorias em dorso de camelos ou como guias de viajantes (Agostinho, Ep. 46; cf. Lepelley 2002).

171 A vigilância dos soldados podia também se estender aos próprios habitantes da província, mas a presença do exército significava também muito mais do que isso. A integração da Tripolitânia ao Império Romano provocou transformações substanciais nos modos de produção e de ocupação da terra, com a dissolução do antigo modo de vida tribal e o desenvolvimento de uma agricultura cada vez mais voltada para a exportação. Tais transformações, atestadas pelas prospecções arqueológicas, não se deveram, é claro, apenas à presença do exército. No entanto, o desenvolvimento do burgo em torno do forte de Bu Njem é um exemplo do impacto econômico provocado por essa presença na vida dos cultivadores mais próximos que certamente encontravam na nova aglomeração um mercado para a venda de seus excedentes agrícolas e para a compra de produtos do exterior, como essa cerâmica importada tão freqüentemente encontrada nas fazendas do pré-deserto. Por outro lado, os próprios habitantes do burgo de Bu Njem não deixavam de se beneficiar com os efeitos colaterais da presença do exército, que lhes possibilitava o acesso a mercadorias como azeite, conservas e molhos de peixe vendidas aos civis provavelmente pelos mesmos fornecedores do forte. A guarnição de Gholaia, por fim, não me parece poder ser descrita como um “corpo repressivo homogêneo” separado da população local por “um terrível estranhamento”. De um lado, é preciso lembrar a heterogeneidade cultural, senão mesmo social, que marca o próprio exército, como se pode verificar pelos diferentes níveis de instrução (para não dizer de pretensão literária) entre os membros do comando e os soldados rasos. Por outro lado, deve-se notar que a maioria dos soldados eram recrutados na própria província e recrutados não entre filhos de veteranos, mas de civis. Seu ingresso no exército, é verdade, implicava a necessidade de adotar uma nova língua (o latim), novos hábitos (como os banhos termais) e mesmo novos cultos. Também é verdade que os soldados encontravam no exército um novo sistema de referências. Porém, eles não abandonavam suas línguas maternas (fossem elas o púnico ou líbico), não deixavam de cultuar as divindades indígenas e não se sentiam, por isso, tão afastados da vida dos civis com quem conviviam diariamente. A capela da Vitória em uma loja do burgo de Bu Njem é, como vimos, um exemplo claro dessa proximidade, qualquer que seja a interpretação que lhe demos.

5. Conclusão As escavações e os arquivos descobertos em Bu Njem nos permitem vislumbrar com uma grande riqueza de detalhes um pouco da vida de uma guarnição de fronteira e de suas

172 relações com os civis nas margens do deserto da Tripolitânia durante o século III d.C. Em que medida os resultados obtidos a partir desse estudo podem ser transpostos a outras regiões da África romana, é uma questão ainda em aberto. A Tripolitânia é sob muitos aspectos uma região particular. Ao contrário de outras províncias africanas, a Tripolitânia não conheceu nenhuma imigração de colonos romanos, o que tem naturalmente implicações sobre o recrutamento de seus soldados. Suas condições geográficas, com a transição direta para o deserto, também tornavam a defesa das fronteiras muito mais simples do que no sul da Numídia. Parece-me, contudo, que um modelo que enfatiza a simbiose entre soldados e civis poderia ser facilmente verificado em outras regiões, como Fentress aliás sugeriu no caso da própria Numídia. No entanto, nossas hipóteses, para serem testadas, precisam mais do que serem simplesmente colocadas. O que o sítio de Bu Njem nos ensina é o quanto os novos estudos sobre a fronteira na África romana dependem ainda de uma retomada sistemática das escavações de seus inúmeros sítios militares.

Agradecimentos Agradeço a Cláudio Umpierre Carlan, Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo Funari, organizadores deste livro, pelo convite, a Carlos Roberto Galvão Sobrinho pelo inestimável auxílio bibliográfico, e a René Rebuffat por suas sugestões e por ter gentilmente autorizado a publicação das figuras que ilustram este capítulo.

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Fig. 1 O sítio arqueológico de Bu Njem. Ao centro, o forte e a cidade. Ao norte, o templo de Júpiter Hammon. Ao sul, a necrópole. (Fonte: Rebuffat 2000, 256, fig. 3).

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Fig. 2 O forte de Gholaia (Bu Njem). 1: Quartel-general (principia); 2: casa do comandante (praetorium); 3: casernas; 4: termas; 5: edifîcios não identificados; 6: celeiros; 7: scriptorium. (Fonte: Rebuffat 2000, 257, fig. 4).

Fig. 3 O forte de Gholaia visto por um contemporâneo: grafite encontrado nas termas. (Fonte: Rebuffat 2000, 258, fig. 5).

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GUERRA E MILITARISMO NA ÁREA MAIA: DEFINIÇÃO, CONCEITO E USO.

Alexandre Navarro Universidade Federal do Maranhão

1. Introdução

Durante muito tempo os maias foram retratados como grupos fundamentalmente pacíficos, em que as expressões de violência relacionavam-se exclusivamente ao sacrifico ritual em função de suas práticas político-religiosas. No entanto, as pesquisas realizadas nas últimas décadas mostram novos dados e conceitos para entender o papel que desempenharam a guerra e o militarismo na área maia e o desenvolvimento de suas numerosas cidades. Neste capítulo, definimos o conceito de guerra e militarismo e discutimos como as diferentes correntes teóricas têm abordado o tema na civilização maia. Debatemos, também, como eram realizadas as práticas e os métodos de guerra e militarismo nessa região, além dos armamentos utilizados nas ações bélicas.

2. Definição e conceito de guerra e militarismo: considerações teóricas

Pensamos que a guerra e militarismo permeiam o campo social da contenção hostil através das forças armadas por parte de uma sociedade, de seu governante ou Estado. O emprego da guerra e o uso do militarismo geralmente ocorrem contra um poder estrangeiro ou contra um partido opositor do governo ou Estado. Comumente a guerra é um tipo de operação caracterizada por algum conflito em que se utiliza o combate ou a batalha para alcançar seus propósitos e subjugar o oponente ou inimigo. Já o militarismo é uma instituição, a guerra institucionalizada, que prevê uma ordem clara e objetiva: a organização de um exército para realizar uma conquista e dominar seu opositor.

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Em muitos Estados Arcaicos o conflito intra ou extra-regional são discutidos como um dos principais elementos sociais para o surgimento de sociedades complexas (Flannery, 1998; Marcus, 1998; Webster, 1998). A necessidade de solos férteis que produziam maiores e melhores colheitas pelas populações crescentes e cada vez mais consumidoras de gêneros alimentícios tem sido o principal argumento para a existência de guerra como o principal fator que levou os líderes das diversas sociedades a praticarem a belicosidade (Carneiro 1970, 1990; Reichel-Dolmstoff, 1985; Steponaitis, 1991). Assim, a guerra e o militarismo se desenvolveram em sociedades complexas como um dos fatores que os líderes usaram em seu governo para desprestigiarem a outros e, assim, adquirirem maior poder, por exemplo, através da riqueza, tributo e prestígio social (Earle 1990; Earle y Johnson 1987). Segundo Koch (1974), os conflitos pelo controle de recursos em uma sociedade podem opor os grupos que estavam unidos por parentesco e iniciar uma guerra e sua posterior institucionalização através da criação de exércitos. Desse modo, de todos os fatores sociais que induzem a guerra o mais significativo seria o desenvolvimento da desigualdade socioeconômica e de poder, características que compõem a evolução política de qualquer grupo social. Quando a guerra e o militarismo conduzem à conquista ou ao domínio de um grupo pelo outro, as relações de desigualdade entre os mesmos são dramáticas. Logo, um grupo dominante pode começar uma guerra com a finalidade de preservar ou fortalecer a sua estrutura sociopolítica, que é a base de sua posição hegemônica (Naroll, 1964). Muitas vezes, a guerra e o militarismo são resultados da violência legitimada e organizada ofensiva e defensivamente entre distintas entidades políticas. Estas entidades podem enfrentar-se em violentas ações bélicas realizadas por razões de vingança, expansão territorial, busca de mercadorias e domínio econômico ou simplesmente pelo desejo de poder por parte da elite. Assim, a guerra e o militarismo são reflexos da violência inter-grupal cuja resolução dos conflitos implica na vitória de um grupo e na perda de outro (Ferguson, 1984). Deste modo, podemos considerar que a guerra e o militarismo têm várias motivações: ambição política, domínio econômico, proteção de mercadorias e busca pela ampliação de poder. Além disso, marcam a diferenciação de uma sociedade dentro de grupos com posições sociais diferentes nas estruturas políticas e econômicas onde predominam os interesses divergentes destes grupos antagônicos. Finalmente, os conceitos de guerra e militarismo são entendidos neste trabalho como um fenômeno social interno que permeia as relações sociais de uma determinada área cultural (Otterbein, 1968). Dentro deste contexto, este estudo considerará as estruturas sociais, a

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organização política entre comunidades similares e suas relações com outras distintas e os sistemas políticos centralizadores de governo como fatores essenciais que caracterizam a guerra e o militarismo na área maia.

3. Fontes para o presente estudo

As evidências de guerra e militarismo na Mesoamérica são amplas e variadas. Neste trabalho, as fontes de estudo para tais práticas são:

1. Iconografia. Os diferentes grupos mesoamericanos utilizaram a pintura mural como veículo de propagação de sua política. As cenas de combate, batalhas e conflitos são bastante recorrentes, sobretudo na área maia. 2. Epigrafia. A escrita maia, hoje em dia bastante decifrada, dá conta de inúmeras passagens bélicas que se centram, fundamentalmente, nas conquistas dos governantes e no tratamento dos prisioneiros de guerra. 3. Cultura material. Diversos artefatos encontrados na Mesoamérica atestam a evidência inverossímil que a guerra e o militarismo eram assuntos sociais de grande importância nessa área cultural. Exemplos são as várias construções destinadas à defesa de cidades, como muralhas e fossos, além das armas utilizadas nas ações bélicas.

4. Guerra e militarismo na Mesoamérica: considerações gerais

A região em que se desenvolveu a civilização maia corresponde ao que é hoje a península do Yucatán, no México, englobando os atuais Estados de Campeche, Tabasco, Chiapas, Iucatã e Quintana Roo; as terras baixas e altas da Guatemala; Belize; a porção ocidental de Honduras e El Salvador, reunindo territórios que pertencem à área denominada Mesoamérica (figura 1).

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Figura 1. Mapa da Mesoamérica. En Aoyama 2005, 292. p. 4.

O papel da guerra e do militarismo foi essencial para a conformação da Mesoamérica como área cultural. A expansão militar acelerou significativamente a difusão de idéias e tecnologias nessa ampla região. Assim, o padrão de difusão e integração cultural mesoamericanos está diretamente relacionado com a história de suas expansões militares e combates bélicos (Hassig, 2007).

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Um dos principais vestígios para o entendimento da guerra e militarismo na Mesoamérica são os monumentos de conquista. Geralmente compreendem esculturas que relatam a vitória de um determinado governante sobre seu oponente. Como este tipo de evidência privilegia as façanhas e a proclamação de vitória de uma das partes do evento bélico, muitas vezes outras fontes, como a epigrafia, não confirmam o mesmo evento. Isso acontece porque os líderes políticos dificilmente registravam as suas derrotas e os monumentos que erigiam ofereciam as versões oficiais de seu trunfo (Hassig, 2007) (figura 2).

Figura 2. Captura de Ah Kik, senhor da cidade de Man, por Itzam-Bahlam de Yaxchilán. En Matthews 2000, 139. p. 5.

Por outro lado, as fortificações oferecem um panorama mais amplo da guerra e militarismo mesoamericanos. A existência dessas construções defensivas evidencia o grau de capacidade militar pré-hispânica e as circunstâncias políticas as quais estiveram associadas. O princípio básico das fortificações é garantir e aumentar a eficácia da defesa de uma cidade. As primeiras fortificações na Mesoamérica, que foram muros e modificações parciais do terreno, surgiram nas terras baixas maias entre os anos de 800 e 400 a.C. e entre os zapotecos, que habitaram principalmente o sul do atual Estado mexicano de Oaxaca. Os exemplos mais conhecidos destas fortificações estão na cidade de Becán e Edzná, localizadas no atual Estado mexicano de Campeche que foram construídas ao redor do ano 100 a.C. (figura 3).

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Figura 3. O sítio de Becán e sua muralha. En Marcus 2000, 241. p. 5.

O primeiro indício da complexidade que pode adquirir uma guerra e o uso do militarismo é a aparição de armas cujo objetivo é destruir o inimigo. Cerca de 1500 a.C. os olmecas, considerada a primeira sociedade hierarquizada da Mesoamérica, já haviam inventado os dardos ou jabalinas que eram agregadas às lanças. Aproximadamente no ano de 900 a.C. foram criadas as atiradeiras ou propulsores que permitiam atacar desde distâncias relativamente grandes. O conjunto de dardos e propulsores viria a formar a principal arma mesoamericana, conhecida como átlatl na língua náhuatl. No ano de 400 a.C. já eram conhecidos entre os mesoamericanos os escudos retangulares, geralmente de grandes proporções, que acompanhados pelas lanças continham de maneira eficaz o impacto dos dardos e dos propulsores. A seguinte inovação veio a princípios do século I d.C. em Teotihuacán, no altiplano mexicano. Os teotihuacanos utilizaram escudos menores, que foram usados em um dos antebraços e que permitiam aos lanceiros uma melhor mobilidade. Estes lanceiros iam acompanhados de outros soldados, que portavam escudos retangulares maiores e empunhavam seus átlatls, o que sugere, que no início da era cristã, a cidade de Teotihuacán já possuía uma organização militar. Para obter proteção e defesa contra as armas pontiagudas aparecem os capacetes ou elmos feitos de algodão, e no ano de 400 d.C. já havia armaduras

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completas deste mesmo tecido. Em épocas mais tardias, principalmente com os toltecas (ca. 1000 d.C.), aparece um tipo de armamento mais leve associado aos combates que necessitavam maior mobilidade física. Assim, os guerreiros protegiam o braço e o ombro direito com algodão acolchoado, um amparo mais econômico e suave, e complementavam a defesa com escudos no antebraço. Os toltecas também acrescentaram navalhas em seus dardos e os transformaram em uma espécie de espada curta utilizados com o propulsor ou lançadardos. Entre os maias, as armas ofensivas mais utilizadas eram as lanças, os machados, os garrotes, facas de pedra, as atiradeiras e possivelmente o átlatl. Já entre as defensivas, as mais utilizadas eram o peitoral (de algodão), os escudos (um forma bastante característica era o escudo flexível, feito de algodão, que se abria ao realizar os movimentos de proteção) e uma malha de algodão para proteger as munhecas e os joelhos. Para complementar o armamento, utilizavam as capas de pele, de algodão ou de plumas e materiais como conchas, madeira e lapidários (Brokmann, 2000) (figura 4).

Figura 4. a, h, i. átlatl; b. dardos; c. garrote; d. arma de obsidiana; e. arma de pedernal; f. arma e corda para amarrar cativos; g. faca; j.porrete; k. lanca; l. hasta com machados. p.6.

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5. Guerreiros e militares maias

Hoje em dia sabemos que os maias não compreenderam uma sociedade pacífica e pacata. As suas cidades estiveram em constante enfrentamento e a guerra entre elas evidencia uma prática social complexa e com diferentes variantes. A guerra entre os maias se manifestou de diferentes maneiras. As fontes mais abundantes para seu estudo são a iconografia e os textos hieroglíficos. Os ícones retratam os governantes sempre portando algum tipo de arma, como a lança e os dardos e seu propulsor. Muitas vezes, os governantes estão subjugando um cativo ou prisioneiro de guerra, geralmente o governante de uma cidade inimiga, que será sacrificado. Os cativos são facilmente identificados, pois têm as mãos ou braços amarrados por uma corda, ou são agarrados pelo cabelo ou braços. Na maioria dos casos, o texto associado contém o verbo chuk-ah ou chuk-hi, que significa “foi capturado” (Matthews, 2000) (figura 5).

Figura 5. Yaxun-Bahlam de Yaxchilán captura a Cranio de Jóias em 5 de maio de 755 d.C. En Matthews 2000, 133. p. 7.

O militarismo e os conflitos começam a aparecer na área maia durante o Pré-Clássico Tardio (400 a.C. a 300 d.C). Os monumentos deste período registram, com certa freqüência, cativos de guerra atados e nus, que, em certas ocasiões, aparecem ajoelhados diante do

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governante ou debaixo de seus pés, indicando, assim, um símbolo de submissão total. Estes prisioneiros geralmente eram membros da elite rival, ou mesmo governantes inimigos, e portam seu nome escrito em seus toucados ou penachos. Deste modo, a iconografia registra a guerra como símbolo de autoridade em que os prisioneiros de combate eram representados como elementos centrais da pintura mural (figura 6).

Figura 6. No ano de 735 o governante 3 de Dos Pilas capturou a Garra de Jaguar, senhor de Seibal, que se encontra na parte inferior da estela, atado e nu. En Miller 2000, 179. p. 7.

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As atividades bélicas entre os maias foram bastante diversificadas, em quanto as suas práticas, objetivos e funções. Isso se deve ao fato de que a civilização maia ocupou um vasto território, que englobava tanto planícies como altas montanhas, onde se desenvolveram cidades independentes entre si, que alcançaram seu apogeu e colapsaram, e que competiram para controlar áreas geográficas, recursos e bens de consumo. Nenhuma destas cidades conseguiu dominar o mundo maia sob uma perspectiva imperial ou, como fizeram a cidade de Monte Albán nos Vales Centrais de Oaxaca ou Tenochtitlán, a capital asteca, no Vale do México. Encontramos evidência das ações militares e guerreiras em várias cidades maias. O exemplo mais conhecido é Bonampak, localizado ao sul do atual Estado mexicano de Chiapas, onde se representa um grande número de soldados que combatem, matam e capturam diversos inimigos de guerra (figura 7).

Figura 7. Uma cena de batalha no sítio arqueológico de Bonampak. Fotografia tirada pelo autor. p. 8.

Assim, existiram tanto as incursões de pequenas escalas entre populações vizinhas com conflitos regionais de longa envergadura. Neste último caso, os conflitos duraram décadas e incluíram a conquista e domínio de uma cidade pela outra. Nesta condição, é bastante provável que os governantes reunissem exércitos, assim como a infra-estrutura necessária

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para iniciar ou manter as ações beligerantes. Infelizmente, os registros epigráficos ou pintura mural não registram o número de soldados participantes dos conflitos e o número de baixas. Um dos principais conflitos bélicos na área maia se deve a Pássaro-Jaguar IV, que governou a cidade de Yaxchilán entre 752 a 768 d.C. Este governante subiu ao trono aos 43 anos de idade e demonstrou ser um dos governantes mais enérgicos do Clássico, criando uma profusão de arte e arquitetura durante os seus 16 anos de reinado. Por meio de seus esforços surgiu um programa de governo único que buscava a sua própria legitimidade. Nenhum outro rei maia foi tão proselitista. Ele foi um grande guerreiro, e nas inscrições fazia questão de vangloriar seus títulos militares, sendo seus favoritos o “Ele, dos 20 Cativos” e “Amo de Aj Uk”, que sempre acompanhavam seu dono. Este governante foi responsável por uma importante transformação arquitetônica em Yaxchilán. Construiu mais de dez grandes edifícios cuja imagética sempre destaca as guerras e conquistas militares em que se envolveu. Não se conhece como se deu o final de seu governo e sua morte. Sabe-se, no entanto, que a última data associada a Pássaro-Jaguar IV é junho de 768. O evento, narrado no dintel 9 (peca de pedra ou madeira que se coloca atravessado na parte superior de uma porta ou janela), mostra o rei em uma dança ritual na que troca bastões com seu cunhado Grande Crânio (figura 8).

Figura 8. Um dos mais belicosos governantes maias, Pássaro Jaguar IV. En Marcus, 2000, 273. p. 9.

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No entanto, a maior série de conflitos militares ocorreu durante o Clássico Final entre as cidades de Tikal e Calakmul. Parece ser que o longo enfrentamento se deu com a finalidade de dominar a zona central da área maia, conhecida como Petén, entre os séculos VII e VIII da nossa era. Durante grande parte desse período o agressor foi a cidade de Calakmul, que estabeleceu alianças com as cidades de El Perú, Dos Pilas, Cancuén y Caracol, mantendo um cerco a leste, oeste e sul de sua inimiga Tikal. Diversas cidades das terras baixas do sul fazem referência às mutáveis alianças entre os governantes que foram arrastados nos diversos confrontos entre Calakmul e Tikal. Estes governantes capturados nem sempre foram sacrificados. Muitas vezes eram exibidos como cativos de guerra com o objetivo de humilhálos publicamente. Depois, sua autoridade era restituída, mas como subordinados de seus conquistadores.

5.1. As relações políticas entre Calakmul e Tikal: um estudo de caso

Como mencionamos antes, vários conflitos armados ocorreram na área maia, principalmente durante o Clássico. No entanto, temos que destacar um cujas conseqüências são muito importantes para o entendimento da evolução política nas Terras Baixas do sul: os diversos enfrentamentos entre Calakmul e Tikal durante este período. Os dados epigráficos revelam que os reis do período Clássico puseram em prática esquemas de organização política que lhes permitiram manter uma ampla rede de alianças (Simon e Grube 2000). Estas unidades políticas se sustentaram em uma diplomacia que enfocou tanto as alianças matrimoniais como as de submissão. Vejamos como transcorreram estas atividades bélicas entre as duas cidades. Durante o século V, Tikal, com o governo de Céu Tempestuoso, consolidou a política de expansão política iniciado por seu antecessor Grande Garra de Jaguar e seu irmão Rã Esfumaçante, com quem Tikal havia alcançado um grande prestígio. Neste mesmo período, o governante de Calakmul que mandou erigir a Estela 114 no ano de 435 d.C. aos pés da Estrutura II, a maior pirâmide do sítio. Estas transformações deram início em Calakmul a grandes obras de remodelação que, sem modificar o traço urbano da cidade, lhe proporcionaram um novo aspecto urbano. No transcurso do século V, o Cuchcabal da Cabeça da Serpente (ou Kul’ Kanal Ahaw) começou a consolidar-se, intensificando sua política exterior. Um Cuchcabal pode ser definido como um

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conjunto de governantes de cidades subordinadas que se uniam pelo poder, o qual residia em uma cidade cabeceira, neste caso, Calakmul. Estas cidades mantinham uma inter-relação complexa de índole político-religiosa. Não havia uma fronteira estabelecida entre elas, sua jurisdição abarcava vários centros urbanos, os quais tampouco tinham um limite territorial definido. Assim, neste tipo de organização política, um governante podia aceitar em sua jurisdição o dirigente de uma cidade distante sem se preocupar pela continuidade territorial (Carrasco Vargas, 2000). Os primeiros registros de prováveis relações entre Calakmul e outros centros de poder estão documentados em Dzinbanché, no atual Estado mexicano de Quintana Roo, no ano de 495 d.C. Mas foi somente no governo de Tun K’ab Hix (Pedra Mão de Jaguar) que as alianças intensificaram-se para acabar com a hegemonia de Tikal. Na conturbada história política maia das Terras Baixas do sul durante os séculos VI e VII, o Cuchcabal da Cabeça da Serpente consolidou uma ampla rede de alianças estratégicas, entretecida com os distantes Estados localizados na região do Usumacinta e Petexbatún. Por exemplo, no ano de 537, um senhor vassalo do governante Tun K’ab Hix de Calakmul participou como emissário deste de um ritual celebrado pelo décimo rei de Yaxchilán. No ano de 546, Tun K’ab Hix sancionou a ascensão do governante de Naranjo; na Estela 25 deste sítio registrou-se que o evento teve lugar no território de K’ab Hix, ou seja, em Calakmul. Com estes atos de legitimação de poder, o Cuchcabal da Cabeça de Serpente iniciou sua política hegemônica demonstrando sua influência a longa distância, o que sugere a aplicação de uma estratégia contra Tikal. No entanto, Tun K’ab Hix morreu entre o ano de 520 e 536 e seus restos foram enterrados na Estrutura IV de Calakmul. Entre os objetos de oferenda que o acompanhava, se recuperou uma máscara funerária que parece retratar o rei, quem era um indivíduo de idade avançada no momento de sua morte (Carrasco Vargas, 2000). No ano de 556, o rei Duplo Pássaro de Tikal rompeu a aliança que havia estabelecido com a cidade de Caracol em 553, derrotando e decapitando um nobre deste reino. Seis anos depois, Duplo Pássaro foi vencido por Yahaw Te K’inich de Caracol, quem, neste momento, estabelecia os primeiros contatos diplomáticos com Calakmul. Depois desta derrota se iniciou um período de 130 anos em que praticamente nenhum monumento com inscrições hieroglíficas foi construído em Tikal. Durante esta época, Caracol se integrou ao Cuchcabal da Cabeça de Serpente e se converteu no principal aliado de Calakmul. No início do século VII, como cabeça destas alianças, Calakmul tinha alcançado sua hegemonia na região e se afirmou como o principal centro de uma rede de Estados afiliados.

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A política iniciada por Tun K’ab Hix foi continuada por (U)-?[?]-Chan-na (Observador do Céu), quem subiu ao trono de Calakmul em 561 e consolidou a aliança com Caracol em 572. Este evento foi registrado na Estela 3 de Caracol, em que o rei Kan II de Caracol menciona a (U)-?[?]-Chan-na como um de seus protagonistas. O contato entre Calakmul e Caracol iniciouse com o pai de Kan II ao contrair matrimônio com a senhora Batz’ Ek, governante da dinastia real de Calakmul, casamento que provavelmente aconteceu depois de uma batalha contra Tikal. Observador do Céu estabeleceu relações diplomáticas e realizou guerras com outros centros urbanos distantes e seu nome foi até mesmo registrado em Palenque no ano de 599. No ano de 579, Uneh Chan (Serpente Enrolada) ascendeu ao trono de Calakmul. Este governante remodelou a Estrutura V e a converteu no edifício comemorativo mais importante do centro urbano. A Estela 33 proclama que Uneh Chan foi o sucessor de Observador do Céu. Como seu antecessor, Serpente Enrolada também foi mencionado na Estela 4 de Caracol e no Templo das Inscrições de Palenque, o que parece evidenciar o registro de um enfrentamento militar entres estas duas cidades no ano de 611 (Martin e Grube, 2000). Com a ascensão da dinastia dos Yuknom, no século VII, se inaugurou o período em que as habilidades diplomáticas de seus governantes levaram Calakmul a se tornar a “superpotência” das Terras Baixas do sul (Simon y Grube, 2000). A partir deste momento, as referências a Calakmul nas inscrições hieroglíficas multiplicaram-se. Nos textos epigráficos até agora conhecidos existem aproximadamente 80 alusões a Calakmul, entre glifos emblemas e toponímicos que aludem ao Cuchcabal da Cabeça da Serpente. No ano de 686 subiu ao trono Yich’ak K’ak, conhecido como Grande Garra de Jaguar, o governante mais importante de Calakmul. Este controverso personagem se viu involucrado em uma grande guerra com Jasaw Chan K’awill, o novo rei de Tikal. Nesta batalha, os guerreiros de Calakmul foram derrotados, capturados e sacrificados. No dintel do Templo I de Tikal, Jasaw Chan K’awill mandou gravar uma inscrição onde conclama que capturou o escudo de pedernal de Yich’ak K’ak’ no dia 05 de agosto de 695 d.C. (figuras 9).

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Figura 9. Imagem do governante Jasaw Chan K' awill na Estela 16 (esculpida em 711 d.C.) do sítio arqueológico de Tikal. En Martin e Grube 2000, 44. p. 12.

Depois dessa derrota, Yich’ ak K’ak’ morreu a princípios do século VII, e foi sepultado em uma suntuosa tumba construída no interior da Estrutura II. O túmulo, que foi encontrado intacto no ano de 1997, não havia sofrido nenhum saque. O esqueleto foi encontrado em decúbito dorsal estendido mirando em direção ao poente. O Sol, ao ocultar-se nesta direção, marcava a entrada do rei ao inframundo (Baudez, 2004). O governante descansava sobre um refinado suporte de madeira, para dar estabilidade ao corpo, decorado com flores com quatro pétalas de cor vermelha, pequenas garras e figuras ovaladas de concha dispostas ordenadamente em forma de incrustações. O rei foi ataviado com uma concha pélvica, uma envoltura de algodão decorada com conchas Spondylus talhadas em forma de flores, um par de orelheiras y um colar de jade e pérolas, e que posteriormente foi espalhado mercúrio antes de proceder ao elaborado processo de conservação do corpo. Entre seus fêmures se encontrou uma esponja marinha e restos do que parece ser um coral negro. O corpo também foi coberto com uma grossa

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capa de cal e com um delicado tecido de fibras de líber, e logo foi envolvido por tecidos confeccionados com este mesmo material, previamente impregnado em uma mistura de resinas. Neste processo, o envoltório foi elaborado com diversas aplicações de mercúrio, cal e folhas de palmeira com a finalidade de conservar o corpo e endurecer o fardo para sua posterior manipulação. Por último, se aplicou uma capa homogênea de resina, que cobriu por completo a textura do tecido e lhe deu um acabado liso (Baudez, 2004) (figura 10).

Figura 10. Túmulo do governante Yich’ ak K’ak’. En Baudez 2004, 229. p. 13.

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Ainda sobre o corpo foram depositadas várias jóias de jade e concha, além das prendas que conformavam sua vestimenta. Logo se colocou sobre seu ombro direito uma excelsa máscara funerária de jade sobre madeira, em cuja parte inferior se mostra uma seqüência glífica em cal. Ao lado do governante encontrou-se um segundo grande par de orelheiras, que apresentam inscrições em seu interior. Aos pés do rei foram colocadas nove valvas de Spondylus, as quais possivelmente aludem aos nove senhores do inframundo. Na parte ocidental da tumba se colocou parte da oferenda cerâmica constituída de 14 peças, a maioria policroma, sobre as quais se encontravam algumas cestas, que estavam desintegradas. Ao redor de sua cabeça se colocou um coral e um suntuoso tocado de palmeira e cal, decorado com mosaicos de jade, concha nácar e uma garra de jaguar, que confirmava sua qualidade de governante e descendência divina. Também, como parte da oferenda funerária, se colocou um prato policromo com uma inscrição na qual seu nome rodeia a cabeça do Deus do milho, divindade protetora das dinastias reais (Baudez, 2004). Deste modo, como resultado da derrota sofrida por Garra de Jaguar, o Cuchcabal da Cabeça da Serpente perdeu, paulatinamente, a influência militar que mantinha nas Terras Baixas do sul. Transcorreram alguns anos para que a nova situação política da região se consolidasse plenamente. Calakmul continuou conservando laços diplomáticos com alguns de seus aliados. A crescente influência de Tikal nas Terras Baixas do sul obrigou aos governantes de Calakmul a reorientar a política de seu Cachcabal em direção às cidades setentrionais (Martin e Grube, 2000). Em princípios do século VIII sobe ao poder o governante Yuknom Tok’ K’awill (? Pedernal Deus K), um dos últimos governantes de Calakmul nomeado nas inscrições de outras cidades, cujo nome aparece nos registros de El Perú y Dos Pilas. Foi provavelmente em seu governo que se estreitaram as relações de Calakmul com seus vizinhos do norte, sobretudo com área Rio Bec. Com a ascensão de Yuknom Tok’ K’awill terminou mais de um século da hegemonia da dinastia dos Yuknom. Este personagem mandou colocar na Grande Acrópole a Estela 66, datada de 731, na qual representa uma cerimônia associada com o jogo de bola ou pelota. Foi este governante quem realizou a última grande remodelação da Estrutura II: recobriua com vários corpos escalonados e elevou a parte frontal a uma altura de 30 metros, onde se edificou a Estrutura IIB.

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5.2. Outros tipos de guerra entre os maias

A guerra adquiriu outras funções e características dentro da área maia. Segundo Webster (2000) a guerra entre as organizações políticas maias dava aos governantes os meios materiais para formar seguidores que por sua vez originavam facções que lhes proporcionavam bases de poder independentes das amplas estruturas de parentesco tradicional. Estas facções se distinguiam por duas características: foram conflitos altamente ritualizados e coreografados entre os governantes e permitiram a competição territorial. Este modelo de conflito ganhou bastante aceitação para as sociedades maias que alcançaram seu auge durante o Clássico Terminal (800 a 1050 d.C.) porque as cidades deste período se caracterizaram por entidades políticas de longa duração. Com isso, há uma maior centralização do poder nas mãos dos governantes em função de dinastias poderosas que estavam estreitamente justapostas em muitas regiões maias. Parece ser que durante o Clássico Terminal os fóruns políticos das elites, ou seja, o lugar onde se manifestavam suas rivalidades de status e transcenderam a organização política local porque constituíam uma espécie de confraria coletiva com interesses e identidades que possuíam interesses comuns. Por outro lado, as pesquisas realizadas por Chase e Chase (2000) indicam que a guerra entre os maias acostumava realizar-se por objetivos econômicos. Entre as diversas causas dos conflitos bélicos estava a disputa por terras, o acesso às minas de sal na costa, além do desejo de obter cativos para serem usados, sobretudo, como escravos e sacrifícios. Por outro lado, estes estudiosos salientam que a guerra entre os maias nem sempre tinha como função a destruição. Os dados de escavação do sítio arqueológico de Caracol, atual Belize, indica que depois da guerra com a sua vizinha e também inimiga Naranjo, se edificaram diversos edifícios na cidade, acompanhado de um aumento populacional.

Parece ser que o

florescimento posterior à guerra se deva ao aumento da mão-de-obra que se obteve da região derrotada, o que ajudou a suposta incorporação territorial de Naranjo a Caracol. Esta condição de prosperidade ante a guerra também é sublinhado por Joyce Marcus (2000) quem avalia que os conflitos propiciaram o tributo de mercadorias e representaram uma estratégia importante para manter a hierarquia dos governantes. Deste modo, a guerra podia impulsionar a economia através da obtenção de bens de luxo ou de consumo, além da aquisição de terras e escravos. A guerra e a severa intensificação do militarismo para conquistar e proteger os territórios conquistados foram fatores determinantes para o colapso maia ocorrido no século IX d.C. Por exemplo, somente nas terras baixas maias ocidentais, uma região que engloba

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sítios como Palenque, Pomoná, Yaxchilán, Toniná, Altar de Sacrifícios, Piedras Negras, Bonampak, Dos Pilas e Aguateca, há mais de duzentos monumentos cujas representações iconográficas e textos hieroglíficos se associam com a guerra. Associados aos vários edifícios que foram queimados durante o Clássico Tardio, pode-se considerar que a incidência da guerra aumentou demasiadamente neste período e se converteu em uma situação endêmica. Pesquisas arqueológicas recentes realizadas no sítio de Colha, atual Belize, indicam que seu colapso se deu principalmente como resultado de um intenso conflito armado na cidade (Barrett e Scherer, 2005). Estes pesquisadores encontraram nas escavações mais de 50 esqueletos com marcas de violência, entre elas a decapitação e a retirada de peles dos corpos das vítimas. No sítio de Aguateca, Guatemala, grande quantidade de pontas de projétil utilizadas na confecção de lanças foram encontradas na última etapa de construção da cidade, em lugares que foram queimados e destruídos (Aoyama, 2005) (figura 11).

Figura 11. Lancas e pontas de projéteis provenientes de Aguateca. En Ayoama 2005, 296. p. 16.

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Para Inomata (2003) a guerra foi o principal fator social que levou Aguateca ao colapso. Deste modo, a guerra desempenhou um papel importante no colapso da complexa estrutura política maia durante o Clássico Final (Webster, 1993; Matthews, 2000).

8. Considerações finais

Este capítulo tratou de discutir as principais manifestações políticas e sociais que adquiriram a guerra e o militarismo na área maia. Apesar de haver tratado somente uma cultura dentro do amplo âmbito mesoamericano, pensamos ter demonstrado as características fundamentais do tema que nos ocupou neste trabalho. No mundo contemporâneo, a guerra e o militarismo dos Estados Nacionais ganharam uma avantajada proporção, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. No entanto, estes fenômenos sociais já estavam presentes na origem das sociedades que habitaram e dominaram o mundo na Antiguidade, cada uma dentro de seu contexto cultural próprio, como é o caso da civilização maia. De maneira mais destacada, a guerra acompanhou os diversos momentos da evolução social das culturas primavas, aumentando sua complexidade e intensificando as relações institucionais civis, desde a educação e o trabalho até a religião e a política. Entre os maias, aqueles que promoveram a violência bélica e alimentaram as ações beligerantes através do militarismo estiveram conscientes dos vários elementos sociais que a guerra pode causar e as conseqüências para a vida comunitária decorrentes da situação de conflito. Deste modo, pode-se observar o fenômeno guerreiro e militar no mundo maia como problema ou solução sociopolítica, a sua criação como instituição social, sua relação com o surgimento do Estado e sua evolução e culminação na dominação total de um grupo subjugado pelo considerado mais forte. Os maias forjaram uma instituição social em que a guerra teve um papel fundamental para os interesses da elite, da consolidação e propagação do Estado e os interesses da expansão territorial, cuja violência destas atividades caracterizou e fundamentou o a vida social de suas cidades. Neste sentido, a guerra e o militarismo constituíram um dos elementos sociais que foram essenciais para a manutenção e sobrevivência da burocracia estatal na área maia.

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Agradecimentos

Agradeço ao Dr. Pedro Paulo Funari pelo convite para escrever este capítulo e seu constante estímulo em minha vida profissional.

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O DESENVOLVIMENTO DA EGIPTOLOGIA A PARTIR DA CAMPANHA MILITAR DE NAPOLEÃO NO EGITO

Nathalia Monseff Junqueira Doutoranda/ UNICAMP/ Bolsista CAPES A invasão francesa ao território egípcio

Napoleão Bonaparte partiu de Toulon em direção ao Egito na primavera de 1789 (ENGLUND 2005: 146), dando início à expansão do Império francês para o além-mar, sob a égide da doutrina denominada por Eric Hobsbawm (1977: 85) de direito francês às ‘fronteiras naturais’. Ele e seu exército desembarcaram no dia 1 de julho de 1798 na praia de Marabout, perto de Alexandria, com 36000 homens e 300 navios (ENGLUND 2005: 147; GILLISPIE 1989: 447; HOLMES 2007: 18). A primeira batalha dentro do território egípcio ocorreu no dia 21 de Julho contra os mamelucos, na chamada Batalha das Pirâmides. Segundo Englund (2005: 147), nesse confronto, vencido pelos franceses, envolveu, por um lado, a infantaria organizada francesa que portava um armamento moderno e, por outro, uma cavalaria desorganizada com cimitarras mamelucas, ocasionando a morte de 300 franceses e 2500 mamelucos. Batalha das Pirâmides

Fonte: Francois-Louis-Joseph Watteau, 1798-1799, Disponível em: http://images.google.com/imgres?imgurl=http://www.canalacademie.com/IMG/jpg/300px-Francois-Louis-Josep h_Watteau_001.jpg&imgrefurl=http://www.canalacademie.com/Figaro-Hors-Serie-Bonaparte-en.html&usg=__h DUFjHG3qI_LmbHYF0DQO09HlMU=&h=235&w=300&sz=15&hl=pt-BR&start=17&um=1&tbnid=DghA_G dv6tPCSM:&tbnh=91&tbnw=116&prev=/images%3Fq%3Dbataille%2Bdes%2Bpyramides%26hl%3Dpt-BR%2 6lr%3D%26sa%3DN%26um%3D1.

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Em fevereiro de 1799, as tropas napoleônicas partem com 1300 homens em direção à Síria, interceptando uma invasão turca vinda dessa região (ENGLUND 2005: 149). Napoleão e seu exército encontraram resistência por parte do Império Otomano, mas conseguiram invadir e sitiar as cidades de El Arish, Gaza e Jaffa, que se localizam na região denominada de Oriente Próximo (HOLMES 2007: 18). Outros confrontos entre França e o Império Otomano aconteceram no Egito. A primeira batalha ocorreu no monte Tabor, no Delta do Nilo, com a vitória francesa. A segunda, chamada na França de Batalha de Aboukir ou de Batalha do Nilo, em julho de 1799, não obteve o mesmo êxito das antecessoras. O exército francês foi derrotado inicialmente em terra por um destacamento do exército turco e, em seguida, perdeu a batalha naval para os ingleses comandados por Horatio Nelson, na baía de Aboukir, próxima à cidade de Alexandria (ENGLUND 2005: 148). Estimulado com a derrota francesa, e pressionado pelos britânicos, o sultão turco declarou guerra aos franceses (ENGLUND 2005: 155). Tanto Napoleão como o sultão se utilizaram do discurso religioso para tentar convencer a população local da sua importância nessa região. O resultado desse confronto foi a derrota dos franceses, que se viram obrigados a reprimir diversas revoltas locais, e passaram a conviver com a desconfiança muçulmana. Napoleão não queria fazer guerra ao islã. Em nossa opinião, a análise que Edward Said faz da política de Napoleão no Egito aponta para o fato do general francês, em seus discursos sempre traduzidos para o árabe corânico, tentar provar que a sua luta era em prol do islamismo (1990: 91), embora a animosidade entre os europeus e os árabes tenha perdurado desde as Cruzadas. Isso porque Napoleão sabia que não conseguiria manter o seu domínio no Egito se ele empreendesse uma luta político-ideológica contra o islã. Tentando minimizar essa antipatia, esse general buscou a todo o momento evidenciar seus bons sentimentos com a religião de Maomé, procurando convencer a população local de que a derrubada do despotismo mameluco traria muitos benefícios. Dessa forma, foi criado um conselho, no qual Napoleão nomeou líderes religiosos (antes afastados do poder) e sociais árabes para participarem do governo, servindo de mediadores entre os franceses e a população local (ENGLUND 2005: 154). Entretanto, mesmo com a volta de líderes locais ao poder, e a implementação de obras de infra-estrutura empreendidas pelos engenheiros franceses, a permanência desses forasteiros, impondo novos costumes e criando leis e aprovando decretos, geram impactos negativos que incomodavam a sociedade egípcia. Dessa maneira, houve a necessidade de que prevalecesse a força militar francesa dentro de território egípcio. (ENGLUND 2005: 154).

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Vista do Cairo

Fonte: Ferrier et Soulier.Vue du Caire. FLAUBERT, Gustave. En Égypte, lettres à sa mère. Paris; Les éditions de l´Amateur, 2007. p. 32.

Apesar de a derrota enfraquecer o poder da França nesse território, parece que isso não impediu que os franceses permanecessem nessa região até o ano de 1801, sob o governo dos generais Kléber e, depois, Menou (ENGLUND 2005: 157), que enfrentou a armada angloturca e foi obrigado a deixar o Egito em 1801. Os egípcios tentaram tornar-se independentes dos turcos logo após a derrota francesa, sob o comando do general Ya’qub Hanna, que liderou a legião copta durante a expedição francesa, e Theodore Lascari, que promoveu essa idéia de independência do Egito do Império Otomano (HADDAD 1970: 172). Contudo, essa tentativa de tornar o Egito livre fracassou e, em 1802, a França e a Inglaterra concordaram que o Egito deveria voltar ao status de colônia do Império comandado pelo sultão turco da época (HADDAD 1970: 177).

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Uma importante referência ao tema que aqui estamos desenvolvendo é o diário de bordo de Gustave Flaubert, obra escrita pelo literato durante a sua viagem ao Egito nos anos de 1849 a 1850. Em várias passagens de sua narrativa de viagem, ele depara-se com nomes de viajantes europeus grafados nas pedras constituintes de templos, muros ou pirâmides do Egito, prática essa que sinaliza uma relação de posse do Antigo Egito por parte da armada francesa. Por exemplo, esse literato relata que há nomes inscritos nos muros do templo de Esneh, perto de Assuã, cidade localizada perto da primeira catarata do Nilo: “Sobre as lajes coroando os muros (telhado do templo), os nomes de soldados franceses. Muro do leste, e a data 1799: Louis Ficelin, Ladouceur, Lamour, Luneau, François Dardant” (1986: 108). O templo de Esneh situa-se no Alto Egito, e essa passagem demonstra até onde o exército de Napoleão Bonaparte conseguiu alcançar e conquistar no final do século XVIII e início do XIX.

Tropas Napoleônicas

Fonte: Musée de Versailles. Nova Enciclopédia Ilustrada Folha. Vol 2. São Paulo, 1996. p. 672.

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Apesar da retirada dos franceses em 1801, ainda havia um controle europeu nessa região, pois as finanças públicas passaram para as mãos dos ingleses, como também a polícia, a comunicação e os portos. A França não se retirou de todo, pois ainda continuava a enviar seus representantes ao Egito. Em 1805, o mameluco albanês Mohammed Ali, após expulsar os mamelucos, torna-se vice-rei do Egito, um cargo criado pelo sultão otomano Selim III, permanecendo no governo até 1848; demonstrou, assim, ambições em relação ao império turco. Ali sabia que deveria organizar um exército para defender o território contra o Império Otomano e também das forças externas (HADDAD 1970: 177). Dessa forma, segundo Roland Oliver (1944: 183), Mohammed Ali recrutou um exército treinado por instrutores franceses e estabeleceu uma administração civil organizada em departamentos com um sistema ministerial semelhante aos da Europa. Sendo um comandante, anexou o Sudão ao território do Egito através da invasão e conquista do reinado de Sennar em 1821. De fato, as crises da ‘Questão Oriental’ na década de 1830 foram essencialmente crises na relação de Mohammed Ali com seu soberano, complicadas no último caso pelo apoio francês ao Egito. Em 1834, há uma crise nas relações com o Egito, a chamada Questão Oriental, que para René Rémond (1981: 152), poderia ser classificada como uma reivindicação nacional por parte do Egito. Hobsbawm (1977: 124) descreve que desde a expedição de Napoleão ao Egito, a influência francesa foi poderosa naquele país, que era dominado pelo Império Otomano desde 1517. O escritor francês Gustave Flaubert descreve em seu diário, produzido durante a sua viagem pelo Egito em 1849, a sua visita à mesquita de Mohammed Ali, no Cairo, afirmando que seria “uma ‘imitação’ (1986: 61) da mesquita de Santa Sophia –, onde estaria a tumba provisória dele, ‘rodeado de uma gaiola de madeira, recoberta de tapetes, sob um lustre de cristal’ ” (1986: 55). De acordo com Frederick Rodkey (1930: 627) – o qual trabalha diretamente com as relações entre Inglaterra e Áustria quanto à Questão Oriental –, o sultão egípcio, em 1833, havia sido derrotado em uma guerra contra o seu vassalo Mohammed Ali, e as forças egípcias avançavam em direção à Ásia Menor, ameaçando o Império Otomano. Temendo que o paxá egípcio fosse apoiado pela França e que o seu triunfo mundial encorajasse a expansão das idéias ‘francesas’, a Áustria sugere que a Inglaterra mandasse assistência para o sultão turco contra o Levante. Logo, Constantinopla recebeu a cooperação das tropas russas contra os

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egípcios, havendo um acordo entre Áustria, Grã-Bretanha, Rússia e França para os assuntos referentes à manutenção da independência da Turquia. Entretanto, essa ajuda oferecida pela Rússia tinha como intuito a expansão do próprio império russo. Segundo o que narra Flaubert em sua narrativa de bordo, quando eles estavam na cidade de Aboukir, situada às margens do Mar Mediterrâneo, foram aconselhados a se armarem, por causa da “guerra, militares, Rússia” (1986: 45). Outro fato importante citado na narrativa é que quem ofereceu as armas foram os “nossos bons turcos” (1986: 45), demonstrando que o Império Otomano tinha a intenção de anexar novamente o Egito ao seu território. Essa presença européia nessa região facilitou a construção do Canal de Suez, projetado por Ferdinand de Lessps, inaugurado em 1869, ligando a África à Ásia, o que facilitaria as investidas ocidentais pelo Oriente. O Egito tornar-se-ia colônia britânica em 1882, adquirindo a sua independência somente após a Segunda Guerra Mundial, em 1952 (ENGLUND 2005: 160). Após essas considerações preliminares, trataremos das relações diretas entre o cientificismo da época, a expansão militar e o desenvolvimento da egiptologia, que tanto nos fascina até os dias de hoje.

A expedição científica no Egito

O Antigo Egito foi um local visitado e estudado por diferentes povos desde a Antigüidade. Uma das primeiras descrições do Antigo Egito foi realizada pelo historiador grego Heródoto, que destinou um capítulo da sua obra Histórias a essa sociedade. Tal historiador grego, em consonância com François Hartog (1999), é por nós considerado um viajante, ilustra as diferenças culturais entre os gregos e os egípcios, no século V a.C., através da descrição do funcionamento da sociedade desses últimos, bem como seus costumes, seus hábitos, sua geografia, sua natureza, sua política e sua história, afirmando que o Egito “[...] em relação aos demais países, possui as coisas mais maravilhosas e oferece obras que superam a possibilidade descritiva; por isso, esse país será objeto de considerações mais detidas” (HERÓDOTO 35, in MORAES 1999: 140). Martin Bernal (1993: 163), em seu livro Black Athena: the Afroasiatc roots of classical civilization (Atena Negra: as raízes afroasiáticas da civilização clássica), comenta que durante os séculos seguintes ao século IV d.C., o Antigo Egito manteve-se no cenário europeu devido à reputação da sua Filosofia, Ciências e seu sistema de governo, e também

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através da maçonaria, que utilizou alguns símbolos da sociedade dos faraós em seus rituais e na sua arquitetura. Essa afirmação de Bernal nos leva à seguinte reflexão: os europeus, imbuídos da corrente cientificista do século XIX, viram nos textos produzidos na Antigüidade sobre o Antigo Egito um campo aberto para os seus estudos experimentais. Quando Napoleão decide invadir o Egito, ele cria a chamada Comissão de Ciência e Artes, que acompanharia a sua campanha militar. Os estudiosos participantes dessa Comissão, que compreendiam no total 160 renomados cientistas, artistas, engenheiros, médicos e eruditos da França – levando consigo uma biblioteca transportável e aparelhagem científica – já haviam realizado uma completa pesquisa dos textos clássicos sobre a terra dos faraós (SAID 1990: 88). Após a vitória no vale de Gizé, Napoleão determina a essa comissão a realização das primeiras investigações científicas nesta região, à procura de vestígios arqueológicos sobre o Antigo Egito. Os cientistas fundaram, em julho de 1798, o Instituto do Egito no Cairo (ENGLUND 2005: 147). Nas palavras de Gillispie, o Instituto iniciou as suas atividades no dia 23 de Agosto, e durante os três primeiros anos, houve 62 reuniões com os seus 51 membros, divididos em áreas como Matemática, Letras e artes. O matemático Monge foi eleito o primeiro presidente, e Napoleão, o seu vice (1989: 448-449). Os estudos sobre a arquitetura, a cultura, a língua, a topografia e a arqueologia, como também sobre a fauna e a flora do Egito foram posteriormente agrupados na enciclopédia Description de l’ Égypte (Descrição do Egito), iniciada em 1809. Essa enciclopédia, com o prefácio escrito por Fourier, era composta de vinte e quatro volumes (contendo textos, mapas, imagens das cidades, das plantas e dos animais). Nove deles eram compostos por textos, divididos em três blocos de assunto1: Antigüidades, Idade Moderna e História Natural, completada por um atlas de mapas, o chamado Mapa Topográfico e Geográfico (GILLISPIE 1989: 449). Para um desses cientistas que participaram da expedição no Egito, chamado Rozière, o Egito teria uma importância histórica no começo da civilização, além das origens do zodíaco, da divisão do ano, mês e dia, de linear e angular escalas e unidades de medidas. Elementos encontrados na teogonia de lugares como Europa, Oriente Próximo e Grécia Antiga, como também seu sistema de medidas, contagem de tempo, características artísticas e conceitos astronômicos seriam incorporados do Antigo Egito (GILLISPIE 1989: 465). Essa afirmação

1

Cada bloco de assunto era composto por três volumes.

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também é compartilhada por Bernal (1993: 163), ao comentar que haveria uma mescla das culturas egípcias e fenícias, além de outros povos, na formação da cultura grega clássica. Outro cientista dessa expedição, cujo nome era Savigny, ao estudar as duas espécies de aves chamada ibis, a branca e a preta, recorre ao historiador grego Heródoto, bem como a outros textos antigos para a sua pesquisa, buscando constatar, a partir da análise de múmias desses pássaros, a sua dieta alimentar, bem como relação do ibis no zodiáco e com o deus Thot (GILLISPIE 1989: 458). Todos esses estudos estavam baseados na tentativa dos orientalistas em provarem as informações científicas levantadas por meio da leitura de textos datados desde a Antigüidade sobre o Oriente. Essas campanhas arqueológicas e científicas estavam inseridas dentro da concepção de missão civilizadora. De acordo com Englund (2005: 146-7), o intuito dessa missão civilizadora para os franceses era a de restaurar no Egito a civilização que essa região acomodou no passado, pois o Império Turco, visto como imoral e decadente pelo Ocidente, governava a terra dos faraós nesse momento. Nossa opinião vai além dessa assertiva, pois consideramos que havia outras questões envolventes, como a localização do Egito ser politicamente estratégica na rota delimitada pelos dirigentes britânicos ao Extremo Oriente. No século XIX, a arqueologia torna-se um instrumento de legitimação para os grupos que estão no poder, servindo às questões políticas do Estado (SILVA 2007: 45). Os dados arqueológicos inseridos nos relatórios científicos eram considerados fontes inquestionáveis acerca das sociedades antigas, e sendo assim, formavam a base dos textos oficiais difundidos na sociedade européia. Nessa época, a arqueologia era usada para comprovar os dados provenientes dos documentos da Antigüidade, daí buscava determinar, através da cultura material, a identidade do povo que habitava aquela região. Foi dessa maneira que tal concepção de arqueologia auxiliou na construção de uma identidade européia, tornando-se uma referência científica às origens dos Estados Nacionais. Portanto, para o cientista do século XIX, teria ocorrido a transição dos gabinetes de curiosidade aos primeiros gabinetes de Antigüidades. Nesse período foram descobertos os hieróglifos escritos na Pedra Rosetta, decifrados por Jean-François Champollion – publicados em 1824 – marcando, assim, o início da egiptologia. Bernal assinala que, apesar do fascínio pelo Nilo e pelo respeito da maçonaria, a decadência do interesse pelo Egito durou 25 anos após a morte de Champollion, entre os anos de 1831 e 1854. Mas houve um período de recuperação após os anos 1850 e que duraram até 1880. O despertar de um novo interesse pelo Egito ocorrerá a partir do ano de 1922, quando nesse descobriram, no Vale dos Reis, a tumba do faraó Tutankamom.

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Tudo indica que a ciência acompanhava as mudanças que estavam acontecendo dentro da sociedade francesa. A difusão e o avanço do conhecimento científico ocorrem a partir da criação de instituições de ensino técnico-científico em toda a Europa. Um grande orientalista francês, denominado Ernest Renan (1823-1892), um dos maiores estudiosos das línguas semíticas no século XIX, ao redigir o prefácio da obra de Mohl intitulada Vingt-sept ans d’histoire des etudes orientales: rapports faits à la Sociéte asiatique de Paris de 1840 a 1867 (Vinte sete anos da história dos estudos orientais), afirma que o período citado no título foi “a era heróica dos estudos orientais” (1879: X), mesmo havendo uma crise nas relações políticas entre França e Egito. Na obra supracitada, Mohl faz referência a esse episódio:

“a mais grave das circunstâncias, a guerra do Oriente, terminará mesmo, sem alguma dúvida, por exercer uma influência poderosa sobre o desenvolvimento dos estudos orientais na Europa, e, por conseqüência, de instituições que são, como a nossa, fundadas para facilitar e propagar esses estudos” (1879: 542).

Ao lermos a obra de Mohl, percebemos que houve uma expansão de sociedades responsáveis pelo estudo do Oriente, como – por exemplo – a Sociéte Asiatique (Sociedade Asiática), nas cidades orientais de Calcutá, Bagdá, Síria e Egito, apontando a expansão do imperialismo francês e britânico pelas regiões afro-asiáticas. No que diz respeito à Sociedade Asiática, era uma organização livre que foi fundada em Paris em 1822 por Charles-Philibert de Lasteyrie e Silvestre de Sacy, este último foi considerado por Turner (2000: 07) o patriarca dos orientalistas, durante o movimento literário que agitava todos os espíritos sobre a Restauração. Tal sociedade era uma das responsáveis pela difusão dos estudos sobre o Oriente na Europa através do Journal Asiatique (Jornal Asiático), tendo membros presentes em universidades, institutos e no governo. Foi Sacy, então professor da Escola de Línguas Orientais na França, quem analisou as informações coletadas pelos especialistas de Napoleão sobre os grupos lingüísticos encontrados no Egito durante os anos de pesquisa (GILLISPIE 1989: 469). A Sociedade Asiática tinha como meta disseminar os estudos arqueológicos, etnográficos, históricos e filosóficos sobre o Oriente no Ocidente, logo, estruturava suas filiais nos territórios afro-asiáticos já acima mencionados. Para alcançar esse objetivo, ela organizava as suas informações em forma de catálogos, pesquisas e relatórios, bem como produzia gramáticas que auxiliavam os estudos das línguas orientais e também a divulgação

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da tradução de obras literárias, livros, manuscritos para o francês, inglês e alemão. De acordo com Mohl (1879: 470), o intuito era o de reconstruir a história do mundo oriental. Uma prática muito usada durante as expedições científicas do século XIX, impulsionadas pelas corridas imperialistas, era a preocupação em descrever tudo que estava ao alcance dos olhos. Podemos perceber isso tanto na obra Descrição do Egito, composta por vinte e quatro volumes, quanto em outros escritos da época, como os diários de bordo. Na narrativa de bordo de Flaubert, a arquitetura do Antigo Egito é o tópico recorrente em suas anotações. Primeiramente, é o Vale de Gizé, onde se encontram as grandes pirâmides e a Esfinge, que ele relata, destacando algumas impressões dos monumentos que vê: “Ela crescia, crescia e saia da terra como um cachorro que se levanta... Nós paramos diante da Esfinge, ela nos olhava de uma maneira assombrosa” (1986: 59).

Planície de Gizé

Fotografia do Vale de Gizé – Máxime du Camp – 1849-1850, Disponível em: http://images.google.com/imgres?imgurl=http://www.touregypt.net/historicalessays/sphn111.jpg&imgrefurl=htt p://www.touregypt.net/historicalessays/sphinxa6.htm&usg=__A0K116HrJDdfNRDlm7btkXD_zRM=&h=225& w=320&sz=14&hl=pt-BR&start=5&um=1&tbnid=ho8dyRDd2vJQaM:&tbnh=83&tbnw=118&prev=/images% 3Fq%3Dmaxime%2Bdu%2Bcamp%26hl%3Dpt-BR%26lr%3D%26um%3D1

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Flaubert também relata o Templo de Hamada, situado na cidade de Korosko:

“O templo é recoberto por grandes lajes... as quais muitas são carregadas de inscrições gregas ilegíveis. Há sobre essas lajes ondulações regulares naturais, como seriam as ondas... Uma porta quadrada, uma cor transversal sobre aquela se abrem às três portas de três cores paralelas que, pelo fundo, comunica-se entre eles. Nas antecâmaras, os caracteres são profundamente entalhados; no templo, eles são em relevo e pintados como as figuras” (1986: 119).

A importância da descrição desses monumentos no diário de Flaubert pode estar relacionada com o pensamento orientalista da época, que busca encontrar, através de expedições arqueológicas, as edificações erguidas pelas antigas sociedades orientais. No nosso caso, a narrativa de bordo ilustra o apogeu da sociedade egípcia, ao descrever com riquezas de detalhes a arquitetura construída ao longo do território. Logo, Flaubert está mostrando para a sociedade européia as conquistas que ela está realizando através das invasões dos territórios pelo Oriente. Essas viagens ao Oriente vão ao encontro da curiosidade européia (suscitada pela produção científica e literária da época), sendo favorecidas pelas sociedades de estudos que se multiplicaram pelas regiões orientais. Tais sociedades, por sua vez, eram incentivadas pelas corridas imperialistas e colonialistas que ocorreram durante o século XIX. Essa invasão ao Egito trouxe à cena francesa o fascínio pelos grandes impérios da Antigüidade, que passam a ser admirados no episódio de desenvolvimento do Imperialismo na França. Assim sendo, a partir desse fascínio evidenciado pelo próprio Napoleão, não somente o Egito, mas todo o Oriente tornou-se um lugar comum a novos estudos e viagens.

A relação entre o passado e o presente

Nesse momento, preocupamo-nos em exemplificar de que maneira a temática dos usos do passado, ou seja, a interface entre o presente e o passado foi utilizada durante o século XIX pela França, justificando as suas políticas em território egípcio, bem como a constituição de sua identidade através da representação do outro. A Antigüidade oriental, que era apresentada na Europa, fora criada pelos orientalistas através das pesquisas incentivadas pelas sociedades de estudos fundadas em várias capitais européias e em algumas cidades do Leste. Esses estudos tinham o intuito de constituir um conhecimento que se tornaria fundamental na relação de poder do Ocidente sobre o Oriente durante o século XIX (SAID 1990, TODOROV 1999, TURNER 2000).

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É nesse contexto que as representações culturais dos egípcios são produzidas para serem propagadas pela Europa. Nesse sentido, concordamos com Said (1995: 57) quando ele afirma que a representação tem o poder de modificar a realidade que parece refletir e é por essa razão que o imperialismo, como narrativa, monopolizou grande parte do sistema de representação. Essa representação tornou-se uma ferramenta de dominação cultural, tendo como pressupostos o conhecimento e o poder. No que tange a Gillispie (1989: 448), a França combinou esses aspectos culturais com os fatores militares para uma tentativa de manutenção da ordem social no Egito. Já para Chartier (1990), as representações não somente classificam as sociedades que criam, mas também promovem a exclusão de alguns aspectos que seriam representados, por meio de práticas políticas, sociais e discursivas. Outro ponto destacado pelo mesmo historiador é a chamada representação coletiva, que se preocupa em conciliar as imagens mentais claras com os esquemas interiorizados, as categorias incorporadas, que as geram e estruturam, uma forma de constituir uma única representação compartilhada por uma sociedade (CHARTIER 1990: 19), como o caso das imagens do Oriente veiculadas no Ocidente desde a Antigüidade. Como exemplo, as imagens das pirâmides, das esfinges, das múmias, das tumbas e do Nilo. As imagens do Oriente, comumente presentes nas notas de viagens, permitem que haja a construção de uma identidade plural (BURKE 2005). Para Hartog (1999: 316), as notas de viagem são trabalhadas pela alteridade, sendo o seu objetivo fundamental o de apontar as diferenças entre o eu e o outro. Tal idéia também é compartilhada por Pedro Paulo Funari (2004: 02), pois para esse historiador criou-se um Oriente completamente oposto ao Ocidente. Percebemos, dessa forma, que essa alteridade é um dos alicerces utilizados na construção da identidade francesa, e como exemplo, temos a própria narrativa de Flaubert que projeta a cultura egípcia na sociedade francesa. O Egito, no período da invasão francesa, enfrentava uma estagnação econômica, além da população estar acometida por várias doenças (ENGLUND 2005: 149). Em Alexandria, por exemplo, não restavam mais os monumentos erguidos durante a Antigüidade, exceto a coluna de Pompéia, dedicada ao Imperador Diocleciano em 299 d.C. Segundo as palavras de Flaubert, a coluna era um “[...]monólito com um esplêndido capitel corintiano e o nome de ‘Thompson of Sunderland’ escrito em pintura negra, sob a base, em letras de três pés de altura” (1986: 44).

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Coluna de Pompéia

Fonte: Ferrier et Soulier. La Colonne de Pompée, Alexandrie. In FLAUBERT, Gustave. En Égypte, lettres à sa mère. Paris; Les éditions de l´Amateur, 2007. p.15.

Há passagens no diário de bordo de Flaubert, escritas na cidade de Djeddah, indicando o contexto em que o nosso viajante estava inserido, como se mostra a seguir:

“Os homens do Sennar são gorduchos, sem musculatura saliente; peito desenvolvido e seios pontudos como uma mulher” (1986: 125). “Creio que a raça negra possui uma heterogeneidade física maior que na raça branca, ou seja, na européia. Compare o negro do Sênnar (tipo indiano, caucasiano, europeu, puro negro) com o negro da África central: a cabeça do negro de Guiné é uma cabeça de Júpiter de lado” (1986: 188).

Porém, também são muitas as passagens em que Flaubert evidencia a influência do discurso imperialista do século XIX, que caracteriza o Oriente como um lugar bárbaro, sem elementos positivos, salvo os resquícios de suas antigas sociedades, investigações referentes à propagação da Egiptologia. Em Midenet el-Fayoum, Flaubert relata a decepção em ver os templos em ruínas. Essa cidade fica no Delta do rio Nilo, e são poucas as cidades localizadas nessa região que mantiveram os seus templos sagrados em pé: “Tumbas em ruínas, que parecem a do fundo do fracasso; das coisas miseráveis, dos ossos brancos aparecendo mesmo na terra, como uma

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galantina cortada pela metade” (1986: 91). Essa passagem reforça o discurso binário de inferioridade e superioridade recorrente no século XIX, o que, para nós, pode ser colocado como um discurso que tem por objeto a classificação do outro, ressaltado por Hartog. Cremos que a Egiptologia, nesse contexto, foi utilizada também com o fito de evidenciar essa dualidade.

Pirâmide de Saqqara

Fonte: Ferrier et Soulier. La Pyramide de Saqqara. In : FLAUBERT, Gustave. En Égypte, lettres à sa mère. Paris; Les éditions de l´Amateur, 2007. p.60.

Seguindo essa linha de raciocínio, percebemos que a construção da identidade francesa, que vem sendo exemplificada nas passagens de Flaubert, dá-se paralelamente com a representação do egípcio. Este movimento inclui-se na esfera do imperialismo, na questão de poder que permeia esta instituição, e na delimitação das características do que definiria a civilização e a barbárie. De acordo com o pensamento de Tzvetan Todorov (1999: 156), podemos pensar que os egípcios são sujeitos, mas sujeitos reduzidos ao papel de produtores de objetos cujo

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desempenho é admirado, mas com uma admiração que em vez de apagá-la, marca a distância que os separa do ocidental. Concordamos com Said (1990: 103) quando ele afirma que as representações ocidentais no século XIX podiam criar, não somente o conhecimento, mas a própria realidade que parecem descrever, que não era simplesmente dada, mas apresentada, descrita pelos estudiosos das culturas ocidentais. Para Said (1995: 177), essas representações não estabelecem uma relação de igualdade entre o criador e a criatura, mas são inscritas pelas relações de poder, principalmente as relações de dependência e subordinação sustentadas pelo próprio colonialismo. Essas representações são institucionalizadas, produzindo assim, uma tradição, um discurso orientalista, onde uma gama variada de experiências é reduzida a idéias atraentes, fáceis de lembrar e citar, que se mantêm como uma instituição organizada responsável tanto pelo conhecimento como pelo domínio que se assegurava no Oriente. Said analisa as representações que os imperialistas fizeram dos orientais pelo viés da dominação, seja ela pela força ou ideologia. Neste momento, procuramos analisá-las pela questão da construção de identidades, ou seja, através da alteridade, os europeus criam a sua identidade a partir do momento que se relacionam com o Oriente. Impulsionada pelo desenvolvimento da arqueologia, a constituição da identidade moderna francesa ocorre através dessas representações culturais. É nesse contexto que se dá a representação européia do outro.

Conclusão

Faz-se necessário tecer algumas palavras sobre os pontos abordados neste capítulo. Procuramos desenvolver um breve panorama da invasão de Napoleão Bonaparte ao Egito e os anos que seguiram essa empreitada, utilizando-se a documentação de Gustave Flaubert, Jules Mohl e diversas obras de autores que realizaram estudos sobre o tema, como Edward Said e Steven Englund. Percebemos como o desenvolvimento da Egiptologia está ligado ao cientificismo da época. Os cientistas que acompanharam Napoleão buscavam, entre outros experimentos, provarem as informações coletadas durante as suas pesquisas preliminares em bibliotecas européias. Dessa forma, novas informações sobre as sociedades orientais foram disseminadas na Europa, propiciando dados que seriam coletados pelos escritores da época para comporem

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suas obras literárias, e também pela população local, estimulando a imaginação e as novas rotas turísticas no século XIX. Por outro lado, essas novas informações auxiliaram na tentativa de França, e depois, Inglaterra, de manutenção do seu poder nas regiões orientais, através das representações culturais. Tais representações foram utilizadas tanto para inferiorizar os orientais – o que justificaria a presença de europeus no cenário político no Oriente –como para proporcionar a constituição da identidade européia, segundo o modelo de espelho invertido analisado por Hartog (1999). Um ponto a ser discutido nessa conclusão é a questão do discurso, usado como uma ferramenta de conquista. Segundo a posição de David Harlan (2000), todo o discurso é político e cultural, havendo uma ação humana intencional. Esse resultado, segundo Eni Orlandi (2003: 15), é promovido por uma mediação entre o homem e o seu contexto. O referido discurso concatena uma produção de sentidos (ORLANDI, 2003: 43), que está ligada à inter-relação entre discurso, sujeito e ideologia. Assim, podemos identificar que a Egiptologia é fruto das expedições científicas e imperialistas da época, propiciadas, inicialmente, pelo espírito conquistador de Napoleão Bonaparte.

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