História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Identidades

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Pedro Paulo A. Funari Margarida Maria de Carvalho Claudio Umpierre Carlan Érica Cristhyane Morais da Silva

I História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Identidades

São Paulo 2010

SUMÁRIO VOLUME PRIMEIRO

História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Identidades HISTÓRIA MILITAR DO MUNDO ANTIGO: UMA INTRODUÇÃO Os Editores ...................................................................................................................

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Guerras e Identidades 1. GUERRA, ECONOMIA E SOCIEDADE NO EGITO DO REINO NOVO (SÉCULOS XVI-XI A.C.) Ciro Flamarion Cardoso .................................................................................................

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2. ASSIM COMO OS PESCADORES FISGAM O ATUM: A BATALHA NAVAL NA ANTIGUIDADE Harry Sidebottom ...........................................................................................................

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3. PÉRICLES COMO GENERAL Donald Kagan .................................................................................................................

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4. A NATUREZA SOBREPUJADA: EMOÇÃO E REFLEXÃO NA HISTÓRIA MILITAR DE TUCÍDIDES Anderson Zalewski .........................................................................................................

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5. A GUERRA DO PELOPONESO E OS USOS MODERNOS Pedro Paulo A Funari ....................................................................................................

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6. A NEGOCIAÇÃO DO EBRO E A INVASÃO GÁLICA DE 225 A.C. Paul Erdkamp ................................................................................................................

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7. LOGÍSTICA MILITAR AO LONGO DO MAR EXTERIOR: A ROTA ATLÂNTICA E A DISTRIBUIÇÃO DO HALTERN 70 AMPHORA Cèsar Carreras ................................................................................................................

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8. OS PROCURATORES AUGUSTI E O ABASTECIMENTO DO EXÉRCITO ROMANO José Remesal ...................................................................................................................

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9. OS INIMIGOS DE ROMA: ESTRATÉGIA E FORMAÇÃO MILITAR NA ANTIGÜIDADE TARDIA

Cláudio Umpierre Carlan ................................................................................................

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10. AMIANO MARCELINO E OS CONSTRUTOS IDENTITÁRIOS NOS RELATOS SOBRE OS IMPERADORES MILITARES: JULIANO, JOVIANO E VALENTINIANO I (361 – 375 D.C.) Margarida Maria de Carvalho e Bruna Campos Gonçalves ...........................................

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11. AS METÁFORAS MILITARES NOS DISCURSOS CRISTÃOS DO SÉCULO IV D.C.: JOÃO CRISÓSTOMO E O EXÉRCITO DE CRISTO Érica Cristhyane Morais da Silva ..................................................................................

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HISTÓRIA MILITAR DO MUNDO ANTIGO: UMA INTRODUÇÃO

Pedro Paulo A Funari1 Margarida Maria de Carvalho2 Cláudio Umpierre Carlan3 Érica Cristhyane Morais da Silva4

O estudo da guerra possui larga tradição e continua mais atual do que nunca. Nos últimos anos, as abordagens sobre a guerra multiplicaram-se. A própria humanidade foi ligada, por diversos estudiosos, ao surgimento e diversificação dos conflitos bélicos, há milhares de anos, no Pleistoceno5. O economista Mark Bowles liga o altruísmo humano ao combate entre grupos humanos e relaciona, portanto, o surgimento da cultura, daquilo que caracteriza os agrupamentos humanos, com a guerra. Não precisamos estar de acordo com tais argumentos para percebermos a relevância, no século XXI, da famosa frase de Heráclito: polemos pater paton (a guerra é o pai de todas as coisas6). Como lembra Heidegger, ao comentar este passo, polemos, a guerra, não é uma luta individual, agon, mas coletiva, a luta (Kampf), a guerra (Krieg)7. O tema da guerra e da vida militar permanece central para a reflexão sobre a vida em sociedade. Não é nosso objetivo realizar uma apologia a guerra, mas ampliar a noção de documento ao analisar a cultura material de uma sociedade, através do ponto de vista militar. No mundo onde os momentos de guerra eram mais longo que os de paz, que possuíam valores e costumes diferentes dos atuais, a militarização de uma sociedade não era apenas um dever cívico, mas um fator importante para sua sobrevivência.

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Professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 2 Professora da Universidade Estadual Paulista, UNESP/Franca e pesquisadora-colaboradora do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 3 Professor da Universidade Federal de Alfenas e pesquisador-colaborador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 4 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca sob a orientação da Profª Drª Margarida Maria de Carvalho. 5 Cf. Jung-Kyoo Choi & Samuel Bowles, The coevolution of parochial altruism and war, Science, 318, 5850, 26th October 2007, 636-640; Samuel Bowles, Did warfare among ancestral hunter-gatherer groups affect the evolution of human social behaviors, Science, 324, 5th June 2009, 1293-1298. 6 Fr. 53. 7 Martin Heidegger, Gesamteausgabe, 36/37, Sein und Wahrheit, p. 90.

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Em seus diálogos, Platão descreve a discussão entre Sócrates e Ião: “...na guerra precisa de um estratego ou um poeta ?”8. No mundo antigo nem todos os cidadãos eram poetas, mas todos eram soldados. Muito semelhante à música do compositor Geraldo Vandré, para não dizer que não falei das flores, “...ou morrer pela pátria ou viver sem razão...”. Na Antiga Grécia, temos vários exemplos desses fatos. Um deles retrata a impaciência de uma mãe espartana que perde seus cinco filhos na guerra. Quando o mensageiro do exército apresenta a triste notícia, ela pergunta pelo resultado do confronto. Vitória dos espartanos. Então, ela responde, “meus filhos não morreram em vão”. Temática similar que Steven Spielberg utiliza em seu filme “Resgate do Soldado Ryan” de 1998. Antes de mais nada, o cidadão greco-romano era um soldado, pronto para entrar em combate, quando sua cidade precisasse. Desde a mais remota infância, tinha todo o treinamento militar disponível. Era preparado para arte da guerra, sabia usar a lança, a espada e o escudo. Usava também a intelegência como estrategista. Arcava com os custos do equipamento básico para o combate. Porém, como prêmio, tinha direito ao butim e os demais despojos de guerra (escravos, ouro e prata, entre outros). Cada arma tinha a sua função específica e simbólica. O escudo, por exemplo, era uma arma defensiva, passiva e protetora. Ele representava o cosmo, o universo que o guerreiro apresentava ao inimigo. As forças figuradas estavam presentes, o couro, o metal, como no escudo de Aquiles: o céu, mar e a terra (lema dos Fuzileiros Navais Brasileiros). Tudo que se perde ao morrer se ganha ao triunfar (arma psicológica que ajudou a Perseu derrotar Medusa). Posteriormente, na Irlanda Medieval, por influência celta, foram associados aos escudos animais fabulosos (mais tarde aos brasões familiares e a heráldica), considerados como elemento decorativo mais importante nos salões da nobreza. No renascimento italiano, o escudo é representado como a força, vitória e a castidade, justamente pelo seu papel de defensivo9. A espada foi símbolo da bravura, da virtude e do poder. Associada à balança, ela separava o bem do mal e golpeava o culpado10. Além do guerreiro, simbolizava a guerra santa e, hoje em dia nas Forças Armadas, é símbolo dos oficiais subalternos, superiores e generais. Ao termínio do curso nas Academias Militares, o jovem Aspirante ou Guarda Marinha, recebe a espada do seu padrinho e ou madrinha. No caso dos oficiais generais, a espada é dourada, para diferenciar dos demais. 8

Platão, Diálogos. Critão – Menão Híspias Maior e outros. Tradução Direta do grego por Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2007, p. 233. 9 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora S.A., 1997, pp. 387,388. 10 Idem ibidem – op.cit. p. 392

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Dentro desse contexto simbólico, as ideias de poder e potência eram fundamentais. Em um mundo onde a oposição e rivalidade eram constantes, forças lutavam entre si. Durante dado momento, o soberano mais poderoso do que outro vai impor a sua lei11. É o caso de Hamurábi, governador e legislador do Império Babilônico no século XVIII a.C. Depois de conquistar os reinos rivais, Hamurábi estabeleceu um sistema de leis, conhecido como Código que leva seu nome, comum a todo seu Império. Na realidade, não se tratava de um código de leis propriamente dito, e sim tradições locais que o governante babilônico transformou em leis. Anteriormente, em Lagash, Urukagina, século XXIV a.C., já havia realizado uma reforma na legislação. O próprio Vernant descreve um processo de mudança não apenas no pensamento grego, mas nos combates e rivalidades entre as cidades. Durante o Período Micênico, tendo como modelo o duelo entre Aquiles e Heitor, os confrontos são individuais. Dois herois decidem a sorte da batalha. Acreditando ou não nos textos homéricos, a partir dessa formação, os guerreiros aristocratas aqueus dominaram todo o Mediterrâneo Oriental. Com as invasões dóricas e jônicas, definida por alguns historiadores como Idade das Trevas Grega, ocorre uma alteração no eixo do poder, localizado no Mediterrâneo Ocidental. As cidades localizadas entre Troia e Gaza são completamente destruídas. O soldado deixa de ser um combatente solitário em busca da honra e glória, e aos poucos, vai se tornando um soldado-cidadão. Luta em um exército organizado, com armas de ferro, precursor da famosa falange macedônica. Porém, as mudanças mais significaticas ficaram por conta das primeiras reformas militares romanas, segundo a tradição, durante o reinado de Sérvio Túlio (578 – 534), sexto rei de Roma. Sérvio Túlio organizou a sociedade dividindo em cinco classes, por rendas, cada classe com um número de soldados, que se reuniriam no campo de marte, hoje onde está localizada o Partenon de Adriano, próximo a Escola Espanhola de Roma. Essa divisão serviu de modelo para as reformas militares de Napoleão Bonaparte no início do século XIX. Em teoria, 8 legionários formariam um contubérnios; 10 contubérnios uma centúria; 6 centúrias uma coorte; 10 coortes uma legião. O número de legionários de uma centúria poderia variar entre 80 e 120, dependendo do período histórico. Napoleão realizou uma mudança semelhante no exército francês. Uma companhia (infantaria) ou bateria (artilharia) seria composta por 100 homens, comandadas por um capitão. Hoje, não muito diferente, as companhias e baterias seguem esse modelo. 11

Jean-Pierre Vernant. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Muracho. 2ª . ed. São Paulo: Editora da USP, 2002, p.211.

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Dentro desse contexto, segundo Miranda, o Estado justo será aquele que buscar o bem de todos e de cada um. Nesse Estado ideal, princípio e fim se harmonizam perfeitamente.

“...O princípio: a liberdade de cada um assegurada na medida em que também é assegurada a liberdade de todos. O fim: a virtude do mais alto significado político, a justiça entendida como bem comum...12”

Para manter essa liberdade, sua e de seus familiares, o cidadão no mundo antigo, precisa ser um soldado. Seu peito é a última muralha entre viver livre ou morrer escravo. O estudo da História militar, de forma particular, está na origem da própria disciplina histórica, tanto como gênero literário antigo, como no período moderno. Heródoto e Tucídides13 criavam a narrativa histórica como parte de uma descrição da guerra, dos seus antecedentes e conseqüências14. Durante toda a Antiguidade, História e Guerra estivem sempre interligadas, tanto na literatura em língua grega como latina15. No século XIX, quando o positivismo viria a fundar a moderna historiografia, a guerra viria a assumir novas funções, mas sempre no centro da pesquisa histórica. A História política não podia prescindir de uma atenção particular aos conflitos militares. Nas últimas décadas, o interesse pela História militar encontrou novos temas, ênfases e interesses, da vida sexual às identidades sociais, do colonialismo às relações de gênero, do simbolismo às subjetividades16. No que se refere ao mundo antigo, essa renovação chegou com grande força, questionando discursos normativos e monolíticos, os modelos que enfatizam a coesão social, o respeito às normas e a criticam os desvios de comportamento17. Sobretudo, as narrativas passaram a valorizar a diversidade de pontos de vista, a História do Outro, para usar uma bela expressão de Pierre Vidal-Naquet18. A História Militar do mundo antigo passou a incorporar temas como a masculinidade19 ou abastecimento como práticas culturais. 12

Mário Miranda Filho, Politeia e Virtude: as origens do pesnamento republicano clássico, Clássicos do Pensamento Político, org. por Célia Galvão Quirino, Claudio Vouga e Gildo Marçal Brandão. São Paulo: Editora da Usp, 1998, p. 36. 13 Pedro Paulo A Funari, A Guerra do Peloponeso, História das Guerras, org. Demétrio Magnoli, São Paulo, Contexto, 2007, PP. 19-45; Pedro Paulo A Funari, 14 Cf. Pedro Paulo A Funari & Glaydson José da Silva, Teoria da História, São Paulo, Brasiliense, 2008. 15 Cf. Pedro Paulo Funari & Renata Senna Garraffoni, Salústio e a historiografia romana In: História e Retórica, Ensaios sobre historiografia antiga ed.São Paulo : Alameda, 2007, p. 65-76. 16 Cf. Robin Osborne, Greek History, Londres, Routledge, 2004, pp. 70-84. 17 Cf. Bryan Hanks, The past in later prehistory, Prehistoric Europe, Theory and Practice, Chichester, Wiley-Blackwell, 2008, pp. 255-284, p. 278: “the study of warfare during the Bronze and Iron Ages has had a long tradition of scholarship in Europe, however it is only in recent years that more attention is being placed on the relationship of warfare to cultural responses to this category of practice”. 18 Pierre Vidal-Naquet, Préface, Histoire de l’autre, Paris, Liana Levi, 2008, pp. 13-16. 19 Cf. D. Ogden, Homosexuality and warfare in ancient Greece, Battle in Antiquity, ed. A. B. Lloyd, Londres, 1996, pp. 107-168.

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No Brasil, os últimos anos testemunharam o surgimento de uma massa crítica de estudiosos, muitos deles bem inseridos na ciência internacional como interlocutores autônomos, com domínio, de primeira mão, da documentação antiga20. Estes dois aspectos estão na raiz desta História Militar do Mundo Antigo, que congrega, a partir de eixos temáticos, o que há de mais consolidado e inovador na ciência brasileira e uma mostra da interação internacional, com capítulos de grandes referências dos estudos da História Militar do Mundo Antigo. Desse modo, a História Militar do Mundo Antigo que se apresenta nesta coleção, constituída de três volumes, se fundamenta em debates atuais considerando objetos a partir de novas perspectivas. Restituindo à dimensão militar a relação estreita e íntima desta última com as outras esferas consideradas social, política, religiosa e econômica.21 Além disso, introduz e/ou revisita temáticas que, por vezes, foram negligenciadas ou desconsiderados como pertencentes à uma história dita militar. Só muito recentemente, poderíamos imaginar uma História Militar construída a partir de estudos sobre gênero, identidade, considerando tanto as documentações textuais quanto a arqueológica, nesta última incluindo-se a Numismática, a Iconografia e a Epigrafia redundando na inserção de uma rica cultura material. Todos os textos que aqui se apresentam propõem e abrem debates, instigam à investigação de novas e infinitas possibilidades discursivas.

AGRADECIMENTOS Agradecemos a Demétrio Magnoli, Glaydson José da Silva, Fábio de Barros Silva, Olavo Pereira Soares e a todos os autores do volume. Mencionamos, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Franca, Universidade Federal de Alfenas, CEIPAC da Universidade de Barcelona, FAPESP, CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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Cf. Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo A Funari, Os avanços da História Antiga no Brasil: algumas ponderações, História, 26, 1, 2007, pp. 14-19. 21 Como nos ensina Balandier (1997:156-7) foram as teorias de mundo modernas acerca do homem e da sociedade que “operaram rupturas, geraram fissuras e cisão” caracterizando-se como um “pensamento dissociativo”, numa “setorização de conhecimentos”.

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Bibliografia

Documentação Impressa

HERÁCLITO. Fragmento 53. PLATÃO. Diálogos. Critão – Menão Híspias Maior e outros. Tradução Direta do grego por Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2007.

Obras Gerais

BALANDIER, Georges. A desordem: elogio ao movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BOWLES, Samuel. Did warfare among ancestral hunter-gatherer groups affect the evolution of human social behaviors, Science, 324, 5th June 2009, 1293-1298. CARVALHO, Margarida Maria de & FUNARI, Pedro Paulo A. Os avanços da História Antiga no Brasil: algumas ponderações, História, 26, 1, 2007, pp. 14-19. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora S.A., 1997. CHOI, Jung-Kyoo & BOWLES, Samuel. The coevolution of parochial altruism and war, Science, 318, 5850, 26th October 2007, 636-640. FILHO, Mário Miranda. Politeia e Virtude: as origens do pesnamento republicano clássico. In: QUIRINO, Célia Galvão, VOUGA, Claudio & BRANDÃO, Gildo Marçal (org.). Clássicos do Pensamento Político. São Paulo: Editora da Usp, 1998. FUNARI, Pedro Paulo A. A Guerra do Peloponeso. In: MAGNOLI, Demétrio. (org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2007. ______. Antigüidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: UNICAMP, 2003. FUNARI, Pedro Paulo A & SILVA, Glaydson José da. Teoria da História. São Paulo: Brasiliense, 2008. FUNARI, Pedro Paulo A. & GARRAFFONI, Renata Senna. Salústio e a historiografia romana In: JOLY, Fabio Duarte (Org.). História e Retórica, Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 65-76.

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HANKS, Bryan. The past in later prehistory. Prehistoric Europe, Theory and Practice, Chichester, Wiley-Blackwell, 2008, pp. 255-284. HEIDEGGER, Martin. Gesamteausgabe, 36/37, Sein und Wahrheit. OGDEN, D. Homosexuality and warfare in ancient Greece. In: LLOYD, A. B. (ed.). Battle in Antiquity. London: Duckworth, Classical Press of Wales, 1996, pp. 107-168 OSBORNE, Robin. Greek History. Londres: Routledge, 2004. VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Muracho. 2ª . ed. São Paulo: Editora da USP, 2002. VIDAL-NAQUET, Pierre. Préface. In: Histoire de l’autre. Paris : Liana Levi, 2008, pp. 13-16.

História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Identidades

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GUERRA, ECONOMIA E SOCIEDADE NO EGITO DO REINO NOVO (SÉCULOS XVI-XI A.C.) Ciro Flamarion Cardoso CEIA/UFF Introdução É impossível traduzir para o egípcio antigo a palavra “guerra” (AL-NUBI, 1994: 135). Há, com efeito, muitos vocábulos egípcios que se referem a engajamentos bélicos de dimensões variáveis, mas sempre de forma concreta, sem comportar a generalização – jurídica, política, social, ideológica etc. – da situação de conflito que transmitem, nas línguas atuais, os termos correspondentes a “guerra” ou, por exemplo, expressões como “declaração de guerra”, “estado de guerra” ou “economia de guerra”. Isto não surpreende, ao ser coerente com outras impossibilidades de tradução de vocábulos generalizantes para o egípcio: “política”, “Estado”, “religião”, “economia”, entre muitos outros. Numa posição pós-moderna (desconstrucionista) mais ou menos estrita, tal fato proibiria o uso do termo guerra ao falar do antigo Egito. Com efeito, caso se acredite que a dicotomia realidade social/representações deva ceder o lugar à tripartição referente social/discurso (entendido como trama de significados estruturados ou imaginário social estruturante)/seres humanos, achando-se, adicionalmente, que o referente social (ou porções dele) só se transforma em objeto ao ser definido e delimitado pela ação de um “discurso” no sentido indicado – o que pode ter o efeito adicional de, concomitantemente, também delimitar, mediante o mesmo discurso, no tocante a alguns dos seres humanos, os sujeitos ou agentes sociais possibilitados pelo objeto então criado –, é lógico vetar o uso de “sociedade” antes do século XVI, “classe social” antes do século XVIII etc. (CABRERA, 2001: 77-100 e passim). E torna-se possível argumentar que falar de guerra ao tratar do Egito faraônico seja um anacronismo. Isto só é assim, porém, caso se adotem os postulados da desconstrução em vinculação com o perspectivismo pós-moderno, o que estou longe de fazer. Em minha opinião, não só podemos abordar temas antigos com nossas cabeças do século XXI (o que inclui as teorias e conceitos atuais das ciências sociais) como não temos escolha alguma quanto a isso, já que não há como reduzir nossas cabeças sociohistoricamente formadas a uma tabula rasa: a tentativa de o fazer seria necessariamente seletiva e funcionaria, de fato, só como um pretexto para eliminar modos de ver, temáticas e generalizações transtemporais consideradas incômodas ou indesejáveis no contexto de uma dada perspectiva (já que a posição pós-

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moderna, exatamente como o historismo tradicional, embora por outros caminhos, tende a encerrar cada época histórica em sua própria temporalidade, ou cada “cultura” em sua própria lógica interna, como numa prisão). Obviamente, a aplicação da teoria atual ao passado deve ser cuidadosa e seletiva; como, aliás, acho que tem sido praticado por muitos autores, por exemplo os seguidores de Karl Polanyi. Além do mais, concordo com o marxismo e o estruturalismo em que a ciência social seria supérflua se nos limitássemos a descrever as sociedades nos próprios termos e na própria ausência de teorias do social com que elas mesmas se descrevem: uma realidade social mais profunda deve ser desvendada na pesquisa, o que não se fará mediante simples descrição afinada às maneiras que cada sociedade tem de encarar a si mesma – maneiras essas que precisam ser entendidas, sem dúvida, mas não passam de um ponto de partida. A preocupação com o anacronismo é legítima, mas não deve servir de álibi a meras “descrições densas” apresentadas como alternativa (pobre, a meu ver) às tentativas de explicação. O egiptólogo e antropólogo Bruce Trigger propôs, na análise das civilizações antigas (early civilizations), considerar dois tipos gerais delas: (1) cidades-Estado; (2) Estados territoriais. O Egito antigo exemplificaria um Estado territorial (TRIGGER, 1993: 8-14). Em 1988, um grupo de historiadores militares britânicos foi convidado pela organizadora de um livro coletivo, Juliet Gardiner, a responder à pergunta: “O que é a História Militar?” Todos tentaram definir as formas de aggiornamento de um campo de estudos antes singularmente paroquial e conservador, na época em evidentes expansão e transformação (que continuaram depois). Uma das fórmulas mais interessantes que foram propostas então, pensando os autores sobretudo na História Moderna e Contemporânea, me parece ter sido a de J. C. A. Stagg: a História Militar tenderia a transformar-se em um “estudo das sociedades em guerra” (GARDINER, org., 1988: 9). Acredito que, no tocante à Antiguidade, esta fórmula poderia ser adequada ao se tratar de cidades-Estado – em especial aquelas em que a equação cidadão/soldado/camponês permanecesse vigente – mas seria muito menos aplicável a um Estado territorial como o egípcio, sobretudo no período que estamos considerando, em que já se constituíra um exército permanente e profissional. Salvo em algumas circunstâncias pouco numerosas – quando, por exemplo, no processo de expulsão dos asiáticos hicsos, no século XVI a.C., a guerra travou-se em boa parte dentro do próprio Egito –, não me parece que a História Militar do Egito imperial possa ser encarada como o estudo de uma “sociedade em guerra”. Talvez por isto, na sua excelente descrição da vida quotidiana do Egito imperial – e o subtítulo do livro fala explicitamente de “cenas da vida no Egito imperial” –, T. G. H. James não achou necessário incluir o assunto “guerra”, nem a categoria social “soldado” em sua

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abordagem (JAMES, 1984). Poderia tê-lo feito, sem dúvida, e seria proveitoso: mas o fato de sua escolha ter sido diferente não invalidou a descrição geral da vida quotidiana no Egito do Reino Novo a que procedeu; simplesmente porque, na imensa maioria dos casos, o fato de o Egito estar realizando grandes campanhas militares na Síria-Palestina e na Núbia não interferia de forma perceptível e direta, no curto prazo, no dia-a-dia ou nas preocupações das pessoas comuns, “plebéias” (um plebeu era alguém que não tivesse acesso regular ou ordinário à corte faraônica), do país, aquelas de que trata James nesse livro. No Estado territorial egípcio, que teria entre 3 e 4 milhões de habitantes à época, a guerra era decidida no interior da ínfima minoria que governava o país (contando os familiares, e mesmo incluindo seus anexos – administradores de menor poder –, não mais de 50 mil pessoas), (BAINES, 1991: 131-133) e, no período que abordamos, lutada por profissionais, tendo diminuído muito a necessidade da “corvéia militar”. Nessas condições, entende-se que “sociedade em guerra” seja menos adequado para descrever a situação egípcia, mesmo no auge das campanhas de expansão imperial, do que, por exemplo, a de Atenas na época da Guerra do Peloponeso; e compreende-se melhor que a presença e o impacto da guerra nos escritos atenienses das últimas décadas do século V a.C. sejam, no conjunto, incomparavelmente maiores do que nos do Egito faraônico dos séculos imperiais (XVI a XI a.C.).

A documentação disponível e alguns problemas em sua utilização Mesmo na época relativamente bem documentada do Reino Novo, as fontes disponíveis para o estudo da História Militar egípcia, embora numerosas, comportam certas lacunas irremediáveis. Sabemo que existiram, nessa época, diários de campanha que, pelo menos nas ocasiões em que o rei comandasse em pessoa, anotavam o dia-a-dia dos eventos bélicos, sendo, a seguir, conservados em arquivos; não nos chegou nenhum deles, mas sua marca existe, até certo ponto, em alguns dos documentos escritos que sobreviveram, privados numa minoria de casos, régios na imensa maioria (HUSSON; VALBELLE, 1992: 147-148). Os documentos principais que nos chegaram reúnem-se em três grandes grupos: (1) fontes escritas: autobiografias de militares; diversos tipos de textos, quase sempre inscrições, que narram do ponto de vista oficial a participação do rei em batalhas, com informação tão remanejada e reduzida a expectativas textuais previsíveis, destinadas a perpetuar e exaltar a noção do rei vitorioso e campeão, que se cunhou para elas a denominação Königsnovelle (“romances reais”); documentos administrativos (relativamente raros); textos literários que

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mencionam os soldados ou a vida militar, às vezes numa veia satírica; (2) fontes iconográficas: raramente achadas em contexto privado, quase de todo geradas num contexto régio (como a decoração templária ou de estelas comemorativas encomendadas pelo monarca, por exemplo), difíceis de interpretar no detalhe, tão manipuladas quanto as fontes escritas oficiais: é freqüente, por exemplo, que o faraó seja figurado vencendo sozinho os inimigos, atirando flechas de seu carro de guerra, até mesmo com ausência total de seu próprio exército na representação, às vezes com seu braço dirigido infalivelmente por uma divindade; (3) fontes resultantes de escavações arqueológicas: em conjunto com a iconografia, é assim que conhecemos a cultura material pertinente, já que foram escavados carros de guerra, armas diversas, indumentária militar, fortalezas e centros administrativos que os egípcios construíram na Núbia ou na Ásia etc.

Figura 1: O Egito no auge de sua expansão imperial (século X a.C.)

Referência: François Daumas. La civilización del Egipto faraónico. Trad. H. Pardellans. Barcelona: Editorial Juventud, 1972, p. 85.

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Quando, com ajuda das fontes disponíveis – textos, iconografia –, que teoricamente se completam com grande abundância por exemplo no tocante à batalha de Kadesh (aproximadamente 1274 a.C.), comandada do lado egípcio por Ramsés II, tentamos reconstituir o andamento da batalha em questão com algum detalhe, esbarramos em problemas e incógnitas de diversos tipos, a começar pelo desenrolar exato das operações militares no espaço e no tempo, para não mencionar informações que são fornecidas mas não cumprem função alguma (por exemplo: se os hititas, como nos informam os textos egípcios, contavam com grande quantidade de carros de guerra deixados como reserva, por que, no momento que seria o mais adequado quanto ao desenrolar das hostilidades, não os empregaram?). O mesmo se aplica à outra batalha com freqüência reconstituída por autores modernos com gráficos, a de Megiddo (aproximadamente 1456 a.C.), em que, comandando os egípcios, Thotmés III enfrentou uma coalizão de príncipes asiáticos encorajada pelo reino do Mitanni. Na verdade, algo se me afigura incompreensível: se os egiptólogos reconhecem o caráter altamente construído e manipulado dos relatos régios egípcios de batalhas; se, adicionalmente, a de Kadesh foi sem sombra de dúvida uma derrota egípcia, já que a cidade permaneceu em poder dos hititas (sendo a sua recuperação para o Império Egípcio a única finalidade do embate) – de onde vem que, seja como for, tantos especialistas acreditem na versão oficial egípcia dos acontecimentos, pelo menos no que diz respeito ao que o faraó afirma ter realizado sozinho devido à sua própria coragem (ou amparado só por seu pai divino, Amon) quando abandonado pelos seus?! Um dos topoi discursivos das Königsnovelle – e mesmo dos textos egípcios sobre batalhas formatados de outro modo – consiste exatamente em fazer do rei um artífice único de vitórias; e um discurso oficial controlado pode apresentar uma derrota como se vitória fosse. Mas por que razão deveríamos tratar um texto com tais características como se constituísse o relato verídico de alguma batalha?!

Criação e institucionalização de um exército permanente e profissional no Egito do Reino Novo: repercussões político-sociais No período do domínio hicso – sendo os hicsos asiáticos que haviam constituído um reino no Delta do Nilo, com capital em Avaris, e submetido o resto do Egito a tributação mediante um domínio indireto – e no de sua expulsão, ocorrida na segunda metade do século XVI a.C., bem como na fase imediatamente subseqüente a tal expulsão, ocorreram três processos de grande importância: (1) a atualização das técnicas egípcias da guerra,

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equiparando-as às que eram utilizadas na Ásia Ocidental de então, mediante contatos por terra e por mar muito mais intensos e seguidos entre o Egito e a Síria-Palestina sob os hicsos:

Figura 2: Decoração da parte externa esquerda do carro de guerra achado na tumba de Thotmés IV (1398-1390 a.C.)

Tendo atingido com suas flechas muitos dos asiáticos contra os quais combatia, o rei do Egito, em seu carro, agora se apresta a massacrar com uma machadinha de guerra inimigos que se encontram em outro carro. O exército egípcio não é representado. O desenho é de Howard Carter, copiando as figuras do carro de guerra achado na tumba do faraó no Vale dos Reis. A inscrição principal diz: “O deus bom e bravo, aquele que é vigilante, ativo e sem igual, aquele que age com seus braços para o conhecimento das Duas Terras e à vista de seu exército reunido.” Referência: Robert Partridge. Transport in ancient Egypt. London: The Rubicon Press, 1996, p. 115.

metalurgia do bronze aperfeiçoada em seus usos bélicos (por exemplo, flechas com pontas de bronze em substituição às pontas de cobre ou de sílex; superfícies cortantes e impacto melhores, em função do peso maior do bronze em comparação com o cobre, para as machadinhas de guerra), carro de guerra puxado por cavalos, uso do arco composto e, mais em geral, mudanças nas armas num sentido de maior eficácia, elementos de proteção desde então incorporados à indumentária dos soldados (SHAW, 1991: 31-44); (2) surgimento e rápida institucionalização de um exército profissional numeroso, permanente e bem treinado, único modo de conseguir vencer os hicsos e, a seguir, instrumento da expansão imperial egípcia na Núbia e na Síria-Palestina. Sem tais mudanças, o assim chamado período imperial

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egípcio não teria sido possível, sobretudo na Ásia, já que anteriormente as técnicas metalúrgicas e o instrumental e a estratégia de guerra haviam sido, no Egito, bastante inferiores aos da Ásia Ocidental; (3) com o início de suas conquistas militares na Ásia Ocidental, em especial a partir das 17 campanhas militares ali capitaneadas por Thotmés III durante o seu governo pessoal (1458-1425 a.C.), o rei do Egito foi incorporado à rede diplomática asiática, que usava a língua acadiana da Baixa Mesopotâmia em sua correspondência, tinha o hábito de estabelecer tratados (conhecidos desde o terceiro milênio a.C. graças aos arquivos da cidade de Ebla, na Síria setentrional) e usava mercadores como emissários enviados por uma corte régia a outra. As fontes escritas em acadiano que permitem conhecer os mecanismos dessa diplomacia – infelizmente só para um período bem curto, talvez não mais de dez anos – foram achadas nas ruínas da cidade de Akhetaton (Amarna), no Médio Egito, a efêmera capital que o faraó Akhenaton (1352-1336 a.C.) fez construir em meados do século XIV a.C. (MORAN, 1992; CARDOSO, 2003). O Reino Novo egípcio passou por numerosas transformações sociais. É possível, entretanto, que a formação e expansão de um exército profissional numericamente importante fosse a que se institucionalizou mais e teve maior impacto sobre o país a longo prazo. Muitos veteranos receberam – por doação do rei ou na forma de arrendamentos de longa duração de terras públicas (ao que parece, especialmente templárias) – porções de terras cujo controle, desde que algum membro da família em cada geração se dedicasse à carrera militar, seus descendentes puderam continuar a exercer em forma muito estável (AL-NUBI, 1994: 150). Assim, por exemplo, uma terra situada 50 km ao sul de Mênfis, doada por Ahmés I (15501525 a.C.) a um comandante de barcos de guerra que participou na expulsão dos hicsos, mais de duzentos e cinqüenta anos depois, em meados do século XIII a.C., continuava na posse dos três ramos em que se dividira a família do beneficiário original da doação, Neshi, que dera o seu nome à aldeia onde a terra em questão estava situada, prova de seu prestígio local (GABALLA, 1977). Houve regiões do antigo Egito que ficaram especialmente marcadas pela presença militar, entre os vivos mas também nas tumbas dos cemitérios locais. Foi esse o caso de Heracleópolis, no Fayum, que sediava um grande acampamento militar fortificado e de onde saíram numerosos generais que ocuparam também cargos de peso na administração durante a XIXa dinastia (por exemplo Iuny, que foi vice-rei da Núbia, e Parahotep e Rahotep, que chegaram à posição de vizir, a mais alta na administração do antigo Egito). No cemitério heracleopolitano de Sedment ainda se podem ver imponentes tumbas de altos oficiais e generais que, quando escavadas, revelaram mobília funerária abundante e de altíssima qualidade (MOKHTAR, 1993: 106-107).

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No único cadastro de terras de grande envergadura que se conservou, o Papiro Wilbour (século XII a.C.) (GARDINER, 1941-1948), que registra porções de terras públicas, majoritariamente templárias, de uma parte do Egito Médio dadas em arrendamento, em análise computadorizada das concessões vê-se que os soldados aparecem arrendando 12% das parcelas (freqüência relativa ajustada) e os chefes de estábulos – um pessoal vinculado ao exército mas não combatente, ocupado com os cavalos de batalha e sua alimentação, bem como com o gado destinado à alimentação das tropas – 22,4 % (freqüência relativa ajustada); no conjunto, as ocupações militares ou relacionadas dão conta de 43,7% dos arrendamentos (freqüência relativa ajustada). Em certos casos, tratar-se-ia de soldados e outras pessoas vinculadas ao exército já dotadas de terras, tratando de aumentar a superfície cultivável de que pudessem dispor mediante arrendamentos de terras públicas próximas a suas parcelas. Uma egiptóloga que analisou o Papiro Wilbour comenta que “as atividades militares e vinculadas não eram ocupações permanentes ao longo do ano inteiro: soldados, chefes de estábulos, aurigas de carros de guerra, escudeiros, tropas auxiliares etc. estavam regularmente engajados em atividades agrícolas durante pelo menos uma parte do ano” (KATARY, 1983: 74). Pela mesma razão, os militares estavam enraizados em diferentes zonas rurais egípcias. Em caso de ausências mais prolongadas, era possível confiar a parcela ao cultivo de outra pessoa sem perder o controle sobre a mesma, embora o fato devesse registrar-se. Note-se que os textos às vezes mencionam também presentes de mão-de-obra – que podiam chegar a ser consideráveis (dezenas de pessoas) – como recompensa régia pela ação militar, de modo que pelo menos alguns dos militares donos ou arrendatários de terras não precisavam empreender trabalhos agrícolas com suas próprias mãos. O exército tinha uma organização profissional de que careciam outras categorias (por exemplo, o Egito não conheceu os grêmios de artesãos), resultava do treinamento de recrutas muitas vezes engajados desde a infância e era usado pelo Estado também em tarefas nãomilitares (por exemplo as grandes obras públicas e as expedições às minas e pedreiras). Sua estabilidade e crescente importância na organização político-administrativa ao longo do Reino Novo, bem como as solidariedades profissionais entre militares, ajudam a entender certas carreiras brilhantes realizadas por comandantes de tropas ou carros de guerra, assumindo posições de grande responsabilidade no governo egípcio e até mesmo se tornando aparentados à casa real: Yuya, um comandante dos carros de guerra, era pai de Tiy, esposa principal de Amenhotep III (1390-1352 a.C.) que foi uma das rainhas mais influentes de sua época (NEWBY, 1980: 127-128). Grandes reviravoltas políticas, ou político-religiosas como a reforma do faraó Akhenaton (1352-1336 a.C.), deram-se com o apoio das tropas e seu

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potencial de coerção; em troca, os militares obtiveram diversos benefícios, incluindo cargos administrativos e religiosos. Um tal processo culminou com o aparecimento de faraós que eram plebeus, militares de carreira, antes de ascenderem ao trono: Horemheb e Ramsés I na passagem da XVIIIa para a XIXa dinastia (últimos anos do século XIV a.C. e primeiros anos do século XIII a.C.); Herihor, um general (provavelmente líbio), que assumiu status monárquico em Tebas no início do século XI a.C. (final da XXa dinastia); e, já fora do período que estudamos, numerosos comandantes militares líbios que, num Egito dividido, se tornaram reis a partir do século X a.C. (O’CONNOR, 1983: 206). Na passagem do Grande Papiro Harris em que o faraó Ramsés III (1184-1152 a.C.), da XXa dinastia, se refere a um reordenamento de categorias funcionais com finalidades administrativas que efetuara, lemos (ERICHSEN, 1933: 92): Eu organizei o Egito em diversos efetivos, (consistindo) em funcionários do palácio, grandes príncipes, soldados de infantaria e condutores de carros numerosos por centenas de milhares, shardana e kelek inumeráveis, seguidores por dezenas de milhares, e trabalhadores dependentes (semedet) do Egito.

A frase parece referir-se a uma classificação daqueles que, de um modo ou outro, dependiam da administração palacial, tal como percebidos pela mesma à época; o que se nota, ao lado dos funcionários maiores da administração central e regional e, no final, da referência à mão-de-obra rural dependente (semedet), é que o texto concede grande atenção às diversas categorias militares: infantes, condutores de carros de guerra, tropas estrangeiras (shardana, kelek), tropas auxiliares (seguidores). Em outras palavras, os militares eram muito visíveis para a monarquia faraônica e sua administração central, em meados do século XII a.C., como um conjunto hierarquizado de categorias a serem levadas em conta na gestão, na remuneração e também na distribuição de recompensas especiais.

Organização militar e formas de combater no Egito do Reino Novo Existem controvérsias historiográficas no que diz respeito à organização militar egípcia do Reino Novo. Alan Schulman provavelmente tenha sido, até agora, o mais proeminente dentre os especialistas da História Militar egípcia. Em sua opinião, só a infantaria e os carros de guerra seriam os tipos de tropas e pessoal militar de fato institucionalizados. Isto, se fosse verdadeiro, nos deixaria com pelo menos duas lacunas dificilmente explicáveis: (1) a ausência de uma marinha de guerra stricto sensu: “Havia uma organização naval, (...) mas, ao que parece, o pessoal combatente naval estava constituído por

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soldados da infantaria terrestre que serviam a bordo e até mesmo proviam remadores para os barcos”; (2) a inexistência de um sistema de aprovisionamento das tropas quando das campanhas militares, o que significaria que os soldados teriam de obter provisões por si mesmos durante as expedições de conquista ou punitivas na Ásia e na Núbia: “há poucos dados que comprovem a existência de comboios de abastecimento no exército egípcio” (SCHULMAN, 1995: 290, 299-300). Parece-me, porém, que nestes assuntos Schulman incorreu na modalidade sempre arriscada de raciocínio que parte do silêncio ou insuficiência das fontes para daí inferir a ausência do próprio objeto. É perfeitamente possível que os aspectos de cuja existência duvida estivessem menos institucionalizados que outros e gerassem por isso menos documentação. Entretanto, a existência de carreiras militares especificamente navais, comprovadas por autobiografias, bem como de uma frota de guerra stricto sensu (isto é, como um conjunto de barcos de guerra distintos das outras embarcações que possuía o governo egípcio), parecem-me pontos suficientemente estabelecidos, mesmo se com bastante menos detalhes do que no caso do pessoal ligado à guerra terrestre (SÄVESÖDERBERGH, 1946). E o funcionamento de um sistema de aprovisionamento militar não só no que diz respeito aos soldados estacionados em quartéis e fortalezas como, também, para os combatentes durante as campanhas é afirmado, e tal sistema descrito em linhas gerais, por Manfred Gutgesell, que me parece ter razão (GUTGESELL, 2001: 3006). Na Núbia, o aprovisionamento quando das campanhas se baseava no sistema de fortalezas dotadas de grandes depósitos de víveres, existente desde o Reino Médio, em especial entre a segunda e a terceira cataratas do Nilo, reparado e ampliado no Reino Novo, bem como nos depósitos (especialmente extensos na cidade-templo de Sesebi) instalados nas novas cidades construídas segundo uma política deliberada de egipcianização, também no Reino Novo (KEMP, 1978: 22-25). No caso das campanhas asiáticas, cada uma delas era preparada por uma retomada de contato e de controle (se fosse necessário) dos centros costeiros de Gaza até Ugarit, situados na região litorânea da Síria-Palestina onde também estavam na sua maioria as guarnições egípcias estacionadas na Ásia, mediante expedições tanto terrestres quanto principalmente marítimas originadas no Egito, usando então tais cidades – que se egipcianizaram bastante mais do que as do interior – como bases de operações e centros de abastecimento (REDFORD, 1992: 167-168, 393). Se escolhermos, para a descrição sumária da organização militar egípcia, o século XIII a.C., quando todos os seus elementos já estavam presentes, podemos, em primeiro lugar, enumerar os tipos de tropas existentes: infantaria; carros de guerra; tropas estacionadas em guarnições de fortalezas ou postos avançados; tropas de elite (a guarda pessoal do rei, por

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exemplo);

contingente

embarcado

(marinheiros

combatentes);

tropas

estrangeiras

(mercenários; grupos étnicos fixados por ordem do rei, após sua derrota militar pelos egípcios, em aldeias especiais e encarregados de diversas funções militares: quando em suas casas, não tinham consigo as suas armas, que permaneciam trancadas em depósitos, acessíveis só para treinamento ou combate). As unidades em que se dividiam as diferentes tropas eram: uma divisão de exército, com aproximadamente 5 mil homens (duas de início, seu número chegou a quatro, ou seja, perto de 20 mil homens no total), na qual profissionais e recrutas se mesclavam; uma hoste, com 500 homens ou mais (pelo menos duas companhias); uma companhia, com 250 homens; um pelotão, com 50 homens; um esquadrão, com 10 homens. A hierarquia militar tinha no topo o próprio faraó, abaixo do qual havia um generalíssimo ou comandante-em-chefe (muitas vezes um dos filhos do monarca), a seguir o general comandante das tropas do norte e o das tropas do sul do Egito. Havia ainda: generais de posição inferior aos já mencionados; portadores de estandarte (com status de oficiais); além dos comandantes das diversas unidades mencionadas de tropas. Se bem que os comandantes de mais alto escalão também tivessem atribuições administrativas e logísticas, ao lado dos combatentes havia administradores não-combatentes – diversos tipos de escribas militares –, pessoal auxiliar (chefes de estábulos – em certos casos, encarregados do recrutamento –, responsáveis pelo abastecimento etc.). O funcionamento das instituições militares supunha ainda manufaturas de armamentos sob controle estatal e estaleiros navais (SHAW, 1991: 2630; SCHULMAN, 1964; CURTO, 1973).

Figura 3: Fragmento de relevo de uma tumba não identificada de Saqqara representando a produção de armas (Reino Novo)

À esquerda se nota parte de um carro de guerra. Flechas já prontas acham-se atrás de um artesão que, no momento, verifica se as que se acabaram de produzir estão de todo retas. Referência:

Ian Shaw. Egyptian Egyptology, 1991, p. 36.

warfare

and

weapons.

Princes

Risborough:

Shire

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Figura 4: A distribuição de armas antes da batalha

Detalhe de um relevo do templo maior de Medinet Habu (século XII a.C.) mostrando a distribuição de armas aos soldados antes de uma batalha. Referência: Silvio Curto. L’arte militare presso gli antichi egizi. Torino: Edizioni d’Arte Fratelli Pozzo (as páginas do livro não são numeradas).

Figura 5: Cenas em um acampamento militar (Museu de Bolonha)

O relevo mostra diversas atividades em curso num acampamento militar, com destaque para a tenda de um oficial: este último – talvez o próprio Horemheb, de cuja tumba menfita foi retirado o bloco decorado – aparece à esquerda, tendo deixado a tenda em questão, à esquerda da qual se vê um porteiro. No interior, um servidor, à esquerda, varre o chão, outro, à direita, supervisionado por um terceiro personagem, joga água no chão para que não se levantem nuvens de poeira. Aparecem móveis e provisões. Referência: Silvio Curto. Ibidem (as páginas do livro não são numeradas).

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A reconstituição mais convincente de como ocorriam os enfrentamentos bélicos na época do Império Egípcio é, a meu ver, a de Alan Schulman, pelo menos no que diz respeito às batalhas em campo aberto. As batalhas campais têm uma documentação melhor, aliás, e portanto podem ser mais adequadamente entendidas do que a guerra de cerco (ataques ou cercos a fortalezas ou cidades fortificadas) e as batalhas navais, de que o único exemplo detalhado é a representação pictórica e a narrativa poética da batalha entre Ramsés III e os Povos do Mar (aproximadamente 1176 a.C.) que se encontram no templo de Medinet Habu. Limitar-me-ei aqui a abordar as batalhas terrestres em campo aberto, mesmo porque a autoridade que estarei seguindo – Alan Schulman – a meu ver vicia sua descrição dos cercos e das batalhas navais com suas opiniões, a meu ver incorretas, sobre inexistirem, entre os egípcios, comboios de abastecimento das tropas em campanha e uma marinha de guerra stricto sensu. Nas batalhas campais, a infantaria dividia-se em duas partes: um núcleo organizado em falanges, destinado a, em algum momento, engajar de perto a infantaria inimiga, armado de escudo e diferentes combinações de clavas, lanças, machadinhas de guerra e espadas; e, nos flancos e na retaguarda do núcleo mencionado, soldados também a pé portando armas de arremesso (arco e flechas, fundas). Enquanto a infantaria central marchava ao encontro do inimigo, as armas de arremesso eram utilizadas, tentando acertar e desmoralizar a infantaria adversária. Quando as duas infantarias inimigas entravam em contato, era preciso cessar o uso das armas de arremesso, já que a partir daí havia o risco de atingir homens de seu próprio exército. O combate corpo a corpo entre o grosso das infantarias duraria até que um dos lados se desse por vencido e, correndo, abandonasse o campo de batalha: seria, então, perseguido pelos vencedores, enquanto as armas de arremesso inimigas voltariam a ser usadas contra os fugitivos. Quanto aos carros de combate, cada um tendo duas rodas e sendo puxado por dois cavalos, eram, entre os egípcios, mais leves do que entre os asiáticos e carregavam, cada um, dois guerreiros (seja um auriga e um arqueiro, seja um auriga que fosse ao mesmo tempo o arqueiro, devendo amarrar as rédeas na cintura quando fosse usar o arco, e um soldado que protegesse o primeiro com um escudo). O faraó é freqüentemente representado sozinho em seu carro, ou acompanhado por um deus (também é possível que uma divindade – falcão ou abutre – paire sobre o seu carro), mas isso é uma das convenções destinadas a salientar seu papel singular. Como explica Schulman, é altamente improvável que os carros de guerra atacassem outros carros de guerra: sua função principal era a de plataformas móveis para arqueiros, protegidas por sua alta velocidade, usadas para percorrer a vanguarda inimiga fazendo chover flechas sobre ela; sua outra função seria a de proteger sua própria infantaria

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em marcha e, caso a infantaria inimiga se considerasse derrotada e fugisse, persegui-la e atacá-la para que não tivesse a possibilidade de se reorganizar em falanges. Antes do século X a.C. não havia cavalaria propriamente dita: os militares que aparecem montando cavalos são estafetas, soldados mandados espiar de perto os adversários antes da batalha propriamente dita, ou fugitivos deixando o campo de batalha quando tivessem a possibilidade de fazê-lo montados. Há dados superabundantes que mostram serem os carros de guerra a menina dos olhos dos monarcas próximo-orientais da segunda metade do segundo milênio a.C. em matéria de equipamento de guerra. Em certos casos, apareciam como uma espécie de “trono secundário” de grande majestade nas representações dos reis em combate. Entretanto, tinham debilidades evidentes: só podiam utilizar-se em terreno absolutamente plano, sendo facilmente derrubados, além de que, mesmo em alta velocidade, os cavalos, por seu grande tamanho, constituíssem alvos relativamente fáceis: atingidos, o carro se tornaria inútil. Tratava-se, além do mais, de arma de custo altíssimo. O Egito não tinha uma tradição de criação de cavalos e acredita-se que devesse importar, seja comprando, seja como butim de guerra, ou ainda como tributo, a maioria dos animais que usava para puxar os seus carros. Outrossim, a alimentação dos cavalos – os que estivessem sendo em dado momento usado para puxar os carros e os que fossem deixados de reserva para substituições –, além de ser ela também cara, formulava problemas logísticos importantes. Por tais razões, não parece que os reis próximo-orientais do Bronze Médio e do Bronze Tardio possuíssem muitos carros de guerra: é preciso desconfiar quando os textos mencionam cifras altas. Por exemplo, no caso da batalha de Kadesh, afirmase que os hititas usaram 2 500 carros em seu ataque principal contra Ramsés II. Ora, isto significaria uma disponibilidade de cavalos do lado hitita, quando da batalha, de pelo menos 7 500 cavalos, entre os que estivessem em uso e os mantidos na reserva, o que implicaria enormes dificuldades logísticas (SCHULMAN, 1995).

Um elemento de longuíssima duração: cativos de guerra e colonização rural

Na iconografia egípcia, um dos motivos mais duráveis, já que aparece desde 3100 a.C. aproximadamente até o Período Romano, é o do faraó que, agarrando pelos cabelos um ou mais cativos que simbolizam os Nove Arcos, inimigos tradicionais do rei do Egito (a composição étnica dos Nove Arcos podia mudar com o tempo, entretanto; e mesmo egípcios rebeldes do norte e do sul podiam figurar entre eles), ameaçava-os com uma clava ou, mais

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tarde, eventualmente com uma cimitarra ou espada curva. Uma curiosa “contaminação” ortográfica foi que a designação – típica da XVIIIa dinastia – desses cativos ameaçados, nebedu qued, habitualmente traduzida como “aqueles de mau caráter”, se escrevia hieroglificamente com o determinativo da trança de cabelos, tão habitual era o motivo do faraó agarrando tais cabelos ao se preparar a massacrar os prisioneiros! (HOFFMEIER, 1983: 54-55.) Em muitas dessas cenas, os próprios cativos, ou suas mulheres e filhos, aparecem implorando o rei. É que este poderia, alternativamente, poupar a vida dos cativos de guerra, transformando-os em mão-de-obra dependente. Temos aí, de fato, outra permanência de muito longa duração nas fontes egípcias de todo tipo. Ao se completar a unificação do Egito num único reino, por volta de 3100 a.C., a situação demográfica e econômica consistia em uma concentração maior dos recursos humanos e agrícolas ao sul, no Vale do Nilo. O Delta, mesmo contendo mais terras potencialmente férteis do que o Vale, tinha população e agricultura muito menos densas. Assim, transformou-se em zona de colonização interna, em processo multimilenar. Os faraós, altos funcionários e outras pessoas fundaram reiteradamente novas unidades agrícolas ou de criação de gado no Delta ao longo dos séculos. Na época dos Ramsés, isto é, nos séculos XIII e XII a.C., a população total do Delta equiparou-se à do Vale. Entretanto, no tocante à densidade humana e agrícola, somente sob os Ptolomeus (séculos IV-I a.C.) o Delta ultrapassou, por fim, o Vale do Nilo. Este longuíssimo processo de colonização agrária interna vinculava-se estreita e explicitamente à guerra, também desde tempos muito antigos. Assim, nos anais régios primitivos fixados na Pedra de Palermo, a respeito do faraó Snefru, da IVa dinastia (26132589 a.C.), lemos ter ele criado 35 domínios agrícolas, com os trabalhadores a eles ligados, e 122 domínios especializados na criação de gado, no ano em que se efetuou o sétimo censo em seu reinado (MALEK, 1986: 68). Ora, isto se vincula em forma direta a outra informação que também consta da mesma fonte: Snefru, em data anterior, declarara ter capturado como presa de guerra, quando de uma campanha na Núbia, 7 mil “prisioneiros vivos” e 200 mil cabeças de gado maior e menor (BREASTED, 1988: II, 66). Em outras palavras, a documentação egípcia, desde pelo menos a IVa dinastia (iconograficamente, desde muito antes), vincula em forma direta a captura de prisioneiros estrangeiros e de gado, efetuada militarmente, com a colonização do norte do país. No período que nos interessa neste artigo, isto é, o Reino Novo ou fase imperial do Egito, isto continuava sendo verdadeiro, mas a origem da mão-de-obra assumia duas formas distintas. (1) As fontes régias que dão conta da atividade militar dos monarcas, estereotipadas

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e muito construídas ideologicamente, sempre detalham o butim de guerra, com especial atenção à mão-de-obra capturada (SPALINGER, 1982: passim; CUMMING; DAVIES, 19821992, 4 vols.: passim). Assim, em relação à primeira campanha chefiada na Síria por Amenhotep II (1425-1398 a.C.), a inscrição comemorativa achada em estelas de Mênfis e Karnak (Tebas) declara ter sido a quantidade de butim trazida pelo rei a Mênfis, ao retornar ao Egito: “500 guerreiros da elite dos hurritas, 240 de suas esposas, 640 canaanitas, 252 filhos dos chefes, 323 filhas dos chefes, 270 concubinas dos chefes de todas as terras estrangeiras e os adornos de prata e ouro em seus braços. Total: 2 214 pessoas. 820 cavalos, 730 carros de guerra, incluindo todas as suas armas de guerra” (CUMMING, 1982: I, 31). Quanto à segunda campanha, ao relatar a presa de guerra relativa à Samaria, as quantidades listadas são bem menores, como seria de se esperar. (2) Uma modalidade diferente de transferência de mão-deobra para o Egito (às vezes também para a Núbia, onde os egípcios estavam, no período imperial, fundando cidades de tipo egípcio) era a deportação, na época de existência do império asiático do Egito, feita sob a alegação de razões de segurança quanto à fronteira egípcia com a Ásia. Eis aqui vários exemplos dos séculos XV e XIV a.C.: Thotmés III deportou mais de 7 300 asiáticos; seu filho Amenhotep II declarou ter feito o mesmo com nada menos de 89 600 pessoas de Canaã; mais tarde, Thotmés IV disse, por sua vez, ter despovoado a cidade canaanita de Gezer, deportando sua população para Tebas; por fim, Amenhotep III, sem citar cifras, afirmou que seu templo de milhões de anos no oeste tebano (o tipo de templo que em Egiptologia era denominado antigamente “templo funerário”) estava “cheio de cativos masculinos e femininos, filhos dos chefes de todas as terras estrangeiras capturadas por Sua Majestade, cercado por assentamentos (de gente) da Síria”. A quantidade de deportados declarada por Amenhotep II, em especial, parece incrivelmente elevada; mas os arqueólogos acharam, no relativo a essa ocasião, dados que mostram a destruição de muitos sítios canaanitas, esvaziando certos vales férteis, o que provocou, saídos os deportados, uma reacomodação de populações na própria Ásia (REDFORD, 1992: 208). No Reino Novo, os templos e seus domínios agiam como instância intermediária na aplicação da política interna de fomento; assim, uma parte majoritária da mão-de-obra obtida na guerra, mediante tributo (síria, líbia, núbia, mais tarde proveniente dos Povos do Mar), ou por deportação, era transferida às administrações templárias (REDFORD, 1992: 209, 221227, 297). Em certos casos, o rei fixava estrangeiros capturados, dotados de formação militar, diretamente em estabelecimentos ao mesmo tempo agrários e militares, no Delta e no norte do Egito Médio, onde deviam, por exemplo, produzir forragem para os cavalos dos carros de guerra, bem como prover serviço militar quando convocados.

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Figura 6: Prisioneiros núbios aguardam transporte para campos de trabalho ou para outras destinações

Relevo da tumba menfita de Horemheb, segundo Geoffrey Martin, “uma das representações mais realistas de pessoas do sul [da África] que sobreviveram da Antiguidade”. Referência: Geoffrey T. Martin. The hidden tombs of Memphis: New discoveries from the time of Tutankhamun and Ramses the Great. London: Thames and Hudson, 1991, p. 72.

Bernadette Menu estudou em detalhe o processo que ia da captura à integração dos cativos como mão-de-obra dependente na estrutura social egípcia. Usando a rica documentação disponível, a respeito, para o Reino Novo – iconográfica e escrita –, ela estuda o status dos hemu, a mão-de-obra em questão, mostrando que tal status era alcançado por etapas (MENU, 2004: 204-205): ...recordemos uma observação judiciosa feita no passado por Jules Baillet: “Mas, justamente, as palavras que designam em forma ordinária os prisioneiros de guerra cessam de lhes serem aplicadas uma vez que eles tenham sido transplantados ao Egito, onde se tornam hemu, meret [uma outra categoria de trabalhadores dependentes – C.F.C.] etc.” É que de fato, entre as duas situações mencionadas, existe um interstício, esta fase juridicamente intermediária em que insisti, durante a qual o cativo é inserido na ordem do direito faraônico e recebe uma educação que fará dele um egípcio completo. Seu nome pode ser egipcianizado, mas acima de tudo ele aprende a língua, o comportamento, os usos e costumes de seu novo país.

Menu, que não acredita na existência da escravidão no antigo Egito – uma polêmica em que não posso entrar aqui –, atenua consideravelmente a exploração e os maus tratos sofridos por essa mão-de-obra dependente. É verdade, no entanto, que existia o processo de aprendizagem a que se refere; e que, tradicionalmente, os escravos do Estado egípcio, no curso de umas poucas gerações, terminavam por integrar-se aos estratos populares, social e economicamente dependentes mas juridicamente livres, da população egípcia. As instituições

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públicas a que os cativos eram distribuídos quando de sua aprendizagem variavam. Em certos casos, tratava-se de estabelecimentos militares fortificados, por exemplo. Mas havia outras possibilidades: dispomos de uma carta de uma dama da cidade-harém de Miur, no Fayum, ao rei Séti II (por volta de 1199 a.C.) em que ela recorda como, no passado, treinara na fiação e na tecelagem asiáticos que lhe foram confiados (GRIFFITH, 1898: I, pp. 94-98; II, lâmina 40). Nem toda a mão-de-obra resultante das campanhas militares participava, portanto, da colonização agrária do Delta: esta última, no entanto, está muito bem comprovada no Reino Novo e, sem dúvida, dependia dos cativos resultantes da deportação, do butim de guerra ou do tributo.

Conclusão

Esta apresentação e discussão seletiva de alguns aspectos da relação entre a guerra e os aspectos socioeconômicos do Egito dos séculos XVI-XI a.C. teve como finalidade enfocar algumas hipóteses e controvérsias sobre tal relação, sem a ambição de abordar todas as problemáticas possíveis – o que, aliás, seria impossível num texto das dimensões deste. Seja como for, deve ter ficado clara a ligação direta existente entre, de um lado, a guerra e o fato de ter-se criado um exército profissional permanente no Egito a partir do século XVI a.C., e, de outro, a economia e a sociedade do Período Imperial egípcio. Houve um tema de grande importância que deixamos voluntariamente de lado: o próprio Império Egípcio, sua lógica, sua organização, suas repercussões econômicas e sociais para os egípcios e para outros povos. Isto se deve a termos preparado anteriormente um texto sobre o tema em questão, destinado a um volume coletivo organizado pelo Professor Francisco Carlos Teixeira da Silva.

Referências Fontes primárias: BREASTED, James Henry. Ancient records of Egypt. London: Histories & Mysteries of Man, 1988. 5 vols. CUMMING, Barbara; DAVIES, Benedict G. Egyptian historical records of the later Eighteenth Dynasty.

Warminster: Aris & Phillips, 1982-1992. 4 vols.

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ASSIM COMO PESCADORES FISGAM O ATUM: ∗1

A BATALHA NAVAL NA ANTIGUIDADE

Harry Sidebottom St Benets Hall, Lincoln College, Oxford.

I

“Os gregos pescavam pedaços de destroços navais e de remos quebrados, arpoavam e talhavam nossos homens, que nadavam no mar, assim como os pescadores fisgam, por meio de redes, o atum ou alguma presa” Na peça Os Persas de Ésquilo, um mensageiro conta à corte real a respeito do massacre dos marinheiros e das frotas persas na Batalha de Salamina, em 480 a.C. Esse modo de pintar os persas faz parte de uma nova atitude depreciativa diante dos bárbaros, especialmente dos bárbaros do leste, cuja vitória nas Guerras Médicas influenciou os gregos. Aqueles na água são peixes a serem mortos por pescadores. Umas poucas linhas depois, os que estão em terra firme são animais a serem abertos e cortados por açougueiros. Por várias razões, o peixe em questão, o atum, foi bem escolhido. Pensava-se, no mundo clássico, que ele tinha um mau caráter. Era tolo, cruel, tímido, indolente e, no limite do que um peixe possa ser, apreciador da luxúria, amante da tepidez, das praias, e com inclinação por



Tradução de Luciano César G. Pinto e revisão de Pedro Paulo A. Funari. A importância, a série bem ampla de evidências (literárias, artísticas e arqueológicas, em especial, as provenientes da subdisciplina, relavimente recente, da arqueologia subaquática), e o apelo romântico pela batalha naval na Antiguidade, e, por extensão, por toda a navegação clássica, faz com que não seja surpreendente o número de trabalhos modernos relevantes. O ponto de partida essencial é Casson (1971, edição revisada, ????). Outras sínteses acadêmicas relevantes incluem: (para a Grécia) Adcock (1957), 29-46; Morrison e Williams (1968); Morrison, Coates e Rankov (2000); Raaflaub (1999), 141-6; van Wees (2004), 199-231; (para Roma) Adcock (1940), 29-47; Redde (1986); Viereck (1975); (para ambos) Anderson (1976); Basch (1987); Casson (1991); Gardiner e Morrison (1995); Meijer (1986); Montevecchi (1997); Morrison e Coates (1996); Pekary (1999); Rouge (1981); Sidebottom (2004), 94-9; Starr (1989). Introduções populares, todas ilustradas de uma maneira bastante agradável, incluem: Anglim et al. (2002), 222-49; Connolly (1981), 262-73; Ducrey (1985), 179-98; Nelson (1973); Pomey (1997); Spathari (1995); and Warry (1980), ver táticas navais, armas navais e barcos no índice. Sobre a arqueologia subaquática, o antigo mas aprazível Bass (1972) é agora acompanhado por Delgado (1997). Dois estudos técnicos, mas surpreendentemente agradáveis, são o de Meiggs (1982), a respeito das balizas dos navios, e o de Rival (1991), acerca da carpintaria naval. 1

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nozes e por queijo branco de cabra. Tudo que se ajustava bem à nova e resistente imagem que os gregos faziam dos habitantes do leste. O atum era apropositado de uma outra maneira. N’Os Persas, há uma forte enfâse sobre o fato de os deuses decidirem o destino da batalha. A imaginária do abate de animais fazia apelo em favor do sacríficio aos deuses, uma vez que esse era, normalmente, o único momento em que se comia carne no mundo grego. O atum era o único peixe que era sacrificado. Em certo sentido, os persas estavam sendo oferecidos aos deuses. O atum era, ademais, no mundo clássico, ‘muito comum e familiar para precisar de descrição’. É possível que todo mundo tivesse visto ou conhecido o modo como se matava o atum. O peixe vinha à surperfície em cardumes enormes. Esses ficavam encurralados nas águas rasas, onde se davam, sem parar, pancadas em suas cabeças com tridentes ou porretes a fim de matar o peixe grande, cujo sangue é “vermelho e abundante”. Em Homero, quando os selvagens lestrígones emboscavam a frota de Ulisses, eles lanceam os tripulantes “como peixes, e levavam-nos embora para fazer deles um desagrável banquete”. Ésquilo inverteu a identificação do peixe com o pescador feita pela audiência, e, claro, não há lugar aqui para canibalismos. No entanto, não retirou o horror bem real da batalha naval. Os Persas foi, pela primeira vez, encenado em Atenas, em 472 a.C., apenas oito anos depois da Batalha de Salamina. Ésquilo lutara na batalha campal de Maratona, em 490 a.C., onde seu irmão tivera as mãos decepadas, quando se agarrava à popa de um navio persa abicado. O tragediógrafo pode muito bem ter combatido também em Salamina. A maioria de sua audiência certamente o fez2. Nas traduções e interpretações mais naturais dessa passagem de Ésquilo, os persas estão nadando. Desde o início, as culturas clássicas dão grande valor ao nadar. Ulisses foi um nadador maravilhoso. Horácio, tendo defendido a ponte, nadou pelo Tibre, ferido e todo de armadura. Ele, porém, foi um dos muitos romanos das primeiras épocas que eram fortes na água, assim como imaginados pelas gerações posteriores. Nadar tornou-se uma expressão de masculinidade. Era um paradoxo o fato de Alexandre, o Grande, não ter sido capaz de nadar. Perceber a natação como algo viril fez com que isso se tornasse um aspecto de como pensar sobre culturas diferentes. Enquanto, na realidade, outras culturas coetâneas também eram hábeis em nadar – mergulhadores de Tiro cortavam por entre os cabos de amarração dos navios de Alexandre, e os batavos da região do Reno eram extraordinários na água –, de

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Atum: Aesch. Pers. 424-6; Broadhead (1960), 126-7; Hall (1996), 139-40; Thompson (1947), 79-90 (citações em 80; 81); lestrígones, Od. 10.123-4. O irmão de Ésquilo: Hdt. 6.114.

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quando em vez, gregos e romanos gostavam de negar ao resto do mundo essa destreza, e afirmavam que essa habilidade masculina só se restringia a eles. Nem todas as culturas pré-industriais tinham o mesmo entusiasmo pela natação. Na armada britânica do século XVIII, muito poucos marujos sabiam nadar. Na melhor das proporções que se possa ter, a cada sete marinheiros, um deles era nadador. Se um navio se arrojasse à costa, era comum não encontrar nenhuma pessoa sequer que soubesse nadar, com uma corda, por entre a rebentação, embora, em um caso, um porco desempenhava esse papel. Enquanto a maioria de suas batalhas se travava nas proximidades das margens litorâneas, a armada britânica era uma frota de alto-mar, que passava um tempo bastante considerável bem longe da costa. Para os marinheiros dessa frota, só se poderia conceber a habilidade em nadar como algo que prolongaria inutilmente o sofrimento, tanto se eles caíssem no mar ou se o navio deles afundasse. Por outro lado, no mundo clássico, as frotas passavam muito mais tempo próximas à praia e quase sempre lutavam nos limites contíguos à costa. Em grande parte das batalhas, a praia não estava senão a uma pequena nadada de distância. Ao contrário do que se passava com a taifa britânica do século XVIII, para os marinheiros das frotas gregas e romanas, era por demais conveniente apreender a nadar3. As razões para as batalhas navais acontecerem, na Antiguidade clássica, apegadas à praia são mais bem entendidas sob três tópicos: inteligência naval, navegação, e os potenciais dos navios de guerra antigos. Em 1798, a frota francesa escapou do porto de Toulon, que estava sitiado. Nelson corretamente adivinhou que ela se dirigiria para o Egito. Os navios de guerra da época tinham mastros altos, a partir dos quais, em boas condições climáticas, poder-se-iam observar, em todas as direções, até vinte milhas de mar. A frota de Nelson tinha dispositivos de comando e de condução, além de o sistema de sinalização capaz de fazer com que uma “corrente” de barcos se formasse e varresse duzentas milhas de mar de uma vez. A despeito de tudo isso, Nelson fracassou na tentativa de encontrar os franceses no mar. Após ultrapassá-los, despercebido, no caminho em direção ao Egito, Nelson esquadrinhou o leste do Mediterrâneo, até lhe contarem que os franceses estavam a ponto de encontrarem-se ancorados na Baía de Abuquir. Não há evidências para sugerir que as frotas do mundo antigo tivessem tal sofisticação em dispositivos de comando e de controle ou de sinalização, que lhes permitisse ordenar qualquer coisa ao moldes da “corrente” de barcos feita por Nelson. Os mastros dos navios de 3

A respeito da natação nas culturas clássicas, ver Hall (1993)B, 44-80 (quem, no entanto, não discute essa passagem), e na armada britânica oitocentista, ver Rodger (1986), 53-4.

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guerra clássicos não eram altos. A amplitude de visão, em perfeitas condições, talvez estivesse em torno de doze milhas. Uma tropa poderia fazer-se mais difícil de ser localizada pelo inimigo, ao diminuir as vergas de seus mastros ou, mesmo, ao adotar camuflagem; no fim do Império Romano, embarcações de patrulha eram pintadas de azul, tinham velas e cordoalha tingidas de azul, além de sua tripulação vestir também uniformes azuis. Longe das proximidades da costa, na época clássica, era por demais improvável que frotas se encontrassem4. Uma interpretação equivocada, comum entre os estudantes do mundo antigo, é a de que frotas sempre margeavam a costa. De fato, elas estavam preparadas para – e, em certas rotas, tinham de – aventurar-se mar adentro. Embora, com frequência, o continente projetasse uma longa “sombra”. Vários fenômenos naturais, sobretudo o voo de alguns pássaros de hábitos terrestres e certas formações de nuvens, podiam claramente indicar em que direção estava a terra firme, mesmo se essa se encontrasse sob o horizonte. Distante das cercanias da costa, a navegação era um negócio bastante incerto. Os marujos da idade clássica, como todos os nautas anteriores à invencão oitocentista de um cronômetro acurado, não tinham meios de estabelecer acuradamente sua longitude, onde estavam na direção leste-oeste. Visto que o único instrumento de navegação usado de forma ampla era a sonda para descobrir a profundidade em águas rasas, encontrar a latitude, onde estavam no sentido norte-sul, era uma questão, nem um pouco confiável, de observar o sol e as estrelas a olho nu e de calcular a posição mediante bússolas e barquilhas. Não surpreende, pois, que as viagens através do altomar, exatamente como as que permaneciam nas regiões abeiradas à terra firme, tendiam a ser saltos entre conspícuos destinos terretres, principalmente, promontórios, ilhas e istmos. Todavia, enquanto, por um lado, eram uma dávida para a navegação, por outro, um risco. Em lugares como esses, em geral, havia tanto correntes quanto os ventos fortes, perigos naturais a que se acresciam outros de origem humana, tais como ações hostis. Do mesmo modo que, nesses locais, piratas ficavam à espreita de navios mercantes, frotas ficavam à espera de seus oponentes. Poder-se-iam combinar os dois perigos, se um almirante hábil conhecesse e conseguisse tirar vantagens das condições locais. No estreito de Salamina, Temístocles retardou seu ataque até que houvesse brisa, que, não raro, aparecia no fim da manhã, e que, mais densa, desorientou a frota persa. De modo semelhante, o ateniense Formião, na Primeira 4

Acerca de Nelson, Keegan (1988), 9-95, é um introdução acessível; especialmente as pp. 20-31, quanto à “visibilidade” das frotas. Nelson responsabilizou, pelo fracasso em encontrar os franceses no mar, antes da Baía de Abuquir, a falta de fragatas, o tipo de navio de guerra frequentemente usado na “corrente” de barcos; a esse respeito, ver Lewis (2001), 71. A questão da amplitude de visão das galés está adaptada a partir de Pryor (1995), 213. No tocante a vergas reduzidas, ver Plut. Luc. 3.3, e a camuflagem, Veg. 4.37.

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Batalha de Naupacto, no golfo de Coríntio, esperou aparecer a previsível brisa continental, que, com frequência, atingia a força máxima em torno do nascer do sol, e desconcertou a disposição da formação peloponesa antes de ordenar o assalto5. A terceira razão por que as batalhas navais antigas aconteciam apegadas à terra era o limitado alcance estratégico imposto às tropas pelo desenho dos navios de guerra. No mundo clássico, eles eram galeras de madeira. Eram longos, estreitos e apertados. Não foram desenhados com a função precípua de viajar em alto-mar, seja navegando à vela ou com remos, mas feito para marcha remada e para manobrar em águas calmas, durante uma batalha. As galeras, e especialmente as frotas de galeras, estavam ainda mais propensas a respeitar a habitual “temporada de navegação”, a partir do início de abril ao final de outubro, que os navios mercantes. Elas tinham de poder abicarem-se. Isso significou que seus cascos não se revestiam de metal. Por sua vez, também significou que não eram capazes de permanecer na água por longos períodos, sem ficarem pesadas, ingovernáveis, e potencialmente perigosas, dado que suas madeiras se encharcavam6. O local para armazenamento era extremamente limitado. O maior problema não era a comida. Uma frota pronta para partir de Atenas, no século V a.C., é imaginada por Aristófanes tendo a bordo grãos e vinhos, assim como alhos, cebolas e azeitonas (Os Acarnenses, 541-5). Água era o que tomava mais espaço. Numa reconstrução moderna de um navio de guerra atenienses, pediu-se que os remadores levassem a bordo um litro de água para cada hora de remada. Para uma jornada de dez horas de remada, a tripulação precisaria de cerca de uma tonelada e setecentos quilos de água. É possível que as galeras antigas não carregassem a quantidade de água necessária para mantê-las no mar por muito tempo7. Também o local da própria tripulação era limitado. Uma multidão de remadores era confinada numa área pequena. Quase não havia lugar algum para que os remadores comessem, bebessem, fizessem suas necessidades, se exercitassem, ou dormissem, afora o banco sem encosto de onde remavam. Não havia onde preparar comida quente. O fato de que, num navio de guerra ateniense, o mais baixo escalão dos remadores fosse conhecido por thalamioi, que se poderia entender não só como “homens no porão”, mas também “homens no dormitório”, pode referir-se ao uso do porão como um lugar para dormir, quando se remava o barco por turnos. Mas é possível que a interpretação de “homens no dormitório” fosse apenas 5

Sobre a natureza prática da navegação antiga, ver o agora exaustivo estudo de Morton (2001) (90-9 acerca de Themistócles e de Formião); também Rouge (1975), 11-23; e Pomey (1997), 18-57. No que diz respeito aos piratas na Antiguidade, o clássico moderno Ormerod (1924) foi incorporado por de Souza (1999). 6 Para a questão da segurança comprometida das galeras no tocante à eficiência de velocidade e de combate, cf. Guilmartin (1974), 71. Barcos “encharcados”: Thuc. 7.12. 7 Água e reconstrução moderna: Morrison, Coates, and Rankov (2000), 238.

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uma brincadeira, denotando, como veremos, a indolência, social e física, dos remadores que ficavam na parte mais baixa do barco. No navio de guerra que, em 427 a.C., correu sem parar, de Atenas até Mitilena, para evitar um massacre, os remadores comeram, beberam e dormiram sobre seus remos, uma vez que se remava por turnos. Nesse caso, tratou-se de uma circunstância de urgência, evocada por medidas excepcionais. A norma seria o contrário disso8. Mostra-se que essa consideração relativa à tripulação era um elemento crucial para limitar o tempo que uma galera do período clássico podia passar no mar, por meio da falta de tentativas de reabastecimento de navios de guerra no mar. Ao contrário da impressão moderna popular, e da prática real do Renascimento, a tripulação das galeras da Antiguidade não se constituía de escravos. Para ser preciso, em momentos de extrema necessidade, poder-se-iam forçar os escravos a esse serviço. Em luta um contra o outro, na guerra civil do final do período republicano de Roma, Otávio e Sexto Pompeu admitiram escravos para ampliar o contingente em suas frotas. Ter-se composto de oitenta por cento de escravos, fez da frota de Córcira, na Guerra do Peloponeso, uma excepcionalidade. A ideologia da reciprocidade entre a cidadania e o serviço militar, visto que era obrigação do cidadão servir ao exército, ou porque era o serviço militar que fundamentava a cidadania, fazia do emprego profuso de escravos nas frotas bélicas problemático. Contudo, deve-se dizer que essa ideologia talvez também tendesse a fazer com que nossas fontes literárias, todas escritas por membros da elite, minimizasse o número de escravos e de não-cidadãos que de fato foram utilizados. Uma frota bélica em que uma parte significativa dos remadores era de cidadãos não deveria ser posta dentro do “novo inferno” das galeras do Renascimento, de cujo fedor se afirmava ser evidente a meia milha em barlavento9. Frotas compostas por galeras tinham um campo de ação estratégico limitado. Enquanto se poderia esperar que viajassem algo em torno de cento e trinta milhas marítimas durante “um dia longo” sob remos, tendiam ou a abicarem ou a ficarem com a popa atracada à praia duas vezes por dia. Ao meio dia, a tripulação deveria preparar e comer o almoço, fazer alguns exercícios longe do barco, forragear, e pegar água. À noite, deveria igualmente dormir na praia. O relato de Xenofonte sobre a frota ateniense de Ifícrates circundando o Peloponeso mostra que tais procedimentos permaneciam como o modo normal de operar mesmo em 8

“Homens no porão/dormitório”: Strauss (2004), xvi. Incursão à Mitilena: Thuc. 3.49. Clássicos modernos sobre as galeras de guerra da época do Renascimento são Guilmartin (1974) e Pryor (1988). Boas introduções populares são Beeching (1982) e Konstam (2002). Hunt (1998) argumenta que o uso de escravos é, em geral, minimizado pelos historiadores gregos. Escravos nas frotas de Otávio/Sexto Pompeu, CD 48.49; Suet. Aug. 16, e Córcira, Thuc. 1.55. 9

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praias inimigas, desde que houvesse praias apropriadas em que a frota pudesse ir abicar distante dos centros populacionais e onde se tivesse uma boa vista. Apresenta-se Ifícrates como um almirante que ia além das normas. Se as condições climáticas fossem boas, não raro ele se fazia ao mar de novo após o jantar; velejava, se o vento lhe era favorável, caso contrário, remava por turnos. A ideia era sempre deixar tudo bem encaminhado, antes de as forças terrestres inimigas chegarem. Se não aparecesse nenhuma praia segura, era possível que as galeras navegassem, à noite, mar adentro, mas se tratava de uma experiência desconfortável e desalentadora, e, é claro, não haveria comida quente disponível. Se a necessidade impelisse, as frotas de galeras podiam dirigir-se através do mar aberto por dias seguidos. Em 310 a.C., a frota de Agátocles, tendo escapado a outra frota cartaginense que lhe fazia bloqueio em Siracura, passou seis dias e noites no mar, quando, partindo da Sicília, invadia a África. Geralmente, isso é considerado o limite do suportável. No entanto, deveria notar-se que a pequena frota de Díon, que constava de duas galeras equipadas com trinta remos cada e de três navios de transporte de tropas, levou trinta dias para navegar direto da ilha jônica de Zacinto até o Cabo Paquino, na extremidade sudeste da Sicília. Foi pega, então, por uma tempestade setentrional que a empurrou às Grandes Sirtes da costa africana. Um inesperado vento meridional permitiu-lhe, então, retroceder, em cinco dias, a Minoa, na Sicília10. A inabilidade das frotas de galeras da Antiguidade em levar a cabo um bloqueio a uma praia distante está esplendidamente ilustrada pelos eventos da Guerra Civil entre Júlio César e Pompeu, durante o inverno de 49-48 a.C. Os de Pompeu estavam determinados a evitar a todo custo que César atravessasse do porto italiano de Brundísio em direção à Grécia. Não obstante terem os pompeanos clara superioridade naval, ficaram esperando em suas bases, no lado leste do Adriático. Em 4 de janeiro, César fez-se a vela com sete legiões em navios de transporte de tropas, um exemplo de desdém à “temporada de navegação”, em caso de uma necessidade pungente. No dia seguinte, “avistaram César ao largo da costa (de Córcira), antes que qualquer informação de sua aproximação tivesse sido levada àquela área, e, já que os barcos não estavam prontos para navegar e os remadores dispersos, Bíbulo (o comandante do partido de Pompeu) não foi rápido o suficiente para escapulir. A tentativa da frota pompeana de bloquear César em sua nova base, no lado leste do Adriático, não deu certo. Como “não havia possibilidade de ... ancorar os barcos na terra, Bíbulo e seus homens ficaram em grandes dificuldades e experimentaram sérias deficiências de suprimentos necessários, a tal ponto que 10

“Dia longo”: Xen. Anab. 6.4.2. Ifícrates: Xen. Hell. 6.2.27-30. Agátocles: DS 20.6. “Limite do suportável”: e.g. Rankov (1996), 51. Dion: Plut. Dion 25.

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tiveram de ir buscar madeira e água, entre outras provisões, de bote, a partir de Córcira”. Certa vez, foram obrigados a coletar o orvalho proveniente dos toldos de seus barcos. Tão ruins eram a privação e o frio que Bíbulo adoeceu e morreu. César ficou esperando Marco Antônio trazer reforços. Para impedir isso, um almirante chamado Libão, partidário de Pompeu, cruzou o Adriático e apoderou-se de uma pequena ilha, oposta ao porto de Brundísio. Essa tentativa de bloqueio teve de ser abandonada, porque a ilha não tinha água, e a cavalaria de Antônio obstou a obtenção de água desde o continente. A possibilidade de uma ação efetiva de bloqueio com freqüência parece ter sido inacessível a uma frota clássica, mesmo se houvesse uma base terrestre bem provida de água, abastecida e segura ao alcance. Quando Alexandre sitiava a cidade de Tiro, seus habitantes tripularam os navios de guerra sem serem notados e fizeram uma surtida contra a parte da frota que bloqueava, a norte, o porto. A tentativa foi agendada para o horário de almoço, “quando a tripulação dos barcos gregos estava dispersa”. Embora uma resposta imediata da parte de Alexandre retomasse o controle da situação, inicialmente “o ataque surpresa dos tírios mostrou-se bem sucedido: alguns dos esquadrões do bloqueio, eles acharam-nos sem nenhum homem sequer a bordo; outros eram tripulados, em cima da hora, sob condições difíceis, com quem quer que estivesse disponível”.11 Uma anedota tirada dos relatos de viagem de Pausânias dá conta de duas possíveis interpretações equivocadas a respeito das atitudes dos antigos diante do mar. A primeira delas é a ideia de que havia uma diferença marcada no modo de pensar das culturas clássicas: os gregos “naturalmente” marítimos e os romanos sempre relutantes marinheiros. A segunda, que pode ser encorajada por uma leitura por demais livresca de certos dados, é a idéia de que o Mediterrâneo, em algum momento incerto da Antiguidade, ainda que visto como perigoso, perdeu seu mistério, tornando-se “conhecido” e conceitualmente dominado. Pausânias foi um grego da Ásia Menor que direcionou suas pesquisas para “todas as coisas gregas” sob o Império Romano do segundo século d.C. Um certo Êufemo de Cária contou a Pausânias de uma viagem da Ásia Menor a Roma. Seu barco foi deslocado pelo vento da rota bem direto para mar aberto, que ainda é devoluto. Ele me disse que havia muitas ilhas desertas e outras habitadas por selvagens”. Forçaram os marinheiros a entrarem nas Ilhas de Sátiro, onde “os nativos são muito barulhurentos e têm rabos, em seus traseiros, tão compridos quanto os de cavalos. Logo que notaram o barco, abalroaram-no sem dizerem uma palavra e tentaram arrebatar as mulheres. No fim, os marinheiros estavam tão amendontrados 11

Bloqueios: Caes. BC 3.6-30 (tr. J.F. Mitchell); Arr. Anab. 2.21-2 (tr. A. de Selincourt). Ineficácia geral: Adcock (1940), 43; van Wees (2004), 223.

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que jogaram na ilha uma mulher bárbara, que foi estuprada pelos sátiros, aproveitando-se não só das partes usuais, mas também de todo o corpo dela”. Para gregos e romanos, o profundo Mediterrâneo, para além do visível a partir da terra, permaneceu sempre uma desconhecida vastidão erma, paradoxalmente, ao mesmo tempo, vazia e, no entanto, cheia de ilhas inexploras, apinhadas de estupradores mitológicos. No mar, as regras normais tinham senão uma força tênue. Em alguns lugares, a água do mar perdia sua salinidade, noutros, ebulia. Abundava em monstros perigosos. Tantos se reuniam nos estreitos de Messina que seu fedor pairava, denso, no ar. Domínio do deus Posídon, o mar igualmente continha muitos outros seres divinos, entre os quais a mãe de Aquiles, Tétis. Tudo poderia acontecer no mar. Os homens poderiam navegar diretamente do reino de Posídon ao do Hades. Dentre os que o faziam, poucos conseguiram retornar como Ulisses12.

II

Podem-se ilustrar os dois tipos gerais de embarcações de alto-mar, do período clássico, a partir de uma bem conhecida pintura sobre um vaso ático de figuras negras, do século VI a.C., agora no Museu Britânico. Nessa figura, à esquerda está uma embarcação mercante. Um “navio redondo” de vau largo, é propelido, como de costume, por uma só vela. De sua pequena tripulação, pinta-se apenas o timoneiro. À direita está um “navio longo”: um navio de guerra. Esbelto e de pouca estatura, embora dotado de velas para poder viajar, para a guerra eram usados os remadores. Se se esperasse um combate com outros navios de guerra, o mastro deveria ser rebaixado, ou mesmo deixado na praia. A cena de um navio de guerra com dois andares de remos aparentemente pronto para atacar um navio mercante, que está, em essência, refletido no outro lado do vaso, não raro serve para representar a pirataria. A distinção entre navios mercantes “largos” e navios de guerra “compridos” parece recuar a Homero, no século VIII a.C. Ulisses construiu para si uma jangada nos moldes de um “cargueiro largo”, para escapar da ilha em que Calipso o havia detido para sexo e companhia. Ao passo que os heróis viajaram para saquear Tróia em suas galeras velozes. Esse último se mostra idêntico às galeras da arte contemporânea. Deveriam identificar-se com o que mais

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Pouca diferença nas atitudes grega e romana em relação ao mar: Garlan (1975), 130; Rouge (1981), 11-2. Mediterrâneo como amplamente “conhecido”: e.g. Horden, Purcell (2000), 126. Ilha dos Sátiros, mudanças na água e o cheiro dos monstros: Paus. 1.23.7; 8.7.2-3; 5.25.2-3 (tr. P. Levi, levemente adaptado).

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tarde se conheceram como Penteconte, galeras de guerra com cinqüenta remadores, cujas remaduras, vinte e cinco de cada lado, ou alternavam ou davam-se ao mesmo tempo. Frequentemente se duvida dessa identificação, e, por várias razões, menospreza-se a galera do século VIII como um mero navio de transporte de tropas. Não há batalhas navais nos poemas homéricos, e nada se diz explicitamente sobre galeras terem um aríete. Nenhum vaso com motivos geométricos mostra dois ou mais navios em combate. Finalmente, Tucídides, historiador do século V a.C., afirma que a primeira batalha marítima registrada ocorreu duzentos e sessenta anos antes do fim da Guerra do Peloponeso, i. e., cerca de 664 a.C. Todavia, na Odisseia, os litigantes que, noite após noite, ficaram tentando cruzar, à toa, o mar aberto através da ilha rochosa que haviam escolhido para emboscar a galera de Telêmaco, sem dúvida estavam decididos à luta barco a barco. Em seguida, vasos com motivos geométricos mostram navios de guerra ao lado de cadáveres boiando na água. Por fim, o conhecimeto que Tucídides tinha da história do século VIII, como veremos na seção V, subordinava-se a seus objetivos retóricos de uma avaliação altamente programática e enganosa do efeito do poder do mar na história13. A trirreme grega (em grego, trieres, em latim, triremis) é o navio de guerra mais conhecido da Antiguidade clássica. Em Strauss (2004), pl. 3, há uma foto de uma reconstrução moderna de uma trirreme, Olympias. O Olympias é um triunfo da arqueologia experimental. Dever-se-ia notar, no entanto, que é algo bem especulativo, uma vez que não se achou ainda nenhum vestígio de qualquer trirreme. Mesmo se aceitarmos a acuidade geral dessa reconstrução, como o fazem quase todos, salvo alguns poucos estudiosos heréticos, tem de reconhecer-se que o Olympias não é capaz de dar respostas definitivas a todas as questões sobre a trirreme clássica. A tripulação moderna é fisicamente diferente, e falta-lhe herdar as habilidades da antiga. O mais importante de tudo é que jamais se pode examinar os limites desse navio. Para descobrir isso, precisaria sujeitar o navio a um teste de destruição, e vem sendo dito que “não era parte do experimento ver ... quão desagradável talvez tenha sido o afogamento de uma tripulação ateniense”14.

13

Para algumas visões diferentes acerca dos navios do século oitavo/homérico, ver Casson (1971), 43-76; Basch (1987), 195-201; e Wallinga (1995), 37-44. Jangada de Ulisses, Od. 5.234-61. A mais antiga batalha naval, Thuc. 1.13. Emboscada feita pelos litigantes: Od. 4.773-86; 842-7; 16.345-70. Cadáveres na água pintados sobre vasos com motivos geométricos, Ahlberg (1971), 26-7, n. B 1-2; 36-7, n. B 12; cf. 32-7, n. B 7, e 11. 14 Sobre o Olympias, ver Morrison, Coates, e Rankov (2000) (as limitações do experimento, em 233-6; a citação, em 233). A aceitação geral da reconstrução: Strauss (2004), xiii-xviii. Uma voz herética estridente é Tilley (2004), cuja maior parte dos argumentos acha-se mais brevemente em Tilley (2000), 117-125.

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A primeira menção, na literatura, à trirreme aparece no poeta grego Hipônax, que floresceu na segunda metade do século VI a.C. Mas alguns têm defendido que sua invenção se deu cerca de um século antes, e seu local determinado variavelmente na cidade grega de Coríntio, no porto fenício de Sídon, ou no Egito. Seja quando ou onde tenha aparecido pela primeira vez, é certo que a trirreme dominou a batalha naval no Mediterrâneo, por, pelo menos, duzentos anos, a partir do fim do sexto até o termo do quarto século a.C.15 O Olympias é uma reconstrução de uma trirreme ateniense do quarto século a.C. As trirremes nem sempre foram exatamente iguais. Em Salamina, os conveses e as popas das trirremes da frota persa, que incluia navios provenientes das poleis gregas, ficavam bem acima do nível da água que os da frota grega. Posteriormente, em 467 a.C., temos notícias de um almirante ateniense, Címon, tornando maior as trirremes sob seu comando, ampliando a envergadura do convés16. Uma trirreme como o Olympias é uma galera com um aríete na proa. Seu capitão, seu trierarca, era um rico cidadão ateniense. Em combate, propeliam-na cento e setenta remadores, movendo os remos em ritmo de três remaduras, e comandava-a um timoneiro (o mais imporante tripulante dentre os desesseis do convés, grosso modo equivalente a um mestre dos tempos modernos), operando dois remos direcionais em cada lado da popa. Transportava quatorze marinheiros: dez hoplitas e quatro arqueiros17. A partir, pelo menos, do tempo da Guerra da Peloponeso (431-404 a.C.), havia um modo de pensar a batalha entre galeras clássicas que variava do “leve” ao “pesado”. O Olympias é um exemplo da escola “leve”. Trirremes desse tipo não transportavam senão uns poucos marinheiros, visto que não se concentravam em abordar. Ao contrário, focavam a batalha de manobra, esperando abalroar os navios inimigos. Havia dois objetivos. O primeiro deles era abalroar o navio inimigo pelo lado ou pela ré, daí, ciando, desprender o aríete, deixando o inimigo com o casco furado, o que poderia levar sua embarcação a ser invadida pela água. O segundo era correr o aríete através da lateral do navio inimigo. Tendo-se recolhido os remos dessa lateral do navio atacante pouco antes do impacto, guinava-se os remos inimigos que estavam à mostra, deixando, pelo menos por um tempo, seu navio à deriva, e, assim, transformando-o num alvo perfeito para a tática prévia de furá-lo por meio de abalroamento pela lateral ou pela ré. 15

Primeiro trirreme na literatura: Hipponax, fr.45 Diehl. Inventado no século VII a.C., em Sídon ou Coríntio: Morrison, Coates e Rankov (2000), 25-41; século VI a.C., no Egito: Wallinga (1993); Id. (1995), 45-8. 16 A respeito dos tipos de trireme: Casson (1971), 92-6; Morrison, Coates, Rankov (2000), 150-7; 276-9. Trirremes “persas” altos, Plut. Them. 14.2. Alterações de Címon, Plut. Cim. 12.2; cf. Thuc. 1.14. 17 Tripulação de um trirreme em estilo Olympias, Morrison, Coates, Rankov (2000), 107-126.

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Tem havido muita discussão entre os estudiosos sobre os dois termos gregos relativos às táticas empregadas por frotas habilidosas. Literalmente, diekplous significa “transvelejar”, e periplous, “circunvelejar”. A interpretação tradicional que vem sendo dada é a de manobras de frotas ou esquadrãos que operam em linha à ré. Visualiza-se diekplous como um “cruzar o T”, atribuído ao comandante Nelson, ao passo que periplous é uma simples tentativa de flanquear o inimigo. Recentemente, essa interpretação tradicional está sob repetidos ataques. Os revisionistas vêem tanto diekplous quanto periplous como manobras confinadas a barcos individuais. Em resposta, os adeptos da visão tradicional vêm reformulando seus argumentos. Pode ser que aqui, como nas discussões sobre a falange de hoplitas, o desejo dos estudiosos por um sentido claro e único esteja em desacordo com a realidade confusa do uso da linguagem feito pelos antigos. É possível que o sentido de periplous e de diekplous pudesse, a um só tempo, tratar de unidades maiores ou de navios individuais, e vice-versa, dependendo do contexto. Barcos da escola “pesada” transportavam grandes contingentes de marinheiros, com frequência, numa trirreme, em torno de quarenta, e concentrava-se em grudar e, então, abordar. Tendendo a desconsiderar a importância de manobrar, a linha “pesada” de pensamento era especialmente apropriada a tripulações mal treinadas. Se se confrontasse com uma frota da escola “leve” praticamente em alto mar, talvez a frota da escola “pesada” formasse um círculo (kuklos) com os aríetes apontados para o inimigo, a fim de evitar um periplous, e possivelmente com alguns barcos, dentro do círculo, para evitar um diekplous. Tucídides, ao descrever a Batalha de Síbota, em 433 a.C., chamou a tática “pesada” de não-científica e obsoleta: “mais parecida com uma batalha terrestre que com um combate naval” (1.49). Mas é importante notar que absolutamnete todas as táticas “leves” se restringiam, sobretudo, aos atenienses dos séculos V e IV a.C. e aos ródios dos dois séculos subsequentes. As táticas “pesadas” eram a norma por toda a Antiguidade e além dela. No fim do nosso período, em 655 d.C., próximo da costa da Síria, na Batalha dos Mastros, entre bizantinos e árabes islâmicos, os últimos chegaram à vitória, ao formarem uma corrente de navios18. Da mesma forma como nas batalhas terrestres, o poder, a riqueza, e as ambições das grandes dinastias do mundo grego do século IV a.C. também encorajavam inovações, ao mesmo tempo, teóricas e práticas nas batalhas navais. Enéas, o Tático, escreveu o primeiro 18

Táticas “leves”/“pesadas”, muito brevemente ver Sidebottom (2004), 95. Diekplous/periplous como manobras individuais Lazenby (1987), 169-77; Whitehead (1987), 178-85; e Holladay (1988), 149-51; e como manobras de frotas/esquadrões, Morrison, and Williams (1968), 313-25; Morrison (1991), 197-200; Morrison, Coates, and Rankov (2000), 42-3.

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tratado conhecido “Sobre Táticas Navais”, a título de obras sistemáticas de literatura para tentar dominar a natureza caótica de uma batalha. O desenho dos navios de guerra também mudava, porquanto, com o passar dos tempos, tornaram-se maiores e mais custosos. Creditase a Dionísio I, tirano de Siracusa entre 406 e 367 a.C., a construção das primeiras galeras chamadas de “quíntuplas” (pentereis, em grego), mais comumente nomeada, hoje, de “quinquirremes”, a partir do latim quinqueremes. Seja por Dionísio ou por seu filho, Dionísio II (governante entre 376 e 344 a.C.), foi dado o passo seguinte e ordenada a construção das “sêxtuplas”. Os irrealizados planos de conquista de Alexandre, o Grande, requeriam navios grandes. Ele fez com que as “quádruplas”, a que é mais comum atualmente dar o nome de “quadrirremes” (tetrereis), e as “quíntuplas” fossem transportadas, por terra, da costa síria em direção à Babilônia, em lugar da Arábia e da África, e “séptuplas” foram planejadas para a conquista de Cartago. Depois de sua morte, em 323 a.C., os sucessores de Alexandre entregaram-se a uma corrida por armas navais, dado que sempre se construíam barcos maiores. A frota de Ptolomeu II Filadelfo do Egito, 283-246 a.C., não apenas continha “quádruplas”, “quíntuplas”, “sêxtuplas” e “séptuplas”, mas também barcos experimentais que chegavam até duas “tríntuplas”. Durante a Primeria Guerra Púnica (264-241 a.C.), os romanos, sempre prestes a adotarem equipamentos militares aparentemente úteis vindos de seus inimigos, por duas vezes criaram uma frota principal de batalha por meio da cópia e, então, da produção em massa de dois quinquirremes cartagineses abicados. Se bem que galeras menores continuassem a ser usadas, especialmente na cidade-Estado de Rodes, a tendência para barcos grandes continou até as guerras civis que demoliram a República Romana. Em Áccio, em 31 a.C., a frota de Otávio continha “quíntuplas” e “sêxtuplas”, ao passo que a de Marco Antônio empregou de “quíntuplas” até “décuplas” (o maior tipo, em batalha, de que se tem notícia). Há muita incerteza a respeito de como esses navios de guerra imensos funcionavam. A ideia de que, assim como uma trirreme tinha três níveis de remadores, uma quadrirreme tinha quatro, uma quinquirreme, cinco, e assim por diante, elevando-se cada vez mais acima da água, mostra-se fisicamente impossível. O mesmo não se pode dizer da noção de que, mais de acordo com muitas galeras renascentistas, eram equipadas com um nível de remos, relacionando-se o número ao de homens que controlava cada remo. A reconstrução mais comumente aceita na atualidade é a de que os barcos estavam equipados com remos, seja em três níveis, como uma trirreme, seja, às vezes, em dois, mas com um número variável de

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homens para cada remo. Pode-se, então, imaginar uma quinquirreme como se fosse uma trirreme imensa, mas com dois homens em cada um dos dois primeiros níveis de remos19. Há uma pintura de dois navios de guerra que data do século primeiro d.C., e foi achada em Pompéia20. Parte de um afresco localizado no Templo da deusa egipcía Ísis, vale-se de imagens helenísticas anteriores. O cadaste do talha-mar do navio à esquerda curva para frente, no que se diz ser o estilo cartaginense, ao passo que o do navio do lado direito curva para trás, no assim chamado estilo romano. Os navios podem, então, representar explicitamente o Mediterrâneo como um todo, no período helenístico. O ponto essencial a destacar-se aqui é o contigente grande de marinheiros em cada barco. Muito provavelmente estão pintados fora de escala, uma vez que, não raro, na arte clássica, os personagens nos conveses de navios de guerra da Antiguidade são desproporcionais. Armados com uma sobejidão de lanças e escudos, amontoam-se, prontos para uma abordagem. Apesar de nenhum navio renuciar totalmente ao aríete, o objetivo primeiro das grandes galeras do período helenístico era lutar lado a lado e abordar seus oponentes. Para tal fim, as quinquirremes, munidas com trezentos remadores, transportavam não mais que cento e vinte marinheiros. Torres, artilharia, e, no caso romano, durante a Primeira Guerra Púnica, uma industriosa ponte de abordagem, o Corvo (corvus), mais tarde limitou a manobrabilidade desses já bem pouco maneáveis barcos. Depois de Áccio, exatamente como o fizera com o exército, o imperador Augusto criou uma frota profissional. As bases principais ficavam na Itália, no Cabo Miseno e em Ravena. Unidades regulares ficavam estacionadas na região leste do Mediterrâneo, em Alexandria, no Egito, e na Síria, no Mar Negro, em Trebizonda, ao longo dos rios Reno e Danúbio, e na Britânia. Na ausência de uma possível hostilidade naval, as operações da frota giravam em torno de funções comboieiras e de patrulhas anti-piratas. As mudanças nas atividades da frota levaram a que seus navios de guerra se tornassem menores. Enquanto as naus capitânia continuavam a ser trirremes, o navio de guerra padrão tornou-se o liburno, um barco leve com duas bancadas de remadores, nomeado graças a uma embarcação pirata do Adriático21. Durante uma guerra civil romana, na Batalha do Helesponto, em 323 d.C., foi a última vez que se ouviu falar de trirremes, e, assim, do sistema clássico de remadores em dois ou três níveis com uma forqueta de brandal, quando duzentas delas foram derrotadas por oitentas 19

A mais antiga das Tactica conhecida sobre a questão naval, Aen Tact. 40.8. O trabalho padrão a respeito dos navios de guerra do período helenístico e da República Romana é Morrison, Coates (1996). ver, ademais, Casson (1971), 97-140; e, brevemente, Morrison (1995), 66-77. 20 Essa pintura de Pompeia está ilustrada e discutida por Morrison, Coates (1996), 244-5, no.42. Eles, no entanto, assumem que tamanho dos marinheiros é proporcional ao dos navios, que consideram ser trihemiolias, navios de guerra menores. 21 Boas introduções às frotas da época do Principado são Rankov (1995), 78-85; e Webster (1985), 157-66; ver também Kienast (1966); Starr (1960); e as obra citadas na nota 1. Sobre frotas e Britânia, Mason (????).

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galeras com uma trintena de remos. Em meados do século V d.C., o método de construção de trirremes tinha “sido esquecido havia muitos anos”. No século V d.C., durante o desarranjo causado pela queda da metade ocidental do império, frotas regulares desapareceram. Quando, no século VI d.C., os bizantinos procuraram reviver essa instituição, empregou-se um novo tipo de navio de guerra. O Dromon (“corredor”), uma galera dotada de dois níveis de remos, foi inventado no século quinto. Seu traçado mostra o triunfo último das táticas “pesadas” sobre as “leves”, da abordagem sobre o abalroamento. Os dromons abandonaram o encaixe do tipo espiga e mecha que ajudara as galeras clássicas a resistir ao choque de um abalroamento. Supria-se o nível de cima dos remadores com armas e armaduras. Em meios do século VII, o aríete moveu-se para cima, com o fim de tornar-se um aguilhão sobre a linha da água. Tal abalroamento deliberado, como permaneceu então, visava não a perfurar e inundar o inimigo, mas a emborcá-lo, movendo-o de um lado para o outro22.

III

Qualquer moralista antigo digno desse nome sabia que as coisas há muito tempo se haviam esbarrondado, que a era de ouro, quando os deuses abertamente viviam entre os homens, havia sido substituída por uma era de ferro, ou até mesmo de ferrugem. Isso era válido em todas as áreas, entre as quais a dos navios. Assim como Atenas enfeitou a proa com uma viga cortada do carvalho oracular de Zeus, em Dodona, o Agro foi capaz de falar a Jasão e aos Argonautas. Não obstante a familiaridade enfraquecer-se, na Odisseia, os feácios eram mais próximos dos deuses que dos outros homens. Entretanto, não remavam, não pilotavam ou navegavam, “pois não há timoneiro entre os feácios, nem um remo de governo, tal como têm os outros barcos, mas os próprios navios entendem os pensamentos e propósitos dos homens”23.

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Últimas notícias de uma trirreme, Zos. 2.22.2; 23.3-4; e técnica esquecida Ib. 5.20.3-4.Vegêcio vê frotas regulares como algo do passado, 4.31. Introduções às frotas bélicas bizântina e islâmica, Hocker (1995), 86-100; Pryor (1995), 101-8. Mais sobre o islã, ver Fahmy (1966). A respeito de Bizâncio Pryor (2002), 39-58; e Ib. (2003), 83-104 são úteis, mesmo se concentrados num período posterior. Pryor, Jeffreys (desde 2003?)? 23 Sobre a “Era de Ouro”, ver Lovejoy, Boas (1935). A afirmação clássica está em Hes. Op. 109-26. A respeito de “ferro e ferrugem”, ver CD 72.36.4. A história de Agro era uma épica antiga, Hom. Od. 12.69-70. Está esplendidamente recontada por Graves (1960), vol.2, 215-50, mas seu comentário, ainda influente no pensamento popular, era, na época em que escrevia, na melhor das hipóteses, excêntrico, e, agora, não é mais que uma curiosidade histórica. Acerca de feácios, deuses, remar e da citação, Hom. Od. 7.199-206; 13.76-7; 8.557-9.

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Mesmo na era de ferro e de ferrugem, os barcos não eram simples máquinas, mas mantinham uma personalidade. Tinham olhos. Esses eram pintados ou tauxiados sobre a proa. Ésquilo chama as trirremes “barcos de olhos negros”. Tinham ouvidos. Esses eram as vigas grossas que protuberavam em cada lateral do barco, logo atrás da proa. Tinham bocas. Quando os navios de guerra iam à abalroada, os gregos chamavam-no “boca a boca”. Todo barco tinha um nome. Quase todos eram femininos. No mais das vezes eram nomeados em homenagem a uma deusa. O nome do barco e um símbolo apropriado deveriam ficar gravados sobre uma placa, próximo à proa. No pensamento pagão, os deuses via de regra habitavam e podiam, se assim o quisessem, animar suas estátuas. Em casos excepcionais, mas por demais patentes, um deus poderia tornar seu desejo conhecido, animando um navio. No oráculo de Siuá, no deserto líbio, famoso graças a uma visita de Alexandre, o Grande, Zeus Amão deu suas respostas com acenos que mostravam sacerdotes carregando um bote: se guinasse para frente, o deus diria “sim”, se, para trás, “não”, e se ficasse zangado, deveriam ziguezaguear de cá para lá24. Em se imaginando que um barco fosse capaz de ter sentimentos, quais poderiam ser os riscos que esperaria ao ir para batalha? Quiçá seu aríete se danificasse, até mesmo fosse completamente arrancado, como o foram os dos navios fócios, na Batalha de Alália. Talvez emborcasse, conforme diz Ésquilo ter acontecido, em Salamina, a alguns dos navios persas. Se o atingissem ao nível da água ou sob ela, poderia fazer-se um buraco, não muito maior que trinta centímetros quadrados, nas madeiras do navio. Provavelmente o barco se inundaria e ficaria imóvel. Mas era muito improvável que soçobrasse, porque as galeras tinham uma flutuabilidade concreta. Se estivesse no lado vencedor, era possível que consertassem o navio danificado. Se do lado perdedor, era ainda mais provável que o reformassem e colocassem de volta ao serviço. Navios de guerra capturados poderiam ser uma fonte especial de orgulho para uma frota, como foi o caso da “setirreme” capturada do rei Pirro para os cartaginenses. Mesmo em tais circunstâncias, poderiam mutilar o barco; cortavam fora seu aríete e/ou cadaste de popa para decorar algum monumento à vitória, queimavam o resto. A tribuna do orador no Fórum de Roma recebia seu nome, os rostra, dos rostros dos barcos capturados da cidade de Ancio, em 338 a.C. A arqueologia descobriu as aberturas dentro das quais se encaixavam os aríetes das embarcações de Marco Antônio, no monumento erguido por Otávio no lugar do campo militar relativo à campanha de Áccio. Alternativamente, talvez se

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Olhos do navio, Strauss (2004), 179; Aesch. Supp. 716-8; orelhas, Morrison, Coates, Rankov (2000), 141; boca, Strauss (2004), 28; nomes, Casson (1971), 439-41; Strauss (2004), 178. Deuses e estátuas, MacMullen (1981), 59-60; Zeus Amão, Lane Fox (1973), 208-9.

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mantivesse o barco inteiro, como uma oferenda aos deuses pelas grandes glórias do vencedor. A “hexadecirreme” que pertencera a Perseu da Macedônia desfilou pelas ruas num triunfo romano. Depois de Salamina, os gregos consagraram três galeras persas inteiras; duas a Posídon, no Cabo Súnio e no Istmo, e uma a Ajax, em Salamina mesmo25.

IV

Para os homens, a experiência de batalha era, em vários sentidos, religiosa. Ao longo de toda a história clássica, o espaço de tempo em que batalha transcorria era sagrado, iniciado e terminado por ritos religiosos. Antes das batalhas navais gregas, juntou-se ao costume pagão de sacrífico animal em cerimônias pré-batalhas, sphagia, o ritual tradicional concernente ao início de uma jornada. Quando a malfadada expedição deixou Atenas em direção à Sicília, em 415 a.C., as preces costumeiras não foram feitas por cada barco separadamente, mas por todos juntos, seguindo as palavras de um arauto, e “todo o exército fez verter por completo o vinho dentro de vasos, e comandantes e tripulantes faziam suas libações com taças de ouro e de prata”. No oceano além da Índia, Alexandre foi muito mais longe na tentativa de ganhar o salvo-conduto de Posídon, sacrificando touros e jogando seus corpos ao mar, então, vertendo libações desde vasos de ouros, que de mesmo modo eram lançadas à água. Em vez de tentarem apreender o desejo dos deuses por meio do exame das vísceras de um animal sacrificado, algo provavelmente nada fácil de se fazer num convés lotado de tripulantes dentro de um navio de guerra em vias de preparar-se para a ação, os romanos atentavam para o comportamento de pintinhos sagrados que eram mantindos engaiolados no navio capitânia. Aprendemos mais sobre esse ritual a partir de um caso notório, apesar de terem dito que era zombaria. Antes da Batalha de Drépano, quando os pintinhos teriam deixado de comer a ração a eles ofertada, o que indicaria a disaprovação da parte dos deuses, Públio Cláudio Pulcher, almirante romano, arremessou a gaiola dos pássaros ao mar, com as seguintes palavras: “se não querem comer, que bebam”. É bem possível que se tenha inventado essa história – talvez

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Aríetes retorcidos, Hdt. 1.166. Navios emborcados, Aesch. Pers. 421-2. Perfurados, Strauss (2004), 202, que estima uns trinta centímetros quadrados para um aríete de uma trirreme, aríetes eram ainda maiores em navios de guerra maiores, e. g. o “aríete Athlit”, Casson, and Steffy (1991). Flutuabilidade concreta, Morrison, Coates, Rankov (2000), 66-7. “Heptirreme” de Pirro, Polyb. 1.25. Rostra, OCD, 3rd. ed., s.v. rostra. Monumento a Áccio, ilustração em Hocker (1995), 86; discussão em Murray, and Petsas (1989), 147-???. Triunfo, Morrison (1995), 77. Dedicatórias, Strauss (2004), 289.

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seja sintomático o fato de que o sobrenome do colega de Cláudio Pulcher fosse Pullus (“pintinho”) – para justificar uma derrota cabal dos romanos26. O embarque era um momento para augúrios e portentos. Em 357 a.C., quando a expedição de Díon a Siracusa estava prestes a partir, o adivinho Miltas pôde dar aos tripulantes uma interpretação positiva de um eclipse da lua, mas, ao comandante e a seus amigos, disse reservadamente que o enxame de abelhas que se formara sobre a popa dos navios indicava um sucesso de início, mas um fracasso no final. Outros sinais eram mais fáceis de interpretar. Uma coruja passou voando em direção à terra, vindo da direita, do lado auspicioso, na ocasião em que se enxarciava o navio de Temístocles, na noite anterior à Batalha de Salâmina. O espartano Lisandro construiu duas estrelas de ouro em Delfos com o intuito de agradecer a aparição dos divinos gêmeos, Castor e Pólux, como estrelas cintilantes em seus lemes, quando partiu para a vitória na Batalha de Egospótamo. Na manhã do dia da Batalha de Áccio, Otávio encontrou sem querer um sujeito chamado “Fortunato”, que guiava um asno de nome “Conquistador”27. Numa batalha naval, como numa terrestre, a membrana que ligava os seres humanos aos mundos divinos estava sujeita a romper-se. Havia um embate de epifanias nos conflitos importantes. Creditaram-se à Batalha de Salamina pelo menos quatro delas. Um fantasma em forma de mulher falou aos gregos com voz altíssona: “por quanto mais tempo haveis de ciar?”. Viu-se uma luz brilhante na direção de Elêusis, e ouviu-se um barulho forte, como se os mistérios religiosos estivessem sendo celebrados lá. Então, uma nuvem elevou-se de lá, vagueou através dos estreitos e desceu sobre as trirremes. Viram as sombras dos heróis, os filhos de Éaco, cujas estátuas haviam sido levadas da sua nativa Egina para Salamina, daremse as mãos para proteger os navios gregos. Cicreu, o herói-guardião de Salamina, apareceu entre os barcos atenienses na forma de serpente. É impossível dizer qual dessas histórias, se alguma delas, são invenções tardias, mas quando as ignoramos ou, na melhor das hipóteses, tentamos racionalizá-las (“nuvens? estrela d’alva? descargas elétricas?”), nossas mentes não podem ir além da empatia com os antigos. Era na emoção itensificada de uma batalha que especialmente os participantes procuravam aos deuses, pois sabiam que provalmente apenas naqueles determinados momentos os deuses poderiam mostrar-se. Numa batalha naval, até mesmo mais que numa terrestre, a maioria tinham de ter fé em qualquer epifania. Numa 26

Ritos pré-batalhas e inícios de jornadas, Strauss (2004), 180-1; Thuc. 6.32; Arr. 6.20. Frangos sagrados, Walbank (1957), 113-4 (com todas as referências); Wiseman (1979), 90-2. Panoramos breves sobre religião e mar incluem: Ruge (1981), 196-200; Pomey (1997), 111-3; Horden, Purcell (2000), 438-45; num capítulo acerca de religião e meio ambiente em geral, 401-60. 27 Portentos, Plut. Dion 24; Them. 12; Ant. 65.

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trirreme com duzentos tripulantes, cento e setenta desses eram remadores. Debaixo dos conveses ou atrás dos anteparos, é certo que oitenta e cinco por cento da frota não tinha condição alguma de ver quaisquer manifestações divinas28. Antes de uma batalha naval, o discurso habitual do comandante poderia ser proferido na praia, conforme foi o caso de Temístocles, em Salamina, que apenas se dirigiu aos marinheiros. Depois do embarque, podia-se levar o comandante ao redor da frota, ora num navio de guerra, como o fez Otávio na altura de Naxos, na Sícilia, ora num pequeno bote, opção adotada por Marco Antônio em Áccio29. Era normal as galeras ancorarem-se com a popa direcionada para a praia. A tribulação embarcava por meio de duas escadas, postas em cada um dos lados da popa. É forçoso assumirmos que, para cada remador, havia um lugar determinado nos bancos de remoagem, e a tripulação embarcava por partes, seja pelo centro, pela proa e pela popa, seja por níveis. Pode-se lotar sem pressa a trirreme reconstruída, Olympias, em dez a quinze minutos. Numa ocasião, a tripulação, “acotovelando-se”, ocupou seus lugares em apenas um minuto e meio. Para galeras maiores, devia-se levar mais tempo30. O trabalho em conjunto era a chave para as batalhas de galeras. Há um modelo do fluxo de informação e de ordens necessárias para que uma trirreme operasse. O comandante de proa tem a melhor visão da batalha. Ele precisa dar informações sobre os alvos e perigos potenciais tanto ao timoneiro quanto ao capitão que estão posicionados na popa do navio. O timoneiro é um profissional, suas observações são essenciais para que o capitão, que, na Antiguidade, com frequência é um membro da elite e não necessariamente um homem do mar experiente, tome decisões táticas. As ordens, então, fluem do capitão para o timoneiro, deste para o mestre de remos, situado a meia-nau para que os remadores fácilmente o escutem, e, por fim, desse último para os três níveis de remadores31. Nas galeras da Antiguidade clássica, as hierarquias eram rígidas, mesmo numa trirreme oriunda da democracia radical de Atenas do século quarto a.C. No topo estava o capitão, o trierarca. Era um membro da elite ateniense, escolhido não por suas habilidades marítimas, mas por sua riqueza; como veremos na seção V, seus serviços eram uma espécie de imposto sobre a riqueza. Na sequência vinham os marinheiros. Os dez lancadores de dardos eram da próspera classe dos hoplitas. É incerto o modo como deveríamos caracterizar os quatro

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Epifanias em Salamina, Hdt. 8.84; Plut. Them. 15; Paus. 1.36.1; Strauss (2004), 204-6. Discursos pré-batalhas: Hdt. 8.83; App. BC 5.111; Plut. Ant. 65. 30 Embarque: Morrison, Coates, and Rankov (2000), 236-7; Strauss (2004), 156-7. 31 Fluxão de informações/ordens: Morrison, Coates, and Rankov (2000), 248-56; van Wees (2004), 228. 29

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arqueiros. Quiçá estivessem no mesmo nível dos dezesseis tripulantes do convés; cidadãos atenienses que não eram da elite, mas social e fisicamente acima dos remadores. De tempos em tempos, em particular, numa emergência, os membros da elite tinham o poderio de tomar as rédeas dos remos. Na República (566d-e) de Platão, representam-se os pobres como desdenhosos dos limites territoriais e ricos opulentos servindo ao lado deles tanto no exército quanto na frota de guerra. Mas uma frota de trirremes, ao contrário de um exército baseado em hoplitas, não podia restringir-se aos bem-afortunados. Em 483 a.C., os atenienses descobriram, em suas minas de Laurião, uma carga rica em prata. O perigo persa sendo evidente, Temístocles persuadiu os cidadãos a usarem o dinheiro para construir uma frota de duzentas trirremes, em vez de distribui-lo entre todos. Só os novos barcos demandavam quarenta mil homens. Necessariamente os cidadãos atenienses pobres, os thetes, ocupavam os bancos de remar. Na época da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), se não antes, teve de ser ainda mais ampliado. Estrangeiros residentes em Atenas (metecos), escravos domésticos e mercenários forasteiros juntavam-se aos thetes nos bancos. É mais provável que houvesse um elemento social relativo à disposição física dos remadores numa trirreme. Os do primeiro nível, os thranites, eram considerados os mais importantes. Se um barco tivesse homens suficientes apenas para ocupar um nível de remos, aqueles seriam os escolhidos. Eles, ademais, desfrutavam de uma vista e de uma ventilação um tanto melhores que as dos níveis inferiores. Embora não se devesse imaginar que em algum momento isso se tenha tornado um sistema rígido, é provável que os cidadãos e os mercenários forasteiros tentassem monopolizar os lugares entre os thranites, sendo os metecos empurrados para os zygotes, os escravos, para os thalamians32. A frota ateniense fazia as vezes de um instrumento extremamente limitado de promoção social. Um cidadão pobre, ou um meteco (talvez mesmo extraordinariamente um escravo) que tivesse recebido a cidadania, poderia galgar seu caminho no barco graças a suas habilidades: através dos níveis de remos, dentre os thalamianos até os zygotes, daí aos thranites, em seguida, a promoção a comandante de proa, e, por fim, o mais longe que poderia alcançar a despeito da riqueza, a função de timoneiro33. A massa dos marinheiros sempre se achou. Assim, ao menos, pensava a elite. Vários escritores da elite, entre os quais, Aristóteles, comentaram acerca do modo pelo qual servir na frota dera poderes aos atenienses pobres e encorajara a democracia radical. Esses autores estavam longe de considerar isso positivo. Qualquer membro da elite que refletisse sobre 32 33

Tripulações: Morrison, Coates, and Rankov (2000), 107-26; Casson (1971), 107-26. Promoção social, cf. van Wees (2004), 230-1.

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justiça se daria conta de que a aparente equidade da democracia era profundamente desigual: na polis, nem todos tinham o mesmo cacife, então, como a tornar igualitária a ponto de permitir que todos tenham os mesmos direitos? A ligação entre a frota ateniense e a democracia é amiúde questionada por estudiosos modernos, chamando a atenção para os estrangeiros, quer os residentes, quer os mercenários, e para os escravos que serviam nos bancos, ao lado dos cidadãos atenienses pobres. Porém, as dúvidas modernas parecem desnecessárias (será que suas origens derivam da generalizada “desmilitarização da história clássica”, praticada por estudiosos modernos?). Não sabemos quanto tempo antes da Guerra do Peloponeso os não-cidadãos começaram a servir na frota: a democracia radical surgiu em torno de 462 a.C., até 431 a.C., a Guerra do Peloponeso não havia começado. Seja qual for o caso em que haja pessoas de fora servindo, uma unidade não necessariamente precisa mudar a atitude de seus membros. Unidades do exército alemão que serviam no front leste, na Segunda Guerra, não se viam em situação diferente por ter, no meio deles, grandes contingentes de “voluntários” outrora soviéticos, os Hilfswillige (abreviadamente Hiwis). No mundo antigo, ter uma frota grande não necessariamente terminava em democracia – a polis naval de Rodes permaneceu oligárquica –, mas é preciso considerá-lo um fator que contribui para ascensão da democracia ateniense. Pode ver-se a “Revolução das Trirreme” de Atenas como o reverso da mais geral “Revolução dos Hoplitas”. Enquanto se introduziram os hoplitas por razões sociais e políticas, donde os desdobramentos militares, com as trirremes, a direção foi completamente outra34. Havia grande diferença na experiência de batalha sobre e sob o convés. Uma fotografia do interior da Olympias35 mostra exatamente quão apertados ficavam os remadores. O mundo sob o convés, no interior das paredes de madeira, era quente, suado e extenuante. Conforme imaginou Virgílio, “sua respiração acelerava-se, peitos inchavam, bocas secavam e o suor decantava seus corpos no rio”. Na Olympias, grande parte do suor escorria pingando até os mais baixos níveis de remadores, “tornado a vida deles desagradável em demasia”, penetrando na quilha do navio. Havia problemas físicos que variavam entre os levemente inconvenientes aos extremamente dolorosos: cavacos e bundas doloridas, “afogamento do remo” e dentes arrebentados36.

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Ligação frota/democracia: questionada por van Wees (2004), 230-1; cf. Osborne (1996), 292-314; defendida por Strauss (1996), 313-25. Exércico alemão: Beevor (1998), 184-6. 35 A foto que geralmente se reproduz, e.g. Morrison, Coates, and Rankov (2000), 214; van Wees (2004), pl. XXIV. 36 Esforço: Virgil, Aen. 5.199-201. Suor: Morrison, Coates, Rankov (2000), 238. Bundas doloridas: Aristoph., Os cavaleiros 784-5; 1366-8; As rãs 236. Dentes quebrados: Timoth. Pers. 100-4.

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Era um estranho mundo de sensações. A vista era de uma limitação extrema. Numa trirreme, os dois terços inferiores de remadores jamais conseguiam ver muita coisa fora do barco. Em batalha, erigiam-se telas de proteção, de pelo de cavalo, que reduziam o campo de visão do terço superior, o dos thranites. A vista era ainda mais dificultada numa galera maior, totalmente toldada, como uma quinquerreme. É possível que, em grande parte do tempo, a maioria absoluta dos remadores não visse nada senão o vaivém rítmico dos demais remadores que se sentavam nos bancos em frente. Se a visão era restrita, os outros sentidos ficavam turbinados. Vários cheiros fortes concorriam: de pinho, resultante da resina que impermeabilizava o casco do navio, e de carne de carneiro, vindo do sebo que amaciava as ascomas, por meio das quais os remos inferiores deslizavam sobre a chumaceira. Devia haver suor passado bem como fresco. Um capitão acusou um outro de “amaciar” sua tripulação, permitindo-lhes ir ao banheiro. Enquanto a desisdratação era a garantia de que o mal cheiro de urina seria menor, existia grande probabilidade de feder bosta. Numa piada em Aristófanes aparece um remador, que acabara de evacuar, lavando as mãos por intermédio da abertura dos remos inferiores; presumidamente sua bosta ficava no porão. Em acão, ninguém seria dispensado de seu posto, em razão de necessidades fisiológicas. De novo, em Aristófanes, encontramos um remador peidando na cara de um homem que está embaixo dele, o qual acaba coberto de bosta37. Era barulhento no interior das paredes de madeira. Além do espirro causado pelo contato dos remos com a água, havia o som impetuoso de quando rebentavam do mar (em grego, as onomatopéias pitylos e rhothios). O próprio navio dava a sua contribuição, uma vez que, em seus encaixes de tipo espiga e mecha, moviam-se, umas sobre as outras, milhares de peças de madeiras. Afora respirações dissonantes e grunhidos de esforço, o silêncio individual era o ideal numa tripulação. Toques com a mão, para incentivo mútuo, talvez fossem aceitáveis, mas conversar era a marca de uma tripulação mal treinada, em virtude do transtorno causado para já dificultada transmissão de comandos. Esses eram passados na forma de toques de apito, o aulos, que ditava as vogas, e de brados exortativos da parte dos capitães de remos. Em três ocasiões, podia quebrar-se coletivamente o silêncio. A primeira acontecia quando se enconrajavam os remadores a cantar, tendo em vista manter a voga. Aristófanes preserva dois desses cantos, O opop e ryppapai. A segunda oportunidade dava-se pouco antes da abordagem, momento de cantar o paian, o hino de guerra da polis. Ele tem sido caracterizado como uma “combinação de súplica, incentivo e bramido rebelde”. O 37

Cheiros fortes: pinho/carne de carneiro, Strauss (2004), 28-9; suor passado, (Dem.), Or.50.35; urina, Morrison, Coates, Rankov (2000), 238; bosta, Aristoph., Paz 1228-??; As Rãs 1071-5.

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terceiro ensejo, quando todos eram encorajados a se animarem e a cantarem de novo o paian, como resultado – não visto pela maioria – de alguma batalha bem-sucedida38. Os remadores sabiam que poucos eram os perigos imediatos antes de seu barco abordar um outro. Mesmo assim, os riscos eram limitados. Se um aríete inimigo penetrasse o casco, talvez morressem ou se machucassem apenas aqueles poucos homens que estivessem bem próximos do costado abalroado. O risco, em especial, imagina-se, de ferimento, era maior quando os inimigos revolviam os remos de uma das laterais. Sérios riscos correriam todos os remadores, só se o barco fosse tomado pelos marinheiros inimigos ou se abandonado. Neste caso, o perigo vinha de diversas formas. Enquanto uma evacuação emergencial da Olympias levou apenas vinte e quatro segundos, em galeras maiores, é possível que os remadores ficassem presos sob os conveses e se afogassem. Na água, eram o alvo dos marinheiros inimigos. Havia o risco de serem postos a pique por um navio de guerra, já intencionalmente pelo inimigo, já involuntariamente pelos seus parceiros. Não importa o incentivo que as culturas clássicas davam à natação, havia sempre o perigo de afogamento. Mesmo se o litoral fosse alcançado, a morte talvez estivesse lá esperando, em caso de domínio das tropas inimigas39. Tudo era muito diferente sobre o convés. Aqui, uma campanha poderia ser uma experiência sossegada. Na comédia As Rãs, de Aristófanes, o deus Dioniso, no momento em que está disfarçado como marinheiro, fala de ler a bordo durante os instantes de grande atividade naval (“pusemos a pique doze ou treze navios inimigos”). Ele escolheu a tragédia Andrômeda, de Eurípides; uma produção recente, muito popular no mundo clássico, cujo tema era vagamente náutico, na qual Perseu resgata a heroína de um monstro marinho. Numa campanha, conhecer Eurípides poderia salvar nossa vida. Depois do desastre na Sicília, a alguns atenienses, davam-se comida e água, a outros, a liberdade, se fossem capazes de recitar passagens do poeta. A própria experiência de batalha era marcada por longos períodos de inatividade e de exposição. Como ficar andando de um lado para o outro poderia fazer o barco oscilar, encorajava-se que a tripulação do convés permanecesse sentada. Os marinheiros de trirremes atenienses eram treinados para, sentados, arremessarem seus dardos. Todos do convés, e, acima de todos, os comandantes, podiam esperar ter uma visão completa de trezentos e sessenta graus. Só estavam expostos a perigos, a partir do momento em que o 38

Barulhos: remos, Casson (1971), 279, n.37; silêncio ideal, Thuc. 2.89; toque com as mãos, Lysias, 2.37; conversa, Thuc. 2.84; aulos, Strauss (2004), 198-9 (sobre problemas de comunicação em geral, ver Morrison, Coates, Rankov [2000], 248-52); cantos, Aristoph., As rãs 208-9; cf. 1073; paian, Aesch. Pers. 388-90 (antes); Thuc. 2.91 (depois); gritos de animação, Ib. 7.71. 39 Riscos: evacuação, Morrison, Coates, Rankov (2000), 236; caminhos para a morte, Strauss (2000), 268-9.

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navio entrava no raio de alcance das armas inimigas, e, da adoção, no século IV a.C., de artilharias de torção em diante, essa distância tornou-se considerável. O impacto causado por um aríete que acertasse em cheio o navio era capaz de arremessar ao mar quem estivesse no convés40. Não obstante a batalha não demandar esforços físicos do comandante de uma galera, mentalmente era uma situação de extrema exigência. Na hora de travar combates, a batalha naval clássica mostrava-se caótica. Não se devem imaginar como as quase majestosas linhas paralelas dos combates entre frotas, no século XVIII, antes de Nelson, mas como uma briga de foice entre aviões de caça modernos. Igual a um ás de caças modernos, um capitão de galera precisava estar cônscio de uma infinidade de coisas concomitantes e ser capaz de conjecturar o que era mais provável de acontecer; capacidade nomeada, hoje, pelos teóricos de guerra de “consciência situacional”. Aquele capitão, no entanto, tinha outros modelos em mente. Nesse mundo da escolha, ele mostra que vê a si mesmo nos moldes de um herói homérico. Tal e qual Nelson, em Trioessa, a vanglória que mais causava orgulho a um capitão da Antiguidade era primar em “matar” um barco inimigo41. Uma das coisas mais impressionantes relativas à batalha naval clássica é o moral que invariavelmente operava no nível não do indivíduo, mas no do navio. Uma ilustração clara disso aparece na narrativa de Tucídides da derrota espartana na Primeira Batalha de Naupacto, às vésperas do início da Guerra do Peloponeso. “Os taifeiros de convés gritavam e agiam de modo evasivo, prejudicando-se uns aos outros, tanto que não prestavam mais atenção às palavras de comando ou aos contramestres, e, como remadores mal treinados, incapazes de desobstruírem seus remos em mar picado, deixavam o navio inerte ao timoneiro, naquele exato momento ... os atenienses partiram para o abalroar. Na confusão, nenhum dos barcos espartanos lutou, mas todos fugiram” (2.84, levemente resumido). Esses remadores mal treinados, a despeito de estarem em dificuldades físicas e terem problemas para ouvir os comandos, não entravam em pânico. Para o navio bater em retirada, eles ainda trabalhavam como uma equipe. A perda de nervos vem dos capitães, os trierarcas. Indícios comparativos, provenientes do século XVIII, apontam para uma explicação. N.A.M. Rodger, em seu convincente estudo The Wooden World: An Anatomy of the Georgian 40

Eurípedes: Andrômeda; Aristoph., As Rãs 48-53; Dover (1993), 196; Wright (2005); recitações, Plut. Nicias 29. Experiência de batalha das tripulações de convés: ficar sentado, Morrison, Coates, Rankov (2000), 226-7; arremessar sentado, Thuc. 7.67; choque e pessoas ao mar, Xen. Hell. 1.6.33. 41 “Consciência situacional”, Strauss (2004), 206-7; valendo-se de Spick (1988). “Primeiro a matar”, Strauss (2004), 30; 203.

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Navy [O mundo de madeira: uma anatomia da marinha do período georgiano], constatou que a marinha britânica da Guerra dos Sete Anos tinha um problema ligado à covardia. O centro não era os praças. Enquanto alguns indivíduos quiçá tentassem esconder-se no porão, e eventualmente tripulações inteiras abandonassem suas armas, em geral, o marujo – cuja compreensão do estado do navio como um todo, para não falar, da batalha, era limitada – ficava tão ocupado carregando as munições, que não tinha tempo para amedrontar-se a ponto de perder o moral. Limitava-se o problema, sobretudo, ao alto-comando. Não tendo função posicional que não a de ficarem no tombadilho superior e preparados para atirar, tinham boa visão dos riscos que corriam e tempo de sobra para tomarem decisões42. Circunstâncias mais ou menos similares prevaleciam numa galera da Antiguidade. Os remadores, sem consciência real do estado geral de coisas, mantinham-se bem firmes na tarefa repetitiva de remar o barco. Sabiam que correriam pouco perigo, enquanto seu barco não se chocasse com outro do inimigo, de modo que, antes disso, não havia o que desencadeasse pânico. É possível que, para o capitão, não fosse muito diferente. Ele permanecia sentado, imóvel, em seu conspícuo assento na popa. Salvo diretamente à popa, onde o cadaste talvez fizesse certa cobertura, expunha-se, em todas as direções, ao alcance de projéteis. Seu campo de visão dava conta de todas as ameaças, potenciais e imediatas. Não admira que um trierarca tivesse a incumbência de decidir quando encerrar o combate. Sua “consciência situacional” operando a toda força, uma queda brusca de moral espalhar-se-ia como rastilho entre os trierarcas, e o que antes fora uma frota tornar-se-ia uma massa de barcos em fuga. Para se sentirem melhor a esse respeito, os trierarcas sempre poderiam evocar Ulisses, picando sua amarra e, dentre uma frota de doze, salvando apenas o próprio barco ao ataque dos lestrigões43.

V

No prefácio a sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides é enfático ao ligar talassocracia, “domínio dos mares”, e progresso humano. Sem o poderio naval, o comércio era mínimo, as guerras, apenas escaramuças fronteiriças, e não haveria impérios nem grandes ligas. Apresenta uma lista extensa de potências marítimas, do lendário rei Mino de Creta,

42 43

Século XVIII, Rodger (1986). Picando a amarra, Hom. Od. 10.126-32.

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passando por um tal de Polícrates, tirano de Samos, no século VI a.C., até seus coetâneos atenienses. Tucídides tem aqui uma agenda clara. Seu desejo é provar a superioridade da guerra que narrará sobre todas as anteriores. Acima de tudo, é, ao mesmo tempo, maior que a Guerra de Tróia e as Guerras Médicas. Por extensão, ele próprio supera os cronistas dessas guerras inferiores, Homero e Heródoto. Este tinha Polícrates na conta de o primeiro a visar à talassocracia, implicitamente admitindo inabilidade para descobrir mais sobre figuras como Mino. Tucídides visa a fazer melhor que Homero, já que apresenta as ações e os motivos de Mino com alguns detalhes. O Arqueologia, como agora é amiúde conhecido esse prefácio de Tucídides, não é uma tentativa imparcial de restabelecer a história antiga, mas sim uma obra de polêmica literária. Pode ser que Tucídides começasse o projeto de discordar de Heródoto, mas numa área importante concordavam: a importância crucial e contínua do poder sobre os mares. Nessa concordância, ambos se desorientaram por circunstâncias específicas, incomuns, acontecidas no Egeu, na época de suas vidas. Desde sua fundação, em 478/477 a.C., como Liga de Delfos, até sua queda derradeira, em 404 a.C., o Império Ateniense foi o fator mais importante da história do Egeu, e a principal força militar desse império das costas e das ilhas era sua frota. O encanto de Atenas esconde o fato de que, no mundo clássico, o domínio marítimo, comparado ao domínio baseado no exército, era com frequência tanto mais transitório quanto inerentemente frágil44. Nos mitos, más condições climáticas podiam destruir totalmente um exército. Heródoto relata a fábula sobre um exército persa de cinquenta homens, desaparecido entre o Egito e o Oráculo de Zeus Amão. Assim que almoçaram, alteou-se o vento sul, e eles foram enterrados, vivos, por uma tempestade de areia. Na realidade, só condições climáticas extremas causariam problemas, embora poucos. Marchando através das montanhas da Armênia, no meio do inverno, Xenofonte e os dez mil encontraram temperaturas abaixo de zero e quase dois metros de neve acumulada. Apesar de “muitos animais e escravos perecerem” e trinta soldados morrerem de frio, com outros tantos sofrendo com úlceras causadas pelo frio e de nifablepsia, o exército manteve-se uma potência marcial efetiva. Más condições climáticas tinham de combinar-se com falta de suprimentos, mormente de água, para depauperar seriamente um exército. Foi esse o caso, quando Alexandre cruzou o Deserto da Gedrósia. Por outro lado, 44

O Arqueologia de Tucídides: 1.1-23; Connor (1984), 20-32 é um bom lugar para começar a pensar sobre os jogos literários praticados aqui. Hdt. 3.122, sobre Polícrates. Ver Momigliano (1960), 57-67, sobre a ideia de talassocracia em geral, e Hornblower (1987), 88, n.62, para referências sobre as “listas das talassocracias”, do século quinto.

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uma tempestade conseguia destruir a maior das frotas em pouquíssimo tempo. Na Primeira Guerra Púnica, os romanos repetidas vezes perdiam frotas para os vento e as ondas. Em 249 a.C., nas cercanias da costa sul, rodeada de rochas, da Sicília, os romanos perderam duas frotas na mesma tempestade: “destruição tão completa que nem mesmo se puderam resgatar os destroços”. É óbvio que frotas corriam riscos inexistentes para exércitos45. Em certas ocasiões, embora não em todas, acreditava-se que treinamentos eram importantes para um exército. Todavia, também se admitia a possibilidade pô-lo para batalhar de imediato, sem nem um treinamento sequer. Xenofonte, em seu romance histórico, A Educação de Ciro, faz uma das personagens dizer quão natural é, ao homem, lutar de espada mano a mano, assim como, aos animais, o é fazendo uso de seus chifres, cascos, dentes ou presas: uma criança acha-o instintivo e engraçado. Frotas de galeras, no entanto, não poderiam funcionar sem que os tripulantes deixassem de, como na expressão grega, “batalharem juntos”. Para minimizar a perda de tempo, às vezes, os tripulantes faziam, na parte seca da praia, treinos preliminares de voga, enquanto se construíam os barcos. Na guerra civil de 49 a.C., Júlio César estava com doze navios de guerra na água, apenas trinta dias depois do corte da primeira árvore. O segundo menor intervalo de tempo que conhecemos é, na Segunda Guerra Púnica, o dos quarenta dias entre o “machado” e uma frota romana. Barcos construídos com tal madeiramento verde eram lentos e ingovernáveis. O tempo de vida útil normal para barcos feitos de madeira secada ao ar deve ter sido muitíssimo maior. Reunidos os homens, um exército já estaria pronto para ação. Para se criar ou substituir uma frota levava tempo46. Talvez não fosse muito efetivo, mas se equipavam, na Antiguidade, exércitos a partir de peças avulsas, sem despesa alguma; armas saídas de coleções particulares, as usadas para caça, ou consagradas em templos, e ferramentas agrícolas. Em 238 a.C., nos exércitos de Gordiano I e II, “cada homem trazia consigo, de casa, uma espadinha, um machado e lanças de caçar. Retalhavam as peles disponíveis, e serravam, da melhor maneira possível, a madeira em qualquer formato, para construir seus próprios escudos”. Por sua vez, frotas custam fortunas. Lísias, orador ateniense do século quarto a.C., chamava as trirremes “glutonas”. Nem era preciso um lexicógrafo porvindouro para explicar que Lísias se referia à ingestão de dinheiro que exigia a manutenção de trirremes à tona. Primeiro, havia mister de infra-estrutura no sustento de uma frota: portos, molhes, defesas, 45

Exército de Cambises, Hdt. 3.27. Os dez mil na Armênia, Xen. Anab. 4.5. Alexandre na Gedrósia, Lane Fox (1973), 387-402; Bosworth (1988), 139-46. Desaparecimento de frotas romanas, Polyb. 1.54. 46 A naturalidade do lutar de espadas, Xen. Cyrop. 2.3.9-10. Treinamento de tripulantes, Casson (1971), 278-80; períodos de construção de barcos, Ib. 120, n.82.

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abrigos para armazenagens e, acima de tudo – porquanto galeras deixadas na água deterioravam-se depressa –, abrigos para navios. As meticulosas escavações no porto militar de Cartago dão-nos uma noção da escala e, logo, do gasto que poderiam envolver. Pouco antes dos romanos destruírem a cidade, em 146 a.C., o porto militar, cujo desenho se supõe a engenheiros gregos, era separado do comercial. Circular, rodeado por dupla muralha e envolto por abrigos para navios. No centro, uma ilha redonda, também envolta por abrigos, com uma construção alta para os quartéis-generais do almirantado. Uma fonte literária, Apiano, contanos que se construíram paióis de víveres sobre os duzentos e vinte abrigos para navios. Uma olhadela para as construções que envolviam a praia sugere quão cerrados talvez fossem esses portos47. A segunda grande despesa era tanto os barcos em si quanto suas rodas dentadas e corrediças, custosos quer para construir, quer para reparar ou substituí-los. Em 1834, uma escavação, no Pireu, o porto de Atenas, de um dreno bizantino ou romano tardio revelou a primeira de uma série de inscrições com registros dos superintendentes, epimeletai, dos estaleiros militares. Os registros cobrem parte do século quarto a.C. Trazem à baila grande complexidade (equipamentos de madeira: mastro grande, mastro de emergência, lais de verga largo, escadas, balizas, esteios, remos, ripas para fazer remos; equipamentos de pendurar: vela, anteparos laterais de tecido branco, anteparos laterais de couro, telas e toldos chamados, respectivamente, hypoblema e katablema, âncoras, cabos de âncoras, cordames pesados, normais e leves, sub-bases). Esse é um mundo de malversação, litígios e grandes gastos48. O último dispêndio era com tripulação. Um discurso proferido, e possivelmente escrito, por um certo Apolodoro preserva-se entre as obras do grande orador ateniense, Demóstenes. Tema recorrente desse discurso é o custo do pagamento para a tripulação de uma trirreme. Apolodoro comandara um trirreme, fora trierarca. Nesse momento, tentava recuperar, na justiça, a dinheirama que reclamava lhe ser devida pelo ateniense que deixara, à época, de assumir essa trierarquia. A trierarquia era uma espécie de imposto sobre riqueza. Um caminho para Atenas semiprivatizar sua frota (há de se notar que sabemos quase nada sobre como outras poleis gregas pagaram por suas marinhas de guerra – aqui, como tudo concernente à Grécia Antiga, nossas informações são por demais atenocêntricas). Em tese, 47

Exército vicário, Herodiano 7.9.6. Lísias e lexicógrafo, Gabrielsen (1995), 240. Infra-estrutura (abrigos para navios etc.), Blackman (1995), 224-33; Pomey (1997), 127-45 (em geral); e Hurst (1993), 42-51 (Cartago; ver, ademais, Connolly [1981], 269; e Pomey [1997], 141, para reconstruções sugestivas; a última com uma foto área do sítio). 48 Registros dos epimeletai, IG II 2nd. ed. 1604-1632; discussão principal, Gabrielsen (1994); breve panorama, Ib. (1995), 234-40; tradução das duas, Harding (1985), 64-7, No. 47 (donde se tomaram os exemplos de engrenagem, que aparecem no texto) ; 148-50, No. 121.

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Atenas pagava por quase tudo; casco, equipamentos e tripulação. O trierarca era apenas responsável por reparos. Mas essa não era senão uma parte da história. No século V a.C., tãosó metade do pagamento e das provisões partiam de Atenas à face do mundo, e, no século quarto a.C., nem isso. Os trierarcas não raro compravam seu próprio equipamento e contratavam os tripulantes, pagando do próprio bolso. Isso se dava em parte por autopreservação, tanto física, já que era comum estarem no comando da embarcação, quanto financeira, visto estarem sujeitos a penalidades pecuniárias estropiadoras, caso se perdesse o barco. Ligava-se, ademais, a um êthos elitista de munificência, derivado do orgulho cívico, chamado “evergetismo”. Havia uma competição entre trierarcas pela primazia em aprontar seus barcos para navegar, em deixá-lo aparelhado o mais magnífico possível, e em fazer dele o mais eficiente dentre todos. Isso que nos conta Apolodoro era uma faca de dois gumes. Atenas fornecia uma tripulação pequena e incompetente. Apolodoro pagara bonificações e dera vantagens, a fim de segurar os remadores mais hábeis. Infelizmente, eram justamente os remadores mais hábeis quem mais tendia a desertar, porquanto sabiam que seus serviços eram sempre requisitados. O dinheiro que Apolodoro esbanjou na embarcação fez com que essa tivesse excelente desempenho. Isso permitiu que o almirante a enviasse para missões especiais, fato que, mais tarde, encorajou uma leva de deserção. O discurso de Apolodoro traz luz sobre as finanças de uma potência naval da Antiguidade, mesmo sem termos de aceitar cada detalhe de sua fala. É um discurso que visava a convencer um júri, não uma desapaixonada análise da verdade49. Batalhas navais, altamente concentradoras de trabalho e na vanguarda da tecnologia disponível, sofria mais fiscalização econômica que sua contrapartida terrestre. Em 413 a.C., Atenas perdeu duas grandes frotas na Sicília. Graças a um esforço financeiro tão severo que alienou algo de opulento do estilo democrático de governança, Atenas reconstruiu uma frota de batalha significativa. Por todo o resto da Guerra do Peloponeso, Atenas não tinha rede de segurança. Na ocasião da perda dessa frota, acontecida, por fim, em Egospótamos, em 405 a.C., não havia de pronto fundos para substituí-la, e perdeu-se a guerra. Seus oponentes estavam em posição bem diferente. Ao desistir, talvez à falsa fé, de seu objetivo de guerra, “libertar os gregos”, e, assim, deixando as poleis gregas da Ásia Menor nas mãos do “Grande Rei”, Esparta chegou a um acordo, pelo qual os persas fomentariam em profusão os esforços de guerra dela. A partir de 412/411 a.C. até o fim, Esparta podia perder uma frota atrás da

49

Discurso de Apolodoro, (Ps.-)Dem. Or. 50. Pagamento à tripulação , 50.7; 10; 11-2; 14-6; 18; 56; deserção, 11-2; 14-6; 23; 44; 65. A trierarquia é analisada em Gabrielsen (1994); com breve panorama da marinha de guerra ateniense, do século IV a.C., ib. (1995), 234-40.

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outra – como o fez particularmente em Cízico, em 410 a.C., e em Arginusas, em 406 a.C. – e, no entanto, sempre se dar ao luxo de construir outras, e continuar a guerra. Numa amplificação retórica de uma briga de galo, Políbio analisa o fim da Primeira Guerra Púnica. Roma e Cartago eram como galos de briga, que, apesar de terem deixado de usar suas asas por esgotamento, não deixavam de ter coragem para lutar até o fim. Roma, tendo, já duas vezes, por falta de confiança, abandonado a guerra em mar, decidiu construir uma frota derradeira, muito embora “não houvesse fundos no tesouro, para financiar tal empresa”. Financiou-se a frota com empréstimos oriundos de indivíduos e de grupos, sob a condição de que seriam reembolsados, caso a expedição obtivesse sucesso. Quando isso aconteceu, na Batalha das Ilhas Egates, em 241 a.C., os cartagineses, “quanto à intenção e ao desejo de conquista, estavam prontos a seguir lutando, mas quando chegavam a calcular os recursos, encontraram-se num impasse”. A economia era capaz de destruir potências navais, sem haver derrota militar direta. Tendo sobrevivido ao sítio de 305-304 a.C., feito por Demétrio, Rodes cresceu em confiança na condição de governança independente, tornando-se, dentro de um século, a potência naval dominante no Egeu. Durante a Terceira Guerra da Macedônia (171-168 a.C.), Rodes ofereceu-se para fazer a mediação entre o rei persa e os romanos. Não obstante Rodes ter sido encorajada a isso por alguns romanos, depois da vitória, Roma decidiu punir presunção tal. Despiram Rodes de algumas de suas possessões continentais da Ásia Menor. Mais importante ainda, a ilha de Delos foi dada a Atenas e declarada porto livre. Diz-se que isso causou a queda brusca, de oitenta e cinco por cento, da renda ródia proveniente do comércio marítimo. Sem seus rendimentos de antes, a frota ródia definhou50. Perdia-se facilmente a talassocracia, seja pela ação da natureza, seja pela humana. Uma vez perdida, era caro e demorado substituí-la. Contudo, sua fraqueza decisiva era a inabilidade de operarem as frotas de galeras independentemente de um exército, sua falta de alcance estratégico independente. A destruição da grande armada ateniense, na Sicília, em 413 a.C., mostra que não era possível conquistar o continente a partir do mar. Inversamente, Alexandre, o Grande – debandando a maioria de sua própria frota e, então, erradicando a frota persa, em 334-332 a.C., ao tornar-lhes, com seu exército, as bases sobre o Egeu e as costas sírias – demonstrou que o mar era conquistável a partir da terra. Não havia igualdade entre os elementos. Os árabes islâmicos não construíram frotas até 648 d.C. Antes deles, o Império 50

Guerra do Peloponeso, c.413-404 a.C.: em geral, Hornblower (1991), 143-52; em detalhes, Kagan (1987); para uma interpretação um tanto diferente sobre o papel de finanças, após a expedição à Sicília, ver Kallet (2001). Primeira Guerra Púnica: Políbio, 1.58-62; com Walbank (1957), ??-??. Rodes: Starr (1989), 60; Gruen (1984), 311-2; Shipley (2000), 382.

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Bizantino fizera com que sua supremacia naval, no Mediterrâneo oriental, fosse inconteste. No entanto, no fim de 641 d.C., os bizantinos haviam perdido, a um só tempo, as províncias marítimas da Síria e do Egito51. O Império Ateniense induziu Heródoto e Tucídides ao erro, e esses, por suas vezes, continuaram a induzir ao erro muitos de seus leitores no que diz respeito à força de uma potência naval do mundo clássico.

VI

Considerava-se que a tainha-olhalvo tinha melhor caráter que o atum. Era um peixe “gentil e inofensivo”. Não se subestimava sua inteligência; com a cabeça enterrada na areia, ele achava que ficava invisível. Um dos métodos de capturá-lo mostrava que se considerava ter essa idéia algum sentido: “é importante que a fêmea escolhida como chamariz seja rechonchuda e bem aparentada”. Uma anedota na História Natural, de Plínio, o Velho, indica que a tainha era um tanto manhosa. Na região de Nimes, na Provença, a cada ano, na mesma estação, a enorme quantidade de tainhas que rumavam para o alto mar, vindo do pântano chamado Latera, esperava a mudança da maré, quando se tornava impossível para os pescadores espalhar redes através do canal. Essa inesperada previdência faz-lhes bem de algum modo. A população toda riscava a praia e gritava: “nariz empinado”. Mais cedo ou mais tarde, tudo dependeria da direção do vento, uma “linha de batalha” (acies) de golfinhos viria à tona, dispor-se-ia em formação para bloquear a fuga das tainhas e conduzi-las-ia para dentro das redes dos pescadores, nos baixios. Plínio assegura-nos de que os golfinhos exibem, de uma só vez, coragem, arrostando as redes (“lutando diante do baluarte”), e disciplina, porque se abstêm ou de comer ou de saltar, “até que vitória aconteça”. Do mesmo modo que foi possível a Ésquilo imaginar a batalha naval como uma pescaria, assim, a pescaria pôde ser pensada, por Plínio, sob o aspecto de uma batalha. O pensar sobre batalhas banhou o mundo clássico52.

51

Expedição siciliana: narrativa antiga, Thuc., livros 6 e 7; moderna, Kagan (1981). Alexandre e as costas do Egeu e da Síria: Lane Fox (1973), 116-93; Bosworth (1988), 35-68. Árabes e Egito/Síria: Glubb (1963), 139-248; e os trabalhos mencionados nas notas para o capítulo doze. 52 Sobre perspectivas relacionadas às tainhas-olhalvo na Antiguidade, Thompson (1947), 108-10; 110-2; 287-8, quem, no entanto, não usa Pl. NH 9.9.

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PÉRICLES COMO GENERAL

Donald Kagan Yale University

Próximo do final de sua biografia de Péricles, Plutarco descreve o grande líder ateniense em seu leito de morte. Seus amigos pessoais e os melhores homens de Atenas reunidos em seu quarto discutiam a grandeza de suas virtudes e o poder que ele possuía. Pensando que ele dormia, "eles somaram suas conquistas e seus troféus, pois, como general, ele havia conseguido nove, celebrando uma vitória em nome da cidade"1. Não existe um bom motivo para duvidar-mos de essa história, e é um útil lembrete para o leitor moderno. Estamos inclinados a considerar Péricles principalmente como um grande líder político, um orador brilhante, um patrono das artes e das ciências, um homem cujo trabalho nas artes pacíficas moldou a "Era Dourada de Atenas." No entanto, não devemos nos esquecer que o cargo para o qual o povo o elegeu por cerca de trinta anos, pelo qual ele conduziu essas atividades foi o de estrategos, general, e para os atenienses sua principal responsabilidade era a de liderar os exércitos e as forças navais em batalha. Desde sua época até os tempos modernos os talentos de Péricles como general têm sido criticados e defendidos. Em 431, no primeiro ano da Guerra do Peloponeso, quando sua estratégia conclamou os atenienses a se amontoarem detrás das muralhas de sua cidade enquanto o exército peloponeso invasor saqueava suas terras na Ática, "a cidade ficou irada com Péricles..., eles o ultrajaram porque, sendo seu general, ele não os conduziu à batalha, e eles o responsabilizaram por tudo que estavam sofrendo"2. No ano seguinte, após outra invasão e destruição de lavouras e fazendas, e após uma terrível praga que os atacou, amontoados por trás das muralhas da cidade, conforme sua estratégia, "eles culparam Péricles por tê-los persuadido a ir para a guerra e o responsabilizaram por seus infortúnios.3" Em um plano inferior, o poeta Hermipo apresentou uma comédia na primavera de 430 que nos dá uma idéia do que poderia ter sido uma acusação comum

1

Plutarco, Péricles, 38.3. Tuc. 2.21.3. 3 Tuc. 2.59.2. 2

65

contra o relutante general, a covardia. Ele se dirige a Péricles da seguinte maneira: "Rei dos sátiros, por que não ergues uma lança ao invés de usar apenas terríveis palavras para fazer guerra, assumindo o personagem covarde de Teles. Mas se uma pequena faca for afiada em uma pedra de amolar, você ruge como se tivesse sido mordido por um feroz Cleón."4 O título desse ensaio é uma tradução do ataque moderno mais veemente já feito, Perikles als Feldheer, do Dr. Julius von Pflugk-Harttung5. Um veterano da guerra Franco-Prussiana e estudante reconhecedor do que ele considerou serem lições de Clausewitz, ele acreditava que havia "adquirido algum conhecimento útil da ciência da guerra"6 que o levou a condenar completa e vigorosamente Péricles como general. Do comando de Péricles na Guerra do Peloponeso, ele diz podermos ver "expedições sem unidade interna, sem a possibilidade de maiores resultados." Para evitar o perigo, Péricles sempre abria mão de vantagens importantes… Como um todo vemos o esforço para não perder batalha alguma, e não de vencer uma. Por mais que a coragem pessoal de Péricles tenha operado na batalha e na assembléia, pouco tinha ele dessa coragem apropriada a um general, que audaciosamente arrisca milhares de vidas em momentos decisivos; como tal ele pertence àqueles, pode-se dizer, de um grupo filosófico, que conduzem tudo da maneira mais clara possível para o sistema e para o planejamento, ao invés de agirem de modo aberto e vigoroso. É um fato que Péricles, o principal defensor da política anti-espartana, jamais realizou uma única batalha contra os espartanos…7

No plano de estratégia mais elevado, a crítica não é menos severa: "Péricles foi um bom Ministro de Guerra que fez preparações perspicazes, mas como general ele não soube fazer bom uso da situação existente." Ele foi um grande burgomestre (Bürgermeister), no sentido lato da palavra; ali a rica versatilidade de sua natureza entrava em ação, sua superioridade à corrupção, a tudo que fosse mesquinho e desprezível… no entanto lhe faltava a visão do profeta e certa dose da sorte do estadista nato, acima de tudo, o atrevimento freqüentemente necessário para liderar o que começara até seu objetivo… Como um líder de política externa, ele não se comparava a um Temístocles, como general nem se aproximava de um Cimon…8

4

Fates, citado por Plutarco, Péricles 33.7. Pflugk-Harttung, Perikles als Feldheer, 1884. 6 Pflugk-Harttung, Perikles als Feldheer, 1884, p. vi. 7 Idem. : “Sobre a coleção de nove troféus para P (Plut. Pér. 38) há muito tem sido necessário meditar e contar a vacância de derrotas e de vitórias." 8 Ibid., pp.110-123. 5

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Péricles, entretanto, teve sorte com seus defensores. Na Antiguidade sua performance foi justificada e elogiada por Tucídides, um contemporâneo, também general e historiador do período, cujas interpretações dominam a opinião desde que ele as escreveu. Apesar de toda a objetividade de seu estilo, ele conta a história praticamente do ponto de vista de Péricles. Quando, por exemplo, ele descreve a revolta contra o líder ateniense no segundo ano da guerra e o esforço vão dos atenienses em fazer a paz, é assim que ele descreve o resultado: Sem saber o que fazer, eles atacaram Péricles. E quando ele os percebeu enfurecidos e fazendo tudo o que ele havia previsto, convocou uma assembléia (pois ainda era general). Ele queria lhes transmitir confiança e, afastando-os de sua ira, restaurar sua calma e sua coragem.9

Ele apresenta, por completo, três discursos de Péricles, sem relatar os de seus oponentes, resultando que o leitor é obrigado a ver a situação pelos olhos de Péricles. Por fim, ele deixa claro o seu próprio julgamento, ficando forte e firmemente ao lado de Péricles e contra seus críticos:

Enquanto que ele conduziu o estado em época de paz, ele manteve uma política moderada e o manteve em segurança, e foi sob sua liderança que Atenas alcançou seu auge; e quando chegou a guerra parece que ele também julgou seu poder de forma correta. Péricles viveu por dois anos e seis meses após o começo da guerra, e depois de seu falecimento sua previsão sobre a guerra foi ainda mais reconhecida. Porque ele havia dito que, se os atenienses se mantivessem na defensiva, mantivessem sua marinha e não tentassem expandir seu império em tempos de guerra, o que colocaria o estado em perigo, eles acabariam vencendo. Mas eles agiram de maneira oposta aos seus conselhos em todos os aspectos,…e quando suas tentativas falharam eles atacaram a conduta do estado na guerra.

Apesar da diferença em estratégia de seu sucessor e os desastres resultantes, a despeito da entrada do Império Persa nas fileiras inimigas, os atenienses resistiram por dez anos após a desastrosa expedição siciliana e vinte e sete anos ao todo. "Muito mais do que abundantes foram os motivos de Péricles para fazer sua previsão de que Atenas teria vencido uma guerra sozinha contra os peloponesos."10 Plutarco aceitou o julgamento de Tucídides e apresentou mais argumentos de defesa contra as acusações de covardia e falta de iniciativa. Para Plutarco, os atos que provocaram tais 9

2.59.3.

67

acusações revelam, de fato, prudência, moderação e desejo de proteger a segurança dos soldados atenienses. Em 454, Péricles conduziu uma expedição marítima no Golfo de Corinto. Tucídides apenas relata que ele derrotou em batalha os siciônios , arrasou o território e sitiou a importante cidade de Oeniadae, porém não conseguiu tomá-la, e navegou de volta para casa. Obviamente, em resposta a críticas posteriores, Plutarco conclui seu relato desses acontecimentos dizendo que Péricles retornou a Atenas, "tendo se mostrado um formidável frente o inimigo e, ao mesmo tempo, um comandante seguro e eficaz para seus concidadãos. Pois nenhuma desgraça se abateu sobre os homens da expedição.11" Em 437, ele navegou pelo Mar Negro em uma missão de consolidação imperial que resultou em pouco mais do que "mostrar a bandeira" aos bárbaros locais, um ato de tão pouco significado que sequer foi percebido por Tucídides. Plutarco, porém, não perde a chance de enfrentar a crítica dirigida contra seu herói. Em sua campanha, Péricles "exibiu a magnitude de suas forças e a intrepidez e coragem com as quais eles navegaram para todas as partes que quiseram e subjugaram todo o mar a seu poderio.12" Em 446, quando a Beócia entrou em rebelião, o audaz e ambicioso general Tolmides convenceu a assembléia a enviá-lo à frente de um exército para conter o levante. Plutarco relata que Péricles "tentou refreá-lo e convencê-lo, na assembléia, proferindo sua famosa observação que, se ele não desse ouvidos a Péricles, ele não erraria em esperar pelo tempo, o mais sábio conselheiro." Tolmides prosseguiu apesar disso, e o resultado foi um desastre. Os atenienses sofreram muitas baixas, Tolmides foi morto e a Beócia foi perdida. O comentário de Plutarco foi que esse incidente "trouxe enorme fama e benevolência [a Péricles] como homem de cautela e patriotismo."13 Ao final do mesmo ano, eclodiu uma rebelião na Eubéia, igualmente Mégara se insurgiu, abrindo o caminho para uma invasão peloponesa da Ática. Péricles conduziu um exército ateniense para enfrentar o invasor, mas ao invés de travar batalha, ele convenceu os espartanos a se retirarem e então negociarem a paz. Em retrospecto, sem dúvida, seus críticos o acusaram de desperdiçar a chance de vitória em campo. Tucídides relata a retirada dos peloponesos sem comentários ou explicações, mas Plutarco usa essa conduta para responder em linguagem quase poética às acusações posteriores que acompanharam a invasão peloponesa em 431. Ele relata que

10

2.65 Péricles 19.4. 12 Péricles 20.1. 13 Péricles 18.2-3. 11

68

seus inimigos “o ameaçaram e o denunciaram, e coros cantavam canções de escárnio por sua desonra e insultaram sua habilidade militar por sua covardia e por ter abandonado tudo ao inimigo."14 Os peloponesos, nos conta ele, esperavam que os atenienses combatessem pela ira e pelo orgulho, "mas a Péricles parecia terrível travar uma batalha contra 60 mil hoplitas peloponesos e beócios (pois esse foi o número que compôs a primeira invasão) e arriscar a cidade como resultado."15 Ele descreve a linguagem calma de Péricles dirigindo-se aos exultantes atenienses em 431, “dizendo que, embora as árvores sejam cortadas e podadas, elas crescem rapidamente, mas se os homens fossem destruídos, não seria fácil obtê-los novamente." Aqui ele devolveu as acusações de covardia e falta de iniciativa contra suas cabeças e o fez mais plenamente em uma passagem que resume sua visão da habilidade militar de Péricles: Em sua habilidade militar ele foi especialmente famoso por sua cautela. Ele jamais se mostrou disposto a travar uma batalha que envolvesse grande risco ou incerteza, nem sequer ele invejava ou imitava aqueles que corressem enormes riscos, lograssem brilhantes êxitos e fossem admirados como grandes generais. Ele sempre dizia a seus concidadãos que, enquanto dependesse de seu poder, eles viveriam para todo o sempre e seriam imortais.16

Dentre os muitos estudiosos convencidos dessa visão nenhum argumentou com mais vigor em favor do comando de Péricles do que Hans Delbrück, talvez o mais renomado historiador militar de sua época e ainda uma figura respeitada nessa área. Irritado com as críticas direcionadas a Péricles por ilustres historiadores alemães como Karl Julius Beloch e M.W. Duncker, e também com a forte investida de Plugk-Harttung, ele escreveu uma minuciosa defesa em 1890 sob o título A Estratégia de Péricles explicada através da Estratégia de Frederico, o Grande (Die Strategie des Perikles, erlaüter durch die Strategie Friedrichs des Grossen)17. Seu principal objetivo é justificar a conduta de Péricles na Guerra do Peloponeso, que começou em 431, tema da maior crítica direcionada ao general ateniense. A estratégia de Péricles não visava derrotar os espartanos em batalha mas tencionava

14

Péricles 33.6. Péricles 33.3. Todos os estudiosos modernos concordam que o verdadeiro número fosse provavelmente metade disso ou menos. 16 Péricles 18.1. 17 Berlim, 1890. Suas conclusões e alguns de seus argumentos são reafirmados em seu Geschichte der Kriegskunst, vol.1, Das Altertum, Berlim, 1920, reeditado em 1964. Em 1990 a University of Nebraska Press publicou uma tradução em inglês desse volume por Walter J. Renfroe, Jr. intitulada Warfare in Antiquity. 15

69

convencê-los que guerrear contra os atenienses era fútil. Seus objetivos estratégicos, portanto, eram completamente defensivos. Ele dissera aos atenienses que, "se eles se mantivessem quietos, se cuidassem de sua esquadra e detivessem sua tentativa de expandir seu império em época de guerra, pois com isso colocariam sua cidade em perigo, eles iriam triunfar." (Tucídides 2.65.7) Os atenienses teriam que rejeitar a batalha em terra, abandonar seus cultivos e lares no campo e entregá-los à devastação dos espartanos, e retirarem-se para detrás das muralhas atenienses. Enquanto isso, sua armada iria lançar uma série de ataques à costa do Peloponeso. Essa estratégia continuaria até que o inimigo frustrado estivesse preparado para fazer a paz. Os ataques navais e desembarques não tencionavam causar sérios danos, apenas irritar o inimigo e sugerir o nível de estragos que os atenienses poderiam causar se o quisessem. A estratégia não era exaurir os peloponesos física ou material mas psicologicamente. Tal estratégia jamais havia sido tentada na história da Grécia, pois nenhum estado antes da chegada da democracia imperial ateniense possuía meios para isso. Fazer isso não era fácil, porque essa estratégia inédita ia diretamente contra as tradições gregas. A disposição de lutar, a bravura e firmeza na batalha, se tornaram as características essenciais do homem livre e do cidadão. A estratégia de Péricles de passividade, portanto, ia contra os ensinamentos da tradição grega. A maioria dos atenienses, porém, era formada por fazendeiros cujas terras e lares ficavam do lado de fora das muralhas. A estratégia de Péricles requeria que eles ficassem olhando passivos, enquanto suas casas, lavouras, videiras e oliveiras eram danificadas ou arrasadas. Diante desses fatos, assim como do poder da tradição e de seus valores culturais, é difícil compreender, mesmo em retrospecto, como Péricles poderia ter convencido os atenienses a adotarem sua estratégia. Delbrück, bastante ciente da inferioridade numérica de Atenas em terra, ficou convencido da retidão da abordagem de Péricles: A estrutura da Guerra do Peloponeso... nos obriga a lhe conceder uma posição não apenas entre os grandes estadistas, mas também entre os grandes líderes militares na história mundial. Não é o seu plano de guerra por si só que lhe confere esse direito (pois a fama do comandante é obtida não pela palavra mas pela façanha), mas o gigantesco poder de decisão que o acompanhou, o não estancar em meia medida, mas o atirar-se com convicção e entregar totalmente o que tivesse que ser sacrificado, toda a região campestre de Ática, e acrescentando-se a isso o vigor da autoridade pessoal que permitiu que se tornasse tal decisão compreensível para uma assembléia nacional

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democrática e conseguir sua aprovação. A execução dessa decisão é um feito estratégico que pode ser comparado favoravelmente a qualquer vitória. 18

Delbrück tenta sustentar sua causa comparando Péricles com Frederico, o Grande, rei da Prússia no século XVIII. Durante a Guerra dos Sete Anos, Frederico aplicou o que Delbrück chama de "estratégia da exaustão", ao invés da "estratégia da aniquilação", na qual um exército busca o outro para trazê-lo à batalha decisiva com o objetivo de minar a capacidade de sua nação para resistir. Tal estratégia é às vezes adotada por ou forçada sobre o lado mais fraco, em um conflito, porque nenhuma outra escolha promete sucesso. No século 20 os norte-vietnamitas comunistas a usaram com sucesso contra os Estados Unidos. O poder de fogo superior trouxe a vitória aos americanos em batalhas individuais, mas não foi tão eficaz ao lidar com diversas formas de guerrilha. Os comunistas, portanto, evitavam as batalhas na maioria das vezes. As guerrilhas contínuas ao longo dos anos sem um resultado decisivo fomentaram divisão e descontentamento na América e por fim esgotaram a vontade de combater dos americanos. Na Segunda Guerra Púnica, Roma sofreu repetidas derrotas esmagadoras em batalha pelas mãos de Aníbal. Os romanos, por fim, escolheram as táticas de Quinto Fabio Máximo, evitando a batalha, molestando o inimigo com guerrilhas, até que eles se fortificassem cada vez mais e este, longe do lar e separado dele pelo mar, cada vez mais fraco, fosse obrigado a se retirar. A tática de Péricles era diferente de essas táticas em muitas maneiras. Ao contrário dos vietnamitas comunistas e dos romanos, ele jamais tentou travar uma batalha individual em terra. Os vietnamitas minaram a determinação dos americanos infligindo baixas em seu poderio. Os romanos evitaram a batalha apenas enquanto lhes foi conveniente. Seu objetivo derradeiro era derrotar o inimigo em batalhas usuais, o que finalmente eles conseguiram na Itália, Espanha e na África. A comparação de Delbrück com a estratégia de Frederico não é menos imperfeita. O monarca prussiano foi atraído a ela por perdas em combates de batalhas individuais travadas ao longo de dois anos e pela ausência de uma alternativa. Ele precisava evitar a batalha a fim de sobreviver. Apenas a boa sorte, e não planos calculados de guerra, poderia salvá-lo. Ele foi bem sucedido tanto pela sorte quanto pela estratégia. A Grã-Bretanha veio à sua ajuda com auxílio financeiro, e a morte da imperatriz russa rompeu a coalizão de seus inimigos, permitindo-lhe escapar da guerra invicto.

18

Warfare in Antiquity, p.137.

71

A situação que Péricles enfrentou era completamente diferente. Nenhum aliado se ofereceu em ajudar, e nenhum acidente fortuito dividiu seus adversários. Como evitava qualquer batalha em terra contra os espartanos, ele não infligia nenhuma baixa, como o fizeram vietnamitas e romanos. Estes e Frederico, além disso, visavam combater e vencer batalhas quando as condições lhes fossem mais favoráveis. A essência do plano de Péricles, porém, era evitar toda batalha em terra, mostrar que os peloponesos não poderiam causar sérios danos a Atenas e, assim, desgastá-los psicologicamente, para fazer com que enxergassem a razão e compreendessem que seus esforços eram fúteis e não trariam a vitória. O plano não funcionou. O elemento do acaso, o inesperado e incalculável, interveio contra Péricles e Atenas na forma da terrível praga que acabou por matar um terço da população. Tudo isso encorajou os peloponesos, que se recusaram a desanimar e continuaram lutando. Quando Péricles morreu, o tesouro ateniense estava no fim, seu plano estava arruinado e não havia perspectiva de vitória. Apenas quando seus sucessores usaram uma estratégia mais agressiva é que os atenienses nivelaram o campo de combate e conquistaram uma posição que lhes permitiu resistir por vinte e sete anos e quase conseguir a vitória. Não é de surpreender, pois, que a estratégia de Péricles na Guerra do Peloponeso tenha suscitado críticas que levantam dúvidas sobre sua capacidade como líder militar, até mesmo de estudiosos sensatos e amigáveis. Georg Busolt considerou a estratégia "fundamentalmente correta" mas mesmo assim achou que foi "um tanto unilateral e doutrinal, e em sua execução faltou procedimento enérgico e espírito de arrojo"19. Hermann Bengtson defende o plano contra seus críticos mas admite "que a execução da parte ofensiva do plano parece aos observadores modernos pouco enérgica e decidida"20.

Eles

são

influenciados,

sem

dúvida,

pelo

conhecimento de que os sucessores de Péricles tomaram medidas que não puseram em risco batalhas terrestres significantes nem levaram a numerosas baixas, e no entanto produziram importantes êxitos. Na primavera de 425, o brilhante e ousado general Demóstenes concebeu e executou um plano para tomar e fortificar o promontório de Pilos, na extremidade sudoeste do Peloponeso. A partir dali os atenienses poderiam lançar ataques à vontade e estimular a fuga ou rebelião dos hilotas, a população escravizada de Esparta. Seu sucesso levou pânico aos espartanos, o que fez com que centenas de suas tropas fossem cercadas e capturadas na ilha de

19 20

Griechische Geschichte, vol.3, Gotha, 1904, p.901. Griechische Geschichte, 3ª ed., Munich, 1965, p.221, n.5.

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Esfactéria, do lado oposto a Pilos. Imediatamente eles propuseram a paz, o que os atenienses recusaram. Mais tarde, naquela primavera, os atenienses tomaram e guarneceram a ilha de Citera, na extremidade sudeste do Peloponeso. Imediatamente eles começaram a lançar ataques contra o continente. Tucídides relata que os espartanos sofreram uma espécie de colapso nervoso: Os espartanos... enviaram guarnições aqui e acolá por toda a região, decidindo a quantidade de hoplitas pelo que pareceu necessário em cada lugar. Em outros aspectos eles estavam praticamente em guarda por temerem a ocorrência de uma revolução contra a ordem estabelecida..., e de toda direção eclodiu uma guerra à sua volta que foi rápida e desafiou precaução... Em assuntos militares eles então se tornaram mais tímidos do que nunca, pois como estavam envolvidos em uma disputa naval, fora de sua concepção normal de preparo para a guerra, e nessa área incomum eles lutaram contra os atenienses, para quem a omissão de uma iniciativa sempre foi uma perda em respeito ao que eles esperavam alcançar. Ao mesmo tempo, os infortúnios inesperados e em grande número que os haviam acometido causaram enorme pavor, e eles temiam que outra calamidade pudesse lhes acontecer novamente, como aquela na ilha [Esfactéria]. Por esse motivo foram menos audaciosos ao travar uma batalha e achavam que, qualquer que fosse sua empreitada, esta acabaria mal porque eles não tinham autoconfiança devido a não terem tido experiência anterior com infortúnios.21

À luz de resultados como esses, é natural perguntar por que as iniciativas que os produziram precisaram esperar até o quinto ano da guerra? Por que Péricles não as usou logo? Seu fracasso em realizá-las é a acusação mais pesada a ser lançada contra ele, e Delbrück necessita de grande esforço e inventividade para defendê-lo. Ele é obrigado a admitir, porém, que uma ofensiva mais agressiva teria sido útil. Ele acredita que o ataque que Péricles conduziu contra Epidauro, em 430, tinha a finalidade de tomar e ocupar aquela cidade. "Se uma conquista como essa tivesse sido bem sucedida, qualquer sucesso em Acarnânia, qualquer campanha de devastação, por maior que fosse, qualquer fortificação de um ponto costeiro em Messênia desapareceria em comparação." A tomada de Epidauro teria ameaçado os estados igualmente vizinhos, próximos à costa. Isso teria trazido a paz de uma vez por todas ou, pelo menos, esfriaria o ardor pela guerra entre os aliados de Esparta. Por que, então, Péricles esperou e depois fez tão pouco? “Nós não sabemos," é a resposta de Delbrück.22 O fracasso de um estudioso tão erudito, sagaz e determinado, e de muitos de seus outros defensores em explicar o comportamento de seu herói, é um forte sinal de que eles trilharam o caminho errado. Péricles não teve a intenção de usar medidas agressivas para diminuir a 21 22

Tuc.4.55. Strategie, p.121.

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habilidade de luta de seu inimigo. Seu objetivo era psicológico e intelectual: convencer os espartanos e seus aliados de que a vitória era impossível, que os atenienses suportariam facilmente o único dano que o inimigo poderia lhes infligir, a destruição da Ática, e mostrar aos aliados que os atenienses poderiam lhes causar danos consideráveis se assim o quisessem. Os esforços ofensivos, cuidadosamente calculados, de Atenas tiveram o propósito de mandar uma mensagem sem incitar o inimigo, de maneira análoga aos limitados mas calculados ataques das forças americanas no Vietnã, que visaram pressionar o inimigo sem provocar a intervenção de seus aliados chineses. Essa estratégia demandava ações delicadas e discernimento. A parte ofensiva do plano era intencionalmente causar poucos danos, pois ações muito agressivas poderiam irritar o inimigo e fortificar sua determinação. O objetivo era enfraquecer o espírito do inimigo mostrando-lhe que não havia como vencerem, arruinar sua vontade de combater. Então esperava-se que negociassem um acordo de paz que devolveria à Atenas o status quo antes da guerra, só que deixando-a mais segura pela demonstração de que não poderia ser derrubada pela força. Este era o objetivo de Péricles na guerra. Essa estratégia fracassou, assim como as manobras diplomáticas de Péricles no período que levou à guerra, de 433 a 431. Quando a Guerra Civil em Epidamnos, uma remota cidade nas periferias do mundo grego, ameaçou provocar uma grande guerra entre a Liga do Peloponeso e o Império de Atenas, Péricles adotou uma política comedida e limitada de intervenção visando deter Corinto, importante aliado de Esparta, sem levar os espartanos e todos seus aliados do Peloponeso a uma guerra contra Atenas. Essa tentativa também fracassou e resultou em uma terrível guerra que Péricles queria ter evitado. Esses grandes fracassos estratégicos provariam que seus críticos estavam certos? Foram eles resultado de covardia, falta de iniciativa e determinação? Um justo exame de seu desempenho sugere o contrário. A acusação de covardia pessoal é absurda: até mesmo PlugkHarttung admite que sua "coragem pessoal funcionava na batalha e na assembléia." Nenhum ateniense que tivesse liderado exércitos e navios em diversas batalhas, acumulando inúmeros troféus de vitória, poderia ter escapado à

condenação se tivesse

demonstrado qualquer sinal de covardia, nem tampouco poderia ter sido reeleito general ano após ano. Ele tampouco deixou de demonstrar coragem e iniciativa. Em 446, a própria sobrevivência de Atenas e seu império estava sob ameaça. As rebeliões mais ameaçadoras

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estouraram perto dali, primeiro na Eubéia, depois em Mégara. Péricles rapidamente conduziu um exército para reprimir a primeira, e com a mesma rapidez se retirou ao saber da segunda, o que abriu a porta para uma invasão peloponesa da Ática. Ele voltou a tempo de persuadir os espartanos a se retirarem e retornou imediatamente a Eubéia para suprimir as rebeliões por lá23. Mais uma vez, quando a ilha de Samos iniciou uma perigosa rebelião em 440, Péricles assumiu pessoalmente a ofensiva, agindo pronta e decisivamente, tomando os rebeldes sâmios de surpresa, por fim obrigando-os a se renderem por meio de um bloqueio marítimo. Na verdade, essas expedições foram contra oponentes inferiores, não os espartanos, e não foram batalhas terrestres importantes e sim ocorreram no elemento preferido dos atenienses: o mar. No entanto, elas mostram que a freqüente cautela de Péricles não provinha apenas de uma tendência temperamental ou defeito de caráter mas de raciocínio e cálculo. O principal motivo pelo qual ele evitava batalhas terrestres contra os espartanos e seus aliados peloponesos era porque ele estava certo da derrota: os números estavam decisivamente contra ele. No entanto, é justo dizer que ele foi mais cuidadoso do que outros generais mais audaciosos. Nenhuma pólis era pródiga em cidadãos, nas batalhas, e cabia a um general, especialmente em um estado democrático, manter a lista de vítimas a menor possível. Devemos nos lembrar que os estrategos atenienses não eram apenas líderes militares, mas também políticos que precisavam ser eleitos. Sem dúvida, Péricles se orgulhava sinceramente da prudência e da economia de sua liderança, e sua popularidade política não deveria sair ferida quando ele declarava aos atenienses que "enquanto dependesse de seu poder, eles viveriam para todo o sempre e seriam imortais."24 Tais considerações ajudam a explicar seu desempenho cauteloso; contudo, não existe prova que sugira que ele tenha sido um daqueles raros gênios militares que pertencem às fileiras de Aníbal, César, Alexandre e Patton. Estes entenderam os limites do cálculo racional na guerra e a necessidade audaz de agarrar a oportunidade quando ela se oferecia. Péricles era um "general de soldados", um Omar Bradley, ao invés de um George Patton, ou talvez um Bernard Montgomery que procura a batalha apenas quando a vantagem está bastante a seu favor. Faltava a ele o arroubo e a ousadia de um Cimon, o arrojo e a crueldade que buscam a vitória a qualquer custo. Outro elemento foi sugerido para explicar a estratégia de Péricles. "O próprio Péricles,"

23 24

Tuc.1.114. Péricles 18.1.

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diz um crítico, foi mais um almirante do que um general… O almirantado ateniense foi o que modelou a estratégia no começo da guerra. Não foi Péricles, o burgomestre (Bürgermeister), mas Péricles, o almirante, que inventou a 'estratégia da exaustão', uma estratégia que quase arruinou Atenas em poucos anos e jamais poderia ter lhe trazido a vitória.”25 Existe algum mérito nessa análise. Os atenienses sob o comando de Péricles haviam construído uma grande estratégia que era baseada no poder naval, que poderia servir a um império marítimo cuja pátria era uma ilha, como era a Grã-Bretanha, ou um poder que domina um continente e é separado de outros grandes poderes por dois grandes oceanos, como os Estados Unidos. A situação geográfica de Atenas não era tão afortunada, pois a cidade era ligada ao continente, oferecendo alvos de coerção não disponíveis aos inimigos dos grandes países anglo-saxões. Péricles tentou cancelar essa desvantagem construindo as longas muralhas que conectam a cidade a seu porto fortificado, transformando a cidade em uma ilha. Foi uma estratégia extraordinária, bem à frente de seu tempo em termos de sua confiança na razão humana e na tecnologia, mas também na rejeição aos meios tradicionais de combate que custam vidas e geram uma vantagem para o inimigo. Ao mesmo tempo, ele abandonou quaisquer idéias de expansão adicional e estabeleceu uma política que visava preservar a paz e o status quo, que servia perfeitamente aos interesses atenienses. Essa política, para ser bem sucedida, dependia, em grande medida, da racionalidade por parte de todos os envolvidos. Os atenienses precisavam se contentar com o que tinham e abandonar a esperança de estender seu poder. Sempre haveria atenienses que teriam objeção a isso. Mas enquanto viveu, Péricles teve a sabedoria e a força política para refreá-los e controlá-los. O que ele não podia controlar eram os outros estados. Mudanças inesperadas e trocas de poder são acontecimentos tradicionais na história internacional. Heródoto ressaltou as inevitáveis e imprevisíveis trocas de poder dos estados: "Eu irei adiante em minha história descrevendo igualmente as grandes e as menores cidades. Pois as cidades que eram anteriormente grandes, se tornaram, em sua maioria, insignificantes; e as que atualmente são poderosas, foram vulneráveis no passado."26 Paul Kennedy escreve no mesmo tom sobre nosso mundo ao dizer que "riqueza e poder, ou poderio econômico e força militar, são sempre relativos, e como todas as sociedades estão sujeitas à inexorável tendência de mudar, então os equilíbrios internacionais jamais podem

25 26

B.W. Henderson, The Great War Between Athens and Sparta, London, 1927, reedição New York, 1973, pp.67-68. Heródoto 1.5.

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estar imóveis, e é um disparate os estadistas suporem que estes possam algum dia assim estar."27 Essas mudanças sempre aconteceram porque as relações internacionais são guiadas apenas em parte e convulsivamente pelo cálculo racional da vantagem material. Sempre a serviço, também, estão a ganância, a ambição, os ciúmes, o rancor, a raiva, o ódio e a tríade de Tucídides: medo, honra e interesse. No mundo como tem sido, portanto, um estado satisfeito com sua situação e desejoso de preservar a paz não pode contar com uma resposta sensata para suas políticas sensatas mas deve antecipar desafios que pareçam injustificáveis. Os espartanos e seus aliados devem ter reconhecido que não possuíam estratégia realista para prometer a vitória em detrimento da confiança de Péricles na defesa e na recusa em travar uma batalha terrestre de grandes proporções, mas o rancor e a raiva contra o poder ateniense e o medo de que este poder pudesse acabar por minar sua própria aliança e sua segurança os levaram a lutar. Como é normal na história humana, eles foram mais influenciados pela lembrança do fracasso dos atenienses em travar uma batalha tradicional e em negociar a paz em 446 do que pelo reconhecimento que a nova tecnologia, na forma de longas muralhas, havia tornado desnecessário, aos atenienses, correrem o risco de tal batalha no futuro. Deter uma guerra em tais circunstâncias exigia uma ameaça ofensiva aos peloponesos, cuja ameaça era enorme e impossível de menosprezar. Essa ameaça ofensiva faria com que o medo das conseqüências imediatas da guerra fosse mais forte do que todas as emoções que conduziram à essa mesma guerra. No entanto, com a aquisição de uma frota e a existência de um vasto tesouro como apoio, além de muralhas de defesa, Péricles chegou a considerar Atenas como uma ilha invulnerável. É natural que um estado assim adotasse essa estratégia defensiva. Ele havia desenvolvido uma maneira singular e invejável de combater que se utilizava dessas vantagens e evitava grande parte do perigo e dos dissabores da guerra comum. Isso possibilitava aos atenienses concentrarem suas forças rapidamente, de maneira a atacar inimigos das ilhas e do litoral antes que estes estivessem preparados. Igualmente, lhes permitia atacar os outros sem colocar em perigo sua cidade e sua população. O sucesso nesse modo de guerrear fez parecer que fosse o único necessário, e as derrotas com grandes perdas em terra fizeram com que os atenienses relutassem em correr riscos lutando em terra. A ação ofensiva deveria ser tomada como último recurso, apenas quando fosse inevitável. Péricles levou essa abordagem a uma conclusão lógica recusando-se a usar o exército de terra 27

Kennedy, Rise and Fall, p.536.

77

mesmo em defesa de seu próprio território, e recusando-se, especialmente, a lançar esforços ofensivos que pudessem causar grandes danos ao inimigo. A veemente recusa do inimigo em enxergar a razão tornou "o modo de guerrear do ateniense" inadequado, e a estratégia de Péricles tornou-se uma forma de desejo ilusório que fracassou. Para um estado como Atenas, em 431, satisfeito com sua situação e capaz de manter o inimigo acuado, a tentação de evitar os riscos de ações ofensivas era grande, mas perigosa, pois tendia a criar uma maneira rígida de pensar que levaria homens a empregarem uma estratégia anteriormente bem sucedida, ou aquela apoiada por uma teoria geral, em uma situação em que estas não fossem apropriadas, além disso podia conter outras desvantagens. Sua capacidade de impedir inimigos em potencial de provocarem uma guerra era severamente limitada. A intimidação, ao se manter recuado, em forte posição defensiva, e portanto, tirando do inimigo o prospecto da vitória, dependia de um alto grau de racionalidade e de forte poder de imaginação. Quando os espartanos invadiram a Ática, em 431, eles devem ter pensado que estavam arriscando pouco. Mesmo que os atenienses se recusassem a lutar, mesmo que persistissem nessa recusa por longo tempo, atitudes que pareciam improváveis e incomuns, os espartanos arriscariam pouco mais do que tempo e esforço. Em todo caso, suas próprias terras e sua cidade estariam seguras. Se os atenienses tivessem tido a capacidade de atacar onde eles eram vulneráveis, e se essa capacidade fosse óbvia para todos, a estratégia de intimidação de Péricles poderia ter sido eficaz. Assim que a guerra chegou, não havia como vencer sem abandonar o modo de guerra ateniense e a estratégia de Péricles. No momento em que se encontrava moribundo, no outono de 429, sua estratégia era um fracasso. Após três temporadas de campanha, os peloponesos não demonstravam nenhum sinal de exaustão. Ao contrário, haviam acabado de recusar uma proposta de paz e continuavam lutando com a determinação de destruir o poderio ateniense para sempre. Os atenienses, por outro lado, haviam assistido suas terras e seus lares serem devastados repetidas vezes, suas lavouras e árvores serem queimadas e destruídas. Eles também sofriam com a praga que os estava matando em grande número e arruinando sua fibra moral. No relato contado no começo desse ensaio, Plutarco fala da resposta de Péricles ao elogio sobre sua habilidade militar. Ele exprimiu espanto por eles estarem elogiando o que era resultado tanto da boa sorte como de seu próprio talento, e algo que muitos outros haviam alcançado. Ao invés disso, disse, eles deveriam estar elogiando sua mais distinta e mais importante reivindicação à grandeza: "que nenhum ateniense vivo hoje vestiu roupa de luto por minha causa." (Péricles 38.4) Essa

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afirmação, as últimas palavras de Péricles relatadas a nós, devem ter assombrado seu público, como teriam surpreendido qualquer outro ateniense. Até seus amigos teriam que admitir que sua política havia contribuído, mesmo minimamente, para a guerra vindoura, e que sua estratégia teve relação com a intensidade da destruição causada pela praga. Suas palavras finais demonstram o quão profundamente ele sentiu as feridas causadas pelas acusações generalizadas lançadas contra si e sua inflexível recusa em admitir que estivesse errado. Ele havia empregado sua grande inteligência às necessidades de sua cidade, e a razão lhe dizia que ele não era responsável pelos resultados, os quais ele devia acreditar serem temporários. Se seus concidadãos tivessem a sabedoria e coragem de se ater à sua estratégia, eles sairiam vencedores. Em isso ele acreditava, assim como seu grande contemporâneo Tucídides. Mais de dois mil anos depois, Clausewitz enxergou a guerra de um modo muito diferente. "A guerra", disse ele, é mais do que um verdadeiro camaleão que muda ligeiramente suas características conforme o caso. Como um fenômeno completo suas principais tendências sempre fazem da guerra uma trindade paradoxal - composta de violência primitiva, ódio e inimizade, que devem ser consideradas uma força natural cega, do jogo do acaso e da probabilidade dentro da qual o espírito criativo está livre para perambular; e seus elementos de subordinação, como instrumento de política, o que o torna sujeito exclusivamente à razão…. Essas três tendências são como três códigos de lei distintos, enraizados em seu objeto e no entanto variáveis em sua relação entre si. Uma teoria que ignora qualquer uma dessas tendências ou busca fixar uma relação arbitrária entre elas entraria em conflito com a realidade em tal proporção que só por esse motivo seria totalmente inútil.28

Como a maioria dos generais da História e diferente de alguns gênios militares, Péricles enxergava a guerra como um fenômeno essencialmente linear, "sujeito à razão exclusivamente", e compreendia muito pouco seus outros aspectos. Por isso ele e seu povo pagaram um alto preço.

Bibliografia

BENGTSON, H. Griechische Geschichte 3. Munich, 1965. BUSOLT, G. Griechische Geschichte 3. Gotha, 1904.

28

Carl von Clausewitz, On War, editado e traduzido por Michael Howard e Peter Paret, Princeton, 1984, 1.1.28, p. 89.

79

CLAUSEWITZ, C. von. On War. Edited and translated by M. Howard and P. Paret. Princeton, 1984. DELBRÜCK, H. Die Strategie des Perikles, erlaütert durch die Strategie Friedrichs des Grossen. Berlin, 1890. ________. Geschichte der Kriegskunst, vol. 1, Das Altertum. (Reprint 1964. Berlin.Kennedy, P. 1987). The Rise and Fall of the Great Powers: Economic. 1920. HENDERSON, B. W. The Great War between Athens and Sparta. Reprint 1973. London, 1927. KENNEDY, P. The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and Military Confl ict from 1500 to 2000. New York, 1987. PFL UGK-HARTTUNG, J. von. Perikles als Feldheer. Stuttgart. 1884. RENFROE, W. J., Jr. 1990. Reprint. Warfare in Antiquity (translation of H. Delbrück, Die Strategie des Perikles, erlaütert durch die Strategie Friedrichs des Grossen. Original edition, Berlin 1890; reprint Westport, CT).

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A NATUREZA SOBREPUJADA: EMOÇÃO E REFLEXÃO NA HISTÓRIA MILITAR DE TUCÍDIDES Anderson Zalewski Universidade Federal do Rio Grande do Sul

- Como os habitantes de todo um planeta podem viver em paz! Como vocês sabem, sou de um planeta que tem estado envolvido em massacres sem sentido desde o princípio dos tempos. Eu próprio vi corpos de meninas que foram cozidas vivas numa torre d'água por meus compatriotas, que na época se orgulhavam de estar combatendo o mal absoluto. Era verdade, Billy tinha visto os corpos cozidos em Dresden. - E iluminei meu caminho à noite numa prisão com velas feitas com a gordura de seres humanos que foram abatidos pelos irmãos e pais daquelas meninas que foram cozidas. Os terráqueos devem ser os terroristas do universo! Se não há outros planetas ameaçados hoje pela Terra, logo haverá. Então me contem o segredo para que eu possa levá-lo para a Terra e nos salvar a todos. Como um planeta pode viver em paz. Billy sentiu que havia falado de modo sublime. Ficou desconcertado quando viu que os trafalmadorianos fecharam suas mãozinhas sobre os olhos. Ele sabia pela sua experiência pregressa o que isso significava: ele estava sendo idiota. Kurt Vonnegut, Matadouro 5.

Contra a história militar pesam muitos argumentos. A rejeição da violência, provavelmente, é o mais importante deles. A defesa da paz, contudo, não

implica na

ignorância do caráter belicoso das relações humanas e na rejeição de seu estudo. Nem tampouco essas atitudes são impedimento para a imposição violenta de interesses ou para a resolução violenta dos problemas entre as nações, grupos étnicos, políticos, sociais. Não sou historiador militar, mas considero o estudo do homem em situações de conflito bélico essencial para a compreensão da violência humana: agressão com objetivo de causar dano ou destruir. As guerras, por sua vez, foram e tem sido de tal forma recorrentes que a história em geral não seria compreensível caso optássemos por seguir nossos valores ignorando-a olimpicamente. No caso do Mundo Antigo greco-romano, como compreendê-lo ignorando o princípio do “soldado-cidadão”, da noção de que o cidadão deve obrigatoriamente colocar sua vida em risco para a defesa dos interesses da comunidade, pólis ou cívitas? Como estudar o surgimento da narrativa histórica entre os gregos ignorando ter

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sido a guerra o tema central da obras de Heródoto e Tucídides, nossos estranhos “paisfundadores”? Outro argumento importante a ser enfrentado pela historiografia militar é a opinião negativa sobre recorrente gênero desses trabalhos. No II Encontro Nacional da Associação Nacional de Defesa(ABED), realizado no início deste ano, uma das mesas redondas defendeu a ampliação do campo de investigação da história militar de forma que essa deixasse de ser confundida com a história de militares sobre milites e batalhas. Para tanto, talvez seja insuficiente apenas estabelecer relações com “a História Geral e outros ramos de conhecimento (Estratégia, Política, Defesa)”, como propunha a ementa daquela mesa “A história geral do Brasil e história militar do Brasil: como elas caminham juntas?”. Talvez também seja preciso abandonar a narração e análise “descarnada” de batalhas, máquinas, instituições e grandes comandantes. Para “sair do gueto”, a historiografia militar não pode ignorar o elemento terrífico de todas as guerras, tal como revelado por obras como Matadouro 5, de Kurt Vonnegut. E deve fazer isso sem sacrificar a reflexão. A Guerra dos peloponésios e atenienses, de Tucídides – daqui por diante referida como História - , foi considerada por John Keegan como um “modelo” adequado para a história militar moderna (1987, 46-52). Os Comentários sobre a Guerra da Gália, de Júlio César, por sua vez, seriam o lamentável paradigma para muitos dos componentes do “monstruoso regimento moderno dos estrategos acadêmicos”(Ibid., 41). Nas narrativas do romano estariam as principais deficiências dos estudos militares: a redução de soldados a autômatos; o ritmo descontínuo da descrições; as imagens convencionais; a seleção de determinados incidentes; o privilégio do papel de um genial comandante (Ibid., 46). Na obra do ateniense, ao contrário, os combatentes seriam atores, humanamente movidos pelo medo e dotados de vontade própria; existiria uma multiplicidade de fatores a influenciar o comportamento dos distintos exércitos; por fim, os comandantes nem sempre seriam bem sucedidos em suas intervenções (Ibid., 50-51). Essas qualidades caracterizariam a “história militar humana”, curiosamente restrita por Keegan aos mundos acadêmicos de fala inglesa, especificamente Inglaterra e Estados Unidos (Ibid., 41). Destaco duas outras peculiaridades da obra tucidideana. Além de não se restringir à narrativa de batalhas, o ateniense, seguindo as trilhas abertas por Homero e renovadas por Heródoto, não omitiu o caráter ruinoso do conflito. A escala incomparável dos sofrimentos

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causadas pela guerra era, inclusive, um dos elementos garantidores da superioridade de seu relato (I 1; 22.1).

Com efeito, nunca tantas cidades foram tomadas e devastadas, umas pelos bárbaros, outras pelos próprios beligerantes (havendo as que, ocupadas, tiveram seus habitantes trocados); e nunca foram tantos os exílios e massacres, em decorrência da guerra mesma ou dos conflitos faccionais [stáseis]. (I 23.2).

Não hesitou mesmo em reconhecer, para embaraço de muitos leitores contemporâneos, a validade das estórias que sugeriam existir uma interconexão entre as coisas humanas e as naturais:

Também o que se costumava dizer, mas era raramente confirmado de fato, tornou-se crível: os terremotos que, ao mesmo tempo, atingiram a maioria das regiões e foram os mais fortes; eclipses solares, que ocorreram com maior freqüência do que aqueles de que se lembrava terem ocorrido em tempos anteriores; grandes secas em certas regiões e, em conseqüência delas, fome; e ela, não menos causadora de dano e, em parte, de destruição, a pestilencial doença. Tudo isso, de fato, caiu sobre os gregos juntamente com esta guerra.(I 23.3)

Como esta, há diversas outras passagens em que avulta o caráter patético - eivado por emoções- advindo do estilo peculiar de seu escritor, da atenção conferida a uma gama variada de acontecimentos – encontramos até mesmo a incrível descrição de um tsunami, acontecimento paralelo a terremotos que impediram a invasão da Ática pelos lacedemônios em 426 (III 89.2). Juntamente com reflexões sobre as póleis e o homem, na paz e na guerra, comentários e juízos diversos, compõem uma obra que tem mantido a atenção de muitos de seus leitores através dos tempos. Para F. Nietzsche, o “realismo tucidideano” era a cura dos males causados aos jovens de “formação clássica” pelo moralismo platônico; uma cura nada fácil: “É preciso revirá-lo linha por linha e ler seus pensamentos ocultos tanto quanto suas palavras: há poucos pensadores tão pródigos em pensamentos ocultos.”(2006, 102-103). Houve também quem vaticinasse negativamente, deplorando a restrição do campo histórico ao ruinoso universo dos conflitos militares (Momigliano, 1993, 124). Analiso, neste texto, um elemento em particular do complexo escrito tucidideano: o recurso à idéia de natureza humana (anthropeía phýsis). O ponto de partida é uma pequena passagem de uma de suas narrativas mais patéticas e reflexivas: a stásis de Córcira (III 7485), pólis que existiu na ilha hoje nomeada como Corfu. O conflito faccioso entre democratas

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e oligarcas daquela colônia coríntia foi, segundo o próprio Tucídides (I 33. 4), desencadeador do conflito que convulsionou a Hélade entre 431 e 404. Nesta narrativa uma passagem em particular despertou minha atenção quando da realização de meu doutoramento: aquela em que é usada a idéia de natureza (phýsis, em grego; natura em latim) para comentar a participação feminina no conflito. A partir dela desenvolvo, a partir de elementos de minha tese, minha análise sobre a natureza humana sobrepujada na escrita da guerra entre peloponésios e atenienses, deixando de lado as demais, com o sentido exatamente oposto. Na obra tucidideana, há um verdadeiro debate a respeito da natureza e da relação dos indivíduos com seus imperativos.

Natureza e reflexão Em português, natureza pode significar, entre outras coisas, “mundo material”, “universo”, “a realidade, em detrimento de quaisquer artifícios ou efeitos artísticos”, “combinação específica das qualidades originais, constitucionais ou nativas de um indivíduo, animal ou coisa”; “caráter inato”, “condição de selvagem, primitivo, não cultivado”(Houaiss, 2004). Como entender tal multiplicidade de sentidos? Uma possível resposta pode estar na relação dos termos grego e latino com as noções de nascimento e crescimento. Estas idéias estariam presentes na raiz phy- que, segundo H. Murachcco, teria o sentido de brotar, crescer (1996, 14).

O verbo phýein

significa, na voz ativa, "produzir, fazer brotar, nascer, crescer", e, na voz média, "brotar, nascer, crescer". Phýsis corresponderia, pois, à ação de crescer, significado resultante do sufixo -sys que tem, como os sufixos -tione (latino) e -ção (português), o sentido de realização do ato verbal (Idem). Em seu estudo sobre a idéia de natureza, Robert Lenoble afirma existir idêntica relação entre o termo latino natura e as noções de nascimento e crescimento: natura também significa produzir, fazer nascer e crescer. Natura teria sido escolhida como sinônimo de phýsis porquanto os outros possíveis sinônimos latinos "eram demasiado precisos e comprometidos em uma significação determinada para poderem assumir a importância de uma palavra grega de sentidos complexos e múltiplos" (Lenoble, 1969, 229-230). Na opinião de Casini, é esta relação da idéia de natureza com o tema do nascimento que confere a ela sua amplitude de

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significado, pois faz com que sua análise, independente do significado particular assumido pelo termo, revele "a reflexão sobre tudo o que tem ou a que se atribui um nascimento, um ciclo vital e uma morte (como os indivíduos vivos e as espécies, as sociedades humanas, os corpos celestes e o mundo físico no seu conjunto)" (1988, 7). Esse caráter da idéia de natureza se mantém mesmo na hipótese de que o sentido básico de phýsis seja outro. G. S. Kirk, em seu comentário sobre os fragmentos de Heráclito, é de opinião que a raiz phy- implica simplesmente na noção de existência porque, em um "estágio primitivo" de linguagem, não há distinção clara entre “tornar-se” e “ser” (1954, 228). A acepção mais geral de phýsis seria a de “essência”, designando as características internas e externas de um ente ou coisa e seu comportamento normal (Ibid., 228-231). Desta acepção todas as demais seriam derivadas, ainda que a idéia de crescimento não seja excluída e possa ser enfatizada em ocasiões particulares (Ibid., 229). Por outro lado, G. B. Kerferd também observa que apenas ocasionalmente phýsis foi usada para significar algo como "nascimento, gênesis ou crescimento", mas que foi pela sua relação com tais sentidos que ela foi freqüentemente usada denotando as coisas são o que são porque cresceram ou tornaram-se de tal forma (1995, 111). Portanto, parece ter existido uma relação estreita entre as idéias de natureza, de crescimento e de caráter das coisas existentes. Isso pode explicar porque, da Antigüidade aos nossos dias, a idéia de natureza sempre este esteve ligada à reflexão sobre a realidade e sobre o homem. O sentido de essência é adequado à redução da multiplicidade e das particularidades à uma única palavra, capaz de sintetizar entendimentos, sustentar juízos, obter a adesão de ouvintes e leitores, de orientar a ação. Na retórica moderna, idéias como a de natureza são “esquemas argumentativos”. Seu estudo inclui o exame da relação entre elementos de uma argumentação e a definição “dos tipos de argumentos (lugares) que permitem propor uma premissa, mas precisamente uma premissa maior, à qual se pode depois subsumir o caso em questão”(Reboul, 1998, 162). Dentre estes lugares estariam aqueles “fundados na estrutura do real”, isto é, aqueles cujo manipulador pressuporia como “elos reconhecidos entre as coisas”(Ibid., 173). Phýsis, natura, natureza sempre foram termos privilegiados para a elaboração e transmissão de conceitos genéricos sobre a realidade, os fenômenos e seres. Permitem a explicação de um acontecimento pela sua ligação à uma dimensão explicativa (Perelman, Oldebrechts-Tyteca, 2005, 133). Para Clément Rosset, existe uma verdadeira concepção de mundo subjacente à

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idéia de natureza: a "forma geral da crença de que alguns seres devem a realização de sua existência a um princípio alheio ao acaso (matéria) e aos efeitos[artifícios] da vontade humana" (1989, 24). “Natureza” pertence a uma trilogia ontológica que distingue três grandes domínios da existência: o artifício (o que é fruto da ação humana), a natureza e o acaso (ou matéria). De Platão a Aristóteles, e até hoje, a definição de natureza nunca deixou de ser negativa: ela é apresentada como o aquilo que não é fruto da ação humana ou do acaso. Em cada situação, contudo, o sentido e as implicações do uso da idéia de natureza deverá ser cuidadosamente avaliado pelo contexto de utilização, textual, social e histórico.

A natureza e o humano A partir do século V, proliferaram entre os gregos as aplicações de phýsis ao domínio humano, resumindo, conforme intenções as mais diversas, diferentes entendimentos da realidade. Segundo A. Adkins, essas aplicações indicam consciência do sentido etimológico do termo (1970, 79). Um resultado do processo de crescimento, argumenta o autor, é a aparência de alguém, sentido de phýsis em passagens como a das Traquínias(308), de Sófocles, em que Dejanira deduz pela aparência(phýsin) de Iole que esta é uma inocente virgem. Outro aspecto decorrente do nascimento é a ascendência de um indivíduo – em Electra (325) está escrito que Crisótemis é, por phýsis (no sentido herança transmitida pelos antepassados), filha do mesmo pai que Electra. Podia-se atribuir a natureza de um povo ao caráter étnico transmitido pelo nascimento. Em Heródoto, Creso diz serem os persas violentos por natureza e, por isso, pobres (I 89.2). Adkins destaca o discurso de Hermócrates, na História de Tucídides, no qual o siracusano, procurando ser persuasivo, afirma que, em caso de aliança com os atenienses, os camarineus estariam auxiliando “inimigos naturais” e destruindo “parentes naturais”(VI 79.2). A comunidade determinada pelo sangue deveria determinar o comportamento dos camarineus. Mas se ela deveria determinar é porque as prescrições naturais não eram absolutamente imperiosas. Anteriormente, o próprio Hermócrates apontara a cobiça como a razão do ataque ateniense à Sicília, e não a rivalidade das raças jônia e dórica (IV 61.3). O elo natural podia ser superado. Adkins também oferece diversos exemplos em que phýsis serviu para estigmatizar indivíduos de certa extração social, como é dito em um fragmento que um grego de "baixo

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nascimento", mesmo sendo inteligente, não podia esconder sua natureza (1970, 79). A consideração de capacidades inatas como princípio necessário para toda a areté, excelência, era um pensamento generalizado, tendo tido sua formulação mais destacada na ética aristocrática (Heinimann, 1945, 100-101). No entanto, o avanço do "Novo Pensamento" sofístico fez com que as eventuais qualidades de um indivíduo pudessem ser desligadas de sua origem social (Ibid., 80). Os sofistas contradisseram a tese de que as capacidades superiores eram inatas e exclusivas da aristocracia (Heinimann, 1945, 98-101). Todavia, entre os sofistas encontra-se tanto o culto da phýsis humana, em oposição a toda a qualidade secundária aprendida, quanto a acentuação da necessidade do aprendizado e do exercício para alcançar a excelência (Ibid., 100-101). Protágoras, por exemplo, defendeu a idéia de que inexistia um fundamento último, como a phýsis do mundo ou do homem, passível de ser utilizado na busca de uma sociedade que conciliasse ordem e autonomia (Farrar, 1990, 44-98). Já Antifonte concebia a anthropeía phýsis como a verdadeira essência do ser, fonte das normas que deveriam guiar o comportamento humano. Estas normas, segundo o sofista, eram contrariadas pelos nomoi, externos ao indivíduo, contingentes e artificiais, isto é, não decorrentes das disposições naturais do homem (Ibid., 115-119). Esta concepção da phýsis humana como fonte de exigências rigorosas e inescapáveis, opostas às determinações das leis, também é encontrada, como já foi diversas vezes apontado, no Cálicles platônico (Ibid., 122; Guthrie, 1995, 98-101). No caso de Cálicles, é de especial relevância o destaque conferido ao imperativo natural do domínio do mais forte – argumento significativo até os dias de hoje em discussões sobre política e justiça. O nomos, a lei, era visto por Cálicles, a exemplo de Antifonte, como uma limitação ao comportamento conforme a natureza, correspondendo ao desejo do mais fraco e não ao interesse coletivo (Farrar, 1990, 122). Deve-se destacar, por outro lado, que a associação de phýsis com a idéia de estado normal liga-se à noção de uma natureza normativa: a essência verdadeira, a natureza real, é o próprio a um ser, a um fenômeno, a uma coisa qualquer (Ibid., 106-08). Se algo possui uma essência verdadeira, deve existir um estado, um comportamento, conforme tal essência. É o que se verifica na passagem (II 38. 2) em que Heródoto escreve que um sacerdote egípcio examina a cauda dos touros a serem sacrificados para ver se os pêlos tinham crescido naturalmente (katá phýsin). Ou quando o historiador observa que o rio Ístros, no inverno, sobe pouco acima da medida normal (IV 502).

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Adkins, todavia, ressalva que, aos olhos do "grego comum", a natureza não determinava completamente os comportamentos (1970, 82). Uma qualidade natural podia ser treinada e, no caso dela ser positiva, podia mesmo ser acentuada através de estratagemas. Em Heródoto, Pixodaros sugere que os cários combatam de costas para o rio, pois desta maneira sendo impossível fugir, ou recuar, e sendo preciso manter posição - eles poderiam aumentar sua bravura inata (V 118.2). A concepção de uma natureza humana mutável também se encontra em Demócrito, no fragmento em que é dito: "A natureza e a instrução são algo semelhante, pois a instrução transforma o homem, mas, transformando-o, cria-lhe a natureza"(DK 68 B 29-34). Portanto, como visão sintética da realidade humana, a idéia de natureza já era nos tempos de Tucídides, como nos atuais, elemento essencial para o entendimento e para diversas lutas, como a persuasão com vistas à direção dos acontecimentos ou à conquista do leitor.

A natureza sobrepujada: emoção e pensamento Quando Tucídides passa a narrar a sucessão de acontecimentos que levou às mais abjetas conseqüências do conflito civil em Córcira, ficamos sabendo que aquela cidade já estava há certo tempo convulsionada (III 70). É uma narrativa que apresenta dramaticidade ascendente. O conflito de facções tinha iniciado com o retorno dos corcireus aprisionados pelos coríntios na batalha naval ocorrida em 430, logo depois da admissão de Córcira na aliança ática (I 45-55). Eram, em sua maioria, homens que, pelo seu poder, ocupavam uma posição de destaque. Os coríntios tinham vendido os prisioneiros escravos, mas tinham cuidado, com zelo, dos notáveis corcireus, de forma a contar com seu auxílio para fazer com que Córcira abandonasse a aliança com Atenas. Uma vez em sua cidade, escreveu Tucídides, os ex-prisioneiros começaram a articular a defecção desejada por Corinto, confabulando com cada um de seus concidadãos (III 70.1). O historiador descreve então um progressivo acirramento das relações dentro da pólis, catalisado por intervenções de emissários dos demais helenos interessados no resultado do conflito. Foi sob o constrangimento da presença de enviados atenienses e coríntios que, inicialmente, os corcireus votaram pela manutenção da aliança defensiva com Atenas e, ao

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mesmo tempo, das relações amistosas com os peloponésios (III 70.2). Tucídides não fornece nenhum detalhe das articulações e manobras políticas que resultaram em tal decisão. Aparentemente, fora um tentativa de manter certa neutralidade em relação às disputas entre as grandes potências do mundo grego. Teriam os corcireus acreditado que essa decisão seria eficaz? A. W. Gomme - cuja memória provavelmente ainda guardava a lembrança dos acontecimentos de Munique, em 1938 - observou que os gregos podiam, “como nós”, acreditar em uma “diplomacia de faz-de-conta, de auto-engano”(1956, 360). Por outro lado, o partido dos peloponésios, ainda segundo Gomme, pode ter obtido uma vitória com a reafirmação dos termos do tratado com Atenas e da “velha amizade”. De qualquer forma, aquela foi, na História, a última deliberação autônoma dos corcireus. Em seguida, os partidários dos peloponésios processaram Pítias, acusando esse próxenos, representante, dos atenienses, e líder do dêmos, de pretender submeter Córcira à Atenas (III 70.3). O processo terminou com a absolvição do acusado, o qual contra-atacou a facção adversária acusando os cinco homens mais ricos de cortar cepas do santuário de Zeus e Alcínoo (III 70.4). A vitória foi, então, do acusador, e os condenados se refugiaram em santuários esperando negociar o valor ou a forma de pagamento da pena que lhes fora imposta. Foram frustrados nesse desígnio pela ação de Pítias que, sendo um dos conselheiros, convenceu a Boulé a manter os termos da penalidade. Quando, além disso, ficaram sabendo que o líder do dêmos usaria de sua posição no Conselho para convencer os corcireus a estabelecer uma aliança defensiva e ofensiva com Atenas, os condenados e seus partidários radicalizaram: invadiram inopinadamente o recinto da Boulé, assassinando Pítias e cerca de sessenta outras pessoas, conselheiros e particulares (III 70.6). Tucídides concluiu sua narração desse episódio informando que um pequeno número de partidários dos assassinados conseguiu refugiar-se em uma trirreme ateniense, que permanecera fundeada em um dos portos da cidade (Idem). O recurso à violência marcou o definitivo rompimento da ordem, a alteração definitiva das condições de vida dentro de Córcira. Uma nova assembléia foi então realizada, mas na situação determinada pelo conflito faccioso (III 71.1-2). Os conspiradores justificaram seus atos dizendo que fora o melhor a ser feito para evitar a escravização de sua cidade pelos atenienses: o morticínio de algumas dezenas de cidadãos era desculpável em vista do mal maior que seria a perda da liberdade de todos. Coagidos, os corcireus aprovaram a proposição dos oligoí: a partir de então, somente receberiam atenienses ou peloponésios caso eles

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chegassem a Córcira com apenas uma nau, e aqueles que violassem tal determinação seriam considerados inimigos (II 74.2). Uma embaixada foi enviada a Atenas para apresentar os fatos conforme a ótica dos sediciosos e para dissuadir os novos exilados corcireus de fazer qualquer ato agressivo ( III 71.2). A embaixada fracassou, os enviados foram presos em Egina e, nesse meio tempo, em Córcira, as ações se precipitaram. Os “detentores do poder”, com a chegada de uma trirreme coríntia e de uma embaixada lacedemônia, atacaram e venceram o dêmos (III 72.2). O corpo político e o próprio território da cidade foram divididos pelo facciosismo. Ao anoitecer, o dêmos refugiou-se na acrópole, em outras partes altas da cidade e na área do porto Hilaico; já seus oponentes ocuparam a ágora, “onde a maioria residia”, e o porto vizinho (III 72.3). Enquanto se enfrentavam em escaramuças, prossegue a narrativa, os dois lados buscaram, através de mensageiros enviados ao campo, o apoio de escravos, prometendo, em troca, a liberdade – estratégia extrema em qualquer sociedade escravocrata. A maioria servil optou por defender o dêmos e os oligarcas contrataram 800 mercenários do continente para auxiliá-los (III 73). Então:

Depois de um dia de intervalo, o combate foi retomado e o dêmos venceu graças à força de suas posições e a seu número. As mulheres, ousadamente, participaram conjuntamente lançando telhas do alto das casas e, contrariamente à sua natureza, suportaram [hupoménein] o tumulto. (III 74.1)

No Discurso Fúnebre, Péricles dissera que os heróis atenienses, entre a opção de fugir, assim sobrevivendo, e a de sustentar (hupoménein) sua posição, arriscando suas vidas, tinham escolhido a segunda alternativa. Ao invés de terem sobrevivido e ganho a fama desonrosa de covardes trânsfugas, tinham morrido, e o ápice de suas vidas tinha sido marcado pela glória e não pelo medo (II 42.4). As mulheres do dêmos corcireu tinham agido de forma semelhante. Ao invés de fugirem, ou permanecerem escondidas em suas casas, tinham optado por combater. Assomaram aos telhados e de lá lutaram, não com espadas ou lanças, ou mesmo com pedras, mas com as telhas dos seus lares. “Contrariamente à sua natureza”, mantiveram suas posições, suportaram o tumulto característico de uma refrega, contribuindo para a vitória de seus pais, maridos, irmãos, tios, etc. Algo semelhante ocorrera durante a frustrada tentativa de conquista de Platéia pelos tebanos, tal como descrita por Tucídides (II 2-6). Durante o terrível tumulto que então se

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estabelecera, mulheres e escravos tinham também subido nos telhados e, soltando gritos e chorando, jogado pedras e telhas sobre os atacantes (II 4.2). Em Platéia, como em Córcira, as mulheres participaram ativamente do que eram usualmente excluídas. Como se sabe, ao homem (grego ou romano), cabia as atividades cívicas como a guerra; às suas mulheres, a geração de descendentes, a casa e suas tarefas. Apenas no universo mítico das Amazonas a regra poderia o inverso desse preceito (Hartog, 1999, 232-240). Em Platéia, tratou-se de uma guerra contra um inimigo externo; em Córcira, de uma guerra civil – das duas, o pólemos mais atroz de acordo com as Leis de Platão (I 629d). Ao invés de serem, junto com crianças, as simples vítimas costumeiras, foram agentes que criaram, e suportaram, o pandemônio característico de uma refrega. Houve ainda, no caso de Platéia, pelo menos uma mulher que ajudou os traidores de sua cidade. Como soía acontecer em situações semelhantes, plateus conspiraram para a entrega de sua cidade ao invasor, liderados por Eurímaco, um poderoso: dynatós (II 2). Ela não lutou como as outras, mas forneceu a uns poucos tebanos o machado com que arrombaram uma porta desguarnecida e, através dela, fugiram da armadilha que se tornara a cidade que tinham invadido (II 4.4). Há poucas as passagens na História em que as mulheres são atores dos acontecimentos, mesmo que secundários. Na opinião de G. Crane, isso é explicado pela concepção “minimalista” que Tucídides tinha de seu gênero narrativo:

privilegiava, quase

que exclusivamente, o universo instaurado pela comunidade de cidadãos (1996, 1-26.). No caso específico das mulheres, sua ínfima importância na História é fruto da pouca atenção que seu autor consagrou à família, uma das antigas realidades que rivalizavam com a pólis (Ibid., 84). Outra razão, de menor peso, aduziu Crane (Ibid., 75), consistiu na conhecida misoginia helênica, da qual Tucídides parece ter sido ardoroso partidário, pelo menos em seu escrito. No final do Discurso Fúnebre, Péricles dirigiu-se de forma breve, mas significativa, às mulheres cujos maridos tinham se tornado modelos de cidadãos ao optarem pela morte honorável e gloriosa:

Se eu devo dizer algo sobre a excelência [areté] das esposas para aquelas mulheres que são agora viúvas, exprimirei tudo com um breve conselho: será grande vossa glória se não vos afastardes do que é próprio à vossa natureza, e se tiverdes a menor fama entre os homens, por virtudes ou por defeitos. (II 45.2).

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Alguns autores, incomodados com a severidade dessas palavras, tentaram mostrar comporem elas um elogio (Rhodes, 1988, 226). É uma tarefa penosa, senão impossível. Enquanto a glória dos homens era ter sua fama cantada pelos aedos, preservada em epígrafes funerárias e monumentais, reverenciada em discursos cívicos, a das mulheres era “não terem glória”(Loraux, 1988, 23). A virtude das esposas consistia em não serem, por boas ou más razões, objeto da atenção dos homens e da cidade, fossem elas vivas ou mortas. Uma vez falecidas, o elemento aferidor da sua excelência devia ser, no âmbito da comunidade política, o silêncio; no âmbito da família, a reticência das poucas palavras de seus epitáfios: “O tempo jamais apagará em teu marido a lembrança eterna de teu valor, Nicoptoleme”; “Por ocasião de sua morte, Ciripe recebeu no mais alto grau aquilo que é no mundo o elogio mais nobilitante das mulheres”; “Mais que ninguém no mundo, Antipe, recebias o elogio adequado às mulheres, e agora, que estás morta, ainda o recebes”(Ibid., 21, 57, 58). Como pensava Demócrito, “Falar pouco é adorno para a mulher, mas belo também é a parcimônia de adorno” (DK 68 B 273). Teriam as mulheres gregas se submetido ao desiderato masculino? O mesmo Demócrito teria escrito: “Uma mulher é muito mais fina que um homem para maus pensamentos”, razão suficiente para recomendar: “Não se exercite a mulher na palavra; pois isso é coisa perigosa” (DK 68 B 137 e 273). Uma admoestação só tem sentido quando há a possibilidade do advertido agir conforme, ou contrariamente, ao que lhe é aconselhado. Péricles não precisaria dispensar uma contrariada atenção – “Se eu devo dizer algo...” - às viúvas dos heróis atenienses, caso as determinações da natureza fossem inescapáveis. Não seriam necessárias as breves palavras do estratego se a essência daquelas mulheres não permitisse outra alternativa que não a de obedecer ao ditame de recolherem-se ao anonimato, de tornarem-se invisíveis. Por outro lado, a avaliação deste tema leva à análise de outros episódios sobre as alternativas de superação das determinações naturais. Como no discurso dos anônimos atenienses por ocasião do debate em que lacedemônios e aliados decidem pela guerra (I 6788). Tucídides - provavelmente tendo conhecimento das proposições gerais feitas e do contexto no qual foram apresentadas, caso tenha seguido a metodologia anteriormente apresentada (I 22. 1-4) - julgou pertinente a seguinte reconstrução das palavras dos cidadãos de Atenas:

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São dignos de louvor os que, seguindo a natureza humana e assim dominando outros, vêm a ser mais justos do que era de se esperar pela força que têm à sua disposição. Outros, em todo caso, depois de assumirem a nossa posição, mostrariam se somos ou não moderados; para nós, porém, contra a expectativa, da moderação resultou mais um descrédito que um louvor. (I 76.3)

Não se fala aqui da natureza das mulheres, ou das viúvas. O império de Atenas é justificado pelo argumento de que é da phýsis do gênero humano dominar terceiros. No Diálogo Mélio, famosa passagem da obra tucidideana, outros anônimos atenienses argumentam - contra a ameaça de desfavor divino sugerida pelos mélios - que dominar era resultado de uma coerção natural a que estavam sujeitos, desde sempre, homens e deuses (V 105.2). Mesmo argumento é usado por Hermócrates para defender a concórdia entre as cidades da Sicília e sua união contra a ameaça ateniense (IV 61). Nessa arenga, o siracusano alega que era compreensível que Atenas se expandisse, porque era da natureza humana dominar os que se submetiam; mas também era inerente à mesma natureza resistir aos agressores. Os atenienses dizem dominar porque eram humanos, mas serem admiráveis neste aspecto pois, mesmo agindo conforme a natureza, eram mais justos do que a maioria dos dominadores. Se havia um imperativo natural que fazia o mais forte submeter o mais fraco, ele podia ser moldado pelos indivíduos e póleis. Teriam sido também dignas de elogio as gregas que transgrediram os estritos limites instituídos para o seu sexo? Tucídides as teria considerado como heroínas de seu gênero, como hoje o faríamos? Ou foi apenas um recurso para cativar o leitor pelo seu caráter patético? Sua reflexão sobre a guerra e a stásis parece confirmar a opinião dos comentadores que concluíram pela hipótese negativa: na História, as mulheres gregas são, em geral, agentes irracionais em contextos patologicamente alterados. As mulheres de Córcira não teriam feito nada de admirável aos olhos do historiador. Pelo contrário. Na História, a expressão pará phýsis só é empregada uma outra vez, por Alcibíades, em seu discurso de defesa da expedição contra a Sicília (VI 17-18). Nele o jovem ateniense alega ter sido graças a sua juventude e a sua “loucura contra a natureza” que ele agira de forma a conseguir a aliança com Argos (VI 17.1). Na opinião de Gomme, como o grego não considerava a ousadia decorrente da “falta de inteligência” contrária à “natureza da juventude”, pará phýsin significaria, na passagem, “contrária à natureza do homem equilibrado e saudável”(1970, 249). O comportamento de Alcibíades seria considerado uma aberração, ou porque simplesmente discrepava das atitudes normais do homem, ou porque,

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em sendo anormal, também violava a natureza, visto que os costumes e atitudes normais podiam ser considerados adequados à uma ordem normal das coisas. A participação auxiliar das mulheres na stásis poderia ter sido considerada igualmente aberrante por Tucídides. A analogia com os mortos atenienses do Discurso Fúnebre somente serviria para mostrar como elas tinham se afastado do seu comportamento normal, adequado à prescrição masculina do que deveria ser a excelência feminina. Em um arremedo de combate guerreiro, do alto de telhados, sem armas adequadas, sem a morte glorificadora, tinham participado de algo estranho ao universo das situações que eram adequadas a sua natureza. Ou talvez, assim agindo, elas tenham contrariado a ordem natural das coisas em geral. O que importa, é que, se essa interpretação for correta, Tucídides apelou à phýsis para sustentar e legitimar sua concepção do comportamento ideal feminino. Ao falar de natureza das mulheres o historiador apresentou como universais, lógicas, naturais, normais, a sua visão particular de como deveria ser o mundo. Por outro lado, poder-se-ia supor que o comportamento transtornado das mulheres exemplificasse como a situação de conflito propiciava a superação das naturezas, do comportamento corriqueiro de todos os seres humanos. Tucídides pode ter procurado obter um efeito dramático ao mesmo tempo em que expressava o caráter radicalmente perturbador de um conflito civil. Na sua história de Roma, muito tempo depois, Tito Lívio também desenhou quadro semelhante pela descrição do comportamento das etruscas de Veios invadida pelos romanos: tinham elas, juntamente com seus escravos, subido nos telhados e de lá jogado pedras e telhas sobre o inimigo (IV 21.10). Na História, a stásis de Córcira tens mais alguns capítulos, culminando na terrífica narração que antecede a reflexão geral de seu autor sobre a guerra civil. Depois de perceberem a fuga da frota peloponésia e a aproximação da ajuda ateniense, escreveu Tucídides, os democratas corcireus iniciaram a matança de seus inimigos. O ateniense não descreve uma vingança motivada apenas por ódios políticos, pois também foram liquidados inimigos pessoais e credores. Durante sete dias desenrolaram-se massacres, tendo Tucídides concluído que ocorreram: “todas as formas de morte e todas as coisas que costumam acontecer em situações como essa e mesmo piores: pais mataram seus filhos, homens foram arrancados dos santuários e mortos nas proximidades, outros, enclausurados no templo de Dioniso, lá pereceram.” (I 82.1). Estes, observou Tucídides, foram os “cruentos” fatos causados pela stásis, os quais continuariam ocorrendo “enquanto a natureza humana

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continuasse sendo a mesma”, sendo “mais severas ou mais brandas, e variando em sua forma de acordo com as circunstâncias de cada caso.” (III 82.2).

Na paz e na prosperidade, as cidades e os indivíduos têm melhores juízos por não caírem em necessidades imperiosas, mas a guerra, que suprime a facilidade de cada dia, é uma mestra de comportamentos violentos, e adapta as paixões da maioria às circunstâncias. (III 82.2)

Depois de uma longa narrativa sobre um caso especifico de conflito interno, Tucídides inicia com estas palavras sua reflexão o fenômeno endêmico na Hélade de então. Em contexto de conflito, o homem sucumbia às circunstâncias restritivas de sua sobrevivência e cometia atos abomináveis. A única saída seria a superação da natureza humana e a instauração da paz, se isso fosse possível. Conjugando narração e reflexão, explícitas como esta, e implícitas pelo manejo de idéias como a de natureza humana, Tucídides escreveu um história militar que pode, hoje, fornecer alguns elementos para o aprimoramento do gênero.

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A GUERRA DO PELOPONESO E OS USOS MODERNOS1 Pedro Paulo A Funari2 UNICAMP

A Guerra e o Ocidente

A guerra do Peloponeso foi a primeira grande guerra do período do mundo ocidental, e continuou, durante séculos, a ser um tema de discussão tanto para os militares quanto para os políticos. Compreende-se essa perenidade por várias razões. Antes de tudo, trata-se do primeiro conflito entre duas alianças políticas de características nitidamente diferentes: de um lado, uma democracia dinâmica e comercial, do outro, uma potência militar terrestre e oligárquica. Atenas e Esparta, ainda que tivessem por coadjuvantes seus aliados, mantiveramse, durante mais de dois mil anos, como modelos a se imitar ou a se evitar. Há, em seguida, a narrativa do historiador Tucídides que teve um papel maior. Com efeito, para além da importância do conflito, é própria existência dessa narrativa detalhada e comentada que apaixonou as pessoas e continua a interpelá-las ainda hoje. Mais do que nunca, podemos dizer que é a narrativa do historiador coetâneo dos fatos que foi determinante para nossa percepção da História até os nossos dias.

O sucesso de Tucídides na Antigüidade

A obra de Tucídides já era conhecida e apreciada pelos contemporâneos do autor, dentre os quais, o filósofo Aristóteles, que foi preceptor do jovem Alexandre, o Grande, da Macedônia. Tendo conhecido a guerra e a interpretação que dela fez Tucídides, Aristóteles transmitiu, a seu aluno Alexandre, os ensinamentos que tirou dela. Entre as lições de seu mestre filósofo, Alexandre deve ter apreendido a idéia de que as cidades gregas sofriam de uma grande fragilidade, por causa, principalmente, de uma falta de coordenação entre elas: as alianças entre as cidades independentes eram instáveis, e só o poder real podia garantir uma 1

Traduzido do original francês por Luciano César G. Pinto. Pedro Paulo A. Funari, professor de História Antiga e de Arqueologia Clássica na Universidade de Campinas, Brasil, pesquisador associado à Universidade do Estado de Illinois, Estados Unidos, e à Universidade de Barcelona, Espanha. 2

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unidade. A arkhḗ (ἀρχή) de Atenas – ainda que traduzida por “império” – não tinha nem o objetivo nem os meios de conquistar as outras cidades; tampouco reunia a cidade as condições necessárias para manter uma administração imperial viável. Sendo rei da Macedônia, com uma organização política e militar muito eficaz, a conquista da Grécia pareceu a Alexandre não só possível, mas até mesmo fácil. O objetivo de Alexandre era bater um império extenso, e, para isso, ele tinha de evitar as armadilhas das alianças militares, tais como as ligas das cidades gregas (liga de Delos, liga do Peloponeso). Ademais, pode supor-se que a idéia de associar os orientais, e, mais precisamente, as elites do Oriente, à administração imperial deve-se muito aos fracassos políticos dos atenienses, mesmo se, sobre esse assunto, as fontes antigas são sucintas. Quanto aos romanos, eles conheceram tardiamente a narrativa do conflito grego do fim do século V. Se a expansão romana dos primeiros séculos nada deve à guerra do Peloponeso, sua influência ampliou-se no fim da República. Por outro lado, essa influência não se deu de modo direto, pois os romanos não gostavam de reconhecer suas dívidas em relação aos gregos, sobretudo no que concerne às questões militares. Tucídides (460-395 a.C.) era leitura corrente desde o século II a.C., e o primeiro historiador latino, Salústio (86-34 a.C.), escreveu sua monografia sobre as guerras romanas sob a influência direta do mestre grego e de sua análise da guerra do Peloponeso.

Busto de mármore de Tucídides, cópia romana da escultura original grega, Museu Nacional, Belgrado.

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Em primeiro lugar, Salústio introduz, em latim, usos lingüísticos gregos, como o dativo de interesse (datiuus iudicandis), para falar da participação do povo no exército: “Pensava-se que a plebe não queria servir o exército” (neque plebi militia uolenti putabatur, Salústio, Guerra de Jugurta, LXXXIV, 3).Como no caso de Atenas, Salústio interpreta o conflito interno à cidade como uma oposição entre um partido democrático e os oligarcas, o partido popular sob o comando de um general honesto e os aristocratas conduzidos por militares incompetentes e ávidos por poder. O discurso de um líder do partido popular, C. Memmius, emprega modos de expressão gregos para descrever as conspirações dos aristocratas: “Como eles têm o mesmo objetivo, o mesmo medo do inimigo, uniram-se num grupo fechado” (quos omnes eadem cupere, eadem odisse, eadem meture in unum coegit, Salústio, Guerra de Jugurta, XXXI, 14).

Dois hoplitas, Khairedemos e Lykeas, mortes durante a guerra do Peloponeso, arte clássica, estela funerária, cerca de 420 a.C., Museu arqueológico do Pireu.

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Na época do apogeu do Império romano, outro historiador latino, Tácito (55-120 d.C.) associa o novo regime, o Principado (27 a.C.-285 d.C.), à leitura de Tucídides e dos historiadores do fim do século V e início do IV a.C., que imitavam seu estilo. Primeiramente, é notável que o próprio Tácito imitava o estilo de Tucídides.

Contudo, ele não tinha as

mesmas preocupações que o autor grego, que tomava o cuidado de não mencionar os detalhes da vida pessoal das personagens históricas; nenhuma palavra da parte de Tucídides sobre as relações entre Péricles e Aspásia, sua mulher. Tácito, pelo contrário, descreve os humores de diferentes atores da vida pública. Nesse respeito, Tácito estava mais próximo de sua época e de Plutarco (46-120 d.C.). Por outro lado, suas descrições simpáticas dos povos submissos ao poder imperial ecoam o realismo tucididiano acerca dos cidadãos de Melos 3 . O famoso solitudinem faciunt pacem appellant (“fazem um deserto e chamam-no paz”) não está muito distante do que o poder imperial de Atenas fazia as cidades gregas passarem: sob o Império, a paz assemelhava-se mais a um deserto.

A guerra do Peloponeso e seu uso pelos contemporâneos

A guerra do Peloponeso não deixou de ser, até os nossos dias, uma narrativa histórica maior. Pode parecer espantoso ver como recorrente um uso político contemporâneo de um conflito tão distante no tempo e concernente a uma realidade histórica tão específica quanto a das cidades gregas. Com efeito, os primeiros modernos a lerem, relerem e a se inspirarem em Tucídides foram as elites britânicas. Desde os primórdios da Inglaterra moderna, nascida dos conflitos com o continente, os ingleses abandonaram todas as pretensões de potência terrestre 3

Melos: cidade grega situada na ilha de mesmo nome, no arquipélago das Cíclades, e que fazia parte, a partir de 426 a.C., da liga de Delos (aliança militar que funcionava como o instrumento organizador de império de Atenas, a cidade hegemônica da liga). A cidade de Melos, não querendo obedecer a Atenas, foi tomada pelos atenienses e sofreu uma punição extrema, conforme a narrativa de Tucídides (V, 116): “Estes [os atenienses] massacraram todos os homens com idade de servir que caíram em suas mãos. As mulheres e as crianças foram vendidas como escravos. Em seguida, quinhetos colonos de Atenas foram enviados a Melos e estabeleceram-se na ilha”. Certamente, o ponto de comparação mais importante, e que suscitou grande número de análises contraditórias, é o debate entre os cidadãos de Melos e os atenienses (V, 91-93) antes do início das hostilidades. Atenienses: “[...] Mais perigosos são os povos assujeitados que se insurgiram contra seus senhores e os venceram. Mas, se nós estamos dispostos a correr esse risco, o problema é nosso. O que queremos que compreendais, é que viemos a Melos para o bem de nosso império e que aquilo que vamos dizer-vos agora, será inspirado pelo desejo de salvar a vossa cidade. Queremos, pois, estabelecer nossa dominação sobre vós sem precisar combater, e desejamos agraciar-vos tanto no nosso como no vosso interesse.” Melianos: “Mas, como poderíamos ter interesse em nos tornarmos vossos escravos assim como vós em vos tornardes nossos senhores?” Atenienses: “Porque vós, em vos submetendo, evitais o pior, e porque nós, em vos agraciando, poderemos tirar proveito de vossa cidade”.

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européia, em proveito da conquista dos mares. A unificação das ilhas britânicas, sob o espectro inglês, no início do século XVIII, marcou a identidade marítima e comercial desses homens, que se concebiam, antes de tudo, como habitantes de ilhas, navegantes, espíritos livres em busca de oportunidades de comércio.Tudo lhes parecia idêntico à Atenas do século V, inclusive o poder do povo (com a assembléia ou ekklēsía [ἐκκλησία]), que , em Álbion, se construiu com a charta magna e o Parlamento. A leitura de Tucídides e da história grega como um todo, até a derrota de Atenas, em 404 a.C., lembrava aos britânicos tanto os episódios gloriosos quantos as derrotas e as fraquezas dos antigos atenienses. Os americanos foram, como se sabe, inspirados pelos latinos: República, Capitólio, Senado, Cincinnati são referências romanas. Contudo, eles não quiseram jamais se considerarem como um império e, menos ainda, aceitarem que seu modo de governo fosse comparado ao Império romano ou às heranças do Império, notadamente o poder centralizado da Igreja católica e a figura dos papas. Atenas, por outro lado, era o exemplo a seguir, pois democrática e meritocrática (timocrática), ao mesmo tempo potência marítima e comercial. À diferença dos britânicos, os americanos pensavam Atenas como uma nação de imigração, um sinecismo absolutamente comparável à união das colônias americanas. Apesar de tudo, o modelo ateniense tinha seus limites; era necessário saber distanciar-se dele em alguns pontos: limitar a democracia, a dependência marítima e comercial, e recusar a imigração sem fim.

A influência de Tucídides no século XX

No século XX, Tucídides e a guerra do Peloponeso foram sempre estudados com uma atenção absolutamente particular, e não só na universidade. Desde a Grande Guerra (1914-1918), uma série de políticos tanto quanto de militares liam as guerras na Europa como uma oposição entre, de um lado, as potências democráticas, marítimas e comerciais da Entente cordiale franco-britânica e seus aliados, e, do outro lado, as potências terrestres, imperiais e oligárquicas da Alemanha e da Áustria. Essa oposição era imaginária, mas dos dois lados fazia-se claramente alusão a uma luta entre Esparta contra Atenas. A vitória de Esparta confortava o estado prussiano, ao passo que preocupava os franco-britânicos e seus aliados, os Estados Unidos, que se comparavam à grande potência ateniense, democrática. Pouco tempo depois, os mesmos raciocínios foram desenvolvidos pelos dois campos nos anos do entreguerras e durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O general de

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Gaulle conhecia bem a história dos grandes conflitos da Antigüidade e fazia o paralelo entre seu papel e o de Péricles, o salvador da pátria. Como Péricles, de Gaulle abandonou o território de seu país para deixá-lo ao inimigo, que, como Esparta, era uma potência terrestre, oligárquica e autoritária. E se Péricles, morto prematuramente, não pôde levar a cabo sua manobra, quanto a de Gaulle, ele pôde provar a pertinência dessa tática militar, utilizada por Péricles em seu tempo. Ela é sempre estuda e analisada nas academias militares do mundo inteiro como a mais controversa das táticas militares. Evidentemente, a decisão de deixar a França em direção a Londres em, 17 de julho de 1940, não foi, para de Gaulle, uma opção estratégica como foi a de Péricles. Ele disse, sem rodeios, o seguinte: “A partida deu-se sem romantismo e sem dificuldade”. Contudo, disse também: “Durante toda minha vida, fiz-me uma certa idéia da França. O sentimento inspirou-me a isso tanto quanto a razão” (Memórias de Guerra, O apelo 1940-1942, Paris, Plon, 1954, p. 67). Sem dúvida, entende ele por razão a lembrança das classes de estratégia, assim como a lembrança da figura de Péricles, que era sempre a referência em 1958, enquanto salvador da democracia. Durante a Guerra Fria (1946-1989), viveu-se, talvez ainda mais que outrora, uma oposição entre dois mundos, à imagem da oposição entre Esparta e Atenas. O Ocidente democrático, capitalista, livre, inspirava-se em Atenas, berço dos pensadores, das artes e dos empreendedores, ao passo que a União Soviética e os Estados satélites eram percebidos como Esparta e seus aliados: fechados e militarizados. Uma outra oposição reforçava as comparações: de um lado, chefes de Estado bastante comunicativos e, do outro, os chefes do Kremlin, tidos por lacônicos. Nos Estados Unidos, desde o governo Truman (1945-1953), analistas como Robert Gilpin e Kenneth Waltz pensavam a polarização entre o Ocidente e a URSS nos termos do conflitos entre Atenas e Esparta.

Capacete de bronze de tipo coríntio, proveniente de Roccanova, arte da Grande Grécia, século VI

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Em 1947, o secretário de Estado americano, George Marshall, chamava a atenção para a importância do paralelo com a guerra do Peloponeso: “Duvido que se possa pensar seriamente e com convicções profundas a respeito de certos problemas fundamentais ao quais fazemos frente neste momento, se, pelo menos, não se refletiu sobre a guerra do Peloponeso e acerca da queda de Atenas”. Marshall não era o único a falar diretamente da guerra do Peloponeso. O diretor de planejamento do departamento de Estado, Louis J. Halle, escrevia em 1952 que “a situação na qual se encontra nosso país no momento atual, como Atenas após a guerra do Peloponeso, levada a assumir a direção do mundo livre, aproximanos dele [Tucídides]... Parece-me que, depois da Segunda Guerra mundial, Tucídides tornouse ainda mais próximo de nós e que fala a nós através das épocas”. A leitura bipolar de Tucídides dominou a diplomacia americana durante os decênios da Guerra fria. A tese de doutorado de Henry Kissinger era explícita quanto a essa leitura. Enquanto secretário de Estado, H. Kissinger (1973-1977), com certeza, interpretou a narrativa de Tucídides para afirmar o respeito das leis nas questões interiores e para propor uma política ativa em nível internacional: os Estados Unidos eram comparados a Atenas e o Vietnã a Melos, cidade tomada pelos atenienses em 415 a.C. Em nossos dias, mais ainda que pelo passado, a guerra do Peloponeso desempenha um papel militar e político decisivo. Isso pode parecer paradoxal, pois o período da Guerra fria caracterizou-se pelo uso extensivo das interpretações bipolares de Tucídides. O fim do mundo dividido em duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética, não impediu certos ciclos neoconservadores de continuar a utilizar politicamente a narrativa de Tucídides. Isso se deveu, em grande parte, ao papel central que historiadores da Antigüidade clássica tiveram e têm sempre. Ainda uma vez, parece difícil compreender como os pesquisadores de história antiga conseguem exercer uma influência tão marcante em nossos dias. De fato, à diferença dos decênios passados, os estudos clássicos, as línguas grega e latina, são cada vez menos estudados pela população em geral, e tornam-se uma espécie de privilégio das elites. No momento em que H. Kissinger fazia seus estudos, a maioria dos estudantes tinham de conhecer as línguas clássicas e ler a literatura antiga. Compreende-se melhor, porque Tucídides era tão presente na época da Guerra fria. Não obstante, o declínio dos estudos clássicos não afetou senão as massas populares; as elites intelectuais jamais abandonaram os estudos históricos da Antigüidade clássica. Quanto mais a ignorância das ciências humanas é geral, mais se tem a necessidade do desenvolvimento dos estudos universitários. Nos Estados Unidos, na Europa e alhures, desde o abandono dos temas clássicos nas escolas e nos liceus, aumentou-se exponencialmente a

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pesquisa científica e universitária em ciências humanas, em geral, e nos estudos clássicos, em particular. Se é verdade que a maioria dos políticos atuais não conhecessem os autores da Antigüidade greco-romana, à diferença de seus predecessores (como Churchill, de Gaulle, ou mesmo um militar como Eisenhower), os especialistas a quem eles recorrem, esses, sim, conhecessem aqueles. A responsabilidade dos historiadores da Antigüidade jamais foi tão grande.

Tucídides e os neoconservadores americanos

Vivemos, em 2008, num mundo saído das digressões dos neoconservadores americanos, e mesmo se não se está de acordo com seus ideais, deve-se reconhecer a utilização que eles fazem dos antigos gregos com fins ideológicos, em primeiro lugar de Tucídides e da guerra do Peloponeso. Não se sabe nada a respeito das leituras do presidente americano George W. Bush, mas parece pouco verossímil que Tucídides esteja entre elas. Por outro lado, toda a política externa americana de sua presidência e os planos estratégicos do Pentagono foram frutos dos ciclos neoconservadores muito bem informados sobre as problemáticas históricas da Antigüidade. Um papel particular foi desempenhado pelo grande classicista Victor Davis Hanson, hoje mais conhecido do grande público como um analista conservador, mas, em primeiro lugar, foi um grande especialista da história grega, e mais particularmente da guerra do Peloponeso. Desde seu primeiro livro, intitulado Guerra e agricultura na Grécia antiga (1983), V. D. Hanson estuda os conflitos, chamando a atenção para o dito do autor grego Heráclito: pólemos patḕr pántōn (πόλεμος πατὴρ πάντων), “a Guerra é o pai de tudo”. Ele tentou estabelecer uma continuidade entre nós e a Antigüidade em sua obra O modo ocidental de lutar (The Western Way of War, 1989), publicado exatamente no momento da queda da União Soviética. Dez anos mais tarde, ele publicou um livro que tentar provar essa continuidade: As Guerras dos antigos gregos e a invenção da cultura militar ocidental (1999). Depois de 11 de setembro de 2001, V. D. Hanson foi um dos principais conselheiros do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld. As invasões do Afeganistão e, sobretudo, do Iraque, estão fundadas sobre raciocínios nascidos de uma certa leitura da guerra do Peloponeso. Se se podem considerar essas idéias simplistas, elas fizeram, a despeito de tudo, sentido para o presidente Bush e para a opinião pública. Ele tira dois ensinamentos da

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guerra de Atenas contra Esparta. Em primeiro lugar, os soldados, enquanto cidadãos livres, defendem a liberdade individual e coletiva, e são superiores aos soldados assujeitados dos regimes tirânicos. Essa idéia provém das fontes antigas, mas, na leitura neoconservadora, transforma-se numa regra geral, que seria válida durante toda a história do Ocidente. Os ideólogos preferem esquecer que o mister do historiador consiste em estudar as guerras em seu contexto histórico específico, e que tais generalizações não resistem à análise atenta dos acontecimentos. Os anglo-saxões bem o dizem: a prova do pudim é comê-lo (the proof of the pudding is in the eating). Não há pudim para os neoconversadores. O segundo ensinamento que ele tira disso concerne às causas da derrota de Atenas, essa potência em busca de liberdade, como se poderia dizer igualmente a respeito dos americanos. Os atenienses teriam esquecido de exportar a democracia. Face aos exércitos das potências oligárquicas e contrárias à liberdade de comércio, Atenas não sustentou as democracias das outras cidades ou Estados, que poderiam, em se chegando ao poder, tornarem-se aliados importantes. Bastou somente adicionar os dois conceitos e concluir que os Estados Unidos deveriam lutar contra as tiranias orientais, como, outrora, os gregos lutaram contra os persas. A vitória dos guerreiros ocidentais era garantida de antemão. Mas era necessário fazer mais que isso e não reiterar o erro de Atenas, exportando a democracia. Como escreveu V. D. Hanson em seu livro Uma geurra como nenhuma outra, de 2005: “Nós, os americanos, como os atenienses, somos todo-poderosos, mas sem confiança, explicitamente pacifistas, mas sempre em luta, mais preocupados em sermos amados que respeitados, orgulhosos de nossas letras e artes, mesmo quando se é mestre das armas”. Um livro sobre a guerra do Peloponeso, mas que fala da guerra de nossos dias num mundo muito movimentado e onde as conseqüências dos raciocínios dos especialistas em história antiga não devem ser negligenciados. No fim da presidência Bush, a revista The Economist (29 de março de 2008) perguntava-se se essa doutrina Bush, fundada sobre a exportação da democracia por exércitos libertadores seria perene; a resposta era negativa. Deve-se perguntar, após as análises do Pentagono e do uso reacionário dos estudos clássicos, se a guerra do Peloponeso continuará a desempenhar um papel importante num futuro próximo. Não é tarefa dos historiadores tratar do futuro, à diferença dos economistas, mesmo se esses últimos vêem com freqüência suas previsões tornadas falsas pelos fatos ulteriores. Por outro lado, está-se tentado a pensar que a guerra do Peloponeso continuará a desempenhar um papel importante, pelo menos no curto prazo, em reação aos pontos de vista dos neoconservadores. Difícil encontrar outra guerra tão presente em nossos espíritos mais de dois mil anos após seu fim.

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A NEGOCIAÇÃO DO EBRO E A INVASÃO GÁLICA DE 225 A.C.

Paul Erdkamp Leiden University

Políbio

O fato que as questões de Roma estavam atreladas ao oeste tanto quanto ao leste determina a estrutura da primeira metade do Livro II de Polybius (capítulos 1-36). A primeira metade do livro II contém a invasão Gálica de 225 a.C., a segunda metade discute eventos Gregos. No oeste, a expansão do poderio de Barcid na Espanha é um tema contínuo. Polybius trata este desenvolvimento em três capítulos, cada dedicado a um dos três generais de Barcid: o capítulo 2.1 concentra-se em Hamilcar, 2.13 em Hasrdubal e 2.36 em Hannibal. Existem duas largas digressões no meio: capítulo 2.2-12, devotado à primeira Guerra Illyrica; capítulos 2.14-35 aos Gauleses. A digressão sobre os gauleses culmina na invasão de 225 a.C.1 Esta estrutura claramente reflete a idéia de Polybius que os negócios de Roma estavam atrelados a três forças externas: os Barcid na Espanha, os Illyrians, e os Gauleses. Os eventos de um campo influenciaram a política Romana em outro.2 A principal fonte de informações de Polybius nas guerras Gálicas era Fabius Pictor, um senador romano e contemporâneo aos eventos descritos, quem escreveu na Grécia e parcialmente, talvez primeiramente, para uma audiência Grega.3 O propósito do presente 1

H. Bellen, Metus Gallicus – metus Punicus. Zum Furchtmotiv in der römischen Republik (1985) e J.H.C. Williams, Beyond the Rubicon. Romans and Gauls in Republican Italy (2001) enfatizam o elemento de terror nas relações de Roma com os Gauleses. Na sua discussão dos eventos descrevidos na digressão de Gallia, Bellen falha em notificar os motivos literários e propagandistas do relato de Polybius, o qual ele se refere a “testemunha ocular” (p.11) Fabius Pictor. Williams mostra que a digressão consite em uma combinação da informação de Roma, pensamento Grego e as próprias observações de Polybius (60-66), mas perde as implicações do papel de Fabius Pictor como fonte de Polybius para nossa interpretação da digressão de Gallia (esp. 164-170). V. Rosenberger, ‘The Gallic disaster’, Classical world 96 (2003), 365-373 reduz o terror Romano dos Gauleses a proporções mais pausíveis. 2 O symploke é, com certeza, um constructo de Polybius, ver F.W. Walbank, Symploke: seu papel em Polybius’ Histories’, in: Selected papers. Studies in Greek and Roman history and historiography (1985), 317-318. A escolha de Polybius para que a conferência de Naupactus fosse o ponto de início do symploke (5.105.4-10) parece ser amplamente basead em suas próprias preferências. Como Walbank apontou, a Espanha e o Norte da Itália eram menos relevantes para os principais temas de Polybius (p.320). 3 De acordo, M. Gelzer, ‘Römische Politik bei Fabius Pictor’ (orig. 1933), in: Kleine Schriften. Band III (1964), 51. Sobre a audiência de Pictor, ver também F. Hampl, ‘Zur Vorgeschichte des ersten und zweiten Punischen Krieges’, ANRW 1 (Berlin 1972) 412-414, esp. 413 e n. 2 para literatura anterior. Recentemente, S. Northwood,

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artigo é mostrar que, apesar de Polybius não ter seguido seu predecessor romano submissamente, a influência de Pictor é crucial para nossa compreensão acerca do relato de Polybius sobre a política de Roma nos anos 220. Quero rejeitar a alegação de Polybius – e, conseqüentemente, também a de Pictor – de que por muitos anos a invasão Gálica esteve balançando sobre a cabeça dos Romanos como a espada de Dâmocles, e que esta ameaça atrapalhou a política Romana acerca dos Barcids, na Espanha. Ao mesmo tempo, Polybius estava certo ao declarar que a invasão dos gauleses fez com que Roma concluísse a negociação do Ebro.

Uma ameaça prolongada?

Roma tinha todos os motivos para estar atenta à constante ameaça de guerra ao norte. Os Gauleses Transalpinos haviam invadido o norte da Itália em ocasiões anteriores, e Roma tinha que considerar esta possibilidade em todos os momentos. Para os anos que precederam 225 a.C., porém, Polybius apresentou uma situação que vai muito além da atenção geral à hostilidade Gálica. Por muitos anos, ele alega, a ameaça de uma invasão massiva era tão concreta e iminente que paralisou as atividades de Roma em todas as outras frentes. A invasão Gálica é parte de uma grande seção (2.14-2.35) sobre os Gauleses e sua ameaça a Roma e os povos da Itália, culminando na batalha de Telamon em 225 a.C. O relato de Polybius a respeito das guerras de 225-222 a.C. é precedido por uma breve história da ocupação gálica na planície do Pó e suas guerras com vizinhos e com Roma (de 2.17 em diante). Tendo sido derrotados várias vezes pelos exércitos romanos, os Gauleses se tornaram ávidos por guerra novamente. As gerações mais antigas que haviam testemunhado a luta contra Roma, escreve Polybius (2.21.2), haviam morrido, e as gerações mais novas haviam esquecido o sofrimento e o perigo. Em 237 a.C., Roma foi alarmada quando Gauleses Alpinos chegaram ao território dos Boii. De acordo com Polybius, o chefe dos Boii havia convidado estes gauleses para se tornarem aliados contra Roma. Seus assuntos geraram desconfianças

‘Quintus Fabius Pictor. Was he an annalist?’, in: N.V. Sekunda, Corolla Cosmo Rodenwald (Gdansk 2007). Sobre Fabius Pictor como a fonte principal de informação de sobre as guerras Gaulesas: Bellen, op. cit. (n. 1), 11; A.M. Eckstein, Senate and general. Individual decision making and Roman foreign relations, 264-194 BC (1987), 4. P. Brunt, Italian manpower (1971), 185 aponta que Pictor deve ter sido a principal fonte de Polybius sobre várias delineações sobre a força Gaulesa, desastres, e prisioneiros. Officer in 225 BC: Eutropius, Brev. 3.5; Orosius 4.13.6. Also Pliny, H.N. 10.71. G.P. Verbrugghe, ‘Three notes on Fabius Pictor and his history’, in Miscellanea di studi classici in onore di Eugenio Manni. Vol. 6 (1980), 2161, 2163.

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entre estes vizinhos do norte, adiante uma luta foi iniciada entre os recém-chegados e os Boii, quando os últimos mataram seu chefe4. A invasão não aconteceu. No relato de Polybius, os planos por uma invasão em comum na Itália foram revividos quando, em 232 a.C., os Romanos decidiram distribuir terras entre seus cidadãos que haviam sido tiradas dos Senones, cinqüenta anos antes.5 Polybius afirma que a medida de Flaminus convenceu os vizinhos Insubres e Boii que Roma intencionava exterminar todos os gauleses (2.21.9). Os povos da Cisalpina concluíram uma aliança e novamente mandaram enviados ao norte gálico para convidá-los a guerrear contra Roma. Polybius, enfatizando que a idéia das massas acerca de Gauleses favoráveis a guerra cruzando os Alpes tocou absoluto terror nos corações dos romanos e aliados, informa-nos que as preparações para a guerra começaram na Itália bem antes que os Gaesate realmente invadissem (2.22.7-8). Ele continua por alegar que o medo de Roma de uma invasão Gálica dispõe-se por trás da política de Roma concernente aos Cartagineses na Espanha, conduzindo a negociação de Ebro. A narrativa de Polybius implica que as preparações foram conduzidas antes da negociação com Hasdrubal. A imagem é de uma ameaça de guerra prolongada, terror na Itália, e preparação frenética. Contudo, quando os Gaesatae finalmente cruzaram os Alpes, Polybius novamente enfatiza que o terror tomou Roma e de novo menciona a preparação realizada por Roma e seus aliados:

Todos os seus submissos, em geral, eram comandados para a lista de homens que eram capazes de guerrear, visto que desejavam conhecer suas forças totais. Grãos, projéteis e outros materiais de guerra eles estabeleceram em tal estoque que ninguém poderia se lembrar que havia sido coletado em nenhuma ocasião anterior. (2.23.910).

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R. Feig Vishnia, State, society and popular leaders in mid-repubican Rome 241-167 BC (1996), 18 erroneamente infere sobre a oposição do povo de Boii em se aliar com os Transalpinos Gauleses que eles desejavam manter a paz com Roma. O povo pode ter almejado guerrear com Roma, mas sem convidar aliados potencialmente perigosos. 5 Eckstein, op. cit. (n. 3), 10-11 argumenta que a distribuição viritane de terras de Flaminus reflete o medo romano dos gauleses e seu desejo de foratlecer a região. Diferente das colônias latinas, porém, que normalmente eram manejadas por veteranos os quais eram assentados em ou próximo a cidades fortificadas, a distribuição de terras viritane não era adequada para um propósito de defesa. Esta envolvia cidadãos que não necessariamente eram assidui, e os estebelecedores da viritani faltaram com uma forte influência acerca de congregar em tempos de guerra. De acordo com Brunt, op. cit. (n. 3), 393. A distribuição viritane no ager Gallicus não deve ser confundida com as colônias de Placentia e Cremona, tripuladas por 6000 estabelecedores cada, que era fundada a fim de controlar a situação romana na Planície do Pó. Sobre o caráter militars da colonização de Roma, ver E.T. Salmon, Roman colonization under the Republic (1969), 24.

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Polybius enfatiza que a ameaça de invasão a tal ponto que isto distorce seu relato da política Romana nestes anos. A dupla menção da preparação de Roma fortalece a impressão de uma ameaça contínua. Devemos acreditar realmente que quando as notícias de uma invasão Gálica – que os romanos tinham esperado por anos – chegou Roma, as autoridades aterrorizadas mobilizaram ainda mais tropas, e ajuntaram ainda mais provisões? Como é possível que os romanos estivessem esperando uma invasão massiva de Transalpinos Gauleses ávidos por guerra em aliança com os Boii e Insubres, a ainda ficaram surpresos quando esta invasão finalmente se materializou?6 A contradição deve expulsar dúvidas tanto quanto sobre a ameaça prolongada e as preparações em longo prazo durante os anos anteriores, como sobre as medidas de surpresa e emergência em 225 a.C.

O sacrifício humano de 228 a.C.

Alguns acadêmicos vêem o sepultamento vivo de um casal Celta e um Grego em 228 a.C. como um sinal claro do grau de temor causado pela ameaça de uma invasão dos Transalpinos Gauleses.7 Esta questão é muito complexa para ser completamente examinada neste contexto, mas devemos falar sobre ela a fim de estabelecer se realmente confirma o relato de Polybius (quem na realidade não menciona o caso). Os dois tais sepultamentos aconteceram na História Romana: em 216 a.C. e em 114/3 a.C. Como Cichorius tem mostrado, todos os três casos foram precedidos por escândalos envolvendo Virgens Vestais. Portanto ele concluiu que os sacrifícios foram a resposta prescrita por livros Sibylline nos tais casos, o que significaria que o sepultamento de 228 a.C. não teve nada a ver com a invasão Gálica.8 Porém, Arthur Eckestein tem apontado que o sacrifício humano não pode ser completamente explicado pelas ofensas cometidas pelas Virgens Vestais. Ele demonstra que em 216 e 114/3 a.C., foi acreditado que o pax deorum teria sido perturbado, e assim, o estado Romana estava ameaçado por um perigo iminente. Os livros Sibyllines ordenavam sacrifícios humanos a fim de impedir o perigo. Em outras palavras, era ameaça de perigo a res publica que seria afastada pelo sacrifício humano, e não a ofensa que as Virgens Vestais que

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F.W. Walbank, A historical commentary on Polybius, Vol. 1. (1957), 196 denota: ‘Os detalhes da preparação Romana não sugerem que eles foram pegos de surpresa’. 7 Bellen, op. cit. (n. 1), 12; Eckstein, op. cit. (n. 3), 13; Feig Vishnia, op. cit. (n. 4), 22. Mais cuidadosamente, Gelzer, op. cit. (n. 3), 75. 8 C. Cichorius, ‘Staatliche Menschenopfer’, Römische Studien. Historisches, Epigrafisches, Literaturgeschichtliches aus vier Jahrzehnten Roms (1922), 12-20.

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precisava ser expiada.9 Em 2228 a.C., foi a ameaça dos Gauleses que seria evitada com o sacrifício humano. H. Bellen enfatiza o elemento de pânico como um resultado da derrota Romana.10 Contudo, a correlação entre tais eventos e os sepultamentos vivos de Gregos e Gauleses são um tanto fracas. Os sacrifícios de 216 e 114/3 a.C. estão relacionados à catástrofe de Cannae e a derrota Romana nas mãos dos Scordisci em 114 a.C. O último evento foi duramente desastroso e certamente não foi resultado de nenhuma ameaça imediata a Itália. Por outro lado, os sacrifícios humanos estão conspicuosamente ausentes, por exemplo, quando ambos Scipios morreram na batalha na Espanha (212 a.C.), ou na soma de tais perdas da batalhas tanto contra Salassi Gauleses em 143 a.C. e contra os Cimbri em Arauso, em 105 a.C. Além do mais, a inquietação religiosa em tempos de guerra não resultava necessariamente em sacrifícios humanos. Durante os estágios da guerra Hannibalica foi percebido que “pedras regularmente choviam do céu”, resultando numa ansiedade religiosa. Quando os livros Sibyllines foram consultados, as regras foram conhecidas que, se o inimigo houvesse trazido guerra na Itália, ele poderia ser derrotado trazendo a Mater Idaea de Pessimus para Roma (Livy, 29.10.04). Como sabemos, isto foi feito, aparentemente com bons resultados. O ponto que derrotava a guerra, ou o tumulto religioso apenas raramente resultava em sacrifícios humanos. Portanto, as Virgens Vestais desempenham um papel crucial afinal de contas. Todavia, Eckstein argumenta que o sacrifício de 228 a.C. não tinha qualquer relação com a crise precedente envolvendo uma Virgem Vestal, porque o escândalo deveria ser datado de no mínimo um ano e meio antes.11 Na visão de incerteza cronológica deste período, isto parece ser um argumento fraco. Mais importante, sabemos muito pouco sobre o assunto para estabelecer uma defasagem de tempo máxima entre estes dois eventos. Em ambos os outros casos, era uma ofensa das Virgens Vestais contra a lei divina que acionou o sacrifício humano. Entre 216 e 114/3 a.C. nenhum outro escândalo envolvendo Virgens Vestais é conhecido. Na verdade, até onde nosso conhecimento alcança, escândalos envolvendo Virgens Vestais e sacrifícios humanos de Gregos e Gauleses ocorrem somente nestes três

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A.M. Eckstein, ‘Human sacrifice and fear of military disaster in republican Rome’, American Journal of Ancient History 7 (1982), 71-75. 10 Bellen op. cit. (n. 1), 12. Cf. A. Staples, From good goddess to Vestal Virgins. Sex and category in Roman religion (1998), 134: “…background of intense emotional upheaval…”. Em contraste, Rosenberger, op. cit. (n. 1), 369 nos adverte a não superenfatizar o papel das massas histéricas nestes eventos. 11 Eckstein, op. cit. (n. 9), 75-77. Portanto, Bellen ignora completamente o caso concernente às Virgens Vestais. Cichorius, op. cit. (n. 8), 17 corretamente observou que isto não teria importância se a punição fosse datada de 229 a.C.

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casos.12 Parece ser uma grande coincidência negar a similar relação causal em 228 a.C. Realmente significa muito (como Eckstein argumenta) que as fontes sobre o sepultamento de 228 a.C. não mencionem o escândalo concernente às Virgens Vestais? À parte de um breve fragmento de Plutarch (Marc.33-4) e Orosius (4.13.3), a evidência mais detalhada é oferecida em um fragmento e extrações de Cassius Dio. No panorama de outros desenvolvimentos, isto não prova que estes pedaços de informação perderam elementos sobre as Virgens Vestais e focaram na ameaça externa. A relação entre a invasão em 225 a.C. e o sacrifício em 228 a.C. é dificilmente tão direta quanto pode parecer. Algumas fontes disponíveis nos dizem que um oráculo Sibylline advertiu os Romanos a ficaram atentos quanto aos Gauleses quando um raio caiu próximo ao templo de Apollo. Quando isto aconteceu, o perigo era para ser afastado através do sepultamento vivo de um casal celta e um casal grego (Dio, frg. 50). Zonaras (8.19) menciona uma profecia que advertiu a respeito da cidade caindo em mãos gaulesas ou gregas. Ele explica o sepultamento vivo de um par grego e um gaulês como fazer a profecia parecer ter se tornado realidade, em conseqüência neutralizando seu perigo.13 Plutarch situa o evento no contexto do medo generalizado dos Gauleses neste período, enquanto Orosius inverte a relação: os Romanos foram punidos pelo sacrifício humano através de guerras subseqüentes em que tiveram que lutar contra os Gauleses. As fontes sobre o sacrifico humano, na realidade, implicam que os Romanos não tinham conhecimento ainda sobre a invasão que estava assombrando seu futuro próximo. Além disso, o sepultamento vivo dos desventurados gauleses e gregos não haviam obviamente afastado o perigo, nem, se podemos acreditar em Polybius, o alarme Romano. É provável que a relação entre o sacrifício humano em 228 a.C. e a invasão Gálica, em 225 a.C., foi imaginada após 225 a.C., e encorajada pelo fato de que duas das vítimas humanas sacrificadas em 228 a.C. eram gaulesas. Contudo, nossas fontes sobre o sacrifício humano de 228 a.C. não mencionam a invasão dos Gaesatae em 225 a.C. Se os Romanos estivessem cientes das preparações para uma invasão massiva (como Pollybius nos diz) e conduzido o sacrifício humano para afastar o perigo, por que nenhuma de nossas fontes relatam isso? Em suma, uma leitura do caso de acordo que tal terror Romano a frente de uma esperada invasão Gaulesa causou o sacrifício humano em 228 a.C., depende da suposição a priori de que a ameaça prolongada do relato de Polybius está correta. O caso não é uma evidência independente disto. Quando se leva em consideração os eventos paralelos em 216 12 13

Cichorius, op. cit. (n. 8), 16; Staples, op. cit. (n. 10), 134. Cf. Bellen, op. cit. (n. 1), 13-14.

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a.C. e 114/3 a.C., é mais provável que um escândalo ao redor das Virgens Vestais tenha causado inquietação e o sentimento de que algum perigo ameaçava Roma. Esta ameaça pode ter envolvido os Gauleses, mas isto está longe de uma certeza. No melhor, pode-se alegar que o sacrifico de 228 a.C. confirma o medo Romano dos Gauleses neste período, mas isto não confirma a veracidade do relato de Polybius.

A política Romana antes de 225 a.C.

Estudiosos têm expressado, freqüentemente, dúvidas concernentes ao relato de Polybius sobre a invasão Gálica de 225 a.C. Uma linha de argumento é apontar inconsistências e impossibilidades no discurso de Polybius sobre a política Romana nestes anos, e sugerir que estes eventos fazem mais sentido se a ameaça Gálica é reduzida a proporções realísticas.14 Tal raciocínio preferivelmente depende na crença da solidez da política Romana, visto que isto pode ser incluído por assumir que Roma operava inconsistentemente e não sabiamente durante estes anos. Porém, pode ainda ser útil averiguar resumidamente as campanhas que Roma empreendeu – e falhou em empreender – durante estes anos. Se Roma tivesse temido uma batalha de vida-e-morte contra os Gauleses desde 232 a.C., é difícil explicar porque ambos os cônsules foram enviados para travar guerra em Illyria, 229 a.C.15 Não havia urgência envolvida na campanha, que, de acordo com Polybius, era resultado da arrogância e agressividade da rainha Teuta. A guerra contra os Illyrians pode ter sido inevitável até certo ponto, mas não em 229 a.C.16 Os Illyrians tinham o hábito de navegar em navios de pilhagem na Itália por um longo período, Polybius (2.8.2-3) escreve, mas os Romanos se tornaram surdos para as reclamações. Em 230 a.C., porém, os Illyrians mataram muitos comerciantes italianos, e quando um número de pessoas se aproximou do senado 14

W.V. Harris, War and imperialism in republican Rome (19852), 198 concluiu que o estado de alarme em Roma tem sido vastamente exagerado. 15 Alguns podem querer contar este argumento por apontar que Roma iniciou a segunda guerra contra oa Illyrians precisamente quando esperava problemas com Hannibal. É realmente provável que, em 219 a.C., os Romanos teriam decidido o contrário se soubessem o que estava para acontecer. A diferença crucial, contudo, é que, em 219 a.C., os Romanos esperavam travar guerra contra Carthage na Espanha e/ou África (como é mostrado nas designações dos cônsules seguintes), enquanto em 229 a.C., eles deveriam esperar uma invasão massiva na própria Itália. 16 Cf. Feig Vishnia, op. cit. (n. 4), 20: “… razões pelas quais Roma decidiu agir precisamente naquele peírodo específico continuam enigmáticas”.

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concernindo este assunto, foi obtido como resposta o mandato de dois enviados para investigar o caso. A guerra ainda não era inevitável até que a rainha Teuta, arrogante e controladora, se ofendeu com a palavra de um dos enviados romanos e mandou matá-lo no caminho de volta. Agora a guerra estava declarada, uma força massiva foi enviada através do Adriático, e em 229 a.C., o reino de Illyrian da rainha Teuta foi rapidamente derrotado. Seja qual for a veracidade deste relato17, a declaração de Guerra é mais facilmente entendida se o perigo de uma invasão aterrorizante do Gauleses não estivesse pendendo sobre suas cabeças. Não se pode argumentar que os Romanos pretendiam eliminar um inimigo antes de se virar contra o outro, já que os Illyrians não haviam estado ameaçando os Romanos em sua retaguarda (apesar de estarem indubitavelmente assolando a navegação comercial). Ao contrário, a campanha romana de 229 a.C. poderia ter facilmente os envolvidos em uma guerra em duas frontes, se os Gauleses tivessem invadido antes e Roma ter derrotado os Illyrians. Podemos concluir que a invasão Gálica não faz nenhuma aparição no relato de Polybius sobre a guerra da Illyria de 229 a.C. porque nenhuma tal ameaça até o momento existiu. É possível, é claro, que a cronologia de Polybius esteja errada e que a ameaça da invasão Gálica apareceu em 229 a.C. M. Gelzer argumentou que os Boii e os Insubres se sentiram ameaçados, nem tanto pela Lei de Falminus de 232 a.C., mas por sua implementação nos anos subseqüentes.18 Enquanto este argumento nos permite explicar a avidez de Roma para se engajar em uma guerra em Illyria e, até mesmo, de permitir ambos os cônsules deixarem a Itália, isto ainda requer que desviemos do relato de Polybius. Ainda mais surpreendente é a letargia Romana na Itália nestes anos. Um elemento crucial do relato de Polybius é que Roma havia tomado, de alguma forma, conhecimento que os Insubres e os Boii haviam convidado seus amigos Transalpinos a cruzarem os Alpes. Sabendo desta coalizão, obviamente, teria sido a estratégia mais segura a de atacar os Gauleses Cisalpinos antes que estes se juntassem a seus aliados Transalpinos. Os Insubres e 17

De acordo com Gelzer, op. cit. (n. 3), 66, o relato de Polybius da Primeira Guerra da Illyria é baseado em Fabius Pictor. Appian tem uma versão diferente na qual os Romanos nunca alcançaram a corte da rainha Teuta, mas ele concorda na morte do enviado. P.Derow, ‘The arrival of Rome. From the Illyrian Wars to the fall of Macedon’, in A. Erskine (ed.), A companion to the Hellenistic world (2003), 51, favorece esta versão. Ver tambpem P.S. Derow, ‘Kleemporos’, Phoenix 27 (1973) 118-134. E.S. Gruen, The Hellenistic world and the coming of Rome (1984), 360-367, também critica o relato de Polybius e preferivelmente vê a expansão graudal do poder e ambição Illyrianos como principal causa da guerra, o que não altera meu ponto. O mesmo acontece para E. Badian, ‘Notes on Roman policy in Illyria (230-201 BC)’, in: Studies in Greek and Roman history (1964), 3-10, que argumenta que o senado começou a ver Illyria como uma ameaça em ascenção. Harris, op. cit. (n. 14), 195-197 faz muito do desejo Romano de proteger interesses comerciais no Adriático e acredita que, quando as mãos Romanas estavam livres de outros lugares, aproveitaram a primeira oportunidade para estabelecer uma guerra em Illyria. 18 Gelzer, op. cit. (n. 3), 74. Likewise Eckstein, op. cit. (n. 3), 11-12.

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os Boii sendo derrotados, os Gaesate poderiam ter desistido do plano de invasão, e mesmo se não, tal iniciativa romana teria enfraquecido os Gauleses e diminuído o perigo que as tropas Romanas enfrentaram. Todavia, Polybius não menciona um único ato contra os Gauleses nos anos que levariam a invasão de 225 a.C. Certamente, é uma alegação especial assumir que os cônsules romanos falharam em convencer o senado Romano das vantagens de um golpe Romano.

O desdobramento das Tropas em 225 a.C.

O registro de Polybius dos eventos e medidas daquele ano nos providencia outro argumento confirmando a conclusão de que no início de 225 a.C., os Romanos não estavam ainda cientes de qualquer perigo. Vários elementos na cronologia de eventos de 225 a.C. de Polybius cabem à idéia de uma invasão surpresa melhor que a de haver uma suposição de uma ameaça prolongada. Desde o desdobramento das tropas (Polybius 2.24), podemos reunir que, no início do ano do consulado, duas legiões foram estacionadas na Sílica e Tarentum. O cônsul C.Atilius havia prosseguido com seu exército para Sardenha antes das notícias sobre o atravessamento dos Alpes chegarem (Polybius 2.23.6). Nós não sabemos onde o outro cônsul, L. Aemilius, estava estacionado no início do ano; aparentemente não estava em Ariminum, porque foi para aonde ele foi enviado quando as notícias de que os Gaesates haviam atravessado os Alpes chegaram a Roma (2.23.5). Neste momento, Roma tomou várias outras medidas. Primeiro, foi somente neste estágio que embaixadores foram enviados aos Veneti e Cenomati, os quais se aliaram a Roma (2.23.2). Segundo, um pretor foi enviado para Etruria (2.23.5). Terceiro, um exército de Sabines e Etruscos foram enviados a fronteira Etrusca, aparentemente sob o comendo do pretor previamente citado (2.24.6). Portanto, foi somente quando Roma escutou sobre a invasão dos Gaesatae que ambas as rotas ao sul da Gália Cisalpina (próximo a Ariminum e na Etrúria) foram bloqueadas. Quarto, os exércitos foram mobilizados e listas de homens capazes guerrear foram requeridas de aliados (2.23.8-9). Quinto, um exército de Umbrians e Sarsinates foi enviado para a fronteira da Gália a fim de se juntar aos Veneti e Cenomani (2.24.7). O próximo estágio na cronologia de Polybius é a invasão Gaulesa na Etrúria. A mobilização dos Estruscos e Sabines aparentemente não estava completa até o momento, porque Polybius relata que os Gauleses entraram na Etrúria sem oposição (2.25.1). Foi

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somente quando os Gauleses avançaram na direção de Roma que eles foram encontrados pelos Sabines e Estruscos (2.25.3). Isto é confirmado pelo argumento de Polybius que o exército de Aemilius, o qual havia deixado Ariminum quando as notícias de que os Gauleses haviam entrado na Etrúria chegaram até ele, se juntou aos Sabines e Estruscos logo após os Gauleses terem o derrotado e o último estar em sérios problemas (Estas não eram legiões Romanas reais – 2.26.1). Neste momento, os Gauleses decidiram retornar em direção ao norte (2.26.7). Em seu caminho de volta a Gália Cisalpina, encontraram o exército do outro cônsul, C. Atiliius, quem havia recentemente chegado a Pisa (2.27.1-2). Polybius não diz quando o exército de Atilius havia saído de Sardenha, mas provavelmente foi logo depois que as notícias sobre a cruzada dos Alpes dos Gaesatae terem chegado à Sardenha. Resumindo, foi somente quando os Gaesatae cruzaram os Alpes que Roma começou a se mobilizar um enorme exército e focou sua atenção nos Gauleses. Mais adiante, apesar da ênfase de Polybius na preparação, nenhum exército estava pronto para encontrar com os Gauleses quando eles entraram na Etrúria; listas de homens capazes de segurar armas ainda não estavam disponíveis; e nenhuma embaixada havia sido enviada para os Cenomati e Veneti. Em suma, a política Romana faz mais sentido se rejeitarmos as alegações de Polybius que desde 232 a.C. os Romanos haviam estado esperando a invasão Gaulesa de 225 a.C., e se não acreditarmos que os Romanos estavam tão cientes desta ameaça que, na realidade, isto os paralisou por muitos anos.

Gaius Flaminus

A ameaça de longo-termo desempenha um papel importante de duas formas: primeira, está relacionada com a política Romana a respeito da Espanha e, segunda, permite depositar a responsabilidade pela invasão sobre Gaius Flaminius. Polybius culpabiliza explicitamente o político que foi responsável pela distribuição do ager Gallicus pelo renascimento das hostilidades: Gaius Flaminius foi o origina dor desta política popular, que nós devemos pronunciar que tem sido, pode-se dizer, o primeiro passo na desmoralização da plebe, bem como a causa da guerra com os Gauleses que se seguiu (2.21.8).

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Segundo Políbio, as mãos de Roma estavam atadas pela expectativa de se precaver das massas bárbaras, e isto deu aos Cartagineses uma mão livre para expandir seu controle sobre a Espanha, já que era a ameaça Gálica que urgia Roma a concluir o negócio infame com Hasdrubal em 226 a.C. Este movimento dos Gauleses contribuiu, não em pequena medida, a acelerar e não impedir a subjugação da Espanha pelos Cartagineses, porque os Romanos [...] foram compelidos a negligenciar o caso da Espanha até que tivessem lidado com os Gauleses. Eles, portanto, seguraram-se contra os Cartagineses através de uma negociação com Hasdrubal [...] e jogaram todo seu esforço na batalha com seus inimigos na Itália...(2.22.9-11).

Isto significa que a catastrófica política de Flaminius impediu Roma de realizar uma resposta adequada e a tempo a crescente ameaça Púnica na Espanha. O exagero da ameaça prolongada sobre a invasão Gálica é deste modo indissoluvelmente conectada com a descredibilização de Gaius Flaminius, do qual política de distribuição de terras é apresentada como a última causa da paralisação de Roma. De acordo com Polybius, porém, a hostilidade Gálica contra Roma já havia chamejado no início dos anos 230. Uma explicação adicional para a belicosidade dos Boii e Insubres, portanto, não é necessária. Ninguém poderia ter argumentado seriamente que sem a distribuição de terras de Flaminius, teria havido paz na frente Celta. Conseqüentemente, culpar a hostilidade dos Boii e Insubres na medida de Flaminius e relacioná-la a invasão dos Gaesatae em 225 a.C., meramente serve para enfraquecer a reputação deste homem do estado. Este não é o único caso de hostilidade contra Gaius Flaminius no contexto das guerras Gálicas. Flaminius foi eleito cônsul para o ano de 223 a.C., junto com Publius Furius, o que seria surpreendente se ele tivesse sido responsável pelo perigo sob o qual Roma havia passado nos últimos anos.19 Durante seu consulado, o exército sob o comando de Flaminius e Furius lutou uma batalha contra os Insubres, que foi vencida pelos Romanos, mas – então Polybius alega – não foi graças ao comando de Flaminius como general. Enquanto Flaminius realizou um equívoco que quase custou a vitória aos Romanos, foram os tribunos que salvaram o dia (2.33.1, 6-8). Flaminius foi nomeado magister equitum em 221 a.C. e censor em 220 a.C., o 19

De acordo com Livy 21.63.7; Plut. Marc. 4.3; Zon. 8.20, a eleição de Flaminius e seu colega foi anulada e os cônsules convocados para casa. Ambos, porém, escolheram ignorar o despacho do senado e engajaram na batalha. Apesar da abreviação do relato de Polybius, sua outra acusação contra Flaminius a torna inprovavel que ele tenha ignorado tão importante questão, se não houvesse conhecido sobre isso. É mais provável que demonstre uma tendência crescente anti-Flaminius entre as fontes romanas. Contra Eckstein, op. cit. (n. 3), 16, que enxerga a estória como “não implausível”. Em relação a tradição sobre as escarnedoras tradições religiosas de Flaminius, ver N. Rosenstein, Imperatores Victi. Military defeat and aristocratic competition in the middle and late republic (Berkeley 1990), 58, 77-78.

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que dificilmente se encaixa na tradição, já visível no discurso de Polybius, que o pinta como um populista demagógico e general incompetente.

20

Finalmente, a tradição Romana também

faria Flaminius responsável pelo desastre em Trasimene em 217 a.C., onde sua avidez e falta de cuidado declaradamente causou sua queda na armadilha de Hannibal. Pode-se pensar porque o eleitorado Romano o elegeu novamente como cônsul, e naquele momento de crise militar, quando deveria ter sido claro que durante seu último comando militar, sua estupidez quase os tivera custado a vitória. A hostilidade a Flaminius é claramente presenre desde o início da seção Gálica de Polybius. A condenação de Flaminius começou antes que Polybius escrevesse suas histórias, e isto também se aplica a ligação entre a política Romana e a invasão de 225 a.C. Podemos concluir que o retrato destorcido da política estrangeira de Roma no relato de Polybius e o papel prejudicado de Flaminius neste é provavelmente originário do trabalho de Fabius Pictor.21

Políbio e a negociação de Ebro

Não só a distribuição de Terra de Flaminius é culpada por tudo, mas a invasão Gálica também se tornou a maior ameaça para Roma, pendendo sobre suas cabeças e dominando sua política por anos. Muitos estudiosos têm aderido a este retrato, mas outros têm expressado dúvidas, particularmente sobre o argumento de que a ameaça da invasão Gálica impediu os Romanos de parar a expansão dos Barcid, e os forçou a concluir a negociação de Ebro. Polybius nos informa duas vezes que a ameaça Gálica levou diretamente à negociação de Ebro. Já vimos a declaração de Polybius em 2.22, i.e. na seção de seu trabalho que lida discorre sobre os Gauleses e a invasão de 225 a.C. Todavia, ele fez esta conexão até mais vigorosamente mais ao início do mesmo livro. No capítulo 2.13, após tratar da guerra Illyrian em 2.2-12, ele retorna à Espanha, onde Hasdrubal havia sucedido Hamilcar no inverno de 20

B. Champion, ‘Polybian demagogues in political context’, Harvard Studies in Classical Philology 102 (2004), 201: “Polybius represents C. Flaminius as another demagogic politician”. On Flaminius’ career, see R. Develin, ‘The political position of C. Flaminius’, Rheinisches Museum 122 (1979), 273-276. 21 Gelzer, op. cit. (n. 3), 76-77 aponta a consitência da defamação de Flaminius no Livro II e III de Polybius, derivando de Fabius Pictor. Walbank, op. cit. (n. 6), 193: ‘the hostility of his senatorial opponents transmitted through Fabius Pictor’. Harris, op. cit. (n. 14), 198 and Eckstein, op. cit. (n. 3), 11-12 concorda que a tradição hostil deriva de inimigos políticos contemporâneos . Sobre o apoio senatorial para a lei agrária de Flaminius, Feig Vishnia, op. cit. (n. 4), 32-34. Cf. P. Bung, Q. Fabius Pictor, der erste römische Annalist. Untersuchungen über Aufbau, Stil und Inhalt seines Geschichtswerkes an Hand von Polybius I-II (1950), 15, 157-158.

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229/8 a.C. e havia realizado grande progresso no fortalecimento da posição Cartaginense, através da fundação de Cartago Nova. Os Romanos perceberam por completo a ameaça emergindo da Espanha, Polybius argumenta, mas suas mãos estavam atadas. Por esta passagem constituir a principal declaração de Polybius sobre a política Romana nestes anos em direção aos Barcids, na Espanha e à negociação de Ebro, é significante citá-la por inteiro:

Os Romanos, vendo que Hasdrubal estava num caminho claro para criar um império maior e mais formidável que Cartago formalmente possuía, resolveram começar a ocupar-se com as questões da Espanha. Descobrindo que estiveram, até o momento, dormindo e permitiram Cartago construir um domínio poderoso; tentaram, a medida do possível, refazer suas perdas. Para o momento, não se aventuravam a impor ordens a Cartago, ou ir à guerra com ela, porque a ameaça de uma invasão Celta estava pendurara sobre eles, o ataque sendo esperado de fato dia-a-dia. Decidiram, então, suavizar e conciliar Hasdrubal em primeiro lugar, e depois atacar os Celtas e decidir a questão por armas, porque pensaram assim desde que os Celtas ameaçaram sua fronteira, não só nunca seriam os mestres da Itália, mas nunca poderiam estar seguros na própria Roma. De acordo, após terem mandado enviados a Hasdrubal e feito uma negociação, na qual nenhuma menção foi feita sobre o resto da Espanha, mas Cartagineses se engajaram a não só cruzar o Ebro em armas, eles, de uma só vez, entraram numa batalha contra os Celtas Italianos. (Polybius 2.13.3-7).

Sua longa seção sobre os Gauleses (2.14-35) segue imediatamente, desta maneira amplificando a relação entre a política de Roma concernente a Espanha e a ameaça Gálica. “Existe algo defectivo a respeito da explicação de Polybius sobre a política Romana”, um estudioso observou. “O que é introduzido como se tivesse sido uma intervenção enérgica de Roma acaba sendo uma política de reconciliação”.22 Adiante, porque mexer com os Barcids no momento em que os Romanos tinham outras coisas em mente? A negociação de Ebro não faz sentido, se foi meramente intencionada para evitar hostilidades com os Barcids enquanto a invasão Gálica pendia sobre suas cabeças. Certamente, teria sido melhor deixar Hasdrubal sozinho do que forçá-lo a concordar com uma linha de demarcação. A negociação de Ebro resolveu pouco, enquanto as demandas Romanas haviam aborrecido os Barcids no momento mais importuno de Roma.23 Deveríamos supor que Polybius seguiu aqui a tradição apologética que ele encontrou em Fabius Pictor um tanto incriticável? Existe uma boa razão para duvidar disto. Polybius (3.8.1-9.5) explicitamente descredibiliza Fabius Pictor como uma fonte sobre os eventos prévios a Guerra de Hannibal. Segundo um historiador Grego, Pictor deu um relato ambíguo e 22

G.V. Sumner, ‘Roman policy in Spain before the Hannibalic war’, Harvard Studies in Classical Philology 72 (1968), 218. Cf. R.M. Errington, ‘Rome and Spain before the Second Punic War’, Latomus 29 (1970), 37. 23 P. Bender, ‘Rom, Karthago und die Kelten’, Klio 79 (1997), 89: The Romans ‘besänftigen den karthagischen Feldherrn nicht, wie Polybius sich ausdrückt, sondern bedrängten ihn’. Similar, D. Hoyos, Hannibal’s dynasty. Power and politics in the western Mediterranean, 247-183 BC, London 2003, 81.

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pró-romano sobre os eventos que levaram a Segunda Guerra Púnica. Mais adiante, Polybius nos informa que, de acordo com Pictor, Hasdrubal havia tentado um ato falho em Cartago, e que ambos, Hasdrubal e Hannibal, haviam governado a Espanha “sem prestar qualquer atenção ao senado Cartaginense” (3.8). Polybius rejeita a idéia como ridícula, e esta não desempenha qualquer papel em seu relato.24 Adiante, Polybius adverte seus leitores a não ficarem tão impressionados com ‘a autoridade do nome do autor’ (3.9) e com o fato de que ele era um senador Romano e um contemporâneo de Hannibal. ‘Minha opinião é que deveríamos ameaçar sua autoridade levemente, mas igualmente não considerar isto como um final’ (3.9.5).25 Polybius não confiou inquestionavelmente em Fabius Pictor, mas comparou seu trabalho a fontes pró-Romanas e pró-Cartaginenses sobre as reações Romanas-Cartagineneses anteriores a Segunda Guerra Púnica. Enquanto Pictor foi uma importante fonte sobre os eventos destes anos, Polybius de nenhuma forma o seguiu ingenuamente.26 Antes de discutir algumas teorias prévias e analisar os eventos acerca da negociação de Ebro, pode-se enfatizar que a negociação não está seguramente datada. Precisamente porque Polybius a relaciona com a ameaça Gálica, esta é normalmente datada de 226 a.C. ou do início de 225 a.C.27 Mais adiante, algumas vezes é discutido que a negociação só continha uma cláusula, que proibia os Cartaginenses de cruzar o rio em armas e desta forma limitou sua posição ao sul do Ebro.28 De fato, é possível que em 2.13, Polybius meramente nos dê uma única cláusula – concernente a Espanha – que é relevante a este ponto, que não exclui cláusulas concernentes a Espanha. Contudo, este não parece ser o caso com sua pesquisa sobre as negociações Romanas-Cartaginenses no Livro III. Quando Polybius menciona a 24

J. Rich, ‘The origins of the Second Punic War’, in T. Cornell et al. (eds.), The Second Punic War. A reappraisal (1996), 13 corretamente afirma que a perspectiva de Fabius tem sido mais nuanciada que os argumentos de Polybius, mas isto não altera o ponto. Cf. R.T. Ridley, ‘Livy and the Hannibalic War’, in Ch. Bruun (ed.), The Roman Middle Republic. Politics, religion and historiography (2000), 20-21. N. Mantel, Poeni foedifragi. Untersuchungen zur Darstellung römisch-karthagischer Verträge zwischen 241 und 201 v.Chr. durch die römische Historiographie (1991), 51 acredita que o argumento de Fabius são verdadeiros, se referinfo aos paralelos Helenísticos da ‘Raubkriege privada. Porém, D. Hoyos, ‘Barcid ‘procônsules’ e políticos Punicos, 237218 BC’, Rheinisches Museum für Philologie 137 (1994), esp. 257-259 tem mostrado que os Barcids agiram em concordância com o governo em Cartago. Cf. Hoyos, op. cit. (n. 23), 75-78. 25 Ver também A.M. Eckstein, ‘Polybius, Demetrius of Pharus and the origins of the Second Illyrian War’, Classical Philology 89 (1994), 48. 26 Além disso, Polybius rejeita a justificação da anexação de Sardenha a Roma em 237 a.C. por açoes errôneas Cartaginenses como falsa. W. Ameling, ‘Polybios und die römische Annexion Sardiniens’, Würzburger Jahrbücher zur Altertumswissenschaft 25 (2001), 120-123 sugere que Polybius achou isto uma versão próRomana dos eventos no trabalho de Fabius Pictor. 27 Errington, op. cit. (n. 22), 34; J.S. Richardson, Hispaniae. Spain and the development of Roman imperialism, 218-82 BC (1986), 21; Rich, op. cit. (n. 24), 23. 28 E. Badian, ‘Two Polybian treaties’, in Miscellanea di studi classici in onore di Eugenio Manni. Vol. 1 (1988), 162-164 argumenta que a negociação pode ter contido cláusulas que não tratavam da Espanha, as quais o coteúdo é desconhecido. Cf. Rich, op. cit. (n. 24), 20-21. One clause: Errington, op. cit. (n. 22), 34-36; Richardson, op. cit. (n. 27), 24-28; K. Bringmann, ‘Der Ebrovertrag, Sagunt und der Weg in den Zweiten Punischen Krieg’, Klio 83 (2001), 369.

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negociação com Hasdrubal, ele se refere a esta como se acordando que ‘os Cartaginenenses não deveriam cruzar o Ebro armados’ (3.27.9). Isto não deixa dúvida que ele considerou isto como o principal, se não único, conteúdo da negociação. Em qualquer caso, não há base para a suposição de que a negociação tivera uma cláusula ligando Roma à Espanha.29 Finalmente, não há nada estranho sobre o fato que Roma concluiu uma negociação com Hasdrubal ao invés de com o governo de Cartago. Os generais Cartaginenses habitualmente se engajaram na diplomacia com estados estrangeiros e concluíram negociações com sua própria autoridade – a negociação de Hannibal com Philip da Macedônia é um bom caso neste ponto.30

A invasão Gálica e a negociação de Ebro

Muitos estudiosos têm suposto que Roma concluiu a negociação de Ebro a fim de prevenir que as tropas Cartaginenses se unissem ao ataque Gálico na Itália.31 Porém, esta teoria pode ser prontamente desconsiderada, visto que isto não é o que Polybius diz, e não há plausibilidade na suposição de que os Romanos já estavam considerando a possibilidade de uma invasão Cartaginense na Itália pela rota do norte.32 Polybius certamente quis dizer que Roma queria evitar uma guerra em duas frentes, portanto evitando o confronto com Cartago enquanto se preparava para lutar contra os Gauleses. R. M. Errington imaginou tem resolvido o quebra-cabeça sobre a negociação de Ebro por argumentar que os Romanos não estavam, de fato, interessados nos Barcids ou na Espanha. Ao contrário, era Massilia – um aliado de longa data e leal de Roma - que estava preocupado com a ameaça Cartaginense às suas colônias. Explorando a invasão Gálica pendente e apontando o perigo de uma coalizão com Hasdrubal, Massilia conseguiu acordar o senado desta apatia – mas somente isto. O resultado foi um meio entendimento (não uma negociação real) por duas partes desinteressadas que os Cartaginenses não cruzassem o Ebro armados. Hasdrubal não ligou, já que suas tropas estavam ainda longe deste Rio. Roma não se

29

Assim como, A.M. Eckstein, ‘Rome, Saguntum and the Ebro treaty’, Emerita 52 (1984), 57-58; Bender, op. cit. (n. 23), 89-90. J. Serrati, ‘Neptune’s altars. As negociações entre Roma e Cartago (509-226 a.C.), Classical Quarterly 56 (2006), 131 assume, ao contrário, que a negociação demarcou as esferas de influência de dois poderes. 30 Thus, Walbank, op. cit. (n. 6), 169-170; Hoyos, op. cit. (n. 24), 254-256. 31 Gelzer, op. cit. (n. 3), 84; Walbank, op. cit. (n. 6), 170; Eckstein, op. cit. (n. 29), 61; Bellen, op. cit. (n. 1), 16; Richardson, op. cit. (n. 27), 27; Mantel, op. cit. (n. 8), 71; Bringmann, op. cit. (n. 28), 370-371. 32 Thus, Rich, op. cit. (n. 24), 22; Bender, op. cit. (n. 23), 89.

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importou na realidade, mas Massilia estava satisfeito.33 A reconstrução ingênua de Errington falhou em convencer, portanto as duas frentes. Polybius escreve que Roma estava preocupada e então interveio. Massilia não mencionou este estágio. Secundariamente, ignora (como iremos ver em breve) algumas evidências das relações Romanas-Cartaginenses anteriores a negociação. Outro curso tomado pelos estudiosos modernos é o de negar qualquer relação causal entre a negociação de Ebro e a invasão dos Gauleses.34 John Rich, por exemplo, concluiu: “Pode ser bem que não houve relação causal de modo algum entre a negociação e a ameaça Gálica”.35 Nesta visão, Polybius está certo quando alega que o progresso Cartaginense na Espanha sob o comando de Hasdrubal, especialmente sua fundação de Nova Cartago, urgiu que os Romanos interviessem. A negociação do Ebro lhes deu segurança suficiente, visto que bloqueou o progresso dos Barcids ao norte. A questão de Roma com Cartago neste momento, ele adiciona, é refletida na “decisão, tomada em ou por volte de 227, de aumentar o número de pretores de dois para quatro para prover comandantes para Sílica e Sardenha, especialmente se, como parece ser provável a mim, foi somente depois que os Romanos decidiram manter uma força permanente em cada Ilha”.36 Peter Bender desenha um retrato similar, também negando uma relação entre a negociação e a ameaça, o que ele considera como um ataque surpresa de pilhagem dos gauleses. Despertados pela fundação de uma cidade por Hasdrubal em um local estratégico e sem estarem cientes de uma pendente invasão dos Gaesatae, os Romanos enviaram uma embaixada para proibir Hasdrubal de cruzar o Ebro armado. A decisão de apontar dois pretores anualmente para comando das tropas na Sardenha e Sílica reflete a tensão elevada no momento.37 Novamente, a ameaça satisfazia por completo as intenções de Roma. O principal problema com a reconstrução dos eventos por Rich e Bender é que ainda não faz muito sentido sobre a negociação do Ebro. Se os Romanos estavam preocupados com as políticas de Hasdrubal e sua fundação da Nova Cartago, a negociação do Ebro resolveu um pouco, visto que tinha sido mostrado que o território controlado pelos Cartaginenses estava longe do Ebro. Nem Hannibal havia conquistado e assegurado a região sul do Ebro quando

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Errington, op. cit. (n. 22), 39-41. Cf. Feig Vishnia, op. cit. (n. 4), 19; Serrati, op. cit. (n. 29), 130-131. Podemos ignorar estas teorias que supoem que o Rio Iber não significava o Ebro. Todas as tentativas de identificá-lo como outro rio faltam com evidências. Ver, por exemplo, Richardson, op. cit. (n. 27), 26-27; Rich, op. cit. (n. 24), 10-11. 35 Rich, op. cit. (n. 24), 23. Da mesma forma, Bender, op. cit. (n. 23), 93-94: Polybius viu a ameaça Gálica como a explicação ideal para a apatia Romana acreca dos Barcids. 36 Rich, op. cit. (n. 24), 23-24. 37 Bender, op. cit. (n. 23), 96-97. 34

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ele decidiu marchar contra Roma.38 Na verdade, ele só cruzou o Ebro armado – e desta maneira violou a negociação – depois que a Segunda Guerra Púnica era inevitável. Em minha opinião, Rich e Bender jogaram fora o argumento de Polybius que a invasão Gálica foi um instrumento para assinar a negociação do Ebro sem uma boa razão. Vamos reconsiderar a evidência que temos. À parte de Polybius 2.13, mais dois pedaços de informação esclarecem sobre as relações Romanas-Cartaginenses destes anos. John Rich e Peter Bender estão absolutamente corretos em chamar atenção neste contexto das medidas Romanas acerca de Sílica e Sardenha. Dois novos pretorianos foram criados em, ou por volta de 227 a.C. e designados para as províncias de Sílica e Sardenha.39 (O primeiro pretor de Sílica foi Flaminius). As tropas Romanas estavam provavelmente estacionadas em ambas as ilhas ao mesmo tempo. Tal movimento deve ter tensionado as relações com Cartago. Ou talvez, a relação causal é por outro lado: Roma tomou medidas em resposta a uma esfriada das relações Romanas-Cartaginenses. Seja lá o que causou isto, não se ajusta de forma adequada à declaração de Polybius sobre as preocupações de Roma e sua intervenção enérgica. Além disso, a movimentação das tropas demonstra que, no princípio do ano de 225 a.C., Roma estava focada em uma ameaça militar ao sul e ao oeste. As províncias dos cônsules e a localização de suas tropas em 225 a.C. não apóiam a idéia de que Roma estava esperando por uma guerra de larga escala ao norte deste ano. Somente em um estágio depois que um cônsul foi enviado com duas legiões e 15.000 aliados ao norte, para Ariminum. O outro cônsul havia sido enviado à Sardenha com um exército força igual. Além do mais, duas legiões foram estacionadas em Sílica e Tarentum. Devemos notar que quando Roma estava se preparando para a guerra com Cartago em 218 a.C., as tropas Romanas estavam estacionadas em Sílica, Sardenha e Tarentum também.

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Os outros exércitos, mencionados por Polybius,

lutando ao norte ou estacionado em Roma, foram formados em um estágio posterior. A força crescente das legiões determinadas aos cônsules mostra que Roma estava em alerta naquele ano. Normalmente, as legiões eram compostas por 4.000 homens fortes, como Polybius regularmente nos diz e como as legiões na Sílica e Tarentum eram, mas nesta ocasião, legiões de 5.200 homens eram designadas aos cônsules. A embarcação imediata das legiões a Pisa, quando as notícias que os Gaesatae haviam cruzado os Alpes chegaram, parece indicar que 38

Sumner, op. cit. (n. 22), 208-215. T.C. Brennan, The praetorship in the Roman republic. Vol. I (2000), 91 denota que Livy, Per. 20 exclui a possibilidade de que dois novos postos de pretores foram criados em 229 a.C., “deixando os anos seguintes até 225 a.C como possibilidades”. Cf. Rich, op. cit. (n. 24), 23-24, quem opta por 227 ou de alguma forma mais tarde. 40 Polybius 3.75.4. 39

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nenhuma luta de fato ocorreu em Sardenha. Até onde podemos determinar, as legiões estacionadas em Sílica e Tarentum não se moveram durante toda a crise de 225 a.C.

Sagunto Se supusermos que a ligação de Roma com Saguntum começou antes da negociação do Ebro, todas as peças do quebra-cabeça saem do lugar. Infelizmente, Polybius (3.30.1) é um tanto vago sobre a data do acordo Romano com Saguntum. Ele meramente diz que ‘é um fato além da disputa que os Saguntines se colocaram sob a proteção de Roma, muitos anos antes do tempo de Hannibal, i.e. antes que Hannibal sucedesse Hasdrubal em 221 a.C. Muitos estudiosos tem argumentado que a aliança precedeu a negociação do Ebro,41 mas Rich conclui que a ligação deve ser datada depois desta. Ele escreve: “Esta é a implicação da declaração de Polybius que era somente naquele momento da negociação que a decisão de Roma sobre a ‘determinação Romana em colocar a mão nas questões da Espanha’ (2.13.3)”.42 Contudo, esta conclusão não é garantida. Polybius não declara que a negociação do Ebro foi a primeira intervenção de Roma nas questões Espanholas. Ele diz somente que os Romanos começaram a intervir nas questões Espanholas no momento da negociação do Ebro. E, Polybius 3.14.9-10, Hannibal deixa suas mãos fora de Saguntum, “desejando não ter que dar aos Romanos qualquer pretexto aberto para guerra até que ele houvesse segurado todo o resto do país, seguindo as sugestões a conselhos de seu pai Hamilcar”, Eckstein sugeriu uma nova leitura desta passagem, segundo o que Hamilcar teria advertido a Hannibal a retirar suas mãos de Saguntum, o que significaria que a relação especial de Roma com esta cidade Espanhola já existia durante a vida de Hamilcar.43 Todavia, não há razão para preferir esta leitura à usual, de acordo com o qual Hamilcar meramente advertiu Hannibal a não provocar uma guerra aos Romanos antes que ele tivesse possuído o resto do país. Além disso, a interpretação de Eckstein está em conflito direto com a declaração de Polybius acerca do momento do interesse de Roma pela Espanha.

41

Sumner, op. cit. (n. 22), 214-215 imagina que 231 ou 226 a.C. são datas prováveis. Segundo o fregamento 48 de Cassius Dio, uma embaixada visitou Hamilcar na Espanha em 231. Contudo, Cassius tem vários eventos concertes as relações Romanas-Cartaginenses que são claramente não-históricas. Não há razão para assumir que este fragmento é mais confiável. Além disso, Polybius explicitamente diz que a primeira vez que Roma interviu na Espanha foi sob Hasrdubal. O fragmento 48 de Dio, não oferecendo razão nenhuma razão para o argumento de Polybius, é provavelmente falso. Assim como Errington, op. cit. (n. 22), 32-34; Mantel, op. cit. (n. 24), 69-70. Por outro lado, Gelzer, op. cit. (n. 3), 84; Richardson, op. cit. (n. 27), 21; Serrati, op. cit. (n. 29), 130, 133. 42 Rich, op. cit. (n. 24), 25. Assim como, Richardson, op. cit. (n. 27), 22. 43 Eckstein, op. cit. (n. 29), 53-56.

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O motivo de Roma para estabelecer relações amigáveis com a cidade Espanhola pode dar alguma indicação da data. Roma claramente começou sua relação com Saguntum a fim de atrapalhar a expansão dos Barcids na Espanha, e a cidade era localizada muito bem para tal finalidade. Estando a cerca de 150 km ao sul do Ebro, era razoavelmente próximo ao território controlado pelos Cartaginenses. Além disso, sua posição na costa bloqueou as rotas oceânicas Cartaginenses em direção ao norte. Conseqüentemente, quando o sucesso de Hasdrubal causou a Roma interesse na Espanha, como Polybius escreve, estabelecer ligações com Saguntum foi um sinal claro e um movimento inteiramente estratégico. Tal ação dificilmente não faria sentido depois da negociação do Ebro, como eventos posteriores claramente demonstram. Roma teve pouco interesse em Sagutum nos anos após a negociação do Ebro. É difícil escapar da impressão de que da negociação do Ebro até a sucessão de Hannibal, Roma havia se voltado para a Espanha, incluindo seu ‘estado de amizade’ Saguntuk.44 Durante os anos de 225-222 a.C., Roma estava lutando contra os Gauleses, e tendo pacificado a Gália Cisalpina, o senado escolheu travar guerra na Illyria. Até mesmo o ataque de Hannibal em Saguntum não moveu Roma a uma ação rápida. Foi tarde do dia – muito tarde para Saguntum – que Roma finalmente decidiu tomar uma firme posição sobre a Espanha.

Conclusão Portanto, em minha opinião, Roma estava preparada para a guerra em 225 a.C., mas contra Cartago ao invés de contra os Gauleses. Preocupado com os sucessos de Hasdrubal, em particular a fundação de Nova Cartago, o senado ganhou um footing na Espanha por estabelecer conexões com Saguntum,e assegurando a posição de Roma em Sardenha e Sílica estacionando tropas sobre o comando de pretores. Por causa da política nova e agressiva, a ameaça de guerra no ar começou em 225 a.C., e, portanto, encontramos tropas estacionadas em Sardenha, Sílica e Tarentum no período. Mas depois, notícias sobre a invasão pendente dos Gaesatae causaram surpresa e alarme. A hostilidade dos Boii e Insubres tem sido um fato conhecido, mas a invasão significou que Roma encontrou inimigos mais perigosos ao norte do que eles haviam esperado. O senado decidiu abrandar Hasdrubal, e em tal situação, quando os Romanos foram forçados a dar um passo para trás, a negociação do Ebro faz sentido. Ambas 44

Sumner, op. cit. (n. 22), 236: “O renascimento de um interesse Romano ativo no caso da Espanha foi tão tarde quanto 220.” Errington, op. cit. (n. 22), 46-53 concorda que a falta de interesse Romano até 220 a.C., e até depois, ele argumenta, eles não estavam preparados para ir à guerra por Saguntum. Richardson, op. cit. (n. 27), 29 conclui que não foi o fato de Saguntum que levou Roma a guerra, mas a expansão do poder de Hannibal.

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as partes não estavam ávidas por guerra e, por isso dispostos a encontrarem-se no meio do caminho.45 A negociação do Ebro foi causada pela emergência de um inimigo inesperado e deve, portanto, se datada no mesmo ano (e em algum momento anterior) da batalha de Telamon. Três anos depois, os Gauleses tendo sido derrotados e as mãos de Roma libertadas, Roma tinha uma razão para aceitar esta negociação como satisfatória, já que os Barcids não fizeram muito progresso ao norte. Foi somente após Hannibal ter sucedido Hasdrubal no comando que a desconfiança mútua acendeu-se novamente. Em resumo, Polybius desenha um falso retrato dos eventos que levaram a guerra em 225 a. C. Os Gauleses não foram levantados pela distribuição de terra instigada por Gaius Flaminius. Roma não estava sofrendo durante sete anos sob constante ameaça de uma invasão Gálica mássica. A política Romana acerca de Cartago foi, de fato, atrapalhada pelo medo dos Gauleses, mas isto foi uma resposta de curto prazo ao invés de uma ameaça de longo prazo. Em 225 a.C., eles podem ter esperado guerra, mas ao sul e oeste que ao norte. O propósito da manipulação dos fatos foi provavelmente explicas a falha de Roma ao responder adequadamente ao crescente poder Púnico na Espanha. Alguns estudiosos modernos têm colocado a culpa desta distorção inteiramente em Polybius, em particular, na sua extremamente forte crença sobre a ameaça dos Barcids sobre Roma e a inevitabilidade de uma Segunda Guerra Púnica. É suposto que nosso autor Romano precisava de uma explicação para a aparente inércia durante estes anos, o que ele achou na ameaça Gálica. Porém, não só Polybius precisava explicar o curso dos eventos. Os Romanos também precisavam justificar sua desconsideração pelo que, nos últimos anos, deve ter parecido sinais claros de uma agressão Púnica. A cidade de Saguntum, que contava com a Romana Fides, havia sido saqueada por Hannibal, enquanto os senadores Romanos meramente usaram palavras para protegê-la da destruição. A justificativa Romana, não só diz respeito à ‘Kriegsschuldfrage’, mas também se refere à política do senado acerca da Espanha Barcid, já colorida pelo relato ambíguo de Pictor sobre a política Romana. A ameaça precoce de uma invasão Gálica massiva, foi argumentado, não obstruiu as políticas Romanas concernentes a Espanha. E depois disso, Roma necessitou assegurar primeiramente sua retaguarda, levando a Segunda Guerra Illyrian.46 Por último, mas não menos importante, a fábula de uma ameaça Gálica prolongada foi atrelada a difamação de Flaminius.

45

Eckstein, op. cit. (n. 29), 60 também nota que “Hasdrubal pode ter dificilmente olhado a proibição do Ebro […] como envolvendo uma séria debilidade de qualquer atividade provável de sua parte”. Já semelhante Gelzer, op. cit. (n. 3), 84. 46 Walbank, op. cit. (n. 6), 324; Eckstein, op. cit. (n. 25), enxerga isto como um argumento justificado.

128

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131

LOGÍSTICA MILITAR AO LONGO DO MAR EXTERIOR: A ROTA ATLÂNTICA E A DISTRIBUIÇÃO DO HALTERN 70 AMPHORA.

Cèsar Carreras Universitat Oberta de Catalunya

Quando as pessoas estudam a Rota Atlântica no período Romano, normalmente analisam-na de uma forma fragmentada ao invés de uma entidade integrada, como provavelmente os Romanos a conheciam – um meio de comunicação conhecido como Mar Exterior. Por muitos anos, a navegação Atlântica foi questionada, apesar das numerosas evidências materiais de comércio, tais questionamentos não permanecem atualmente. A presença de inúmeras ruínas de navios fora da costa marítima do Atlântico, principalmente nas costas de Portugal e Norte da Espanha, assim como um volume considerável de ânforas, cerâmicas e outros produtos comerciais revelam uma próspera troca de produtos nestas áreas. Atualmente, é amplamente aceito que o Mar Exterior constituía outra rota marítima no período Romano, usada até mesmo em viagens de longa distância para locais distantes como as Ilhas Britânicas. Porém, a presente discussão é quanto ao volume de tais tráfegos marítimos, se seriam rotas comerciais regulares ou seriam tráfegos específicos relacionados à logística militar. Outras questões surgem relativas aos itinerários mais viáveis destes navios Atlânticos e quem financiava tais movimentos comerciais. Por muito tempo, a presença ou ausência de um tipo particular de cerâmica foi utilizada como evidência de contatos e rotas comerciais, ainda que tal “evidência” tenha sido um só exemplar. Quanto maior o número de lugares escavados, mais locais documentam tipos de cerâmica similares e objetos arqueológicos (i.e. mármore, trabalhos em metal). Portanto, se as pessoas desejam ir mais longe quanto à justificativa de tais rotas, materiais arqueológicos deveriam ser quantificados de modo que permitam uma comparação real através do espaço e tempo. Um destes materiais arqueológicos, que são elegíveis para quantificação, é a ânfora. A ânfora era um container padrão utilizada para carregar suprimentos como vinho, azeite, garum etc, de um lado a outro no Império Romano. Eram basicamente empregadas em

132

transportes fluviais e marítimas, uma vez que se tornaram muito pesados para o transporte terrestre. Nos últimos anos, conjuntos de ânforas de diferentes lugares e períodos por todo o Império têm sido classificados e quantificados (basicamente por peso e número mínimo de exemplares)1 (Carreras, 2000; 2006). Apesar de existirem tipos de ânforas similares no mesmo período, as quantidades são bem díspares, e a diferença ainda é maior quando são divididas por área escavada, quando gerada a densidade. Assim, é possível comparar os locais, períodos e reconstruir rotas comerciais antigas por estatísticas ou GIS (Geographic Information Systems – Sistemas de Informação Geográfica). Uma das dificuldades do método surge quando contextos de períodos similares são selecionados para uma comparação temporal, o que nem sempre é fácil de ser obtido. Se as metodologias atuais de quantificação de ânforas permitem uma evidência melhor das rotas comerciais no Império Romano, as razões por trás de tal mobilização levantam muitas controvérsias. Por um longo período de tempo, imaginava-se que as Legiões Romanas eram responsáveis pela maior parte do volume de movimentação de ânforas até novas províncias conquistadas. Entretanto, estudiosos não concordam sobre o mecanismo que mobilizava tais mercadorias. Alguns estudiosos defendem a existência de um mercado aberto onde os militares conseguiam tais suprimentos. Outros sustentam um tipo de comércio “amarrado” (subsidiado) (Whittaker, 1989) que mantinha um abastecimento estável para qualquer guarnição militar. Finalmente, outros identificam uma intervenção direta do Estado no abastecimento na forma de annoma militaris (Remesal, 1986), vinculando impostos aos transportadores privados e serviços públicos. O que parece claro é que “o Império Romano nunca desenvolveu um sistema de abastecimento militar uniforme e de aplicação universal” (Kehne, 2008, 326), mas este era adaptado a cada território de acordo com as exigências do exército, os produtos locais e a infra-estrutura de transporte. Em outro artigo (Carreras, 2000), analisamos a distribuição de ânforas na província de Britannia, no qual foi reconhecido que tipos de ânforas eram distribuídos de maneiras diferentes. Algumas distribuições de ânfora parecem seguir regras estritas de mercado enquanto outras como a Dressel 20 revelam um claro padrão militar de distribuição que

1

Existe um projeto internacional para comparação de métodos quantitativos para analisar o tráfego comercial nos portos Mediterrâneos através de mármores e ânforas (redes de portos na Roma Mediterrânea), dirigido por S.J.Keay com a colaboração da British School of Rome.

133

reforça a idéia de um tipo de intervenção pública. Surgiram algumas novas questões a partir desta pesquisa: - A relevância da Rota Atlântica – a maioria das ânforas vieram de províncias mediterrâneas e a Rota Atlântica era a mais barata em qualquer cálculo de transporte pela costa (Carreras, 1994). Contudo, a rota deveria ter sido claramente documentada arqueologicamente. - Como o abastecimento militar era organizado e quem era responsável por movimentar estes surimentos. Por esta razão, foi decidido prestar mais atenção a Rota Atlântica em outras províncias como Hispannia, Gallia ou Germania Inferioris, assim como à análise da evolução do abastecimento militar através do tempo no período republicano (Erdkamp, 1998) até o Principado (Roth, 1999).

A Rota Atlântica no período republicano: testemunhos e campanhas militares

Os primeiros testemunhos romanos da exploração do Atlântico coincidiam com a disseminação da ânfora italiana Dressel 1, durante o segundo e primeiro século a.C. Tais containeres de vinho eram amplamente distribuídos na Gallia (Fitzpatrick, 1987) chegando também nas Ilhas britânicas do Sul e Sudeste, nas quais o local Hengisbury Head (Grã-Bretanha) destacou-se como um ponto de comércio. Estes vinhos italianos chegaram ao Norte do Atlântico através das principais rotas fluviais de Gallia. No ano de 60 a.C., a fronteira romana era a província Gallia Narbonensis, por isto todo o Norte da Gália estava fora do controle de Roma. Todavia, havia um próspero comércio entre romanos mercadores e tribos da Idade do Ferro, com mecanismos de sistema de comércio. Porém, as quantidades de ânforas nos sítios da Idade do Ferro não eram tão significativas quanto os que foram encontrados no período do Principado, em outras palavras, o sistema de comércio não garantiu um suprimento vultoso para locais distantes no período Republicano. Uma das rotas mais utilizadas era conhecida como “isthme gauloise”, uma rota que começava em Narbonne e seguia o Aude, rio acima, e continuava por terra em direção a Toulouse, onde se encontrava um statio, no meio do primeiro século a.C. (Cicero, Pro. Front. IX, 19). Esta rota continuava seguindo o Rio Garonne abaixo até alcançar Burdigala, um porto Atlântico através do qual as ânforas poderiam chegar até as Ilhas Britânicas. A rota

134

inteira foi expansivamente documentada por um grande número de Dressel 1 na área de Toulousse onde “um ponto de cisão” pode ter existido, onde o vinho pode ter sido mudado de container (Tchernia, 1986)2. Na segunda metade do primeiro século a.C. e no período Augusto, outro vinho, conhecido como Tarraconensis Pascual 1, substituiu os containeres italianos mas seguiu o mesmo itinerário. A partir de 58 a.C., as campanhas de J. César em Gallia modificaram as fronteiras do norte e os territórios romanos alcançaram o Atlântico Central. A costa oeste do Atlântico (Hispania Ulterior e Citerior) foi conquistada por uma geração anterior, como por Júlio Bruto e o próprio Júlio César (como legatus da província Ulterior). No ano de 57 a.C., os romanos venceram os Nervii e Atyatycii no vale de Meuse na Holanda. Em 56 a.C., as tropas de César enfrentaram os Venetii, uma tribo estabelecida na atual Bretanha Francesa, a qual era a verdadeira soberana na navegação do Golfo de Biscay e das rotas em direção às Ilhas Britânicas. Entre 55-54 a.C., os romanos alcançaram, pela primeira vez, as Ilhas Britânicas e batalharam com seus líderes locais, Cassillevanus, em Kent. Por volta de 50 a.C., os romanos rapidamente controlaram todo o Canal Inglês, e da mesma forma passaram a ser a única potência naval entre o Estreito de Gibraltar e a foz do Rio Reno. Considerando que as tropas romanas conquistaram toda Gallia em uma década, a Italian Dressel 1B apareceu regularmente e em bom volume nas áreas conquistadas.

O início do Principado e a ânfora Tarraconensis: Pascual 1 e Dressel 2-4

No primeiros anos do governo de Augusto, ele completou a pacificação das tribos gaulesas da costa atlântica com algumas campanhas contra os Aquitanii (Gália Atlântica do Sul) ou Morini (Pas de Calais). Em relação aos Países Baixos, as campanhas de J. César esvaziaram o território que agora era continuamente ameaçado por tribos germânicas do lado leste do Rio Reno. M.V. Agripa, governador de Gallia, em 39-38 a.C., lutou contra os Suebii e Chatii, tribos germânicas, e estabeleceram uma tribo aliada, os Ubii em Köln (Ara Ubiorum). No período Augusto, a ânfora de vinho da província Tarraconensis parecia substituir a ânfora de vinho italiana nos mercados do Atlântico. Além disso, existem concentrações especiais nas áreas onde militares supostamente se estabeleceram. A distribuição da ânfora 2

Em relação a esta rota e a outras rotas fluviais em Gallia, recentemente, houve um colóquio em Lattes com o título Itinéraires dês vins romains em Gaule, Iller-ier siècles avant J.C. (2007).

135

tarraconensis também é orientada para os mercados do Atlântico seguindo as mesmas rotas de suas antecessoras. Neste caso, as distribuições de ânfora eram inicialmente estudadas com base dos selos registrados. A quantificação de selos não é sempre conclusiva, já que é bem conhecido que nem todas as oficinas selavam com a mesma freqüência, as datas também são questionáveis, os selos se repetem em diferentes centros e algumas vezes não podem ser associados a uma única tipologia. De qualquer forma, os selos das ânforas podem ser úteis para mostrar uma visão geral destas exportações Tarraconensis ao longo do tempo. Porque existe uma baixa freqüência de selos com larga distribuição (i.e. M.PORCI), foi decidido juntar todos os selos com a mesma data e analisar a distribuição por fases, de 40 a.C. a 50 d.C.

FASE

Nº de Selos

Principais Locais

Principais Embarcações

1 (40-15 a.C.)

2 (30-5 a.C.)

59

157

Badalona, Empúries,

Cap Béar 1 i 3,

Port-La Nautique

Cavalleria

Badalona, Port-La

Els Ullastres, Anse de

Nautique, Barcelona

Monfort, Port-Vendrés 4

3 (20 a.C.- 20

110

d.C.) 4 (AD 0-25)

Badalona, Ensérune,

Cap de Volt

Neuss, Ruscino 432

Badalona, Can Tintorer,

Giraglia, Chrétienne C,

Sant Boi, Fréjus,

Sud-Lavezzi 3,

Barcelona...

Dramont B, Gran Ribaud D...

5 (25-50 d.C.)

91

Badalona, Caldes de

Diano Marina, Ile

Montbui, Fréjus, Ostia,

Rouse, Petit Conglué,

El Mujal

Cavallo 1, Perduto 1

Figura 1. Quantidades de selos das ânforas Tarraconensis por período. (C.Carreras)

136

Somente as quatro primeiras fases sugerem que os mercados Atlânticos, principalmente militares, eram um dos principais destinos dos vinhos Tarraconensis.

Fase 1 (40-15 a.C.) – Este é o período inicial da exportação de vinho em ânforas Laietana 1 e Pascual 1. As distribuições de selos estão concentradas na costa da Catalunha, alguns no Vale do Ebro, no sul de Galia, e em alguns pontos da Aquitânia e Bretanha Francesa no Atlântico. Os centros de produções e distribuição principais deste período são Empúries (onze selos), Badalona (dez selos) e Por-La Nautique (seis selos).

Fase 2 (30-5 a.C.) – Este segundo período é o primeira explosão das exportações de vinho por intermédio das ânforas Pascual 1, que eram distribuídas pelo porto de Narbo. O número de selos foi triplicado chegando a 157. Exisitia uma grande concentração na costa da Catalunha, mas também na rota do Istmus Gaulois (Aude-Garonne), com alguns achados na German Limes, Vale do Rhone e Bretanha Francesa. A concentração de selos claramente identifica a rota Aude-Garonne, com uma alta concentração no ponto de início da mesma, o Port-La Nautique (48), que juntamente com Badalona (36) e Barcelona (12) eram o ponto de saída e distribuição das ânforas Pascual 1, naquele período.

Fase 3 (20 a.C. – 20 d.C.) – Um terceiro período de massiva exportação continuada de ânforas Pascual 1 seguindo as mesmas rotas da fase anterior. A rota Aude-Garonne ainda é a mais popular, mas a rota do Rhone está se tornando mais importante. Este é o começo da produção da Dressel 2-4, mas estas são menos representadas quanto ao número de selos. A concentração maior aparece novamente em Barcelona (40), quando número do selo local M.PORCI aumentou de volume, apesar de existirem outros exemplares em Port-La Nautique (4), Ruscino (4), ou Neuss (4).

Fase 4 (0-25 d.C.) – Este é o início de uma larga exportação da Dressel 2-4 de Tarraconensis, as quais eram provavelmente seladas com mais freqüência do que em períodos anteriores. Este era o caso das oficinas de ânforas na área de Baix Liobregat (perto de Barcelona), onde são documentadas inúmeras amostras seladas. Na verdade, esta fase obtém um número de 432 selos, três vezes mais que a fase 2 que até então havia sido a maior. A rota Aude-Garonne parece perder importância assim como Narbonne, como centro de redistribuição. Ao contrário, a rota do Rhone aumenta a presença da ânfora Tarraconensis, da mesma forma que outras rotas em direção a costa Levantina da Hispania (Carthago Nova). Independente das

137

áreas de produção, as principais concentrações surgem no Sul da Galia perto da foz do Rio Rhone – Fos-sur-Mer (5) e Fréjus (4) – e Roma (e). Parece-nos que as exportações de ânforas de vinho Tarraconensis tenham seguido as legiões de Roma até o Norte de Galia e Germania no final do primeiro século a.C., sendo também distribuídas nos locais da costa do Atlântico. Porém, em algum momento no início no primeiro século este claro padrão não emerge mais, ao contrário, as exportações são direcionadas basicamente para Roma, Vale do Rhone e para a Costa Levantina. Se a densidade da ânfora Tarraconensis for usada, a imagem complementar se torna mais reveladora. Infelizmente, pedaços indiagnosticáveis não permitem distinguir tipologias, então todas as ânforas Tarraconensis são incluídas juntas. Além disso, nenhuma fase cronológica foi criada, por isso o mapa como resultado cobre todo o período de 40 a.C. até 25 d.C.

Figura 2 – Densidades de ânfora Tarraconensis por peso (g/m2). (C.Carreras)

O mapa da figura 2 vem de uma interpolação de densidades de 167 locais (103 britânicos), 30 da Galia, 20 da Hispania e alguns da Germania e Itália. Apesar da falta de amostras de outros territórios, o mapa da distribuição identifica claramente uma concentração de ânforas Tarraconensis no Istmus Goulois, na costa Atlâtica e na Germania Inferior. A

138

maior razão para tal distribuição distinta deve ser relacionada, indubitavelmente, à presença do exército romano. Verificando os detalhes, o mapa mostra alta concentração ao redor de Narbonne e ao longo da primeira parte da rota Aude-Garonne, provavelmente só a do Rio Aude. Uma vez chegada à área de Toulouse, também com alta concentração, a densidade de ânfora cai. Talvez a explicação seja razoavelmente clara, alguma quantidade de vinho foi consumida e outra transferida para outros containeres que eram mais ajustáveis à transportação por terra. Uma segunda grande concentração aparece na área da Germania Inferior, apesar de que a amostra é questionável devido ao pequeno número de locais registrados. Neste caso, os acampamentos militares eram os principais consumidores (ver a frente o caso de Xantem) e provavelmente chegaram ao longo da rota Aude-Garonne, mais tarde pela navegação Atlântica e, em seguida, subindo o Rio Reno. Mais uma vez, uma amostra melhor quantificada é necessária, assim como alguns períodos das séries, para confirmar algumas destas hipóteses. Finalmente, a última grande concentração surge na Bretanha Francesa, algo que já havia sido detectado pelos selos das ânforas e agora é confirmado. O aspecto mais interessante de tal concentração nesta região da Gallia é o fato de que a ânfora Pascual 1 são os conjuntos mais comuns nos contextos do período Augustus e Tiberiano. Isto é especialmente relevante no caso de Angers, Rennes e Touffré-Villé. A concentração singular de ânfora responde à possível movimentação de tropas, talvez construindo estradas e controlando territórios. A última campanha militar foi liderada por M. Valerius Mesala Corvinus (27 a.C.) que esmagou uma rebelião dos Aquitannii assentados entre o Garonne e os Pirinéus. Entre os anos de 27 a.C. e 12 a.C., pouco se sabe sobre a localização das legiões de Gallia e seus acampamentos, após esta época ele se estabeleceram em German Limes. Uma série de acampamentos militares tem sido identificada no norte da Galia, o que corresponde à área de maior concentração da Tarraconensis Pascual 1 (Reddé, 2006). Concernente a outras regiões do Atlântico, a ânfora tarraconensis foi raramente documentada na Britânia, porque naquele tempo estava fora do Império Romano, e ao noroeste da Península Ibérica. A situação da Península Ibérica era um pouco diferente, de 2919 a.C. existiu uma grande concentração de tropas no noroeste, durante as guerras dos Cantabrii e Astures. Apesar da falta de ânforas tarraconensis, os locais militares ao noroeste da Península registram outro suposto tipo de ânfora de vinho, neste caso de Bética (Baetica), conhecido como Haltern 70.

139

Como foi descrito anteriormente, o abastecimento militar aparenta não constituir um modelo uniforme, mas diversos conforme cada província e território. Neste caso do Noroeste da Península Ibérica, e de fato, em toda a costa Lusitana, havia uma alta dependência do abastecimento Bético de mercadorias. É difícil discriminar a ânfora Haltern 70 do contexto Augustus nesta região de outros contextos Julio-Claudian, mas aparentam ter importado grandes números neste período em lugares como Porto, Vigo ou Braccara Augusta (Morais e Carreras, 2005). Este tipo de ânfora era predominante nesta região com porcentagem por volta de 60-50% de todos os conjuntos de ânforas. Ela veio junto com as ânforas de molho de peixe Gaditano (ovais, Dressel 7 e Dressel 9). Outros lugares no Golfo de Biscaia, com horizontes Augustus, como Campa Torres, demonstram também uma presença intensa de Haltern 70. Deve ser concebido que a distribuição da Haltern 70 em todo o Império Romano foi concentrada ao Noroeste da Península Ibérica em um pequeno período, sobretudo de Augustus a Flavians (Morais e Carreras, 2005). Apesar da ausência de evidências conclusivas, acredita-se que tais números de importações Béticas devem ser relacionados ao exército, durante a guerra da Cantabria e, mais tarde, quando as unidades do exército mantinham explorações de ouro nas minas do noroeste (i.e. Las Médulas). Como mencionamos anteriormente, Haltern 70 foi uma ânfora um pouco estranha uma vez que carregava uma enorme variedade de conteúdos de acordo com as inscrições pintadas (Aguillera, 2005). Isto significa que o mesmo container transportou alimentos diferentes do Vale de Guadalquivir (i.e. defructum, azeitonas, muria e talvez vinho). Uma idéia sugestiva pode relacionar a existência de um container multiuso para carregar todos os produtos até um único cliente, o exército. Atualmente, ainda permanece como uma simples idéia.

German Limes: um destino distante na Rota Atlântica?

Com a nova reorganização de Gallia, Lugdunum foi estabelecida como capital em 43 a.C. A nova capital reforçou a rota fluvial que, seguindo os rios Rhone e Reno, se comunicava com o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico. Tal rota seguia o Rhone acima até Châlonsur-Saône, e depois, por transporte em terra, até Metz, onde as rotas fluviais de Moselle eram empregadas para chegar até Trier e Köln, e então ao rio Reno.

140

Contudo, as regiões do norte não eram pacíficas e em 17 a.C., o governador da província da Bélgica, Marcus Lollius, perdeu a legião V Alaudae contra os Sugambrii, outra tribo Germânica na margem leste do Rio Reno. Esta situação compeliu Augustus a enviar seus enteados, Drusus e Tiberius, a fim de reorganizar toda a região do baixo Reno. Entre 16 e 13 a.C., eles reorganizaram tropas na área ao redor do Rio Reno, estabelecendo as guarnições mais importantes em Nijmegen e Xanten (acampamento de Vetera). Drusus também ordenou construção de canais3 e represas que tornaram mais fáceis a navegação fluvial em direção ao Mar do Norte e à Germania Libera (ao leste do Reno). Portanto, a navegação na costa ao longo do Atlântico e do Mar do Norte foi perfeitamente praticada pelos romanos. A região dos civitas Nervii parece sofrer o impacto militar de Roma neste período (20-10 a.C.), no qual muitos vicis tornaram-se postos avançados registrando ânforas típicas como a Dressel 1B, a Tarraconensis Pascual 1 e a Dressel 2-4 – período Tiberiano em diante (Monsieur, 2003). Os vicus de Vezelke registram um conjunto interessante de ânforas semelhantes a outros assentamentos militares romanos tais como Nijmegen ou Vetera – Dressel 1B, Pascual 1, a gaulesa Dressel 9 similis, Haltern 70 ou a antiga Dressel 20 (Monsieur and Braeckman, 1995; 1999). Entre 12 e 9 a.C., Drusus iniciou sua campanha para conquistar a Germania dos centros militares, Vetera e Mainz, e seguindo os afluentes do Reno, os Rios Lippe e Main. O objetivo final era controlar o vale de Vlatava (entre os Rios Elba e Danúbio), o qual provia recursos minerais especialmente interessantes para os romanos. As primeiras campanhas em 12 a.C. foram contra os Sugambrii que foram derrotados, e posteriormente voltou ao Reno, embarcou suas legiões em Nijmegen e navegou em direção ao Mar do Norte. Da costa do Mar do Norte, Drusus atacou os Sugambrii, seguindo o Rio Lippe e quase chegando ao Rio Wesser. Estabeleceu um acampamento militar em Oberaden, o que foi recentemente datado por descronologia em 11 a.C. Certamente, Haltern foi também fundada durante estes anos. Haltern era outro acampamento militar localizado perto do Rio Lippe, e bem conhecido por ceramologistas do Italian TS services, e as ânforas bem datadas como a Haltern 70. Este acampamento militar de madeira escavado em extensão durante o século dezenove (Loeschcke, 1909) foi ocupado até 9 d.C., e fornecem conjuntos de ânforas com Dressel 1B, ânfora Tarraconensis, Dressel 9 similis de Lyon, antiga Dressel 20 (Haltern 71-Oberaden 83), Rhodian e, é claro, Haltern 70. 3

A fossa drusiana consiste em um canal que comunicou Vechten com o Atlântico a fim de favorecer o abastecimentos das tropas.

141

Um conjunto semelhante ao de vicus Velzeke e do acampamento romano de Nijmegen e De Horden (van de Werff, 1984; 1987). As campanhas militares de Drusus duraram até 9 a.C., quando alcançou o Rio Elba em sua segunda campanha contra os Chatii. Na realidade, remanescentes de um possível acampamento temporário de Drusus têm sido encontrados em Hedemüden perto do Elba (Grote, 2005). Em seu caminho de volta, Drusus caiu de seu cavalo e morreu. Deste ano de 98 a.C. em diante, Tiberiur se tornou o chefe-comandante em Germania e carregou suas ofensivas contra os Sugambrii. Eles foram derrotados e deportados para a borda oeste do Reno, próximo de Vetera, em um lugar conhecido como Xanten, sendo nomeados como o nome de Cugernii. Como dito antes, Xanten foi inicialmente ocupado por Drusus por volta de 16-13 a.C. como um porto para o acampamento legionário de Vetera I, localizado a cinco km de um lugar chamado Birten. Na realidade, o acampamento legionário de Vetera I foi ocupado até o período Flaviano quando se mudou para outro local mais próximo do Reno, Vetera II. Os conjuntos de ânforas de Vetera I foram estudados por Hanel (1995) fornecendo Pascual 1 Tarraconensis (com um selo PMC), Haltern 70, Dressel 7-11 béticas, Rodia, Dressel 20 e Dressel 28 (Hanel, 1995, tafel 130-131).

Figura 3 – Fotografia aérea do local atual de Xanten. (Archaologische Park Xanten)

Concernente a Xanten – o antigo porto de Vetera I, o local inicial consistiu-se de um componente nativo da tribo Cugernii estabelecida no local por Tiberius (8 a.C.) e algumas

142

tropas romanas. Em um patamar arqueológico, o local primitivo de Xanten incluiu construções de madeira e cabanas, o que deixou pequenos testemunhos (Zieling, 1989; 2001). Outra fonte de informações são sepultamentos encontrados ao redor desta área construída, que produziram artigos fúnebres, todos datados do início do século I a.C. (Bridger, 2001). Finalmente, a distribuição do Italian Samian Ware (TSI), moedas e fibulae no período Augusto-Tibério foi analisada e coincide com a localização de construções de madeira e sepultamentos. Posteriormente, durante o período Trajan, houve um deductio colonial e a colonia Ulpia Traiana foi fundada no mesmo local. De 2001 a 2006, todas as ânforas de Xanten existentes no Parque Archäeologischer de Xanten foram classificadas e quantificadas pelo grupo CEIPAC4, tornando-se uma dos poucos conjuntos de ânforas quantificados na Germania Inferioris (Carreras, 2006). Aproximadamente, a zona ocupada pelos civitas Cugernorum cobriu as insulae 23,24, 25, 26, 30, 31, 32, 33, 36, 37 e 38 da posterior colônia, bem como a parte exterior da muralha leste da cidade de frente para o rio afluente, onde havia um porto. Da data estudada até 2006, haviam séries de contextos nestas insulae repletas de muitas ânforas que pertenciam ao suprimento do século I. Provavelmente, a escavação com alta densidade de material (1795666 cg/m2) deste período é Ost-Mauer 76-29 (Carreras, 2006), apesar de outro contexto em volta da muralha leste estudado em 2005 e 2006 apresentam valores e composições similares. Acredita-se que todos estes contextos pertencem a áreas de depósito próximas ao porto do rio. Além disto, a datação de Ost-Mauer (76-29) é bem homogênea, a maioria dos materiais podem ser datados do fim do século I a.C. e início do século I d.C., apesar de haverem materiais mais antigos que não podem ser discriminados estratigraficamente. Por exemplo, a maioria das moedas é do período Augustus-Tiberian (13 exemplares – 18 a.C. – 14 d.C.), exceto algumas moedas Gaulesas (100-1 a.C.), uma dupondius de Nero (54-68 d.C.) e uma sesterce e outra denarius de Antonius Pius (152-154 e 147-148 d.C., respectivamente). Estas podem ser inclusões antrópicas antigas que distorcem a cronologia geral5. Considerando a porcelana de Samos, existe uma boa coleção de italianas (7 vasos) com o selo Ateius (0-10 d.C.) ou uma produção de Lyon com o selo Diomi (10 a.C. – 10 d.C.). Todavia, uma boa amostra de porcelanas é datada da segunda e terceira década (Lyon-Muette e La Graufesenque com selos como Xanti, Cnaei Xanti ou Atei Xanti). Existem outras 4

No ano de 2001, o Parque Archäeologischer de Xanten convidou o grupo CEIPAC da Universidade de Barcelona (HTTP://ceipac.ub.edu) to empreender um estudo completo de todas as ânforas que chegavam das escavações de Xanten, a qual tem sido escavada regularmente desde 1877. 5 Existem outras possíveis moedas de Domitian (81-96 d.C.), e talvez, uma de Trajano, mas são difíceis de serem identificadas.

143

produções com uma extensão de datação maior que pode alcançar os períodos Claudian, Neor e Vespasian com selos como Scottius, Apron, Silvani, Volus e Montanus. A datação de algumas fibulae também concorda com estas datas (Carreras, 2006). Com referência a ânfora, os vasos de Dressel 20 não documentam qualquer selo, o que se tornou comum a partir do período Claudian. Além disso, o formato da aro indica a datação entre 10 a.C. a 40-70 d.C. de acordo com a classificação de Martin-Kilcher (1987). Portanto, aparenta-se que o contexto da Ost-Mauer 76-29 deveria ser datado em geral entre Augusto e Tibério (16 a.C. – 37 d.C.), com algumas contribuições posteriores. A tabela seguinte revela as escavações do conjunto de ânforas Ost-Mauer classificadas de acordo com tecido a partir de lentes x10, e depois por formato, se possível. Posteriormente, as ânforas foram quantificadas por número de pedaços (Pedaços), proporções do aro em graus (EVE), número de pontas e alças. Finalmente, a densidade de cada tipo de ânfora foi calculada dividindo-as por área escavada, que foi de 24 m2 neste caso (Carreras, 2006).

TIPOLOGIA

PESO

PEDA

EVE

PONT ALÇ

DENSIDADE

ÇOS

(graus)

AS

AS

(cgr/m2)

Africana I

230

3

-

-

-

958

Baetica

101670

635

-

1

2

423625

Haltern 70

52910

266

525

11

31

220458

Dressel 20

29760

115

813

8

25

124000

Dressel 2-4 (Bet)

1470

6

71

-

5

6125

Dressel 28 (Bet)

340

1

-

-

-

1416

Dressel 7-11 (Maris)

970

3

39

1

-

4041

Campania

570

3

-

1

-

2375

Dressel 2-4 (Cam)

12960

95

108

3

20

25174

Dressel 21-22 (Cam)

170

1

10

-

-

708

Oriental

21670

150

-

5

-

90291

Dressel 2-4 (Orient)

14990

104

249

4

7

62458

Rodia

11030

85

76

2

18

45958

South Hispania

102940

488

-

10

27

428916

Dressel 7-11 (S.S)

13650

48

1007

1

1

56875

Dressel 2-4 (S.S)

1010

4

-

-

3

4208

Gallia

32220

208

-

4

24

134250

144

G-2

1400

12

10

-

-

5833

G-3

180

2

39

-

-

750

G-4

310

4

91

-

-

1291

Dressel 2-4 (Gaul)

760

4

31

-

2

3166

Haltern 70 similis

460

5

109

-

-

1916

Dressel 9 similis

18680

87

453

3

9

77833

Richborough 527

30

1

15

-

-

125

Grupo 2 (Germ)

240

1

30

-

-

1000

Tarraconense

3260

22

-

-

1

13583

Pascual 1 (Tar)

1170

8

58

-

3

4875

Dressel 2-4 (Tar)

5050

21

71

1

6

21041

Oberaden 74 (Tar)

100

1

23

-

-

416

??

610

3

-

-

1

2541

TOTAL

430960

2390

3828

55

185

1795666

(Lyon)

Figura 4 – Tabela do conjunto de ânforas da forma Ost-Mauer 76/19 (Xanten). (Carreras, 2006)

Este antigo conjunto salienta a importante presença da ânfora Bética, tanto vasos de molho de peixe (Costa Bética Sul), bem como outros produtos do Vale do Guadalquivir. O primeiro fato impulsionante é as ânforas de molho de peixe do sul da Espanha (Costa Bética) são os tipos mais comuns, algo que também acontece em outros locais Augustus ao noroeste e nordeste da Península (Carreras, 2007). Apesar da distância e o fato de que o molho de peixe não era um suprimento, as importações militares nestes civitas Cugernorum (Xanten) eram bem altos. Se a situação do molho de peixe tem o mesmo paralelo em outros lugares Germânicos e Gauleses no período Augusto, a alta percentagem da ânfora Haltern 70 é completamente nova (12% + 10% aproximadamente de pedaços não diagnosticados). Uma percentagem que atualmente sabemos que pode ser somente comparada com locais da costa atlântica na Península Ibérica. Ao contrário, neste período, as Dressel 20 Béticas não tinham o papel importante que mantiveram na segunda metade do século I d.C. Outro detalhe notável é a boa presença do produtos do Vale do Rhone como Dressel 9 similis e a Haltern 70 similis, o que revela que as linhas do transporte fluvial e terreno do

145

abastecimento militar não estavam trabalhando perfeitamente bem nas primeiras décadas do primeiro século d.C6. Finalmente, outra ânfora de vinho com boas percentagens é a italiana Dressel 2-4, a qual o número de importações é bem notável. Com referência a ânfora Tarraconensis, as quantidades não são tão importantes como esperado (com uma proporção de 1:10 comparado a Haltern 70) a Dressel 2-4 é a forma mais comum, em conseqüência das importações do reinado Tiberiano. Nenhum dos vasos tarraconensis ou italianos aparentam chegar a Limes em números que poderiam referenciar um comércio publicamente afirmado. Parece que eles alcançavam Limes como parte de um sistema de mecanismo do mercado normal, no qual a distância e o transporte costeiro afetavam o volume das importações. Ao final do primeiro século a.C., Lucius Domitius Ahenobarbus cruzou o Rio Elba. Mais tarde em 4 d.C., havia uma nova ofensiva de Tiberius até a foz do Reno e depois no Lippe com a fundação do acampamento Anreppen (Vel.Pat. II. 105). Em 5 d.C., Tiberius direcionou sua frota até a foz do Elba e subiu o rio para alcançar a área de Dresden. A informação de primeira mão sobre sua ofensiva aparece no livro de Veleius Paterculus, visto que fizera parte da campanha:

“...um exército romano com seus estandartes foi levado quatrocentas milhas além do Reno, tão longe quanto o Rio Elba, que corre além dos territórios dos Semnones e dos Hermunduri. E com esta combinação maravilhosa de planos cuidadosos e boa sorte da parte do general, e uma atenta observação das estações; a frota, que havia contornado a sinuosa orla da costa marítima, navegou até o Elba, de um mar até aqui sem ter sido ouvida falar e desconhecida, e após provar ser vitoriosa sobre muitas tribos, efetuou um encontro com Caesar e o exército, trazendo com isto um grande número de suprimentos de todos os tipos”. (Vel. Pat. II. 106)

De 6 d.C. em diante, Tiberius comandou ofensivas na Germania Superioris enquanto deixou Publius Quicntilius responsável pela Germania Inferioris. Seu desempenho não poderia ter sido pior, visto que perdeu três legiões (XVII, XVIII e XIX) em 9 d.C., incluindo algumas tropas de Vetera, na batalha da floresta de Teutoburg (atual Osnabrük) contra o líder dos Cheruscii, Arminius (Vel. Pat. II. 117). A partir deste momento, a fronteira foi estabelecida e o sonho de uma província em Germania Libera foi abandonado. Durante todo este período, o Oceano Atlântico tornou-se uma linha chave logística de suprimentos para as tropas envolvidas nestas campanhas. Cerâmicas e principalmente 6

Marcus Vipsanius Agripa era governador de Gallia entre 39-38 a.C. e estabeleceu os Ubii no banco oeste do Rio Reno, fundando a cidade de Ara Ubiorum – que se tornou, posteriormente, a cidade de Colonia Agripensis (Köln). Longe da fundação, ele construiu uma nova estrada militar comunicando Lyon a Langres e Trier, e depois alcançando a Ara Ubiorum.

146

ânforas nos dão uma documentação valiosa que pode ser estudada com detalhes em contextos bem-datados e por meio da quantificação destas.

Uma visão sobre a distribuição da Haltern 70

Uma ânfora interessante no Atlântico é a Haltern 70, como aparecem em Xanten e ao Noroeste da Península. Pesquisas nos últimos 15 anos nestas regiões do Atlântico têm mostrado o padrão de comércio deste tipo de ânfora. Inicialmente, sua presença era conhecida no mercado militar nas German e Raetiab Limes, bem como no eixo do Rhone (i.e. Lyon, Viena). Desta região particular – o Vale do Rhone – existem séries de conjuntos de ânforas do período Augustus e Flaviano no qual a Haltern 70 concebem apenas 1,6% (Lyon – Bass-deLoyasse) a 8% (Saint-Roman-em-Gal) de todas as ânforas. Parece que as Haltern 70 eram especialmente

importantes

para

o

contexto

na

German

Limes

nos

contextos

Augustus-Tiberiano, como é sugerido pelas quantidades nas escavações de Ost-Mauer em Xanten.

Figura 5 – Um exemplo de uma ânfora Haltern 70. (Carreras et alii, 2005)

147

Outra região onde as Haltern 70 eram importadas era a Bretanha. Apesar de o número de Haltern 70 ser relativamente pequeno desde que a ilha foi conquistada no período Claudiano (Carreras, 2000). Não obstante isto, este tipo foi documentado em uma grande série de locais, mas em baixas percentagens já que nunca alcançaram 1% de qualquer conjunto de ânforas. Por outro lado, a costa Levantina da Hispania registra uma boa representação deste vaso, principalmente em regiões mineradoras próximas a Cartago Nova. Porém, eles nunca são a maioria em qualquer destes conjuntos, mas são bem representados nos contextos Augustianos. Contudo, a publicação do artigo de Naveiro (1991) supôs uma reviravolta no estudo da distribuição da Haltern 70, porque revelou que esta era predominante na maioria dos locais da Galiza (Noroeste da Hispania), em percentagens que chegam a 75% de todo o conjunto de ânforas. Tais percentagens predominantes nos conjuntos somente apareceram naquele tempo com ânfora de vinho republicana (Dressel 1) ou vasos de azeite (Dressel 20) sempre ligados às distribuições militares. Este padrão de distribuição especial no Noroeste da Península Ibérica foi mais tarde confirmado pelos estudos de conjuntos de ânforas em Campa Torres, Astorga e León. Novamente, a Haltern 70 surgiu em altas percentagens chegando a 60-75% de todo o conjunto. Portanto, este foi um fenômeno regional que afetou, naquele tempo, somente o noroeste da Península Ibérica. Por outro lado, uma presença importante da Haltern 70 foi documentada em alguns locais arqueológicos lusitanos como Arganil (Fabião, 1989) ou Mesas de Castelinho (Fabião e Guerra, 1994), então o fenômeno regional aparenta afetar toda a costa Atlântica e outras zonas próximas, o que revela grandes densidades da Haltern 70 documentadas nos lugares do norte lusitano.

Figura 6 – Distribuição da densidade da ânfora Haltern 70 cg/m2 (Carreras et alii, 2005).

148

A distribuição em terra deste vaso é também confirmada pela distribuição de ruínas de navios com cargas de Haltern 70, tanto carregações primárias quanto secundárias. A maioria das ruínas dos navios está localizada nas costas Atlântica e Mediterrânea, acima de toda a costa Levantina da Hispania, Ilhas Baleares e Estreito de Bonifácio. Tal distribuição parece indicar itinerários marítimos evidentes em direção a Finisterra Atlântica, e até alguns encontrados na Bretanha; enquanto outros sugerem rotas mediterrâneas. Além disso, a distribuição das ruínas de navios parece corresponder a uma rota costeira seguindo o Levante da Hispania até os portos de Gallia (Narbona, Arles ou Frejús), bem como uma rota indo da Ilhas Baleares e do Estreito de Bonifácio em direção à Península Itálica. Todavia, a distribuição mais notável da Haltern 70 são as concentrações ao noroeste da Península Ibérica incluindo o Norte da Lusitania. Para destinguir tal padrão, foi preciso conduzir um estudo quantitativo de conjuntos de ânforas de locais do Oeste do Império Romano. Os primeiros resultados aparecem na figura 6 (Carreras et alii, 2005). Um total de 188 locais arqueológicos forneceram conjuntos de ânforas quantificados nas províncias de Britannia, Germania, Gallia, Italia, Hispania e Lusitania. Todos os conjuntos foram quantificados com diferentes medidas, então, equivalências foram estabelecidas para obter o peso das ânforas, que foi dividido por cada área de escavação a fim de conseguir uma densidade padronizada. As densidades foram empregadas porque é a única medida padronizada que permite que comparemos diferentes lugares7. Como resultado deste exercício de quantificação, um mapa de interpolação quantificado foi criado destes valores com a ajuda do programa Idrisi (ver figura 6). Este mostra claramente a alta concentração de Haltern 70 na área de produção (Bética) e na face Atlântica da Lusitania, principalmente ao noroets da península. Mais dados quantificados são necessários das províncias como Gallia, Germania, Italia e Sudeste da Hispania para complementar esta eventual imagem. Contudo, este mapa de interpolação parece confirmar as proporções de Haltern 70 registradas em cada região.

7

Infelizmente, esta metodologia não permite que avaliemos as dimensões temporais, por isso, é difícil comparar o mesmo período em diferentes locais. Portanto, outras medidas e métodos são complementados por outras medidas.

149

Figura 7 – Distribuição das densidades da ânfora Haltern 70 cg/m2 (dados de 2007, não publicados) (C.Carreras)

Em 2005, foi contemplado que a amostra não representava todas as províncias do oeste romano da mesma forma. Este foi o motivo pelo qual foi decidido complementar a amostra em 2007 adicionando 62 locais para alcançar um total de 250, incluindo mais exemplos publicados de Gallia, Germania, Raetia e Itália. Os resultados podem ser observados na figura 7, que não muda muito exceto uma alta densidade na Gália Central, produzida por locais como Gergovia, Bribacte e Lyon. Novamente, a natureza militar destes três locais pode explicar tão grande concentração de Haltern 70 que não aparece nos assentamentos da Gália. Como podemos explicar tal distribuição com altas concentrações ao noroeste da Península Ibérica? Nos últimos anos, tem sido tentado relacionar tão grandes proporções de Haltern 70 ao noroeste com a presença das legiões romanas nas campanhas militares contra os Cantabrii e Astures (29-19 a.C.), e mais tarde às guarnições militares e exploração minérica na região. Neste sentido, o estudo de ânfora de Astorga e León permitiram reconhecer que os locais militares ao noroeste não documentam a típica ânfora Dressel 20 nos locais militares de Gernab e Raetican Limes, mas um alta proporção de Haltern 70.

150

Porém, as quantidades de ânforas absolutas em terra nos locais militares do noroeste não são tão altas quanto nas áreas costeiras. Por causa disto foi sugerido que alguns dos conteúdos da ânfora Haltern 70 registrados na costa foram transferidos para outros containeres para serem transportados e consumidos pelas tropas do noroeste. Portanto, as altas densidades na costa como Braccara Augusta ou Vicus (atual Vigo), podem identificar “pontos de cisão” na rotas em direção aos assentamentos militares do noroeste. Levando em conta que a Haltern 70 era uma ânfora multiuso, e os containeres de azeite aparecem no noroeste, seria possível que este vaso também carregasse azeite ocasionalmente? Outra possibilidade é que a Haltern 70 eram containeres multiuso que abasteciam todo tipo de suprimentos aos legionários, portanto uma ânfora militar própria. De qualquer forma, não há evidências que sustentem qualquer uma destas propostas. No caminho de volta destes assentamentos militares em terra ao noroeste, ouro e outros metais podiam ser transportados para os portos do Atlântico. Tal teoria contradiz a mais aceitada, que atualmente defende que o ouro era transferido aos portos mediterrâneos (i.e. Tarraco) através do Vale do Ebro. Por outro lado, a boa representação da Haltern 70 e das ânforas de molho de peixe Béticas nos contextos iniciais de Xanten sugerem a possibilidade de um intenso tráfego no Oceano Atlântico que pode ter abastecido os exércitos romanos. O contexto de Ost-Mauer 7629 de Xanten não é o único com uma boa representação das Haltern 70 nestes períodos Augustus-Tiberianos, outras escavações com datações-séries revelam valores idênticos. Mais dados bem datados e quantificados de locais próximos na Germania Superioris (i.e. Nijmegen, Köln, Neuss, Vale do Lippe) são requeridos a fim de confirmar este comércio especializado e a utilização da Rota Atlântica. O volume de importações da ânfora bética é muito importante que um especial acordo público comercial pode ter sido realizado neste momento inicial. Finalmente, deve ser pensado que a zona de Zeeland (Holanda) na foz do rio, um afluente do Reno, documenta 160 altares dedicados a deusa Nehamelia (Stuart e Bogares, 2001) nas cidades de Domburg e Colijnsplaat. Nehamelia era uma deusa Germânica (frísia) que parecia ter sido adorada já no século II a.C., a qual protegia os navegantes em suas jornadas ao longo do Atlântico, como fica evidente nas inscrições:

151

Figura 8 – Um dos altares de Nehalennia. (Stuart and Bogaers, 2001).

a. DEAE N(e)HALENNIAE OB MERCES RECTE CONSERVATAS M(arcus) SECVND(inius) SILVANVS NEGOTIATOR CRETARIVS BRITANNICIANVS V(otum) S(olvit) L(ibens) M(erito) (CIL XIII.08793)

- Dedicado um comerciante de cerâmica com Britannia, Marcus Secundinius Silvanus.

b. DEAE NEHELENIE VEGISONIUS MARTINVS CIVE SEQVANVS NAVTA V(otum) S(olvit) L(ibens) M(erito) (AE.1973. 00372)

- Dedicado por um navegante Sequanian, Vegisonius Martinvs

c. DEAE NEHELENIAE M EXCINCIUS AGRICOLA CIVES TREVERVS NEGOTIATOR SALATIV CA C A A V(otum) S(olvit) L(ibens) M(erito) (AE.1973.00362)

-

Dedicado por um cidadão Treveriano negociando com salt, Marcus Excincius Agricola

Iconograficamente, a deusa estava sentada em um trono em forma de abside entre duas colunas e carregando uma cesta com maçãs e fatias de pão, e um cachorro. Algumas vezes ela estava sentada em um navio ou simplesmente em uma proa.

152

Conclusão

Este artigo tem a intenção de mostrar o potencial das distribuições arqueológicas a fim de compreender o fenômeno econômico assim como a logística do abastecimento militar e a existência de uma rota Atlântica. Obviamente, não é a forma mais direta de se trabalhar com dados arqueológicos, mas requer boa quantificação, padronização e contextos corretamente datados. Os selos podem ser úteis como uma primeira visão ampla, mas geram muitos problemas e desentendimentos. Portanto, é altamente recomendado utilizar dados arqueológicos quantificados, padronizados e corretamente datados, por causa de novas tendências e padrões que surgirão, o que provavelmente trazem novas questões. Não existe dúvida que o exército romano era diretamente responsável pela movimentação de suprimentos de longas distâncias. Todavia, as quantidades de importações de locais particulares (i.e. Xanten) revelam diferentes mecanismos de troca, alguns com envolvimento direto público e outros com o privado. (Mattingly, 2007, 221). Novamente, se torna claro que não havia um único modelo de abastecimento para todos os exércitos, mas diferentes logísticas de acordo com as condições de diferentes províncias e períodos. Os exemplos de ânforas de vinho na Gália e Haltern 70 ao noroeste da Península parecem reveladores. O que resulta evidências da distribuição de ânforas é que a rota Atlântica era de comum uso em algumas partes como o Canal Inglês e a costa Lusitana. Porém, algumas vezes é difícil demonstrar um tráfego completo de comércio do Estreito de Gibraltar até a foz do Reno8. Mais dados arqueológicos (i.e. ruínas de navios, conjuntos de cerâmicas em locais do Atlântico) são necessários a fim de compreender completamente a escala e importância desta rota que pode ter se expandido naquela época. Uma menção especial deve ser feita a ânfora Haltern 70, visto que este vaso multiuso pode ter sido um container especialmente desenhado para propósitos militares ou públicos. Esta parece ser um tipo de ânfora experimental (similar ao caso da Italian Dressel 6 no leste) destinada a abastecer as necessidades do exército, ao menos ao noroeste da Península Ibérica. Mais tarde, outros tipos de ânforas como a Bética Dressel 20 preencheram um papel semelhante apesar de com um único conteúdo, neste caso o azeite. Estudos adicionais devem ser realizados em locais da Germania Inferioris porque eles providenciam uma evidência chave para entender todo este circuito da logística militar. 8

Outro estudo interessante sobre o abastecimento de um acampamento militar é Carleon (Nonnis e Ricci, 2007) no qual novamente uma vasta variedade de materiais Mediterrâneos sugerem a utilização da Rota Atlântica.

153

Algumas questões não podem ser respondidas em termos locais ou regionais, mas globais. Portanto, lugares como Nijmegen, Neuss ou Köln9 podem conter a chave para a interpretação da rota Atlântica.

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9

Com Eck (2007) torna evidente, Köln desfrutou de um papel proeminente como importador e exportador de mercadorias na Germania Inferioris. Talvez, um dos mais relevantes assentamentos para entender os circuitos comerciais e abastecimento militar.

154

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OS PROCURATORES AUGUSTI

1

E O ABASTECIMENTO DO EXÉRCITO ROMANO

José Remesal2 Universidad de Barcelona

A célebre sentença de Catão bellum se ipsum alet e a teoria, geralmente aceita nas pesquisas acadêmicas, de Denis van Berchem sobre a annona militaris levaram a que não se realizassem, até agora, estudos contínuos sobre o abastecimento do exército romano3. A idéia de que as tropas romanas só eram abastecidas a partir das regiões em que estavam acampadas encontrou respaldo nas pesquisas sobre o auto-abastecimento e o abastecimento regional do exército 4 . Do mesmo modo, efetuaram-se estudos sobre o abastecimento das tropas em marcha5, as contribuições de uma província para legiões6 e suas influências no desenvolvimento de uma província7. Ademais, a discussão científica concentrou-se, sobretudo, nas relações internas entre as tropas e o sistema financeiro-econômico do Império romano, em especial, na problemática dos pagamentos de soldos8 ou no total de gastos que o exército dava ao Estado romano. Essas idéias, dominantes nas pesquisas acadêmicas, infelizmente, levaram, na minha opinião, a que o significado concreto das tropas romanas para o sistema econômico do Império romano em seu conjunto não tenha sido expresso em todos os seus aspectos. Assim, faltam, por exemplo, até agora, estudos sobre a estrutura administrativa do abastecimento das tropas e seus efeitos sociais, políticos e econômicos. As tendências das pesquisas até o momento é o que eu gostaria de comentar, rapidamente, com a ajuda dos trabalhos de Jahn e Wierschowski.

1

Tradução de Luciano Pinto e revisão de Pedro Paulo A. Funari. Professor Catedrático de História Antiga, Universidad de Barcelona, Espanha. 3 Tito Lívio, XXXIV, 9, 12. D. van Berchem, L’Empire romain au IIIe siècle. MemSocAF, 10, 1937, 117f. Idem, L’annone militaire est-elle un mythe? in: Armée et fiscalité dans le monde antique, Paris, 1977, 331f. 4 Por exemplo: H. von Petrikovits, Militärische Fabricae der Römer. Akten 11. Limeskongreß, Szekesfehervar, 394f. F. Vittinghoff, Das Problem des Militärterritoriums in der vorseverischen Kaiserzeit, in: I diritti locali nelle province romane con particolare riguardo alle condizioni giuridiche del suolo. Acc.Naz.dei Lincei, 194, 1974, 109f. A. Mbcsy, Das territorium legionis und die canabae in Pannonien. AArchHung, 3, 1953, 179f. 5 Por exemplo: S. Mitchell, The Balkans, Anatolia and Roman Armies across Asia Minor. In: S. Mitchell (ed.) Armies and Frontiers in Roman and Byzantine Anatolia. B.A.R.lnt.Ser.156, 1983, 131f. 6 Por exemplo: J. M. Roldán Hervás, Hispania y el ejercito romano. Contribución a 1a Historia social de la España Antigua. Salamanca,1974. 7 Por exemplo, P. Le Roux, L’armée romaine et l’organisation des provinces ibériques d’Auguste à l’invasion de 409, Paris, 1982. Sobre disso, a recensão de G. Alfö1dy, Gerion, 3,1985, 379f. Ibidem, 410, resposta a Le Roux. 8 Por fim: J. Jahn, Zur Entwicklung römischer Soldzahlungen von Augustus bis Diokletian. Studien zu Fundmünzen der Antike, 2, 1984, 53f. 2

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Jahn observa três componentes na forma de pagamento aos soldados romanos: a) stipendium, b) donativa; c) annona em gêneros ou em espécie (avaliada em dinheiro). Suas pesquisas estendem-se, embora de modo deliberado, somente sobre os dois primeiros pontos9. Wierschowski, em seu capítulo sobre “O sistema de abastecimento militar com cargas agrárias a granel”10, parte da afirmação de que o sistema de abastecimento do exército romano alterou-se na época que vai de César até Augusto, uma vez que as tropas romanas, com a formação do Principado, transformaram-se num exército fixo. É verdade que a necessidade de um sistema de abastecimento organizado para essas tropas é admitida por Wierschowski; o sistema em si, porém, não é estudado, uma vez que ele segue a teoria da instituição da annona militaris sob Sétimo Severo, e, para a época precedente, baseia-se numa análise insuficiente das fontes11. No entanto, deve-se, desde o início, ter dado a essas tropas, bem organizadas em todos os seus interesses e um dos suportes do Império, um sistema de abastecimento apropriado. Mas nem sempre os produtos indispensáveis ao abastecimento militar estavam disponíveis nas regiões em que as tropas estavam acampadas. Esses produtos ficavam à disposição do imperador, como comandante-mor, porém, nas outras partes do Império. Essa distribuição dos produtos a partir dos recursos do Império passou despercebida à pesquisa acadêmica, que se ocupou com o significado econômico e com a função das tropas no mundo romano. As razões para isso devem-se à constatação, até aqui, de uma falta de fontes tanto para o início, quanto para o auge da época imperial. É verdade que uma parte do conjunto das fontes já foi organizada e analisada por Domaszewski; porém, ele ainda não elucidou em detalhes as relações lógicas que cada fonte isolada estabelece entre si, e não tirou disso conclusões mais gerais12. Esse projeto também continuou a ser perseguido por Pflaum, num conjunto de fontes pouco mais ampliado13. Além disso, a tese, geralmente aceita, de van Berchem de que não houve, no abastecimento militar romano, nos primeiros dois séculos do período imperial, uma estrutura organizada de modo consistente e a idéia de que a annona militaris teria sido implantada na época de Severo, freou a pesquisa sobre o abastecimento das tropas romanas. Van Berchem parte, em seu estudo, de três pontos diversos: 1) não existia uma administração central. O fiscus não custeava as despesas do exército. A tarefa do lugar-tenente 9

J. Jahn (conforme nota 8), 53. L. Wierschowski, Heer und Wirtschaft. Das römische Heer der Prinzipatszeit als Wirtschaftsfaktor, Bonn, 1984, 151f. 11 Ibidem, 151. 12 A. von Domaszewski, Die annona des Heeres im Kriege. In: Epitymbion Heinrich Swoboda dargebracht, Reichenberg, 1927, 17f. 13 H.-G. Pflaum, Deux carrières procuratoriennes équestes sous le Haut-Empire romain, Paris, 1960-61, 483f. 10

158

e dos procuradores, em cada província, era a de administrar os assuntos financeiros. Os legados das legiões, junto com seu batalhão, eram responsáveis pelo pagamento dos soldos e pelo abastecimento dos soldados. 2) o título de procurator annonae ob expeditionem felicissimam Gallicam que M. Róssio Vitulo carregava, mostra a transição, que ele teve de implementar, de missões pontuais, como faziam seus predecessores, para requisições sistemáticas da annona. 3) Sob Severo, foi introduzida a chamada taxa-annona14. A meu ver, van Berchem não se deu conta, no entanto, dos seguintes pontos: 1) o abastecimento com bens provenientes de outras províncias. Por isso, escapou-lhe, igualmente, que havia um sistema de compensação entre o fiscus e o aerarium e entre as diferentes províncias, e que também se utilizou a estrutura administrativa da praefectura annonae para o abastecimento do exército romano; 2) o título de procurator foi reservado somente a M. Róssio Vitulo; seus sucessores, pelo contrário, carregam o título de praepositus annonae, atestado pela primeira vez sob Cômodo e existente até o período posterior a Sever; 3) um imposto com o nome de annona é conhecido no Egito desde o período flaviano15. Cerati comprovou, também, que ainda não existia, no período pós-Diocleciano, um imposto annona especial e o que se descreveu como annona militaris era apenas a parte da taxa entregue em gêneros e aquela determinada para o exército16. Acredito, então, que se pode comprovar, já para o início do período imperial, um sistema de abastecimento para as tropas romanas, com cuja ajuda os soldados podiam ser abastecidos também a partir das mais longínquas províncias, isto é, com produtos provenientes da zona de disponibilidade da annona imperial. Até aqui, em minhas pesquisas, concentrei-me, sobretudo, em dois aspectos: a estrutura geral desse sistema e o abastecimento das tropas em tempos de guerra17. Já comprovei, em outra ocasião, que não houve uma organização auto-suficiente que se ocupou da annona militaris, pois o abastecimento das tropas estava integrado à única ratio annonaria do período de auge do império, a praefectura annonae! De agora em diante, com a ajuda dos procuratores Augusti, chega-se a uma compensação financeira entre o fiscus e o aerarium, assim como entre as reservas próprias no interior das províncias. Por esse sistema, era possível, por exemplo, que produtos da zona de disponibilidade da annona vinda da

14

D. van Berchem, L'annone militaire (conforme nota 3), 143f. J. Remesal-Rodriguez, La annona militaris y la exportación de aceite bético a Germania, Madrid, 1986, 104f. 16 A. Cerati, Caractère annonaire et assiette de l’impôt foncier au Bas-Empire, Paris, 1975, 103f. 17 J. Remesal-Rodriguez (conforme nota 15). Idem, Die Organisation des Nahrungsmittelimportes am Limes, 13. Limeskongreß, 760f. 15

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província da Bética pudessem ser entregues ao exército que estivesse na Germânia, sem que, para isso, houvesse uma compensação financeira mais direta. Uma das fontes mais significativas para minha afirmação é o Papyrus Genf lat. 1-4. Esse documento – já há muito tempo, objeto de discussões acadêmicas sobre, dentre outras coisas, a determinação do soldo pago aos soldados romanos – permite, no entanto, além disso, uma outra afirmação. Observemos, então, a tabela 1: como se pode ver, 3/4 do stipendium dos soldados foram retidos. Com essa soma, compensavam-se os bens de abastecimento entregues aos soldados 18 . De mesmo modo, outros documentos mostram-nos esse processo. Por exemplo, resultava do pridianum da cohors I Hispanorum veterana, acampada na Moesia Inferior, que soldados dessa unidade eram enviados a outras províncias, para que, de lá, levassem os bens de abastecimento19. Em tempos de guerra, reforçava-se a praefectura annonae com funcionários incumbidos de arranjar, para uma campanha, determinados bens de abastecimento. Esses especialistas pertenciam ao ordo equester. A administração dos meios financeiros ficava nas mãos dos servi ou liberi Augusti, com a copiis militaribus ou com os dispensatores expeditionis. Impostos adicionais, criados pelas províncias quando elas eram zona de marcha das tropas ou quando a guerra acontecia em seus domínios, eram recolhidos pelos curatores copiarum expeditionis, os quais podem ser comparados aos publicani. A organização logística e tática do abastecimento era delegada, pelo imperador, sempre a um funcionário, de muita confiança, proveniente da ordem dos cavaleiros. O transporte dos bens de abastecimento a cada zona de guerra ficava nas mãos de oficiais do ordo equester altamente qualificados, em termos militares20. Em todo esse sistema, os procuratores Augusti tinham uma posição especial. Eles, como representantes do fiscus, cuidavam do recolhimento de todos os pagamentos em gêneros e igualmente dos produtos que tinham sido comprados pelo estado no mercado livre ou recolhidos por meio das indictiones. No topo desse sistema de abastecimento, estava o praefectus annonae, responsável pelo conjunto do abastecimento de Roma e das tropas. Para controlar sua posição de poder, Augusto deixava as frumentationes nas mãos dos praefecti frumendi dandi ex S.C. Mais outra importante função de controle tinham os procuratores Augusti, os responsáveis, tanto nas províncias do período imperial quanto nas senatoriais, pela aquisição e pelo transporte dos

18

J. Remesal-Rodriguez, (conforme nota 15), 93f. British Museum Papyrus, 2851, R. O. Fink, Roman Military Records on Papyrus, Princeton, 1971, Nr.10. 20 J. Remesal-Rodriguez, (conforme nota 15), 95f. 19

160

bens de abastecimento para Roma e para o exército, também em outras províncias. Como eles eram subordinados diretamente ao Imperador, o princeps, na ocasião de uma tentativa de golpe por um comandante militar romano, sempre estava em condições de privar os rebeldes das provisões21. Uma passagem de Estrabão mostra com precisão que os procuratores Augusti eram responsáveis pelo abastecimento do exército 22 . Então, ao observar esse texto, poder-se-ia, assim, chegar à conclusão de que os procuratores Augusti tiveram a incumbência do abastecimento das tropas apenas nas províncias do período imperial, possivelmente, só na Hispania citerior23. Porém, existem, até o momento, fontes menos examinadas, a partir das quais se conclui claramente que os procuratores Augusti tiveram a incumbência do abastecimento das tropas não só nas províncias imperiais, mas também nas senatoriais: É por essa razão que o decreto de S. Sotídio Estrabão Libuscidiano é da maior importância 24 . Nesse decreto, do tempo de Tibério, regulamentaram-se as obrigações da cidade de Sagalassos, na Galácia, relativas ao estoque de veículos e de animais de carga, os quais deveriam ficar à disposição dos funcionários romanos. Para o posto mais importante, nomeava-se o procurator Augusti, a quem competia o maior número possível de veículos, a saber, exatamente a mesma quantia que competia a um funcionário do ordo senatorius. O editor desse decreto é, com razão, da opinião de que essa regulação explica-se pelo fato de ter sido o procurator Augusti o responsável pelo abastecimento das tropas 25 . Do decreto, no entanto, além dessa afirmação geral, conclui-se, de maneira absolutamente inequívoca, que os veículos e os animais de carga requisitados para o transporte de produtos às tropas e a Roma eram também identificados, sobretudo, por “frumentum”26. Sem dúvida, não só os procuratores, mas também os soldados que permaneciam oficialmente na província ou que a atravessavam tinham os mesmos direitos ao estoque de veículos e de animais de carga, assim como os procuratores Augusti e os senadores. O fato de que esse decreto foi promulgado numa provincia inermis reforça, certamente, a afirmação sobre o significado dos procuratores Augusti para o abastecimento do exército. O decreto fala dos procuratores Principis em geral. A situação dos procuratores, por outro lado, não é definida. Não se diz tampouco, se se trata, nesse caso, de servi, liberti ou funcionários 21

J. Remesal-Rodriguez, (conforme nota 15), 81f, 110f. Estrabão, III, 4, 20. 23 S. Mitchell, Requisitioned Transport in the Roman Empire. A new Inscription from Pisidia, JRS, 1976, 106f., em especial, 124 e 112. 24 S. Mitchell (conforme nota 23), 106f. Ibidem, The Requisioning Edict of Sex. Sotidius Strabo Libuscidianus, ZPE (Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik), 45, 1982, 99f. AE (L’Année épigraphique), 1976, 653. 25 S. Mitchell (conforme nota 23), 124. 26 Decreto, 21-23. 22

161

da ordem dos cavaleiros. A famosa carta de Plínio mostra, então, que ele, como um lugartenente, põe seus próprios soldados à disposição de Máximo, procurator et libertus, para comprar grãos em Paflagônia27. Que também em nosso decreto não se propõe diferenciação alguma em relação ao status social dos procuratores, conclui-se igualmente da linha 19 do decreto, em que se fala de um número reduzido de veículos e de animais de carga para os “equiti Romano cuius officio princeps optimus utitur”. O privilégio do procurator resultava, por conseguinte, não tanto de seu status social28, mas muito mais de sua função concernente ao abastecimento das tropas romanas. Na mesma direção, deve-se interpretar o mandato de Domiciano ao procurator Syriae, Cláudio Atenodoro. Nesse mandato, adverte-se acerca do abuso no requerimento de auxiliares, veículos e animais de carga29. Infelizmente, possuímos apenas o início desse texto, no qual se fala dos tais abusos; não conhecemos as ordens exatas do imperador ao procurator. Algo, porém, se conclui com precisão da fonte: o procurator tinha à disposição alguns animais de carga e podia, além disso, requerer animais adicionais, provavelmente sob pré-condições iguais ou semelhantes àquelas referidas no decreto de S. Sotídio Estrabão Libuscidiano. É por isso que, na minha opinião, não se deveria pôr esse mandato só em relação ao cursus publicus30, mas também ao abastecimento do exército romano e da cidade de Roma. Em seu comentário ao cursus de Ti. Cl. Próclo Corneliano, procurator III publicorum Africae, Pflaum não encontra nenhuma explicação inequívoca para o fato de que Inventus, Aug(usti) lib(ertus) tabul(arius) leg(ionis) III Aug(ustae) dedique a Corneliano uma inscrição31. A meu ver, essa fonte mostra a ligação estreita entre os procuratores Augusti e os responsáveis pelo abastecimento das tropas na legião, no nosso caso, o tabularius. Donde segue que Cornélio abastecia a legio III Augusta com os gêneros que ele, como procurator IIII Africae, tinha arrecadado. Assim se torna a ligação entre o procurator e o tabularius precisa e compreensível32.

27

Plínio, Litt., X, 27. G. Alföldy, Die Stellung der Ritter in der Führungsschicht des Imperium Romanum, Chiron, ll, 1981, 169f., em especial, 190 e 201. (Reprint in: G. Alföldy, Die römische Gesellschaft, Stuttgart, 1986, 183 e 194) 29 R. Mouterde et C. Mondésert, Deux inscriptions grecques de Hama. Syria, 34, 1957, 278f. AE 1958, 236. H.G. Pflaum, Les carrières procuratoriennes, supplément, 1982, Nr. 49bis. 30 W. Eck, RE (Realenzyklopädie), Suppl., XV, 1977, s.v. Claudius, 64. 31 AE, 1956, 123. H.-G. Pflaum, (conforme nota 13), 164bis. 32 Sem dúvida, dispunham os procuratores de colaboradores que os ajudavam na execução das tarefas: tabellarii, vicarii, horrearii etc. G. Alföldy sublinhou recentemente que os servi et liberi Augusti que exerciam essa função ficavam freqüentemente a postos, em locais que podemos supor serem centros de abastecimento; G. Alföldy, Die Mithras-Inschrift aus Riegel am Kaiserstuhl (no prelo). Agradeço ao professor Alföldy por ter posto à minha disposição, em primeira mão, o manuscrito desse artigo. 28

162

Por fim, gostaríamos de apresentar, ainda, mais um documento: trata-se de uma inscrição, datada do ano 61 d.C., na qual Nero ordena ao procurator provinciae Thraciae que construa tabernas et praetoria per vias militares 33. Essa inscrição, até o momento, pouco analisada, mostra que, já no primeiro século, o procurator tinha a incumbência da organização logística das provisões para as tropas. Como as fontes originárias das províncias imperiais e senatoriais mostram, cabia aos procuratores também a tarefa principal no abastecimento de Roma e das tropas romanas.

33

CIL. III, 6123 = 1420734. H.-G. Pflaum, (conforme nota 13), Nr. 31.

163

Q. IVLIVS PROCVLVS I. Stip. 247,5 dr. faenaria in victum caligas fascias saturnalicium K in vestimentis

10 80 12 20 ad signa 60

II. Stip. 247, 5 dr.

III. Stip. 247,5 dr.

Summa 742, 5 dr.

10 80 12 4 -

10 80 12 145,5

30 240 36 24 205,5

expensas

182

106

247,5

535,5

reliquas deposuit et habuit ex priore fit summa omnis

65,5 136 201,5

141,5 201,5 343

343 343

207 136 343

10 80 12 4 -

10 80 12 145,5

30 240 36 24 245,5

106

247,5

575,5

141,5 46,5 188

188 188

167 21 188

C. VALERIVS GERMANVS faenaria in victum caligas fascias saturnalicium K in vestimentis

10 80 12 20 ad signa 100

expensas

222

reliquas deposuit et habuit ex priore fit summa omnis

25,5 21 46,5

P. Gen. Lat., 1 recto, part. I. R. O. Fink, Roman Military Record on Papyrus. Princeton, 1971, Nr. 68.

TABELA 1: O pagamento anual de soldo (742,5 dr.) dividiu-se em três partes iguais.

164

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Français

d'Archéologie

du

Proche-Orient.

Beyrouth-Damas-Amman.

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166

OS INIMIGOS DE ROMA: ESTRATÉGIA E FORMAÇÃO MILITAR NA ANTIGÜIDADE TARDIA.

Cláudio Umpierre Carlan* UNIFAL

Introdução

O período conhecido como Antigüidade Tardia ou Baixo Império, que a historiografia tradicional fez questão de deixar “achatada” entre os séculos III e V, sempre foi reconhecido como uma época de constantes crises e decadência do Império Romano. Na realidade uma série de reformas, iniciadas pelos imperadores ilírios, chefes militares que governaram o império entre os anos de 268 – 285, originários da região Ilíria (praticamente a atual Albânia), conseguem reorganizar a administração, as finanças e o exército. Sucedendo a um longo período de crise e anarquia militar, tais governantes procuraram realizar as mais variadas reformas políticas, econômicas, sociais e até mesmo religiosas. A energia dos líderes ilírios livrou o império da invasão e da revolução anárquica. O mais dotado para a administração, Diocleciano, estendeu e retomou essas medidas durante pelo menos uma dezena de anos, antes de sistematizar uma obra que foi, ainda, completada por Constantino. Os perigos externos, tanto dos povos “bárbaros” como dos persas sassânidas, eram uma das principais preocupações dos governantes. As tropas romanas atravessaram o Reno e o Danúbio, ao longo de cujos cursos se reconstruiria uma sólida defesa. A Mesopotâmia é reconquistada e o Império Sassânida é obrigado a ceder territórios além-Tigre. No Oriente, Roma nunca avançara tão longe.

• Professor do Departamento de História da UNIFAL • Doutor em História Cultural pela UNICAMP, pesquisador – associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP), Centro de Estudos Interdisciplinares da Antigüidade (CEIA/ UFF) e Núcleo de Estudos da Antigüidade (NEA/UERJ).

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Porém, não podemos esquecer que a função do exército, mais do que se defender de ataques externos consistia em reprimir a dissidência interna, pois era sua presença que garantia o poder romano no interior das fronteiras do Império (FUNARI: 2002, 93).

As legiões romanas no Baixo Império

No final do século III, muitas legiões, de períodos anteriores, ainda sobrevivem. Pelo menos no nome (RODRÍGUEZ GONZÁLES: 2003, 453). É o caso das listas legionárias sobreviventes do Principado como II Augusta, VII Germina, XV Apollinaris, entre outras. Dessas antigas legiões, estacionadas em acampamentos fronteiriços, as necessidades militares obrigam a aumentar cada vez mais o efetivo e, com o tempo, transformam-se em unidades autônomas. Algumas dessas legiões levam ao nome principal o qualitativo de seniores ou iuniores. “Sobrenomes” que fazem alusão à existência de uma legião mais antiga. Em 365, depois da divisão do império entre os irmãos Valentiniano e Valente, dividiram também o contingente militar. Tanto Amiano Marcelino, quanto Zósimo, descrevem essa transformação na organização bélica romana. Por exemplo, as legiões dos Herculiani Seniores e dos Herculiani Iuniores, atestam sua origem nos Herculiani, legião formada a base de uma contingente da Legio II Herculia (RODRÍGUEZ GONZÁLES: 2003, 453). Na tentativa de restaurar as fronteiras, Diocleciano cria 12 dioceses, dirigida por um vigário, ligadas politicamente a quatro prefeitos pretorianos, encarregados da parte militar; e quatro governantes, responsáveis pela administração. Assim o imperador consegue facilitar o sistema de defesa, reduzindo a gravidade da “guerra em duas frentes”. O efetivo do exército aumenta de 450 para 500 mil soldados e as legiões são compostas por 5 mil legionários (FERRIL, 1989: 36). Ocorre uma variação tática: são incorporados lanceiros de cavalaria, lanciarri; companheiros, comitês; infantes, ioviani e herculiani. Segundo Zózimo, Constantino retira essas forças fronteiriças, ampliando o exército móvel para 10 mil elementos. Enfraquecendo a já debilitada posição (ZOSIME: 1971, 112). Os tamanhos do exército móveis são desconhecidos, mas a estimativa é de 110 a 120 mil homens,

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sem incluir a África. Boa parte dessas tropas era composta por povos germânicos, chefiados pelos comandantes provinciais, os duces, subordinados ao general tarimbeiro, comes1. Constantino também reduz o número das legiões para mil legionários, dissolve os pretorianos, mantêm a logística Diocleciana de taxação em espécie. São criados os guardas imperiais especiais, scholae palatinae. Com a evolução da situação política, fica praticamente impossível para o exército romano manter a ofensiva. Para isso, os imperadores tratam de fortificar as cidades aumentando o número de soldados e reserva de defesa. Mudando a organização interna das legiões, nos períodos anteriores o aumento de efetivo ocorria apenas durante as campanhas. Durante o século IV cada vez mais os mercenários bárbaros são incorporados ao exército romano (DEPEYROT, 1987: 44). O próprio equipamento individual começa a sofrer mutações que, desde o final do século III, já mostram indícios dos aparatos dos futuros cavaleiros medievais (BROWN: 1972, 98). Como podemos analisar nas representações abaixo:

Cavaleiro, Tribuno, século II d.C (RODRIGUEZ GONZALEZ: 2003, 356). Provavelmente as características do uniforme foram mantidas até o século IV. 1

Ironicamente em inglês um Duque, dux no singular, supera a hierarquia de um conde, comes.

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Reconstituição de um guerreiro visigodo e suas armas (Museu de História da Catalunha, Barcelona / Espanha). Uma das principais diferenças entre os guerreiros bárbaros e os legionários romanos, além das armas, eram as vestimentas. Usavam calças ao invés do tradicional saiote greco-romano. Também utilizavam o machado e o martelo como armas de guerra. Muito prático para o combate a cavalo, foram adaptados pelos futuros cavaleiros medievais. Foto: Cláudio Umpierre Carlan, agosto de 2007.

Pagamento dos Legionários: aes2

O aes, que em sentido próprio denominado durante muito tempo como bronze ou latão, foi uma das primeiras moedas romanas, servindo de base as trocas comerciais. O aes grave passou a significar bronze a peso. Provavelmente o nome deriva do deus etrusco Aesar, relacionado com a fortuna. As primeiras cunhagens, conhecidas como aes rude, não levavam sinal ou marca. Alguns numismatas defendem a hipótese dessa amoedação ter sido usada durante a Monarquia. Porém,

2

As moedas aqui pesquisadas pertencem ao acervo numismático do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. A reprodução fotográfica foi permitida pela direção da instituição.

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historicamente, essa cunhagem ocorreu durante o século III a.C, na República, por ordem do Senado. Com a expansão romana, foi necessário ampliar esse sistema, sendo introduzido o aes signatum, para o pagamento dos legionários. Mais tarde estabeleceram um sistema monetário com base na libra.3 Essa moeda, dotada de uma forte presença simbólica, estava ligada à propaganda imperial, sendo cunhada durante toda a fase imperial romana. Como podemos identificar nos modelos a seguir:

Imagem 1

Acervo do Museu Histórico Nacional, foto Cláudio Umpierre Carlan

Descrição:

Anverso: CONSTANTINVS AVG Busto nu (só), de Constantino I, à direita. Na legenda a alusão do Imperador como único Augusto (escrito no singular). Tanto Constantino, quanto seus herdeiros, chegaram a cunhar moedas como César.

Reverso: DN CONSTANTINI MAX AVG / SMHA Votos de 30 anos de seu governo, circundado por uma coroa de louros. De uma maneira geral, essas moedas, conhecidas como votivas ou laudatórias, não apresentam legendas. Essa é

3

A libra romana pesava aproximadamente 273 gramas.

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uma exceção. No exergo ou linha de terra, SMHA, referente a segunda casa monetária de Heracléia, cunhada entre os anos de 325-326. As moedas laudatórias, cunhadas pela primeira vez durante o governo de Maximiano na tetrarquia, tinham por função passar uma mensagem de louvor, promessa, do governante para o governado. Constantino pretendia informar ao povo romano que chegaria aos 30 anos de governo, algo raro no século IV. O ponto existente entre VOT e o XXX da uma ênfase maior a essa conclusão. Nesse mesmo ano, Helena, futura Santa Helena, mãe do imperador e Fausta, segunda esposa de Constantino, cunharão moedas como augustas, tendo esses mesmos votos como modelo. Os filhos de Constantino: Crispo, Constantino II, Constâncio II, Constante, todos como César, seguiram o exemplo do pai. Peça de bronze, muito bem conservada, de diâmetro 1,82 mm, pesando 2,07 g. trata-se de uma variante. Alto reverso ou eixo de 12 horas (CARLAN: 2007, 210).

Imagem 2

Acervo Museu Histórico Nacional, foto Cláudio Umpierre Carlan

Descrição Anverso: IMP CC VAL DIOCLETIANVS PF AVG

Busto do imperador Diocleciano, radiado, à direita, encouraçado (armadura e couraça). Nessa variante notamos as iniciais do nome completo do imperador.

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Reverso: Diocleciano em pé, voltado para direita, com uniforme militar, tendo em sua mão esquerda um paragonium, recebendo o globo, encimado pela deusa Vitória, das mãos de um Júpiter nu. À esquerda da divindade um cetro. Nas moedas, geralmente, as divindades pagãs são representadas despidas, Peça cunhada em Alexandria, entre os anos de 297 – 298. Muito bem conservada, 1,98 mm de diâmetro, com 9, 80 gramas de peso. Alto reverso ou eixo de 10 horas (CARLAN: 2007, 197).

O Perigo externo: os sassânidas e os povos germânicos A dinastia Sassânida (224-651)4 foi um constante tormento para Roma. Sapor I, o segundo rei persa dessa dinastia, já havia empreendido várias campanhas muitas bem sucedidas contra as legiões romanas entre os anos de 241 e 250. Valeriano não foi capaz de fazer frente ao seu avanço e, em 259, foi capturado e feito prisioneiro, desastre sem precedentes nos anais romanos. Sapor celebrou com uma monumental escultura em relevo na parede de um penhasco em Nagsh-i Rustam, próximo a Persépolis. Sapor II5 ainda muito jovem foi proclamado rei pelos nobres, após a deposição do seu irmão Adanarses. Seu outro irmão, Hormisda, fugiu para o lado dos romanos em 3246. Durante sua longa menoridade houve paz com Roma. Mas em 336 a guerra novamente estoura causada pelo controle da Armênia7, e a partir daí, durante todo o período do seu reinado, houve guerra em quase todas as estações climáticas adequadas às campanhas, sendo que nenhum dos lados foi completamente vitorioso. Os objetivos principais de Sapor eram a recuperação da Mesopotâmia, conquistada por Galério, e da Armênia. Os pontos culminantes dessa luta foram: os três cercos de Nísibis (338,

4

Assim chamada em homenagem a Sassan, antepassado lendário do primeiro rei Aldachir I. Neto de Narses ou Narseu, derrotado pelo tetrarca Galério, em 298. Quando o exército romano marchou sobre Ctesifonte, capital persa, Narses foi obrigado a implorar pela paz e a liberação de sua família. 6 Durante o reinado de Constâncio II foi comandante de cavalaria, acompanhado-o a Roma em 357. Foi general durante a expedição de Juliano em 363. 7 Sapor I e Narses também entraram em guerra contra Roma pelo mesmo motivo. 5

173

346 e 350); a sangrenta batalha de Singara, em 348, de resultado pouco decisivo; o ataque persa a Amida em 3598. Nos anos de 362-363, Juliano desloca um grande quantitativo militar, aproximadamente 65 mil homens (DEPEYROT, 1987: 53), para Antioquia visando invadir o Império Persa. Segundo Zózimo (ZOSIME, 1979: 235) e Amiano Marcelino (AMMIEN MARCELLIN, 1977: 145) a cada vitória importante o imperador premiavam seus soldados com 100 ou até mesmo 130 moedas de prata (argentus). A estratégia de Juliano consistia em desviar o exército principal de Sapor II por uma invasão fingida do Norte da Assíria, para então atacar rapidamente Ctesifonte antes que o rei pudesse voltar e manobrar suas forças. O plano fracassou face à resistência de cidades fortificadas como Pirisabora e a guarnição próxima de Besouchis, e à disposição dos persas para obstruírem a passagem de Juliano por meio de uma inundação provocada. Essa alteração nos cursos dos rios, complexo sistemas de canais, deixou um grande número de cidades em ruínas e sem água. Juliano conseguiu chegar a Ctesifonte, mas, perante a ameaça da aproximação do exército de Sapor, abandonou qualquer tentativa de conquistar a cidade, queimou a enorme frota que o havia abastecido pelo Eufrates, mas que agora era um estorvo, e dirigiu-se para o norte, sob ataque constante dos persas, até ser morto numa escaramuça. Seu sucessor, Joviano, proclamado pelas legiões na Mesopotâmia, durante o fracasso da invasão, foi obrigado a ceder territórios ao Norte da região, incluindo cinco satrapias ao longo do Tigre Superior e todas as terras a leste de Nísibis e Singara. Só assim conseguiu assegurar a saída do exército romano do território sassânida. Os anos seguintes tanto romanos quanto persas terão objetivos, ou melhor, novos problemas para se preocuparem. Roma cada vez mais debilitada, tendo seu exército influenciado pelos comandantes germânicos, não conseguindo evitar o saque de Alarico em 410 e a deposição do último imperador, Rômulo Augústulo, por Odoacro em 476. Os sassânidas esperariam mais dois séculos para serem aniquilados pelos invasores árabes do século VII.

8

Situada junto ao Tigre, ponto defensivo básico do Norte da Mesopotâmia e das satrapias controladas pelos romanos até Corduene (Curdistão). Cerca e capturada pelos persas em 359.

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Os bárbaros em Roma A infiltração dos povos germânicos, conhecidos como “bárbaros” por não falar o grego ou latim, serem de uma cultura diferente a greco-romana, iniciou basicamente durante o segundo século da Era Cristã. Em um primeiro momento foram aceitos pacificamente, filiando seus membros as legiões imperiais e fixando seus familiares como servos ou camponeses. Porém, a partir do século IV e V, as invasões são mais violentas (FUNARI e CARLAN: 2007, 23). Os romanos utilizavam um antigo sistema, comum desde o período replublicano conhecido como foederati. Qualquer tribo poderia participar desse sistema de federado, porém não era considerada uma colônia ou tinham direito a cidania romana. Em caso de guerra, deviam enviar contigentes para legiões, com comandantes próprios, assegurando a lealdade da tropas. Alarico, rei visigodo, começou a sua carreira militar comandando uma tropa de foederati goda9. Esses povos não possuíam um elo entre si. Eram de diferentes origens, culturas, línguas e religiões. Muitos eram inimigos, chegando a auxiliar os romanos no combate contra os demais bárbaros que invadiam o Império. Para muito historiadores, entre eles podemos destacar Brown, Rémondon, Rodriguez, O´Flynn, Neli-Clément, destacam a Batalha de Andrinopla (378), o marco da queda militar romana. Para esses autores, a cavalaria goda apresenta um sinal de mudança, já que a infantaria, outrora principal arma romana, não conseguiu deter a carga de cavaleiros com armaduras pesadas. Prenúncio das futuras táticas medievais, em que a principal arma era a própria cavalaria10. Aproximadamente mais de 20 mil soldados romanos morreram em combate, além do próprio imperador, 35 tribunos e dois generais.

Considerações finais

Tradicionalmente, aprendemos que a herança romana, a formação dos reinos germânicos e a influência cristã ajudaram a moldar uma nova Era, nascida das “ruínas do Império Romano”. Na realidade a transformação foi muito mais complexa. 9

Durante as invasões do século V, ocorreu uma divisão entre os godos. Um grupo: ostrogos (vulgarmente godos do leste) e o outro, visigodos (godos do oeste). 10 Um dos motivos da revolta goda foram os maus tratos e o não cumprimento do acordo, por parte de Valente, Imperador do Oriente.

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As evidências textuais e materiais, principalmente a numismática, retratam toda uma transformação social no mundo romano dos séculos IV e V. Caracterizada pelos conflitos e pela construção de identidades, em torno da rivalidade Roma / Germanos, integrados no ceio do exército. O Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano em 380. O Império Romano do Ocidente cairia cerca de 100 anos depois. Entre os séculos II e III, período em que o Cristianismo ganhou cada vez mais adeptos entre os romanos, o Império começou a sentir os sinais da crise: diminuição do número de escravos, rebeliões nas províncias, anarquia militar e invasões bárbaras. Quando o último imperador romano foi deposto, em 476, pelos hérulos de Odoacro, poucas legiões restavam para defesa do seu território. Os comandantes militares que tentavam manter o Império unificado no século V eram, na sua maioria , de origem bárbara. No século XIX, a historiografia romântica convencionou esta data como o fim da Antiguidade. Santo Agostinho em suas crônicas associa o incêndio de Roma pelas tropas de Alarico (410), com o “fim dos tempos”. Porém, é provável que poucos naqueles anos considerassem aquele fato como o fim de uma era.

Agradecimentos

Aos mestres e amigos Pedro Paulo Funari, Margarida Maria de Carvalho e José Remesal Rodríguez, pela oportunidade de trocarmos idéias, a Ciro Flamarion Santana Cardoso, Maria Beatriz Florenzano, Vera Lúcia Tostes, Rejane Vieira e Eliane Nery. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

Referências

Documentação

AMMIEN MARCELLIN. Histoire. 24. 3.éd. Paris: J. Fontaine, 1977.

176

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AMIANO MARCELINO E OS CONSTRUTOS IDENTITÁRIOS NOS RELATOS SOBRE OS IMPERADORES MILITARES: JULIANO, JOVIANO E VALENTINIANO I (361 – 375 D.C.)

Margarida Maria de Carvalho1 UNESP/Campus de Franca Bruna Campos Gonçalves2 Mestranda em História/UNESP - Campus de Franca

Considerações preliminares:

A historiografia militar, sobretudo no Brasil, sofreu uma enorme discriminação devido às marcas deixadas pelo período da Ditadura Militar (1964 - 1984). Dominada por historiadores e arquivistas das forças armadas, essa se voltava exclusivamente ao estudo das glórias, honras e governos que exultavam a nação, cumprindo, assim, com uma meta ideológica amparada na força e na repressão daqueles que indagavam a forma como essa história era elaborada. Naquele momento, o mercado sobre esse tema era dominado pela Editora da Biblioteca do Exército, órgão este que estava totalmente a serviço da propaganda militarista do período assinalado. Nesse interlúdio, a História Antiga foi desenvolvida de maneira extremamente factual, sem gerar nenhuma reflexão ou análise crítica vinculada ao tempo presente. Isso significa que tal disciplina era utilizada como controlo ideológico para reforçar as idéias provenientes da direita autoritária, pois não era interessante que a historiografia do momento dialogasse, por exemplo, com os conceitos políticos da antiguidade, tais como: Democracia, República, Monarquia e Imperialismo. Queremos expressar com isso que aquele sistema político autoritário fez usos do passado para manipular quaisquer questionamentos a cerca de seu governo.

1

Professora de História Antiga do Departamento de História da UNESP/Franca, coordenadora do Laboratório de estudos sobre Império Romano/UNESP e pesquisadora do Núcleo de estudos estratégicos/UNICAMP. 2 Graduada em História pela UNESP/Franca, bolsista de iniciação científica FAPESP (abril – dezembro/2008). Mestranda em História pela UNESP/Campus de Franca sob a orientação da Profª Drª Margarida Maria de Carvalho.

179

Revela-se, portanto, na década de 1970, a junção da História Militar com a História Antiga reforçando o papel de cadeiras como Educação Moral e Cívica – na qual se salientava o sentimento patriota dos romanos em relação a seu Império – e Estudo de Problemas Brasileiros (EPB) formando um recurso educacional empregado em todo território brasileiro. Após o período ditatorial, o desenvolvimento da História Militar foi visto com preconceito e renegado pela nova geração de historiadores que, por sua vez, também, olhou de forma discriminatória para a História Antiga, tanto Clássica como Oriental. Essa mácula, quase indelével, ficou durante muito tempo nos registros dos historiadores brasileiros especialistas em História do Brasil, da América, História Moderna e Contemporânea, os quais não mediram esforços para combater tais estudos que envolveriam o binômio História Militar – História Antiga. Ao que parece, somente no início da década de 90, no Brasil, irá ressurgir no campo historiográfico da antiguidade o interesse por esse binômio. Temos como referência a tese de doutoramento de Cyro de Barros Rezende Filho, intitulada: Mudança de conceito estratégico e manutenção de padrão tático: a desagregação militar do ocidente romano sob a pressão bárbara (1992), apresentando um leque documental e uma bibliografia sobre o tema extremamente rica e denotando grande erudição por parte do autor. Tal trabalho, entretanto, vai de encontro às posições de autores estrangeiros como Ramsey MacMullen (1963) e Arther Ferril (1989), que apontavam na barbarização do exército romano no século IV d.C. uma situação de declínio e queda daquele Império. Essa historiografia, em nossa concepção, refletia o momento histórico no qual os atores estavam inseridos: era o contexto da Guerra fria, a qual revelava um jogo binário de oposições, bloco capitalista versus bloco socialista. Nessa oposição, tudo leva a crer que historiadores pertencentes às nações capitalistas sentiam a necessidade de mostrar em suas análises o reflexo da suposta supremacia de um sistema político sobre o outro. Tais idéias revelam uma interpretação preconceituosa, no tocante ao outro, indo ao encontro, de uma maneira acrítica, dos autores da história militar dos séculos IV e V d.C., sendo esses: Amiano Marcelino, com a Res Gestae (392 d.C.), Eunápio de Sárdis, com sua História Universal (395-400 d.C.), Flávio Renato Vegécio e a Arte Militar (383 ou 450 d.C.) e Zózimo e sua Nova História (498 d.C.) que, numa primeira instância, teriam negado a necessidade da incorporação dos bárbaros nas fileiras do Exército romano. Atualmente, no estudo da História Militar da Roma Antiga, constata-se que o bárbaro possa ter contribuído com a elaboração de novas estratégias bélicas, tais como: táticas, armamentos, abastecimento de víveres, conhecimento geográfico de regiões ainda não

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penetradas pelo romano, assim como contribuição de novas perspectivas para o serviço de Inteligência militar. Além disso, o estrangeiro participou da construção de identidades político-religiosas e no processo de escolha de Imperadores relativo à sucessão Imperial, sendo esse último ponto o nosso foco de análise nesse capítulo. Anunciamos, por conseguinte, que, dadas as necessidades da conjuntura política atual, o processo de globalização nos levou a pensar em questões mais abrangentes como, por exemplo, em um mundo multifacetado pelas diferenças étnicas, políticas e sociais configuradas num novo momento das relações internacionais. Hoje, discute-se a construção daquilo que seria identidade e alteridade, o que nos leva à necessidade da compreensão daquilo que seria identidade plural e exclusão social. Logo, lendo a narrativa de Amiano Marcelino, historiador3 do Império Romano Oriental do século IV d.C., observamos em inúmeras passagens de sua obra Res Gestae situações que nos levam à abordagem do que seriam tais elaborações conceituais. Assim, cabe no desenvolvimento do tema presente, através de nossa pesquisa empírica, conceituarmos tais termos. Acreditamos que, devido a esse momento, houve uma renovação historiográfica no tocante à barbarização do exército romano. Referimo-nos, especialmente, a Jean-Michel Carrié (1999), Peter Heather (2006) e Wolfgang Liebeschuetz (1999), este último, já em 1990, anunciou a possibilidade do entrosamento entre bárbaros e romanos no exército, sugerindonos que sua ligação seria tão forte que os estrangeiros passariam a ter papel fundamental na defesa e manutenção das fronteiras do Império, tendo como preceito basilar o sentido da conceituação de Antiguidade Tardia. Nove anos depois, Heather (1999) reafirma alguns dos preceitos de Liebeschuetz, inserido numa conjuntura diferenciada, na qual o debate sobre as identidades étnicas e culturais estaria caminhando para um ponto de destaque na historiografia. Por último, citamos a recente obra de Carrié (1999) que endossa essa tese. Chamamos atenção, dessa maneira, para dois historiadores brasileiros, Ana Teresa Marques Gonçalves e Leandro Mendes Rocha, que compreendem as Identidades como construções, ou seja, como sendo criadas e recriadas ao longo do tempo e respondendo às necessidades dos sujeitos que as constroem (GONÇALVES e ROCHA, 2006, p.12). Outro conceito que nos será muito útil é o de Hibridização Cultural, o qual é posto em debate na atualidade, mas que podemos transportar para as relações ocorridas no interior e fora do Império romano. Peter Burke discute esse conceito, em seu livro Hibridismo Cultural 3

Utilizamos este termo, historiador, levando em consideração que não existem regras absolutas, de validade universal, para a escrita da história; assim, sua narrativa histórica é construída por paráfrases e por suas experiências e não por uma leitura crítica da documentação disponível, como faria um historiador contemporâneo.

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(2003), no qual fez alguns apontamentos relevantes para o estudo da relação entre diferentes culturas. Nas palavras de Burke: “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um continuum cultural.” (BURKE, 2003, p.02). Ao levarmos esse pensamento para a antiguidade, e considerando principalmente as fronteiras do Império romano, tomamos consciência da dificuldade de se averiguar onde se inicia e onde se finda uma cultura. No que diz respeito à questão da exclusão social, também detectada no corte temporal aqui apontado, podemos interpretá-la no transcurso dos livros de Amiano Marcelino, quando indiretamente diferencia bárbaros participantes do exército romano daqueles que seriam considerados selvagens. Feitas essas considerações, objetivamos analisar algumas passagens da Res Gestae, de Amiano Marcelino, que retratam os Imperadores Juliano (361 – 364 d.C.), Joviano (363 – 364 d.C.) e Valentiniano I (364 – 375 d.C.), salientando aspectos referentes à estruturação de identidades, entre romanos e bárbaros, no tocante à sucessão imperial.

Amiano Marcelino e a Res Gestae

Amiano Marcelino nasceu na cidade de Antioquia, localizada na Síria, entre os anos de 325 e 330 d.C., era proveniente de uma família grega, não cristã e partícipe da elite da cidade. Nesta recebeu sua educação abrangendo o Grego, o Latim literário e estudos retóricos. Quando jovem, por volta do ano de 350 d.C., ingressou no exército, uma carreira extremamente rara no período para pessoas provenientes de boa família, inscreveu-se para protectores domestici, um regimento na época, de alto prestígio social (THOMPSON, 1947, p.2-3). Segundo Gilvan Ventura da Silva, tal cargo correspondia às funções de um ‘burocrata a serviço dos comandantes militares’, e, também, agiam como auxiliares de campanha dos generais, sendo assim, responsáveis pela atualização dos efetivos militares disponíveis, pela supervisão do abastecimento das tropas e pelo desempenho de missões especiais (SILVA, 2007, p.168). Entendemos, dessa maneira, que o antioquiano desempenhava muito mais tarefas de cunho administrativo do que as bélicas propriamente ditas, ou seja, dificilmente o escritor adentrava nos campos de batalha. No ano de 353 d.C., recebeu ordens do Imperador Constâncio II (337 – 360 d.C.) de atuar junto ao comandante da cavalaria, Ursicino, estando ligado ao Exército até 363 d.C. Desta maneira, seu contato com o órgão militar foi intenso. Não obstante a habilidade de Amiano Marcelino fosse muito mais a intelectual do que voltada à artilharia, o autor não

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deixou de testemunhar ocularmente as inúmeras batalhas que envolviam generais Imperadores romanos contra bárbaros, legando-nos um extenso material sobre o assunto (CARVALHO; FUNARI, 2007, p.281). Assim sendo, concordamos com Frank Trombley, ao destacar que os laços sociais e profissionais de Amiano influenciram-no na sua compreensão dos eventos políticos da corte imperial e das operações militares desenvolvidas na época em que foi protector domesti (TROMBLEY, 1999, p.17). O plano inicial da obra consistia em cessar a narrativa no vigésimo quinto livro, porém, ao perceber a boa receptividade que seus escritos tiveram por um público a ele próximo, decidiu continuá-la redigindo os livros XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX, XXX e XXXI. Escreve originalmente em Latim e possui um estilo bastante próprio, repleto de descrições4, formas de expressão pitorescas e até mesmo poéticas, empregando, em geral, efeitos que atendessem aos costumes de leitura em público. A tradição literária latina, segundo Thompson (1947), mostra-se presente na obra de Amiano Marcelino quando aproxima sua produção à de Tácito, fator visível, principalmente, no tocante às descrições geográficas feitas por aqueles autores. Entretanto, trabalhamos com a idéia de que Amiano não se ateria somente a essas descrições apenas como forma de conservar a tradição latinista na qual se insere, mas também como um reflexo aparente de seu posto no exército. As competências que apresentara estão ligadas ao planejamento e inteligência militar, elementos que para a segurança na guerra eram imprescindíveis, dados que se refletem com bastante nitidez no relato que lega a posteridade. Sua obra encontra-se dividida em 31 livros, dos quais somente 18 acham-se disponíveis, desde o livro 14 ao 31. Tais livros se remetem aos anos de 353 a 378 d.C., enriquecendo a historiografia acerca dos reinados dos seguintes imperadores: Constâncio II (337-361 d.C.), Juliano (361-363 d.C.), Joviano (363-364 d.C.), Valentiniano I (364-375 d.C.), Valente (364-378 d.C.), Graciano (375-383 d.C.), e Valentiniano II (378-392 d.C.), focalizando, sobretudo, os aspectos militares dos governos desses príncipes. John C. Rolfe, tradutor da obra Res Gestae de Amiano editada pela Loeb Classical (1982), tradução a que nos reportamos no presente trabalho, aponta em sua Introdução que o antioquiano conhecia o latim como língua oficial do exército, “ele podia falar, ler, e escrever, mas não adquiriu a maestria da língua.” (ROLFE, 1982, p. xx). Em contraposição a essa afirmativa, Mellor destaca que “Amiano era um bem educado oficial superior que estava 4

Cf. AMIANO MARCELINO. Sobre suas descrições minuciosas (ex. Severianus) - XXVII, I,I. Para descrições de batalhas, XXVII, II, VI.

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profundamente imbuído na cultura literária da língua adotada” (1999, p.127). Embora não tenha escrito na sua língua nativa, o grego, seu conhecimento de latim não era igual ao de um soldado comum. Além das considerações expostas, pensamos, que o autor estava preocupado em divulgar suas informações históricas a um público ocidental mais suscetível às influências bárbaras: era fundamental ilustrar as guerras opulentas entre os denominados grandes generais romanos e os povos por ele considerados selvagens. Para nós, o autor possuía, também, a intenção de propagandear sua obra tanto no Ocidente como no Oriente, pois é sabido que a elite romana oriental lia fluentemente tanto grego como o latim. Nesse trabalho investigativo, nosso foco de análise é os Livros de número XV ao XXX, pois estes incorporam relatos dos imperadores Juliano (361 – 363 d.C.), Joviano (363 – 364 d.C.) e Valentiniano I (364 – 375 d.C.). O conteúdo dos livros apresenta-se da seguinte forma: do livro XV ao XXIV, o autor estabelece uma narrativa de acontecimentos militares e heróicos sobre o Imperador Juliano. No livro XXV, último dedicado à pessoa de Juliano, o escritor não cristão redige um panegírico mais ainda elogioso que, como não poderia deixar de ser, segue um padrão da retórica da época. Todos os elementos contidos em sua narrativa e em seu panegírico devem ser investigados. Ainda no Livro XXV, o autor tece alguns breves comentários ao Imperador Joviano e finalmente do Livro XXVI a XXX, narra os feitos de Valentiniano I e Valente. Mesmo Amiano tendo afirmado sua busca pela verdade e veracidade de sua narrativa, acreditamos que essa característica não torna seu relato mais real ou verdadeiro que o de seus contemporâneos, mas sim, fornece-nos uma trama mais detalhada dos acontecimentos militares, repletos de especificidades e dados que apenas um elemento inserido no corpo militar poderia revelar-nos. Vide as citações abaixo: Até onde pude investigar a verdade, eu, após colocar vários eventos em uma ordem clara, relatei o que eu mesmo fui permitido testemunhar no curso de minha vida, ou aprendido por meticulosos questionamentos daqueles diretamente envolvidos (Amiano Marcelino, Hist, livro XV, 1, 1). Estes eventos, do principado do imperador Nerva até a morte de Valente, eu, um soldado formado e um grego, expus na medida da minha habilidade, sem nunca (eu acredito) conscientemente aventurar-me a depreciar pelo silêncio ou pela falsidade um trabalho que tem por objetivo a verdade (Amiano Marcelino, Hist, livro XXI, 16, 9).

Como destaca Keith Jenkins (2004) e outros teóricos como Paul Veyne (1971), quando escrevem sobre a subjetividade da história e das diferentes interpretações dos fatos

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por cada um, não se deve pensar numa única verdade em história, já que todos os depoimentos a que temos acesso remontam expectativas, anseios, visões e sentimentos de seu autor, que de forma alguma podem ser julgados imparcialmente. Podemos dizer, assim, que são múltiplas as verdades existentes, cabendo ao leitor sua interpretação. Alguns historiadores da atualidade, entre eles Pat Southern e Karen Ramsey Dixon (1996, p.2), confiam em Amiano e acreditam que, comparado a outros autores, o antioquiano estaria livre de preconceitos religiosos ou pessoais. Discordamos, entretanto, dessa visão, pois acreditamos que, mesmo tendo escrito uma narrativa de eventos que tenha presenciado, o autor seja passível de embutir em seus escritos preceitos pessoais a política do momento. Nossa opinião vai ao encontro das reflexões de Jenkins (2004, p.33), o qual nos mostra que o passado que conhecemos é sempre condicionado por visões do nosso próprio presente.

Disposições identitárias na escolha dos Imperadores: Juliano, Joviano e Valentiniano I (361 – 375 d.C.)

Como destacam os autores Brian Campbell (1994) e David S. Potter (2004), é nesse período que observamos a forte influência exercida pelo Exército em detrimento do órgão senatorial. Compreendemos esse cenário político pelo fato do Imperador, nesse momento, representar a confluência dos poderes civil e militar, pois, antes, era o Senado que detinha aquelas funções. Nesse sentido, notamos uma intensificação da influência militar nas questões administrativas do Império, especialmente no que tange àquele que teria acesso à púrpura Imperial. Destacamos, mais uma vez, nesse contexto, a inclusão dos elementos bárbaros no corpo militar e a sua possível participação junto aos romanos na eleição do Imperador, uma vez que o Príncipe passa a ser escolhido no interior da armada. Observa-se na passagem abaixo uma das formas pela qual os bárbaros integravam o Exército romano:

E depois de uma longa e variada discussão, e pelo que parecia para o interesse do estado, concordaram com uma trégua e, em concordância com as condições que foram propostas, os saxões deram como reféns muitos homens aptos para o serviço militar, e assim estavam autorizados para partir e retornar sem impedimentos para o lugar de onde eles vieram. (AMIANO MARCELINO, Hist. XXVII, 5,4)

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É importante esclarecer como os bárbaros estavam organizados dentro do Exército: ou estavam entrosados com os romanos, formando determinadas fileiras da armada ou, ainda, como federados (federati), os quais, de acordo com Liebeschuetz, compunham unidades essencialmente estrangeiras. Além disso, o mesmo autor britânico, dando atenção especial a esse último grupo, comenta que podiam ser chefiados por comandantes, de igual modo, estrangeiros (LIEBESCHUETZ, 1990, p. 22 e 1993, p. 266). Nesse período, pode-se presenciar um exército já fortemente barbarizado. Tal fato não é ignorado pelo autor, porém, a todo instante, assiste-se no decorrer de sua leitura a tentativa de suprimir a presença desse elemento. Atendo-se à temática da barbarização, é possível notar que a imagem construída5 a respeito do bárbaro fora de extrema importância na elaboração da história militar romana tardia, já que nenhuma identidade pode existir sem uma série de oposições ou negativas. Os estereótipos não são criados por acaso; há, no interior da narrativa que os descreve uma mensagem ao leitor, há a intenção de exaltar determinado aspecto e renegar outro. Como já mencionamos, temos como fito ilustrar as disposições identitárias ocorridas entre romanos e bárbaros na escolha do Imperador no interior do Exército. Na referência ao governo do Imperador Juliano, numa investida contra os Alamanos, Amiano Marcelino nos indica a harmonia que o exército comungava, a qual pode ser verificada na seguinte passagem: E já os raios de sol estavam avermelhando o céu, e o ressôo das trombetas soavam harmoniosas, quando as forças da infantaria caminhavam num passo moderado, e ao seu flanco juntou-se os esquadrões de cavalaria, entre eles estavam os cuirassiers6 e os arqueiros, uma formidável divisão do serviço. (AMIANO MARCELINO, Hist., XVI, 12,7).

A partir daí podemos compreender melhor a participação do bárbaro no processo de eleição dos Imperadores. Um indício valoroso que deve ser ressaltado, pois reforça a idéia de que o Imperador é apontado por esse Exército, já com uma identidade plural, é que o Príncipe neoplatônico, Juliano, rompe com o elo dinástico constantiniano, primeiro porque não tinha herdeiros e segundo por causa do seu voto de castidade feito após a morte de sua esposa Constancia.

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Ao afirmar que a imagem do bárbaro fora construída, considera-se a questão de poder inserida na problemática da identidade. Os bárbaros foram barbarizados pelos romanos que sobre eles discorreram, e, como muito da História que chega até nós é a escrita por grupos sociais mais favorecidos, os relatos que conhecemos silenciam os elementos estrangeiros e assim, constroem a imagem desses homens que lhes convêm. 6 Elemento de cavalaria com guerreiro e animal fortemente armados e protegidos por equipamentos.

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Em primeiro lugar, ele era notado por sua castidade inviolada, após a perda de sua mulher, é conhecido que ele nunca mais teve um pensamento voltado para o amor, tendo em mente o que lemos em Plato, que Sophocles, um poeta trágico, quando ele é questionado, na grande idade, se ele ainda tinha encontros com mulheres, disse que havia escapado dessa paixão assim como de um louco e cruel mestre. 3. Também para dar grande força para este princípio, Juliano frequentemente repetia os dizeres de um poeta lírico Bacchylides, quem ele adorava ler, e que declarava que a destreza do pintor dá à face a beleza assim como a castidade dá charme a uma vida de altos objetivos. Essa mancha na sua madura força viril, ele evitava com muito cuidado, até mesmo seus atendentes mais confidenciais nunca (como sempre acontece) acusou ele, nem teve uma suspeita, de lubricidade. (AMIANO MARCELINO, Hist., XXV. 4, 2-3).

Tudo leva a crer que o Imperador acima referido encontrava-se bem adaptado às novas formas de configuração da eleição de governantes imperiais. A carta número 17b7 escrita na Gália, enquanto César de Constâncio II, revela a sublevação de sua tropas, no momento que se encontrava, nessa região, lutando contra os Francos e os Alamanos.

Evidentemente guardei lealdade aos nossos princípios (...). Desde que me nomeaste como César lancei-me ao horrísono fragor dos combates. Limitando-me ao poder que foi conferido, preenchi teus ouvidos – como um fiel servidor – com notícias freqüentes de sucesso (...). Se neste momento alguma revolução se produz como tu consideras é porque o soldado está passando por duras provas (...). Ante o desagravo de não perceber aumentos dentro de sua escala nem mesmo seu salário anual, chegalhes inesperadamente a notícia de que seriam obrigados a partir para regiões longínquas do oriente. Eles estão acostumados com estas terras geladas e não querem se separar das esposas e dos filhos. Portaram-se, daí, com grande violência, formando um só grupo e cercaram o Palácio gritando: Juliano Augusto! Fiquei horrorizado (...). Permaneci em pé, acreditando que poderia aplacar o tumulto com minha autoridade e com palavras suaves. Mas, caso eu não aceitasse sua proposta, morreria (...). Esta foi a real trama dos fatos. , rogo-te para que aceites com espírito aplacado sem dar ouvidos a controvérsias (...). (AMIANO MARCELINO, Hist., XX, 5; JULIANO, Carta n. 17b, escrita na Gália).

As passagens indicadas demonstram a força do Exército na tentativa de aclamação de um Imperador e, também, a satisfação dada por Juliano ao Imperador Constâncio II, seu primo. No ideal sucessório, tal César não cristão só ocuparia o cargo de Augusto quando da morte daquele Imperador ariano. Assim sendo, foi desta forma que Amiano contou, igualmente, a proclamação de Juliano. Já Eunápio relatou o seguinte episódio: após alguns ritos secretos somente conhecidos pelo hierofante de Elêusis – convocado por Juliano para vir à Gália – e seus

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Estamos seguindo a numeração das cartas encontrada na edição JULIANO. Contra los Galileos. Cartas y Fragmentos . Testimonios.Leys. Introducción, Traducción y Notas por José Garcia Blanco y Pilar Gimenez Gazapo. Madrid: Editorial Gredos, 1982.

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amigos íntimos Oribásio e Evêmero, Juliano decidiu rebelar-se contra Constâncio, contando neste golpe de Estado com o serviço de vários conspiradores (EUNÁPIO, frag. 14, 5). Seja como for, proclamação ou golpe de Estado, Juliano foi aclamado Augusto. A morte de seu primo Constâncio em cinco de outubro de 361 serviu apenas para ratificar sua ascensão ao poder. Entretanto, a morte precoce do Príncipe filósofo (361 – 363 d.C.) fez com que uma nova situação política se desenhasse no interior do Exército romano. Sobe ao poder outro comandante militar de destaque, chamado Joviano (364 d.C.) É senso comum, entre os escritores da época, que Joviano não foi um imperador bem sucedido, haja vista diversas passagens de Amiano Marcelino que explicitam tal pensamento (XXV, 5-10). Esta idéia se reproduz de maneira acrítica na historiografia contemporânea (PIGANIOL, 1947, P.147), ao que parece, pelo fato de Joviano ter feito um acordo com os Persas, cedendo a eles terras que já haviam sido conquistadas pelos romanos. Joviano ficou, dessa maneira, marcado pela historiografia, apesar de ter revogado algumas leis, muito criticadas, promulgadas pelo imperador Juliano, como aquela que proibia os cristãos de lecionarem nas escolas. Posto isto, vale ressaltar, que o período de Joviano é praticamente esquecido pela produção escrita. Exemplo disso é um paradidático intitulado: Antiguidade Tardia, de Waldir Freitas (1990, p.71), que nem sequer se refere ao período de Joviano. São poucos os trechos de Amiano Marcelino referentes a Joviano, todavia, notamos em alguns deles, mais uma vez, a inserção do estrangeiro no processo de seleção do governante. Muito embora, essa percepção tenha se dado a partir do momento em que é necessária a compreensão da subjetividade do autor, considerando ainda que muito do que o próprio escreveu estava imbuído na sua relação com o momento presente. Através do fragmento abaixo, o autor militar remete-se ao processo da sucessão imperial denotando a intensa movimentação do Exército. Tal relato revela a ascensão do Imperador Joviano (363 – 364 d.C.) por uma junta militar formada por quatro generais de origem bárbara.

1. Depois disso não tinha mais tempo para lamentos ou lagrimas. Depois de cuidar para que o corpo de Juliano, tão bem quanto os meios em mãos e as circunstâncias permitiam, na ordem que ele devia descansar no lugar onde havia previamente escolhido, na madrugada do dia seguinte, o que era vinte e sete de junho, com o inimigo cercando-nos por todos os lados, os generais do exército em assembléia, e tendo chamado os comandantes das legiões e dos esquadrões da cavalaria, eles consultaram sobre a escolha do imperador. 2. eles estavam divididos entre facções turbulentas, Arintheus e Victor, com os outros oficiais sobreviventes da corte de Constâncio, procuraram por um adequado homem da sua parte; do outro lado, Nevitta e Dagalaifus, assim como os chefes das Gálias, tentaram procurar um

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homem dentro dos companheiros soldados. 3. Após alguma discussão, todos, por acordo geral, uniram-se em Salustius, e quando alegou doença e idade avançada, um dos soldados de alto escalão, notando a determinada oposição de Salustius, disse: “O que você faria se o imperador (o que acontecia com freqüência) em sua ausência deixasse a você a condução da guerra? Você colocaria tudo de lado e salvaria os soldados dos perigos ameaçadores? Faça isso agora, e se nos for permitido ver a Mesopotâmia, os votos unidos dos dois exércitos irão decidir por um imperador legítimo.”. 4. Durante esse atraso, o que foi quase imperceptível considerando a importância do problema, antes das várias opiniões serem avaliadas, alguns soldados cabeças-quentes (como sempre acontece em crises extremas) escolheram um imperador na pessoa de Jovianus, comandante das tropas da casa, que foi aclamado por uma mínima consideração pelos serviços de seu pai. Ele era filho de Varronianus, um bem conhecido conde, que se retirou para uma vida tranqüila. 5. Agora Joviano, assim que ele se vestiu com a roupa imperial, e de repente saiu de sua tenda, já através de agilizar as fileiras dos soldados, que estavam se preparando para a marcha. 6. E assim que o exército andou por quatro milhas, aqueles no fundo, escutando algum homem gritando “Jovianus Augustus,” repetiram o mesmo som muito mais alto; Por um traço da estreita relação do nome, desde que só diferia uma letra, eles pensaram que Julian tinha se recuperado e estava sendo, no meio da confusão, aclamado pelo grito usual. Mas quando Joviano, um alto e torto homem, foi visto avançando, eles suspeitaram o que tinha acontecido, e todos caíram em lagrimas e lamentações. 7. Mas se qualquer espectador com senso da justiça, com uma pressa injustificada, culpa tal passo dado em um momento de extremo perigo, ele irá, ainda com mais justiça, recriminar marinheiros, se após a perda de um piloto qualificado, em meio a ventos e ao mar colérico, eles confiam a orientação do timão do seu navio para qualquer companheiro, em seu perigo, quem quer que ele possa ser. 8. Quando isso acontece como descrito, como se pelos cegos decretos da fortuna, o portador de notícias Joviani, recomendado por Varronianus, que era estranho ao novo imperador mesmo quando ele era um cidadão privado, assim como havia sido um persistente crítico de seu pai, sentido medo por um inimigo que subiu para um nível acima do rank comum, desertou para os Persas. E, assim que teve oportunidade de contar o que ele sabia para Sapor, que já estava próximo, ele informou ao rei que o homem que ele temia estava morto, e que um ajuntamento de seguidores excitados, escolheram uma mera sombra para o poder imperial na pessoa de Joviano, até aquele tempo, um dos guarda-costas, um preguiçoso, um homem fraco. Escutando essas noticias, pelas quais ele por muito tempo rezou ansioso, o rei, contente com a inesperada sorte, adicionou os corpos da cavalaria real ao seu exército e, rapidamente, ordenou o ataque sobre a retaguarda de nosso exército. (AMIANO MARCELINO, Hist., XXV, 5, 1-8).

Com um governo bastante breve, assim como foi o de Juliano, morre após oito meses de sua entronação, sem deixar herdeiros, o Imperador Joviano, sucedendo-lhe outro comandante da instituição bélica: chamado Valentiniano I. Dessa maneira, os militares se reuniram novamente para encontrar alguém que atendesse suas expectativas e fosse digno de ostentar a insígnia Imperial.

3. Esta ferocidade das circunstâncias mutáveis chegou a um lamentável final, depois da morte de três imperadores em pequenos intervalos, e o corpo do príncipe defunto foi embalsamado e enviado para Constantinopla, para descansarem entre os restos dos Augustos. Mas o exército marchou rumo a Nicéia, que é a metrópole das cidades de Bítinia, e os principais dirigentes civis e militares, ocupados com importantes negócios para o bem-estar geral, e algumas vezes até sem fôlego, com esperanças vãs, voltaram seus olhares para a imagem de um governante que tivesse por longo tempo possuído e comprovado sua dignidade. (AMIANO MARCELINO, Hist., XXVI, 1, 3).

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Considerações Finais:

Examinamos dessa forma pela narrativa de Amiano Marcelino os aspectos políticomilitares que estavam instaurados no processo de sucessão Imperial, num momento em que o bárbaro fazia cada vez mais parte do cotidiano militar romano. Clareando a forma como esse estrangeiro, inserido dentro das linhas do exército romano, e muita das vezes atingindo altas patentes, influenciavam na escolha do cargo mais alto da hierarquia romana. Concluímos por esse estudo, localizado no arco cronológico da Antiguidade Tardia, que os elementos estrangeiros podem auxiliar em questões político-sociais decisivas dentro de qualquer tipo de sociedade. Isso nos faz lembrar os debates políticos de nossa atualidade sobre a xenofobia em torno dos imigrantes. Esses, se tiverem uma aceitação respeitosa, intengrandose harmoniosamente no interior das esferas sociais peculiares aos seus espaços, contribuirão para o desenvolvimento de novas trocas político-culturais. Cabe, portanto, lembrar que as investigações sobre a antiguidade devem necessariamente dialogar com nosso tempo presente.

Agradecimentos:

Gostaríamos de mostrar nossa gratidão aos colegas Pedro Paulo Abreu Funari, Gilvan Ventura da Silva, Cláudio Carlan e Márcia Pereira da Silva pelas contribuições dadas a esse texto. Agradecemos, também, ao CNPq e à FAPESP pelo apoio financeiro concedido à referente pesquisa nos períodos de agosto de 2006 a julho de 2007 e de abril a dezembro de 2008, respectivamente. Cabe ressaltar que as idéias aqui expostas são de responsabilidade única das autoras.

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ANEXOS

JULIANO – Flavius Claudius Iulianus (360 – 363 d.C.). Ascende ao poder após a morte de seu tio Constâncio II, tendo o total apoio das tropas.

Joviano – Flavius Iovianus (363 – 364 d.C.). Rompe com a linha dinástica, por aclamação do exército.

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VALENTINIANO I – Flavius Valentinianus (364 – 375 d.C.). Após o rápido governo de Joviano, o exército elege Valentiniano para ser seu novo imperador.

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AS METÁFORAS MILITARES NOS DISCURSOS CRISTÃOS DO SÉCULO IV D.C.: JOÃO CRISÓSTOMO E O EXÉRCITO DE CRISTO1

Érica Cristhyane Morais da Silva2 Doutoranda /UNESP - Campus de Franca/ Bolsista CAPES

Introdução

As homilias de João Crisóstomo são ricas em metáforas militares. Em várias de suas homilias podemos identificar uma linguagem militar, palavras e expressões, que remetem diretamente à hierarquia dentro das instituições militares, às relações entre as posições hierárquicas, às funções desempenhadas pelos seus membros bem como os atributos e imagética que aludem à elementos especificamente relacionados ao universo militar. Para os propósitos deste capítulo, separamos as metáforas militares encontradas no Tratado sobre o Sacerdócio3 (De Sacerdotio, Livro VI) e em algumas homilias de João Crisóstomo. Dentre a vasta obra homilética deste autor, selecionamos homilias das seguintes séries: As Homilias sobre as Estátuas ao Povo de Antioquia (De Statui, Homilia III), As Instruções Batismais (Catechesis ad Illuminandos, Homilias II e IV),4 As Homilias sobre as Epístolas de Paulo aos Efésios (In Epistulam ad Ephesios, Homilias XX, XXI, XXII, XXIII e XXIV), As Homilias sobre as Epístolas de Paulo aos Coríntios (In Epistulam I ad Corinthios, Homilias XXI e XXXIV; In Epistulam II ad Corinthios, Homilias, I e XXVI), As Homilias sobre o Evangelho 1

Este texto foi fruto das reflexões e debates realizados durante as aulas do curso Identidades em Construção: Estado, Igreja e Exército no Império Romano que foi ministrado pela Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho no Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Campus de Franca durante o 1º Semestre de 2008. 2 Licenciada, Bacharel e Mestre pela Universidade Federal do Espírito Santo e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação da UNESP/Campus de Franca. Atualmente, desenvolvendo pesquisa de doutorado com o projeto intitulado “Representação, poder e conflito no Império Romano do século IV d.C.: o Levante das Estátuas e os testemunhos de João Crisóstomo e Libânio de Antioquia” sob a orientação da Profª. Drª. Margarida Maria de Carvalho e com auxílio de Bolsa de Doutorado CAPES. 3 O Tratado sobre o Sacerdócio foi traduzido para o português e publicado na Coleção Padres da Igreja pela editora Vozes, em 1979. Utilizamos essa publicação como referência, todas as passagens relativas a esta documentação foram extraídas dessa tradução para o português salvo quando expresso em contrário. Não obstante, quando necessário, recorremos às versões em inglês da documentação e o texto em grego ou latim publicadas, respectivamente, na obra A Select Library of the Christian Church – Nicene and Pós-Nicene Fathers e na Patrologia Graeca de Jacques-Paul Migne. Para a referência completa, cf. a bibliografia listada ao final. 4 Essas duas homilias são dois textos de coleções diferentes. A Homilia II se refere ao texto encontrado na coleção da Patrologia Graeca de Jacques-Paul Migne e a Homilia IV faz parte da série de oito homilias descobertas pelo Padre Antoine Wenger em 1955 e que ficou conhecida como a Série de Stavronikita. Aqui utilizamos a tradução em inglês da Homilia IV publicada e traduzida por P. F. Harkins.

196 de São Mateus (In Matthaeum, Homilia LXIX) e Contra os Judeus (Adverus Judaeos, Homilia I).5 O conjunto dessas homilias nos fornece os dados sobre as idéias que João Crisóstomo encerra na expressão Exército de Cristo. A documentação é extensa, mas os dados são esparsos o que nos permitirá, no espaço deste capítulo, apontar algumas reflexões acerca do Exército de Cristo na concepção de João Crisóstomo em termos de sua composição e definição de seus membros, de sua hierarquia, da atuação e dos atributos presente nos soldados deste exército. Buscaremos discorrer também sobre o significado dessas metáforas dentro do contexto do século IV d.C. considerando a intenção de João Crisóstomo ao optar pelo emprego dessa linguagem especificamente militar. Para isso, organizamos o capítulo em quatro seções. Em primeiro lugar, discorreremos sobre algumas questões de caráter teórico metodológico sempre sob a ótica de nosso objeto de análise de modo que possamos compreender o significado da utilização de uma linguagem militar nos discursos cristãos, em geral, e nos de João Crisóstomo, em particular. Em segundo lugar, nos deteremos, especificamente a reflexão acerca da prática do emprego de metáforas militares nos discursos cristãos. Em seguida, as duas últimas seções deste capítulo tratarão de nosso objeto em particular. Num primeiro momento, buscaremos localizar a especificidade da obra de João Crisóstomo em Antioquia uma vez que esta cidade se constitui num território concebido como estratégico em termos militares bem como foi também sede administrativa do Império Romano. E, num segundo momento, apresentaremos as metáforas extraídas e, particularmente, selecionadas da documentação de João Crisóstomo.

Religião, linguagem e poder O exército romano antigo exerceu uma influência significativa em todos os âmbitos da vida social romana desde finais do período republicano. Os militares se tornaram importantes na definição das instituições políticas, na economia, na administração, na vida social, na religião. Em cada uma dessas esferas, o exército romano se fez presente. O seu impacto na 5

Para o conjunto dessa documentação utilizamos os textos publicados nas traduções em inglês presentes na coleção A Select Library of the Christian Church – Nicene and Pós-Nicene Fathers bem como recorremos aos textos em grego e latim publicados na Patrologia Graeca de Jacques-Paul Migne, salvo quando expresso em contrário. Para a referência completa, cf. a lista bibliográfica ao final.

197 sociedade antiga pode ser evidenciando mediante uma cultura material6, o estudo da iconografia, das moedas, da estatuária bem como por intermédio da documentação escrita a partir, particularmente, de uma história que podemos chamar de uma História Social da Linguagem7. Nesta linha de pesquisa histórica, as “variedades da língua” e as “diferenças na fala” possuem um significado social e são vinculadas a grupos sociais específicos (Burke, 1995:11-12). Desse modo, quando nos propomos a discorrer acerca de uma “linguagem militar” utilizada em “discursos cristãos do século IV d.C.” precisamos considerar alguns pressupostos. Inicialmente, é necessário especificar os limites espaciais e temporais da presente análise de modo que nos seja possível compreendermos o discurso e, portanto, sua linguagem, seu significado dentro dos parâmetros de seu contexto histórico. Nossa reflexão recairá, principalmente, sobre as obras de João Crisóstomo8, um importante membro da elite eclesiástica do século IV d.C. e, portanto, se limitará ao espaço da parte oriental do Império Romano e, majoritariamente, na cidade de Antioquia.9 Não obstante, quando necessário e em espaços determinados, faremos referências a outros autores e obras que poderão extrapolar os limites espaciais e temporais que especificamos, mas salientamos que o faremos sempre a partir do nosso objeto principal de modo a contextualizar a própria obra de João Crisóstomo. Outro pressuposto a se considerar é compreender que a “linguagem militar” implicará aqui em palavras, expressões que remetem à um segmento social específico dentro da sociedade romana tardia imbuídas de uma carga simbólica particular. A linguagem como algo instável, como argumenta Tomaz Tadeu da Silva (2000:78-79), não pode ser compreendida fora da rede de significados dentro da qual adquirem sentido. Logo, devemos considerar

6

Nossa utilização aqui do conceito de cultura material segue o mesmo sentido oferecido pelo autor Pedro Paulo Abreu Funari (2003:25). 7 Peter Burke (1995:17-18) propõe uma abordagem particular ao estudo da linguagem que “poderia ser resumida como uma tentativa de acrescentar uma dimensão social à história da linguagem e uma dimensão histórica à obra de sociolingüistas e etnógrafos da fala”. Para Burke (1995:9), a História Social da Linguagem poderia também ser considerada como uma História Social do Falar ou uma História Social da Comunicação. Burke busca denotar que nesta história se inclui uma série de objetos relacionados ao sistema lingüístico, com seus códigos e fonemas, mas que não se restringiria apenas ao estudo da linguagem enquanto sistema de códigos. A linguagem como uma “instituição social” deve ser considerada como “parte da cultura e da vida cotidiana” e, portanto, estudada considerando seu contexto e suas relações com outros aspectos da vida social, ou seja, a linguagem também está imbuída de uma dimensão social, remete a particularidades que se relacionam com os grupos sociais (Burke, 1995:9-11). A História Social da Linguagem se desenvolveu como área de pesquisa histórica apenas recentemente (Burke, 1995:9). De acordo com Burke (1995:9), se desenvolveu a consciência acerca da “importância da linguagem”, do “poder da linguagem e do envolvimento desta com outras formas de poder” ou de uma “intensa preocupação com a linguagem e o lugar desta na cultura”. Todavia, isso não significa pensar que a linguagem nunca tenha sido objeto de uma análise histórica. 8 Para uma biografia completa da vida e obra de João Crisóstomo ver Kelly (1998); Brändle (2003). 9 As obras que analisaremos de João Crisóstomo foram predicadas, majoriatariamente, em Antioquia. Cf. Oñatibia (1994:485;495;497;502-3;508-9;510).

198 também que a linguagem militar do autor cristão foi utilizada dentro de um discurso de um outro seguimento social desta mesma sociedade. Isto pode implicar na atribuição de uma nova carga simbólica às palavras e expressões apropriadas dado que aquela linguagem se encontrará em um novo contexto e no interior de novas relações entre os termos do discurso cristão bem como estará relacionado aos interesses desse outro grupo social. Em 1919, na obra The Early Christian Attitude to War, John Cecil Cadoux (1919:161) argumenta que a apropriação cristã de termos militares e frases serviam como ilustração da vida religiosa. Para este autor, a utilização de metáforas militares podia não implicar em um comprometimento de seus escritores com uma guerra real embora exista de certo modo uma sugestão de que os autores possam aceitar a idéia de uma revolta ou de uma guerra de fato (Cadoux, 1919:165-8). Cadoux completa que os elementos militares que aparecem nos discursos cristãos remetem a idéia de uma guerra em um sentido espiritual. Assim, para este autor, as maiorias das metáforas militares nos discursos cristãos aparecem como “ilustrações” ou “analogias” e, em alguns casos, como “simples retórica edificante”. Mary Albania Burns (1930:94) argumenta que a intenção de João Crisóstomo com as metáforas é esclarecer uma idéia a sua audiência muito embora, ocasionalmente, o esclarecimento seja ofuscado “no desenvolvimento detalhado da metáfora”. De uma forma ou de outra, as metáforas militares servem, de fato, como um dispositivo de adaptação lingüística que aproxima a linguagem e a mensagem da audiência estabelecendo vínculo entre aquele que fala e aquele que escuta. Todavia, não podemos pensar que as metáforas e a sua utilização pelos autores cristãos e, especificamente, por João Crisóstomo se restringiriam a esse aspecto. A linguagem utilizada nos discursos cristãos não é um simples ornamento e muito menos deve ser considerada como arbitrária e nem mesmo destituída de parcialidade. A linguagem como um sistema cultural implicará em relações de poder (Bourdieu 2002, Geertz, 1989). Neste sentido, podemos compreender as imagens evocadas não somente como uma “ilustração” ou idéia a ser esclarecida, mas a partir de um conteúdo e significado político-religioso que nos remete à construção de lugares de poder. Uma outra questão que se insere nas relações de poder é compreender a linguagem enquanto elemento de construção de identidades e demarcação de fronteiras culturais (Bourdieu, 2002; Silva, 2000; Burke, 2006). Assim sendo, a linguagem militar e as metáforas de guerra presentes nas obras dos autores cristãos implicam também em construção e difusão de um sistema de valores e lugares de poder específicos. No Tratado sobre o sacerdócio, por exemplo, ao discorrer sobre a importância da posição de presbítero ou bispo, João Crisóstomo elenca um repertório de virtudes e requisitos necessários ao candidato ao sacerdócio. Na exposição eloqüente, João

199 Crisóstomo define os parâmetros do sacerdócio e a ética ideal esperada de um de bispo, ao comparar o “chefe da Igreja” com chefes militares. Desse modo, João Crisóstomo compõe a imagem de um bispo considerando o modelo de um chefe militar. A relação estabelecida entre o bispo e o chefe militar não é uma relação de igualdade. A equivalência diz respeito a apenas alguns aspectos que trataremos mais adiante na última seção deste capítulo. O bispo não pode se portar como um chefe militar, por exemplo, no que diz respeito ao recurso a violência (Gaddis, 2005:151). O emprego de uma linguagem militar e de metáforas significa, dessa forma, uma escolha que não pode ser considerada como arbitrária. Seu emprego está repleto de interesses de grupo, de intenções e significados. Cadoux (1919:161) sugeriu que foi “Paulo de Tarso, chamado O Apóstolo, quem, aparentemente, introduziu este costume de utilizar metáforas do universo militar nos discursos cristãos para ilustrar diversos aspectos da vida cristã particularmente, apostólica”. Esta prática pode ter sido introduzida, de fato, pelo apóstolo Paulo. Não obstante, a relação entre cristianismo e o universo militar não se restringe ao emprego de uma linguagem e metáforas. Na realidade, essa apropriação se constitui numa face de um movimento mais amplo que está intimamente vinculada às relações entre os cristãos e as instituições do Estado e sua perspectiva acerca do Império Romano.

As metáforas militares nos discursos cristãos As metáforas militares não se restringem a obra de João Crisóstomo. Muitos escritores cristãos utilizaram metáforas fazendo alusões ao universo militar. E, se por um lado, sua utilização por cada um dos autores e seu significado possa ser heterogêneo, diversificado, polissêmico e, por isso, a necessidade de contextualizá-los é imprescindível, por outro, a recorrência e a freqüência com que as metáforas foram empregadas nos discursos cristãos podem fornecer, em certa medida, pistas acerca de um movimento significativo dentro do cristianismo que é pertinente ao tema das relações entre o Império Romano e o cristianismo antigo. A posição dos escritores cristãos antigos é heterogênea quando o tema é a associação entre Estado imperial romano e Igreja ou, em termos mais amplos, entre o mundo romano e o cristianismo antigo. Tradicionalmente, de acordo como uma historiografia particular, as perspectivas cristãs acerca da relação entre Império Romano e cristianismo podem ser divididas, grosso

200 modo, em dois grupos separados em termos temporais: um primeiro grupo, referente aos primeiros séculos, no que se incluem os discursos cristãos que destacavam a incompatibilidade entre o mundo terreno e o cristianismo e, um segundo grupo, referente aos séculos posteriores ao governo de Constantino, no qual são inseridas as perspectivas cristãs que aceitavam, de certo modo, a estreita relação entre Império e cristianismo.10 Nestes termos, considerando o primeiro grupo, a perspectiva cristã acerca do exército, do serviço militar e da guerra seguiria uma incompatibilidade similar uma vez que estes estavam vinculados ao mundo romano. Esta aparente11 incompatibilidade não significa que a Igreja e o Exército eram como duas instituições separadas e autônomas sem possibilidade de qualquer espécie de intersecção. A relação entre ambas era possível. A convergência não é muito evidente, mas existe. A divisão das perspectivas cristãs acerca da associação entre Império e cristianismo em dois grupos se, por um lado, se mostra útil, por outro, é bastante esquemática e exclui a complexidade e sutilezas das perspectivas cristãs acerca daquela associação, pois, se, inicialmente, a conversão ao cristianismo significaria, de certo modo, uma oposição ao que estava relacionado ao saeculum ou ao orbis romanorum, como poderíamos compreender, portanto, o caso específico de Tertuliano para citar apenas um exemplo. Tertuliano é um importante autor considerado cristão12 do século II d.C. De acordo com Russel (1987:99), Tertuliano critica e ataca a religião pagã, destacou várias vezes em seus escritos que se opunha ao enlistamento de cristãos às fileiras do exército romano, 10

Ver, por exemplo, Maier (1972:65 e 68) que contrapõe dois autores antigos segundo essa perspectiva, Tertuliano e Eusébio de Cesarea. Para uma posição menos polarizada, conferir Swift (2007:280) e Ubiña (2007:422). 11 José Fernández Ubiña (2007:422) argumenta que há um equívoco na crença difundida por uma historiografia tradicional de que o cristianismo antigo se dividiu em duas grandes correntes, uma favorável e outra oposta ao Império Romano. Nas palavras de Fernández Ubiña: “O equívoco desta leitura neotestamentária é duplo: primeiro, porque equipara dois textos e dois autores cuja transcendência histórica é absolutamente incomparável. Enquanto os escritos de Paulo e alguns de seus seguidores (Evangelho de Lucas, Atos dos Apóstolos, cartas deuteropaulinas...) formaram parte desde o princípio do cânone neotestamentário, o Apocalipsis foi concebido como uma obra espúria ou de escassa confiabilidade sagrada durante toda a Antigüidade e não entraria no cânone bíblico até inicio da Idade Média. Assim, se falarmos em duas correntes no cristianismo antigo, de imediato se deve destacar que a paulina e pró romana teve um alcance incomparavelmente superior a apocalíptica e anti romana de João. O equívoco é, de certo modo, mais grave por uma segunda razão: nem os escritores de Paulo nem outro desta época podem ser compreendidos por meio de critérios exclusivamente políticos. O objetivo desses escritores é difundir a mensagem impressionante e sensível do kerigma revelado por Jesus, isto é, a iminência do fim dos tempos e a chegada do Reino de Deus. (...) Nem ele [Paulo] nem o autor do Apocalipsis trataram em nenhum caso de exteriorizar a lealdade ou deslealdade a Roma. (...) Estes textos fornecem, portanto, uma imagem imprecisa, distorcida às vezes, das atitudes cristãs em relação ao Império e a vida pública, atitudes que somente podemos apreciar em seus termos justos quando no decorrer do tempo se dissipou as ilusões escatológicas primitivas e as comunidades cristãs se prepararam para uma longa espera neste mundo”. 12 Como argumenta Geoffrey D. Dunn (2004:3), Tertuliano foi criado como pagão e se converteu ao cristianismo posteriormente.

201 considerava a Astrologia, a magia, a necromancia e os vários tipos de espetáculos ou entretenimento que ocorriam nos teatros, nas termas, nas tavernas e lutas e jogo como artes demoníacas. Todavia, a hostilidade de Tertuliano contra o Império não alcançou todas as esferas do mundo romano. Se considerarmos algumas passagens específicas dos discursos de Tertuliano (Apologeticum, L, 1-2 e De Spectaculis, XXIV) no que se refere ao emprego de uma linguagem militar, poderíamos argumentar que a hostilidade deste autor antigo contra o Império deve ser matizada e contextualizada como já propuseram alguns autores contemporâneos. De fato, o que era considerado malévolo, para Tertuliano, segundo Russel (1987:91), não era o saeculum, compreendido como cosmos (o mundo), mas os saecularia – que dizia respeito aos elementos pecaminosos do mundo. As linguagens podem também adquirir uma dimensão sagrada ou profana. Nesses termos, considerando a linguagem militar como algo vinculado ao saeculum e à uma instituição do Estado imperial, se Tertuliano fosse marcadamente oposto ao mundo romano, como nos fazem crer uma historiografia tradicional, a utilização de uma linguagem considerada profana porque ligada ao seculum estaria incompatível com interpretação que construíram acerca da posição desse autor como uma perspectiva de oposição ao mundo romano. Tertuliano era filho de um centurião do exército romano, o que, de certa forma, pode explicar a utilização de metáforas militares em seus escritos. Não obstante, em nossa opinião, a explicação também pode estar relacionada à uma outra questão. A linguagem militar, em Tertuliano, quando utilizada em defesa da ordem divina ou para proceder a uma explicação também da ordem celestial recebe uma dimensão sagrada e, portanto, se torna aceitável. Dada essas particularidades, a posição de Tertuliano ao que se refere ao mundo romano não pode ser considerada homogênea como se fosse hostil a tudo que fosse romano, como uma posição fixa e inflexível. As perspectivas são, dessa maneira, fluídas e inconstantes dependendo do contexto e dos elementos que estão sendo considerados. Por esses elementos específicos e particulares, consideramos mais apropriado compreender que, como argumentou Louis J. Swift (2007:280) acerca da perspectiva cristã sobre os temas da violência, da guerra e da paz, ambos os contextos históricos, os séculos iniciais do cristianismo e o período posterior ao governo de Constantino, apresentam uma heterogeneidade de visões que podem variar da oposição à aceitação da associação entre Império e cristianismo ou mesmo haver nuances de posições intermediárias. Logo, devemos compreender que há diferenças e variações significativas de perspectivas. No que se refere propriamente a linguagem militar, é possível também encontrarmos diferenças e variações também em termos não somente temporais mas também espaciais.

202 Cadoux (1919:165-6) sugere que a utilização de metáforas e uma linguagem propriamente militar era mais recorrentes nos discursos dos escritores cristãos latinos. É possível que, em termos de quantidade, os escritores latinos tenham recorrido à essa linguagem em particular com mais freqüência. Contudo, pela análise das passagens da documentação de João Crisóstomo podemos sugerir, como hipótese, que as metáforas e a linguagem militar aparece de forma tão central e se mostra numa descrição tão vívida que indica que a imagem evocada tem mais importância significativa que sua recorrência ou freqüência. O emprego de uma linguagem considerada de caráter militar também pode ser encontrado em vários escritos cristãos do século IV d.C. Basílio de Cesaréa (In Sanctos Quadraginta Martyres, Hom. XIX, 8),13 por exemplo, fala em ‘exército de anjos’. Essa expressão também aparece na obra de João Crisóstomo. Agostinho de Hipona (Confessionum, VII, 21) também fez uso de metáforas militares. Todavia, ao contrário de outros discursos cristãos, conforme John Mark Mattox (2006:145-6), Agostinho de Hipona parece considerar que as inúmeras metáforas militares presentes nas Escrituras não são imagens meramente simbólicas. As metáforas militares presentes na obra de João Crisóstomo são descrições realizadas de forma tão vívida e detalhada que sugere um conhecimento muito estreito das instituições militares, sua organização, sua hierarquia e funcionalidade. João Crisóstomo era filho de Secundo, um importante membro da elite civil que mantinha estreitas relações com membros do exército da Síria (Kelly, 1998:4-5)14. Isto significa que o universo militar era algo familiar à João Crisóstomo. Não obstante, pelas descrições que realiza em sua obra, este autor possui um profundo conhecimento e está muito intimamente familiarizado com o universo militar. Logo, nos parece que um outro elemento deve ser considerado na reflexão acerca da composição de metáforas militares nas obras de João Crisóstomo. João Crisóstomo nasceu e viveu grande parte de sua vida em Antioquia, uma importante cidade do Império Romano. Antioquia é concebida como uma metrópole, um centro religioso e cultural bem como ficou conhecida como um quartel-general e sede administrativa do Império Romano. Para compreendermos a maneira particular como João Crisóstomo faz uso da linguagem militar e das metáforas, consideramos imprescindível 13

Cf. BASILIUS CAESARIENSIS EPISCOPUS (PG. 31, pp. 507-526) e na tradução para o inglês, ver: BASIL OF CAESAREA. A homily on the Forty Martyrs of Sebaste, 2003, pp. 76. 14 Ao contrário do que afirmava uma historiografia tradicional, o pai de João Crisótomo não era um oficial do alto escalão do exército militar da Síria. Como destacou J.N.D. Kelly (1998:4-5), a passagem extraída da obra de Paládio que fornecia dados sobre a familia de João Crisóstomo foi mal interpretada. Na realidade, como argumetou Kelly, o pai de João Crisóstomo foi um membro civil que serviu junto ao comando do Oriente, como um tipo de ofício, secretariado. Não obstante, isso não invalida a hipótese de que João Crisóstomo poderia ter conhecimento do universo militar mediante as estreitas relações do pai com membros do exército militar.

203 discorrer sobre a cidade no qual os discursos foram desenvolvidos e predicados. A relação entre a obra de João Crisóstomo e a cidade da qual é proveniente parece nos fornecer dados interessantes acerca da própria prédica e eloqüência deste escritor cristão.

Antioquia como um centro militar e administrativo

Antioquia é um nome bastante comum no Mundo Antigo, como afirma Jack Finegan (1981:63-72), “poderia ter existido não menos que dezesseis Antioquias, todas estabelecidas por Seleuco I Nicator (312-281 a.C.), fundador da dinastia Selêucida”. De fato, em nossa pesquisa, ao nos propormos conhecer a cidade na qual João Crisóstomo permaneceu por muitos anos predicando em prol do cristianismo, descobrimos que várias cidades antigas receberam o nome de Antioquia como, por exemplo, Antioquia da Psídia. Portanto, para uma melhor definição acerca da cidade da qual trataremos, a Antioquia na qual viveu João Crisóstomo e que, embora, aqui nos referimos simplesmente como Antioquia, foi denominada, tradicionalmente, como Antioquia de Orontes. Contemporaneamente, também referida como Antioquia da Síria. Ambos os nomes estão relacionados e definidos pela sua localização geográfica. A cidade recebeu aquela primeira denominação em razão da urbs ser atravessada pelo rio Orontes que, certamente, se tornou um dentre muitos outros elementos que a diferenciaria de outras cidades antigas. Antioquia de Orontes é considerada uma cidade importante do Império Romano tanto pela historiografia contemporânea15 quanto pelas obras de autores antigos16. A distinção de Antioquia é, freqüentemente, definida em termos de seu território, sua arquitetura, seus mosaicos, sua população, sua religião, seus conflitos sociais.17 Na historiografia

15

Na historiografia contemporânea, há uma vasta produção acerca da história da cidade de Antioquia, conferir: Downey, 1961:41; 1963:200; Maraval, 1995:903-620; Will 1997:107 e 113; Kennedy, 1992:181; Kondoleon, 2000:3. 16 Entre os autores antigos podemos destacar Libânio que na obra laudatória Antiochikos faz um encomium a Antioquia elencando as particularidades e o elementos da cidade que merecem exaltação. Amiano Marcelino na sua Res Gestarum, Livro XXII, 9, 14 considerou Antioquia como a “bela coroa do Oriente”. João Crisóstomo (De Statui, Hom. XVII, 10) também deixou registrado sua admiração pela cidade, considerando-a uma exemplar cidade cristã. 17 É recorrente, na historiografia, o destaque atribuído a geografia de Antioquia, sua posição territorial estratégica bem como as particularidades de sua arquitetura urbanística. É perceptível também a diversidade populacional, em Antioquia há uma multiplicidade de grupos religiosos já destacados, por exemplo, por Downey (1961:273). Quanto aos conflitos, Antioquia também apresentou conflitos importantes, por exemplo, durante o século IV d.C. Sobre conflitos na parte oriental do Império, ver: Aja Sánchez (1998).

204 contemporânea as obra de Paul Petit18 (1955), A. J. Festugière19 (1959), Glanville Downey20 (1961; 1962; 1963), J.H.W.G. Liebeschuetz21 (1972) e, mais recentemente, Frederick W. Norris22 (1990), Magnus Zetterholm23 (2003), Lawrence Becker e Christine Kondoleon24 (Becker & Kondoleon, 2005; Kondoleon, 2000) contribuíram para o nosso conhecimento acerca de Antioquia bem como também atribuíram à cidade uma outra representação mediante a qual podemos compreendê-la. Em algumas obras desse conjunto de referências historiográficas,25 observamos uma recorrência significativa de observações acerca da importância da cidade de Antioquia enquanto um centro administrativo e um território estratégico e a cidade, particularmente, definida militarmente como um “quartel-general”. Entretanto, estas observações são sempre breves recebendo, por vezes, um certo destaque,26 mas pouco desenvolvimento e compreensão da sua importância e sentido no contexto do século IV d.C. e seu impacto na sociedade antioquena. Logo, a temática da questão militar em Antioquia parece carecer de mais investigações históricas. Antioquia evocada como um “quartel-general” é uma imagem bastante significativa e rica em sentidos para ser apenas citada em texto. Em nossa opinião, essa dimensão da imagem de Antioquia requer uma consideração e compreensão mais aprofundada e particular. Infelizmente também não poderemos oferecer no espaço deste capítulo a atenção necessária a este tema uma vez que não é nosso objetivo principal. Não obstante, buscaremos compreender a importância estratégica e militar de Antioquia e sua relação com a obra de João Crisóstomo 18

Em Libanius et la vie municipale a Antioche au IVe siècle après J.-C., Paul Petit apresenta, sob a perspectiva de Libânio, a vida administrativa e municipal de Antioquia. 19 A. J. Festugière se preocupou com as características religiosas da cidade na obra Antioche païenne et chrétienne. 20 Glanville Downey foi integrante ativo das excavações do sítio arqueológico de Antioquia entre os anos de 1932 a 1939. Sua dedicação ao estudo da cidade resultou na publicação de obras importantes de referência que nos fornecem dados valiosos para a história de Antioquia. Glanville Downey publicou as obras A History of Antioch in Syria (1961), Antioch in the Age of Theodosius – The Great (1962) e Ancient Antioch (1963). 21 J. H.W.G. Liebeschuetz publicou, em 1972, a obra Antioch: city and imperial administration in the Later Roman Empire na qual discorreu sobre a administração da cidade definindo aspectos da autoridade em Antioquia e os problemas relacionados aos impostos e o suprimento de comida que resultavam em irrupção de conflitos. 22 Em Antioch as a religious center, Norris buscou compreender Antioquia a partir das suas características religiosas. 23 The Formation of Christianity in Antioch de Magnus Zetterholm. 24 Em 2000, a curadora em arte grega e romana da Wocester Art Museum, Christine Kondoleon anunciava uma exposição intitulada Antioch: The Lost Ancient city no qual, exibiria, pela primeira vez, todos juntos, os objetos descobertos nas escavações ocorridas entre os anos de 1932 e 1939. A exposição foi dividida em quatro grandes temas: “A cidade e as pessoas”; “A vida urbana: banhos e entretenimento”; “Jantando na Antioquia Romana” e “O culto na cidade”. Esta exibição resultou na publicação de dois catálogos de imagens, a saber, Antioch: The Lost Ancient city de Christine Kondoleon publicado em 2000 e um outro intitulado The Arts of Antioch: Art Historical and Scientific Approaches to Roman Mosaics and a Catalogue of the Worcester Art Museum Antioch Collection de autoria conjunta de Christine Kondoleon e Lawrence Becker publicado em 2005. 25 Paul Petit (1955:177-9). 26 Conferir, por exemplo, Paul Petit (1955:177-9).

205 de modo que nos seja possível compreender a linguagem desse autor antigo no que se refere às metáforas militares empregadas em suas homilias. Considerando que a localização geográfica da Síria, em geral, e de Antioquia, em particular, é um dado importante quando falamos em espaço estratégico dentro do Império, seria apropriado iniciarmos com a delimitação das fronteiras e limites geográficos dessa área. Antioquia está localizada na parte oriental do Império Romano e é considerada capital da província da Síria. Durante o governo de Augusto, a Síria se tornou uma província imperial o que significa o controle direto pelo imperador e a administração deixada a cargo de um magistrado imperial escolhido pelo imperador implicando nesta centralização administrativa que se deve pela localização da Síria dentro do Império (Finegan, 1981:65). A região da Síria é estratégica pela sua acessibilidade e possível comunicação entre os dois hemisférios, o oriente e o ocidente (Woolley, 1942;1946). Dentre as cidades da Síria, Antioquia parece receber um tratamento especial pelos antigos não somente, mas também em razão da sua localização geográfica dentro do território da Síria. Como destacou Liebeschuetz (1972:40-1), o território de Antioquia é difícil de definir, em primeiro lugar, por causa da ambigüidade que está vinculada ao seu nome que podia tanto significar a urbs quanto toda a área que compreendia não somente a urbs, mas também uma vasta área rural e, em segundo, pela ausência de evidências que nos informe, por exemplo, seus limites à sudoeste e à noroeste. Logo, o que nos informa a historiografia, no que se refere aos seus limites territoriais, é que Antioquia fazia fronteira, a leste, com as cidades da Beroéia e Chalcis, à oeste, havia o porto de Seleucia e, ao sul, estavam as cidades de Laodicéia e Apaméia (Liebeschuetz, 1972:40-1; Kondoleon, 2000:xiv-xv). Estes limites territoriais já nos fornecem elementos importantes acerca da posição estratégica de Antioquia. Roma esteve em campanha contra outros povos considerados não-romanos por muitas vezes durante o período imperial e, em muitas ocasiões, Antioquia se constituiu num território significativamente importante por meio do qual ocorreram várias investidas contra o Império Romano pelos Partos, pelos Sassânidas e Árabes (Kondoleon, 2000:xii-xiii; Dignas & Winter, 2007:22-23; 39). Antioquia se tornará um quartel-general já no curso dos primeiros séculos da História do Império Romano e, posteriormente, se constituirá num importante centro militar e administrativo, lugar de concentração de tropas, de armazenamento de materiais e ponto de partida de campanhas militares e locus de operações (Paul Petit, 1955:177-9; Kondoleon, 2000: xii-xiii; Isaac, 2000:436-8; Ball, 2000:155). Assim, seja nos primeiros séculos, seja durante o século IV d.C., a defesa da parte oriental do Império passou a ser sediada em Antioquia.

206 Paul Petit (1955:179) argumenta que, na época do governo de Teodósio, Antioquia cessa de ser o centro militar e administrativo. Para esse autor, “Antioquia foi um tipo de Quartel-General intermitente”. Os critérios de Petit, para considerar Antioquia como um centro militar e um quartel-general, se fundamentam na presença efetiva de tropas e contigentes imperiais, magistrados ou até mesmo se o imperador mantivesse residência ou fizesse visitas a cidade. Benjamim Isaac (2000:438) estende a imagem de Antioquia como um centro militar até mais ou menos meados do século VI apesar de destacar que o papel desempenhado pela cidade pode não ter sido como o de épocas anteriores. De qualquer forma, mesmo que Antioquia tenha cessado de ser a base militar, isto não significa pensar que a população não se definia ou não se compreendia mais como pertencente a uma cidade cuja história estava estreitamente ligada à imagem de quartel-general que foi construída desde os primeiros séculos de domínio romano. O fato de João Crisóstomo utilizar uma linguagem militar tão familiar a ele se, por um lado, possa estar relacionada ao seu conhecimento pessoal adquirido mediante seu pai, por outro, nos leva a crer que Antioquia, como um centro militar e administrativo, contribuiu significativamente para a maneira como predicará a sua audiência que certamente também conseguirá compreendê-lo por compartilhar de uma história citadina comum. João Crisóstomo nasceu e viveu por muitos anos em Antioquia, nesta cidade cuja presença militar e imperial era constante e freqüente. A compreensão da linguagem de suas homilias e, em especial, daquelas que foram pronunciadas em Antioquia não poderia, dessa maneira, ser compreendida sem o conhecimento desse contexto militar bem como sem o conhecimento de que João Crisóstomo, ele próprio foi filho de um importante membro da elite que tinha estreitas relações com o oficialato militar do exército da Síria. Dado esses aspectos, passemos aos excertos das obras selecionadas de João Crisóstomo. João Crisóstomo e o Exército de Cristo Uma multiplicidade de termos militares aparece nos discursos cristãos. O repertório de palavras e expressões que constituíram as metáforas que poderíamos classificar como de caráter militar dentro da obra de João Crisóstomo é extenso e recorrente. Dentre as expressões encontramos “exército de Cristo”27 (Contra Judaios, Hom. I, IV, 9; Catechesis ad 27

A expressão Exército de Cristo aparece em dois momentos nas obras que selecionamos de João Crisóstomo. Em Contra os Judeus, na Homilia I, Livro IV, seção 9, João Crisóstomo utiliza a expressão para compor uma analogia entre as atitudes de um membro do exército romano em relação ao outro não romano e as atitudes dos cristãos em relação aos não cristãos: “9. Se qualquer soldado romano que serve no exterior for flagrado

207 Illuminandos, Hom. I, 40), “exército de anjos” (In Epistulam II ad Corinthios, Hom. I, 7 e Hom. XXVI, 5), “soldados” ou “soldados de Cristo” (In Matthaeum, Homilia LXIX, 3; Epistulam I ad Corinthios, Hom. XXI, 4; Catechesis ad Illuminandos, Hom. IV, 6), “linha de combate” (De Sacerdotio, VI, 12-13), “carros de combate” (De Sacerdotio, VI, 12-13). As palavras são inúmeras. Para explicar, descrever e construir a maneira como concebe seu mundo, João Crisóstomo recorre a palavras como “guerra” (De Sacerdotio, VI, 12-13), “batalha” (De Sacerdotio, VI, 12-13; In Epistulam II ad Corinthios, Hom. XXI, 4), “armadura” (De Statui, Hom. III, 6), “generais” (In Epistulam I ad Corinthios, Hom. XXXIV, 5), “tenentes” (In Epistulam I ad Corinthios, Hom. XXXIV, 5), “comandante” (In Epistulam I ad Corinthios, Hom. XXXIV, 5). A imagem de uma grande batalha descrita por João Crisóstomo nos demonstra que, no Exército de Cristo, o comandante chefe é o bispo. João Crisóstomo mediante o Tratado sobre o Sacerdócio fornece vários elementos desse exército. Esse tratado é, grosso modo, um diálogo entre João Crisóstomo e Basílio de Cesarea, no qual o primeiro procura justificar ao segundo, o motivo pelo qual se recusou ser eleito bispo. No Tratado sobre o Sacerdócio, João Crisóstomo (Livro VI, seção 12-13) descreve uma imagem do exército e das batalhas a que enfrentará de forma vívida para justificar sua recusa inicial ao episcopado. Para João Crisóstomo, o bispo precisa de certos atributos e virtudes as quais acreditava não possuir. Vejamos, primeiro, a passagem descrita no Livro VI, seção 12 desse tratado. João Crisóstomo inicia dizendo que quer apresentar a Basílio de Cesárea, seu interlocutor, “uma imagem fantástica”: ... quero apresentar-te uma imagem fantástica. Imagina um exército composto de infantaria, cavalaria e marinha. As naus com os marinheiros ao lado, numa baía do mar; em frente a largos campos, as colinas e as encostas ocupados por infantaria e cavalaria em linhas de combate. O metal das armas reluz ao brilho do sol, cujos raios se refletem nos capacetes e escudos. O quebrar dos dardos, o relinchar dos cavalos se elevam até o céu. De tanto bronze e aço não se consegue enxergar o chão da terra, nem a água do mar.

favorecendo os bárbaros e os persas, não apenas ele estará em perigo, mas também todos aqueles que estavam cientes de como este homem sentiu e falhou em tornar este fato conhecido ao general. Já que você é o exército de Cristo, tenha extremo cuidado em saber se alguém que favorece uma fé estrangeira esteja misturado entre vocês, e torne a presença deste conhecida – não para que possamos condená-lo a morte como aqueles generais o fazem, nem para que possamos puní-lo ou fazer racair sobre ele nossa vingança, mas para que possamos libertá-lo de seu erro e desobediência e torná-lo inteiramente nosso”. Em As Instruções Batismais, João Crisóstomo predica aos candidatos ao batismo acerca da importância e significado desse ritual. Especialmente, na passagem I, 40, desta série de homilias, João Crisóstomo volta a utilizar a expressão “Exército de Cristo”: “Não pense que estas coisas são insignificantes e inúteis. Eles podem fazer sua alma afundar no abismo do mal. Este é o malévolo plano do demônio, fazê-lo fracassar mediante pequenas coisas. Mas, daqui em diante, vocês, os novos soldados de Cristo, tanto homens quanto mulheres – pois o exército de Cristo não faz distinção entre sexos – removerão todo costume deste tipo [juramentos, espetáculos] porque vocês receberão o Rei do universo” (Tradução nossa). (I, 40). Conferir: João Crisóstomo (Harkins, 1963:39).

208 Depois, João Crisóstomo descreve o cenário bélico do campo de batalha, com seus contingentes, toda a frota e os homens que estariam envolvidos na luta: Contra este exército vem marchando os inimigos. Homens rudes e fortes. O momento do combate é iminente. Eis que de repente apoderam-se de um moço de origem campestre que não conhece outros instrumentos senão bastão e flauta de pastor. Põem-lhe uma armadura de aço e, conduzindo-o através de todo o acampamento bélico, mostram-lhe os diversos contingentes junto com seus respectivos chefes: os arqueiros, os atiradores, os capitães, os generais, as falanges, os cavaleiros, os lanceiros. Em seguida, lhe mostram as galeras com seus comandantes, os marinheiros equipados nos próprios navios e o grande número de máquinas bélicas; depois chamam-lhe a atenção para a linha de combate inimiga, e, nela, gigantes de provocar medo, suas armas inusitadas, seu número imenso, as profundas fossas, as encostas íngremes e todo o terreno irregular e difícil; e, por fim, mostram como, do lado inimigo, como que por forças mágicas, vêm voando pelos ares cavalos e cavaleiros fortemente armados.

João Crisóstomo ainda descreve a imagem e as conseqüências da batalha. A descrição é detalhada, por isso, mais uma vez, optamos aqui em inserir a passagem pela riqueza e nuances da linguagem utilizada. Vejamos: Depois de terem mostrado tudo, começam a descrever-lhe o ardor da luta e suas conseqüências: as nuvens de dardos, as massas compactas de flechas, a escuridão que não permite ver mais nada, a noite totalmente escura que segue, provocada pela massa das flechas que são tão densas que os raios do sol não conseguem mais penetrá-la; as nuvens de poeira que aumentam ainda mais a escuridão; depois, os rios de sangue, os gritos dos feridos, o berreiro dos combatentes, os montões dos que tombaram, os carros de combate respingados de sangue, os cavalos e cavaleiros caindo por cima dos cadáveres. E, finalmente, depois da batalha, o próprio campo de batalha: o chão cheio de poças de sangue e, nelas, arcos e flechas, pernas de cavalos, cabeças de homens, umas ao lado das outras, braços de homens ao lado de rodas de carros, pedaços de armaduras, partes de corpos humanos perfuradas, espadas com restos de sangue e massa cerebral e ainda uma ponta de lança quebrada com um olho humano espetado. Descrevem-lhe ainda os horrores da luta marítima: os navios ardendo e soçobrando com toda a tripulação; como bramem as águas, berram os marinheiros, como ondas de espuma e sangue se jogam contra os navios, os montes de cadáveres no convés que em parte afundam junto com o navio e em parte vão boiando até a praia. Depois de ter mostrado tudo isso ao jovem, descrevem ainda a dureza da prisão de guerra e a escravatura, piores do que a própria morte na batalha.

E, por fim, para finalizar essa passagem, João Crisóstomo afirma: Acabada a descrição mandem-no [o jovem] montar e assumir o comando supremo sobre o conjunto do exército. Achas, por acaso, que aquele moço, depois do que foi mostrado em imagens, ainda vai aceitar?

Conforme a metáfora, João Crisóstomo (De Sacerdotio, VI, 13) afirma não estar preparado para o episcopado por pensar-se “inexperiente”, “fraco” e “incapaz” para enfrentar aquele “campo de batalha”. As metáforas militares em As Homilias sobre as Estátuas ao Povo de Antioquia compõe as virtudes e atributos esperados de um bispo. O bispo precisa

209 estar imbuído de uma vestimenta simbólica particular. De acordo com João Crisóstomo (De Statui, Hom. III, 6), o bispo possui também uma “armadura” que se constitui de “cinto”, “sandálias”, “espada”, uma “coroa” que repousa sob sua cabeça num todo que compõe a “panóplia” mais “esplendida”. Na seqüência, vejamos agora a passagem descrita no Livro VI, seção 13 na qual João Crisóstomo finaliza a descrição da imagem destacando metaforicamente a batalha dos cristãos contra seus inimigos: ... Verias luta mais pesada e terrível do que a descrita, se tivesse ocasião de lançar um olhar sobre a terrível linha de combate do demônio e seus ataques furiosos. Ele não tem aço nem ferro, nem cavalos, nem carros de combate, nem fogo, nem flechas, nem dardos nem quaisquer outros instrumentos materiais; as armas desse adversário são outras muito mais perigosas. Eles não necessitam de armadura, nem de escudo, nem de espada, nem de lança. Basta o seu simples aspecto para derrubar a alma, a não ser que esteja preparada exercitada na virtude e, além disso, goze de graça divina mais forte do que a própria virtude. E, se fosse possível desfazer-te deste corpo ou, mesmo com o corpo, mas sem impedimentos e sem medo, e ver com teus olhos abertos essa linha de combate do demônio e sua luta contra nós,perceberias, não rios de sangue, nem cadáveres, mas tantas almas feridas e caídas, que, comparada a isso, acharias a imagem bélica que te pintei uma simples brincadeira. Tamanho é o número dos que diariamente são derrotados (pelo demônio).

Na comparação, João Crisóstomo destaca os perigos e conseqüências das batalhas contra o que é malévolo: As feridas recebidas nessa luta não levam à mesma morte; tanta a diferença entre corpo e alma, quanta a diferença entre as duas mortes. A alma, ao receber o golpe mortal, não se torna insensível como o corpo, mas sentirá a punição. (...) Ainda outras diferenças entre as lutas desta terra e as das almas poderão ser mencionadas: o tempo do combate aqui é breve e, ainda assim, interrompido por armistícios. A noite a fadiga, a fome e muitas outras circunstâncias são motivos para os soldados descansarem. Aí podem depor armaduras, refazer as forças, refrigerar-se com comidas e bebidas e, por estes e outros meios, recuperar as forças perdidas. Na luta com aquele maligno, porém, nunca haverá pausa; nunca poderás despojar-se das armas, nunca poderás entregar-te ao descanso, caso quiseres ficar ileso. Necessariamente acontecerá uma das duas: perecer depois de ter perdido as armas ou continuar firme, armado e vigilante. Aquele adversário infame mantém sempre sua linha de combate perto de nós, pronta para nos perder tão logo note algum relaxamento em nossa vigilância. Podes estar certo: mais zelo emprega ele para a nossa perdição do que nós para a nossa salvação! Finalmente, a circunstância de ele ser invisível para nós é prova de que esta luta é muito mais perigosa do que aquela que descrevi: pois assim pode encontrar-nos despercebidos a não ser que nossa vigilância seja constante.

No conjunto da imagem, podemos compreender que o exército de Cristo compõe-se de vários elementos. Primeiro, podemos destacar que como um exército, há um contingente constituído de membros que ocupam lugares específicos dentro de uma hierarquia. Os chefes

210 desse exército são: Deus, os Apóstolos e os bispos (Christo, 2006:320). Na esfera terrena, considerando a comunidade cristã, o bispo lidera o exército e para isso precisa portar atributos e virtudes específicas bem como ter sido devidamente consagrado. No que se referem aos soldados28 deste exército, estes também precisam ser preparados e consagrados. Neste sentido, para aqueles que se tornarão cristãos, o batismo ritualiza e afirma a inscrição nesse exército. Nas homilias destinadas aos candidatos ao batismo, João Crisóstomo destaca ainda mais a importância deste ritual mediante a descrição dos deveres e das responsabilidades vinculados ao batismo. Se tornar “cristão” significaria, portanto, a aceitação de todo um conjunto de obrigações que estaria compatível com a representação que João Crisóstomo nos apresenta em As Instruções Batismais, Hom. IV, 6: Vocês, que são os novos soldados de Cristo, que foi neste dia inscrito nas listas de cidadãos dos Céus, que foi convidado para este banquete espiritual e está prestes a compartilhar dos benefícios desta mesa real, demonstre o zelo o qual é digno da magnitude da graça Dele a fim de que você possa ganhar para vocês mesmos uma graça ainda maior de cima.

Para Harkins (1963:334, cf. nota 53), o batismo pode ser considerado um “enlistamento” ao Exército de Cristo colocando o candidato ao ritual à serviço de Cristo e o ungindo para o combate. Ainda de acordo com esse autor, o que importa para o desempenho desse serviço é a virtude da alma, ou seja, se por parte do candidato houver disposição para cumprir a parte que lhe cabe, Cristo não fará distinção seja entre livres ou não-livres, mulheres ou homens ou ainda entre fisicamente aptos ou não-aptos. E, de fato, João Crisóstomo (Catechesis ad Illuminandos, Hom. II, 3) deixa claro esse aspecto da não distinção para o enlistamento no Exército de Cristo:

Para o caso dos soldados terrenos, aqueles que os inscrevem no exército procuram por estatura do corpo e condições de saúde, e não é somente necessário que aquele que está prestes a se tornar um soldado preencha esses requisitos, mas ele também precisa ser livre. Pois, se qualquer um for um não-livre, ele será rejeitado. Mas o Rei dos Céus não procura nada disso, mas recebe não-livres em seu exército.

Se, por um lado, toda a comunidade cristã pode ser concebida como um exército, por outro, João Crisóstomo também destaca que a família também é um exército (Epistulam I ad Corinthios, Hom. XXXIV, 5). Nas homilias em que aparece a família como alvo de metáfora militar, os dados são bastante significativos. João Crisóstomo argumenta que: 28

O sentido que fornecemos aqui ao termo soldado é amplo para se referir aos membros pertencentes às posições subordinadas aos chefes e líderes desse exército. Desse modo, se a referência da liderança for Deus, os Apóstolos e os Bispos podem ser chamados e considerados também soldados. Conferir, por exemplo, quando João Crisóstomo (Epistulam I ad Corinthios, Hom. XXI, 4) se refere aos Apóstolos como “soldados” em uma “batalha contra os demônios”.

211

... como em um exército, essa ordem pode ser vista em cada família. Em uma monarquia, por exemplo, há o marido; mas na posição de tenente e general, a esposa; e os filhos estão também posicionados em uma terceira posição de comando. Então, depois desta, uma quarta ordem, aquela dos servos.

Também em As Homilias sobre as Epístolas de Paulo aos Efésios, João Crisóstomo nos oferece uma perspectiva ampla de como a família pode ser concebida como membros de um exército. Esta temática é diretamente desenvolvida nas homilias XX, XXI, XXII, XXIII e XXIV dessa série de homilias.29 Na Homilia XX, versos 22-24, João Crisóstomo discorre, em particular, sobre a autoridade e o lugar da mulher dentro do núcleo familiar. Para João Crisóstomo (In Epistulam Ad Ephesios, XX), “a esposa é a segunda autoridade” que possui, de fato, “uma autoridade e uma igualmente considerável de dignidade” em relação ao marido, mas de alguma maneira, o marido ainda é superior. Como podemos observar, as metáforas militares e as comparações empregadas por João Crisóstomo designam a cada um dos membros da família seu lugar e papel sociais.

Considerações finais

A comunidade cristã, no geral, e a família, no particular, concebidas como um exército mediante as métáforas e linguagem empregada por João Crisóstomo propõe um sistema de valores no qual cada um dos seus membros desempenha um papel e constrói relações de poder específicas. Para João Crisóstomo (In Epistulam Ad Ephesios Hom. XX, Ver. 33) a hierarquia é necessária, pois “onde há autoridade equivalente não há paz”. A metáfora militar está estreitamente relacionada com as questões de ordem política e administrativa imperial. Logo, a linguagem militar empregada nos discursos cristãos do século IV d.C. se, por um lado, significou a identidade entre o predicador e sua audiência por compartilharem de uma mesma história e contexto cultural no qual o universo militar parece exercer um papel preponderante em Antioquia, por outro, significou o estabelecimento de

29

Embora João Crisóstomo concentre nestas homilias a sua reflexão acerca da família, todo o conjunto de homilias pertencentes à série intulada de As Homilias sobre as Epístolas de Paulo aos Efésios (In Epistulam Ad Ephesios) contribuem para a compreensão que será desenvolvida sobre a família nas últimas cinco homilias da série.

212 limites e parâmetros de atuação social e político-religioso. Em outras palavras, da imagem para seu significado político-religioso, as metáforas podem implicar em construção de lugares sociais e político-religiosos que hirarquiza cada um dos membros da comunidade cristã bem como da sociedade romana, classificando-os. O Exército de Cristo constitui-se de líderes específicos, de um contigente particular cada qual com suas funções e atributos para contribuir para a harmonia da ordem. A família, como um pequeno exército também é representada como uma pequena Igreja (In Epistulam Ad Ephesios Hom. XX, Ver. 33). Nestes termos, a família aparece como a célula no qual tornará possível o um governo fácil, ordenado.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao Prof. Pedro Paulo Abreu Funari, à Prof. Margarida Maria de Carvalho e ao Prof. Cláudio Umpierre Carlan pelo convite, sobretudo, por esta rica e única oportunidade no qual me permitiu refletir sobre esta temática, simultaneamente, agradável e desafiante. À Prof. Margarida Maria de Carvalho agradeço também pela orientação e pelo tempo dispensados a mim. Agradeço ainda a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.

Bibliografia: Documentação Primária Impressa

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213 JOANNIS CHRYSOSTOMI. Homiliae XXI de statuis. In: MIGNE, J-P. Patrologia Graecae. Vol. 49. Paris: Jacques-Paul Migne, 1862. JOÃO CRISÓSTOMO. O sacerdócio. In: Coleção os Padres da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1979. JOHN CHRYSOSTOM. Baptismal Instruction. In: HARKINS, Paul W. St. John Chrysostom: Baptismal Instruction. New York/Mahwah: The Newman Press, 1963. LIBANII.

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