História Oral do exército: relatos sobre o bom soldado brasileiro

July 4, 2017 | Autor: Rogério Fernandes | Categoria: Identity (Culture), Orality, Identidades, Oralidade
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História Oral do exército: relatos sobre o bom soldado brasileiro Rogério Fernandes da Silva1

Resumo: O presente artigo é um estudo sobre uma obra digital com relatos orais dos excombatentes. Visa a possibilidade de maiores estudos sobre o grupo e suas relações institucionais. Uma das questões levantadas é a da concepção de memória social e identidade, como elas são usadas dentro de um grupo, quais lembranças são preservadas ou esquecidas, e como elas se transformam. As técnicas de História Oral foram utilizadas para a confecção de tal obra. Palavras-chave: exército, memória, monumento, território, oralidade.

Army’s Oral History: stories about the good brazilian soldier

Abstract: This article is a study of a digital work on oral histories of ex-combatants. This work aims the possibilities of wider studies on the group and its institutional relations. One of the raised questions is the conception of social memory and identity, how are they used within a group, which Memories are preserved or forgotten and how they change. The techniques of Oral History were used for the confection of such workmanship. Key-words: army, memory, monument, territory, orality.

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Pós-graduado em História do Brasil – UERJ, professor da rede estadual do Rio de Janeiro e da rede municipal de Marica. Contato: [email protected].

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Você sabe de onde eu venho? Venho do morro, do Engenho, Das selvas, dos cafezais, Da boa terra do coco, Da choupana onde um é pouco, Dois é bom, três é demais, Venho das praias sedosas, Das montanhas alterosas, Dos pampas, do seringal, Das margens crespas dos rios, Dos verdes mares bravios Da minha terra natal. Canção do Expedicionário2

A obra em CD-ROM História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial é uma coletânea de relatos de pracinhas que lutaram nos campos de batalha da Itália na Segunda Guerra Mundial. Tal obra é organizada pelo Clube Militar, cuja finalidade é preservar os discursos memorialísticos dos ex-combatentes. Foram feitas entrevistas com os combatentes e também foram aproveitadas matérias da Revista do Exército Brasileiro para compor a obra. Os organizadores pretenderam usar as técnicas de História Oral para fazer as perguntas e administrar o processo de entrevistas. Na maioria dos relatos apresentados, os pracinhas acabaram criando uma visão muito positiva da participação como ex-combatentes. FIGURA I CD-ROM: História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial

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Disponível: . Acesso dia 10/02/2010.

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O CD foi lançado no ano 2000 e contém a uma coleção em PDF de oito livros com entrevistas de soldados e civis que participaram da Segunda Guerra junto com a FEB. Os livros, na obra, são divididos em Tomos, uma simples forma de dividir a obra biográfica, mas não ficam muito claros os motivos dessa divisão.

A coleção também foi impressa (História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial, Tomos 1 até 8. - Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001). Em ambas estão as 158 entrevistas concedidas por ex-integrantes da Força Expedicionária Brasileira, civis e militares estrangeiros.

O Major Wellington Corlet dos Santos elaborou um quadro resumo sobre os relatos contidos na coleção. Segundo a periodização do Major, os assuntos abordados nos relatos poderiam ser classificados da seguinte maneira:

A - Desmobilização às pressas, sem organização ou mal feita, receios de Getúlio com o regresso da FEB, recepção ruim na chegada ao Brasil, dispersão da FEB pelo território nacional. B - No Exército: esquecimento deliberado da FEB, recepção fria, desenvolvimento

de

mentalidade

anti-febiana,

proibição

das

comemorações alusivas à FEB, injustiças, divergências, discriminações e ciúmes dentro dos quartéis. C - No meio civil ou nos poderes públicos: esquecimento dos veteranos, desemprego, miséria após a desmobilização, falta de readaptação, desrespeito às leis de amparo aos veteranos, descaso. D - Neuróticos de Guerra e outras doenças mentais. E - As Associações de ex-combatentes ou de veteranos: a participação política, a assistência social e os ideais democráticos. 3

Dessa forma, as entrevistas do projeto História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial estão ordenadas no quadro sinótico feito pelo Major da seguinte maneira: 3

Disponível: . Acesso: 09/07/2010.

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FIGURA II Quadro sinótico sobre as entrevistas

Este artigo está relacionado a outro aspecto da pesquisa que é perceber dentro dos relatos como os pracinhas construíram a memória de sua participação muito pautada na relação entre o sacrifício e a bondade “inerente” do brasileiro. Ao nos depararmos em pesquisas feitas com pracinhas das cidades de são Gonçalo e Petrópolis, percebemos que era recorrente a visão positiva da participação na guerra. Apesar do terror com que os combatentes se deparavam, eles declararam nas entrevistas que a participação dos soldados brasileiros foi muito nobre.

Sobre a noção de sacrifício durante a guerra, Marcel Mauss descreve a natureza do sacrifício como um oferecimento ao sagrado, uma oferta com um sentido religioso. As construções simbólicas feitas pelos ex-combatentes, ou para eles, também demonstram a realização de um culto patriótico aos heróis que se imolaram pela Nação brasileira defendendo o modo de vida brasileiro. O seu sacrifício e o abandono heróico no campo de batalha tiveram um caráter redentor que é símbolo do homem brasileiro pacífico mais corajoso, guerreiro e justo (MAUSS, 2001, p. 221). Porém, é um sacrifício secularizado, não é formalmente religioso, mas possui características próprias tiradas da ritualização religiosa, só que transformadas em culto cívico secularizado.

Nos panteões construídos para os heróis vários símbolos servem como lembranças da presença dos homens que morreram pela nação. O altar da Pátria foi às terras da Itália, onde muitos ficaram sepultados. Porém, além dos restos mortais que ficaram, era preciso que fossem construídos memoriais para os pracinhas dentro do seu próprio país. Por isso, houve necessidade de construir tantos monumentos onde poderia ser cultuada

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sua memória. Uma das características do sacrifício religioso era o de criar divindades protetoras, nos ritos antigos, as vítimas oferecidas tinham esse poder. No sacrifício cívico interpretado por aqueles que construíram a memória dos ex-combatentes, eles são vítimas-soldado sacrificadas pela Pátria.

Os nacionalismos dos pracinhas e as criações e recriações de suas respectivas histórias de vida legitimam as nações glorificadas. Estas idealizações são feitas por grupos interessados em formar laços de companheirismos que os identificam com os demais (ANDERSON, 1989, p 16). Benedict Anderson diz, em suas reflexões, que os túmulos dos soldados desconhecidos são reverências públicas de uma ritualização de heróis nacionais que embora desconhecidos (soldados não identificados são colocados nos túmulos), podem criar uma identificação com a massa dos cidadãos de uma pátria. Todos os cidadãos são chamados ao mesmo amor abnegado (Ibidem. p 17). Esse discurso diz que é preciso aderir ao espírito de sacrifício, generalizando para o coletivo social, a história de um grupo específico que, então, passa a ser de todos.

Parafraseando Le Goff, o culto funerário para com esses soldados desconhecidos está baseado em uma criação estatuária dos monumentos que servem para criar a impressão de união nacional. O ritual funerário que envolve o sacrifício dos ex-combatentes está relacionado a um tipo de religião cívica (LE GOFF, 1990. p. 465-466).

Os relatos de ex-pracinhas estão impregnados de um amor patriótico que seria um vínculo social de sua identidade. Como exemplo de discurso memorialista dos pracinhas, citaremos algumas entrevistas recolhidas para a coleção sobre História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial. 4

Os relatos orais

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História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro. Copyright by Biblioteca do Exército Editora, 2001. TOMO 1. CD- ROM.

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No relato do Major-Brigadeiro-do-ar Rui Barbosa Moreira Lima há uma descrição das dificuldades enfrentadas pelos brasileiros que tinham problemas com os oficiais americanos: No final do curso, tornei a me indispor com o mesmo instrutor. Em várias ocasiões nós nos desentendemos durante as instruções. Eu dizia abertamente para que ele soubesse que eu não estava interessado em aprender inglês, meu objetivo era aprender a guerrear contra o alemão. [...]. A culpa da minha resistência em aprender a língua eu credito a esse instrutor.(TOMO 1, p.102)

O treinamento com os americanos, como demonstram os relatos, não foram pacíficos. Culturalmente diversos destes, os brasileiros esforçaram-se para derrubar as resistências. Rui Barbosa Moreira Lima, que era piloto da Força Aérea Brasileira (FAB), relata também que apesar dos preconceitos enfrentados os brasileiros, durante o treinamento, conseguiam superá-los tornando-se dignos da admiração de vários oficiais aliados. O relato declara: Certa vez, o Cel Logan, Comandante da Base, reclamou de Disosway pelo tipo de vôo que praticávamos. Ele achava que deveríamos seguir as normas de vôo de sua base. Disosway respondeu: “Logan, quem ensinou os brasileiros a voar assim fui eu e é assim que eles continuarão a voar”. O atrito perdurou até o fim do nosso treinamento, mas o velho Disosway não recuou. Hoje nós sabemos que o Pentágono e a USAF, quando o nomeou Instrutor do 1o Grupo de Caça, lhe fizeram a seguinte recomendação: “Esse Grupo tem que dar certo”. (TOMO 1, p.103)

Apesar das dificuldades de treinamento, as ações dos combatentes foram eficazes, e o espírito de sacrifício já começava a se formar nos combatentes brasileiros:

[...] Teatro de Operações do Mediterrâneo, onde cumprimos a missão, com o sacrifício de vidas, cooperando, com a nossa parcela, para derrotar os nazi-fascistas, terrível ameaça com que o mundo se defrontávamos prestar uma homenagem a nossa gente, citando os pilotos que morreram, tanto em combate na Itália, [...]. (TOMO 1, p. 123)

Os conflitos iniciais, apesar de existirem nos relatos de memória foram amenizados, porém, não deixavam de ser citados com certo orgulho, um troféu da perseverança brasileira diante das adversidades.

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Os brasileiros ficaram impressionados com o ritmo da guerra. As tropas entraram na era do Massacre, ou seja, onde as mortes eram elevadas, numa cadência industrial. A perda de companheiros na batalha marcou muito, e ainda são lembradas com muita tristeza.

O General-de-Brigada Plínio Pitaluga também possui memórias importantes retratadas na publicação do Exército, uma vez que foi reeleito várias vezes, para Presidente do Conselho Nacional das Associações dos Ex-Combatentes.5 Na guerra, exerceu as funções de Subcomandante e Comandante do 1º Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado (Esquadrão Tenente Amaro). Foi promovido a Capitão em dezembro de 1944, na Itália.

Ao começar seu relato, o General lembra que o Brasil passava por perigos totalitários, vindos dos comunistas e integralistas, que ameaçavam a ordem.6 Plínio Pitaluga foi um dos mais ativos ex-combatentes. No dia de seu enterro, muitos dos seus companheiros estavam lá para homenageá-lo. Plínio Pitaluga foi Comandante de esquadrão da Força Expedicionária Brasileira, entrevistado em 16 de fevereiro de 2000. As entrevistas feitas no meu trabalho monográfico de graduação, em 2002, foram gravadas exatamente no dia do funeral desse combatente. Os pracinhas que concederam as entrevistas estavam emocionados, pois para eles um grande herói de guerra havia morrido, e não havia sido homenageado como deveria.

Segundo o general Plínio Pitaluga, na época em que foi para Recife, havia certa apreensão com a construção das bases americanas. Comentava-se que, após a guerra, permaneceriam com os americanos. Segundo o que se dizia, tais americanos estavam intencionados em ocupar parte de nosso território. Evidentemente as diferenças culturais prejudicavam a colaboração.

A visão de uma cooperação futura com os americanos já era uma ideia presente, era a inserção da nação dentro do combate ao comunismo, promovido pelos Estados Unidos. 5 6

Falecido em dezembro de 2002. O ex-combatente não menciona que no Brasil não vivia um regime democrático. TOMO 1. p 142.

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Segundo Plínio Pitaluga: “Essas bases constituir-se-iam, para o Brasil, Estados Unidos e demais países democratas, no „trampolim para a libertação do mundo e a vitória da democracia‟[...]”.(TOMO 1, p. 144) O governo brasileiro lutou para que nosso país fosse reconhecido como um aliado natural dos americanos na América do Sul, tentou várias vezes um assento permanente no Conselho de Segurança na ONU, após a Segunda Guerra, no entanto, até o presente momento não conseguiu.

O esforço para preparar a FEB foi tremendo, e analisando os problemas ocorridos para a formação de uma unidade de 25 mil homens, ele notou que a nação brasileira em relação a transporte e comunicações era deficiente, criando, como ele diz, ilhas que viviam isoladas umas das outras: ilha do Norte, ilha do Nordeste, ilha do Centro e ilha do Sul. Nessa questão, não poderíamos deixar de notar que o referido militar tinha uma formação diferenciada da grande maioria da população, que era analfabeta, inclusive muitos dos soldados rasos também eram. O General Plínio Pitaluga, que era natural de Cuiabá, no Mato Grosso, se formou nos quadros da Academia do Realengo.

O próprio General reconhecia a pouca experiência das tropas brasileiras, que não haviam entrado em uma luta contra exércitos estrangeiros desde 1870, na Guerra da Tríplice Aliança. Os contingentes não estavam acostumados com as táticas e equipamentos modernos, apesar (no início do século XX) das Forças Armadas do Brasil terem sido das mais bem equipadas do mundo. Porém, as máquinas tornaram-se obsoletas por falta de investimento no setor. Quando estavam em batalha em terras italianas, além de sofrerem com o descrédito dos aliados, os brasileiros também tiveram que enfrentar a propaganda alemã que tentou desmoralizar a ação dos pracinhas. Nesta entrevista podemos destacar: “dizia que éramos uma tropa de negros, sifilíticos, analfabetos e antropófagos e conclamava as famílias italianas a defenderem as suas filhas”.(TOMO 1, p. 144) É particularmente interessante que os europeus tinham ainda uma visão negativa, tanto do lado “amigo” quanto “inimigo”.

Quando encerra a entrevista, Pitaluga fala de sua preocupação com o estado atual do mundo. Neste momento percebe-se o discurso do sacrifício cívico, preocupado com a degeneração da vida política e social. Ele argumenta que seria necessário o

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fortalecimento de instituições que salvaguardassem os valores primordiais da sociedade para que essa não caísse na barbárie. Seu ponto de vista fica bem claro quando menciona que o Exército tem uma estrutura forte o bastante para conservá-los: [...] que recebe os homens originários do povo, eu afirmo que temos condições de influir na evolução do País, [...]. É importante que o Exército receba os recursos para fazer o soldado-cidadã (TOMO 1, p.154). Pode-se perceber, no seu discurso, que o caráter intervencionista das Forças Armadas ainda está preservado, talvez porque este entrevistado tivesse uma formação ligada à linhagem antiga dos militares da Escola Militar do Realengo, ou talvez, porque aprimoramento militar posterior tivesse acontecido nos Estados Unidos da América após a Segunda Guerra Mundial, quando os laços entre os militares das duas nações se estreitaram. O sacrifício dos soldados brasileiros é lembrado, e reconhecido como modesto, mas não desnecessário: “Foi um sacrifício modesto em relação a outros povos, mas de heróis que souberam cumprir a sua missão” (TOMO 7. p. 155)

O relato do pracinha César Serau, que serviu como soldado na guerra. Era paulista da Capital, nascido em 8 de junho de 1922, tendo sido condecorado com a Medalha Sangue do Brasil por ter sido ferido em ação, é mais uma experiência das recordações de guerra. Falando sobre sua pensão de ex-combatente, introduz no discurso a questão do amor abnegado pela Pátria que os leva a doar a vida em prol de um valor maior, que certamente merece ser recompensado. Em seu argumento, na mesma página, ele fala que: “Considerando tudo isso, eu acho que a Pátria foi reconhecida pelo nosso sacrifício [...]”. ·

Apesar de reconhecer que houve muitas dificuldades para conseguir do Estado um

padrão de proteção digno, os pracinhas foram um grupo ativo que batalhou para a criação de leis que os protegessem. Um dos aspectos de sua entrevista foi o de que ele não falava muito sobre a experiência na guerra, mas sim sobre a sua vida depois dela. Podemos concluir que nesse relato a questão do medo do desamparo influiu para que houvesse esse tipo de narrativa. Seu sentimento patriótico reconhece que no fim o Estado é magnânimo e se confunde com a Pátria como algo que os protege e os ampara.

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Seu relato nos fala: “Mas no fim o governo é uma coisa e a Pátria é outra e eu achei que fui recompensado, por ter cumprido com a minha obrigação”. (TOMO 7, p. 248)

Os soldados de bom caráter

Os soldados que serviram na Guerra também tinham uma visão de si como brasileiros especiais, que emanavam bondade, homens cordiais que no campo de batalha não eram capazes das atrocidades feitas pelos demais, e que os inimigos, quando feitos prisioneiros preferiam estar em mãos dos pracinhas, por reconhecerem o inato bom caráter de nossos soldados. E como diz o ex-pracinha César Serau: ”O brasileiro era assim, eu tenho livros [...] e que falam bem dos brasileiros. Nosso combatente era um inimigo leal, [...], o verdadeiro militar mantém o sentido de honra, [...]”. E continua sua entrevista relacionando os acontecimentos da guerra com a maneira dos soldados combaterem, que para ele era extremamente leal: “[...] o brasileiro não, o brasileiro é magnânimo para com os mais fracos. Quando a gente fazia um prisioneiro alemão, ele dava graças a Deus por ter caído prisioneiro de brasileiro”.

Sua condução no relato leva-o a lembrar de um companheiro que foi o primeiro prisioneiro de guerra brasileiro capturado pelas tropas alemãs. Introduz novamente a questão do sentimento de amor abnegado que leva ao sacrifício por uma causa maior, o dever cívico para com a nação. Ao finalizar, sua mensagem foi a de que os jovens militares devem ser sempre bons soldados, patriotas e zelosos nos seus deveres, e que se a Pátria precisar, que eles sejam os primeiros a se apresentar para a defesa de sua soberania.

Um relato importante que pode dizer mais sobre os pracinhas é de Moacyr Machado Barbosa, Sargento-Orientador do 3° Pelotão de Fuzileiros da 7ª Companhia do III Batalhão do 1º Regimento de Infantaria, nascido em Paracambi, no Estado do Rio de Janeiro. Este foi entrevistado pelo clube Militar, em 31 de agosto de 2000. Sobre sua participação na Segunda Guerra Mundial pode-se destacar o recebimento da Medalha Cruz de Combate de 1ª Classe, por bravura individual em combate, Medalha de

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Campanha, Medalha de Guerra, e Medalha de Ouro do Departamento de Correios e Telégrafos para ex-combatentes. Deixou o serviço ativo em 1945, após seu retorno à Pátria (TOMO 5, p. 332). Em sua fala fica evidenciado que o soldado brasileiro por sua índole era bem aceito pelos moradores italianos, e as pessoas seriam hospitaleiras com os pracinhas: “[...] Com os italianos também nos relacionamos muito bem”. Em qualquer lugar que chegávamos, depois dos alemães se retirarem, éramos recebidos com festa, eles diziam brasiliani liberatori‟. (TOMO 5, p. 333)

Sobre a atuação do soldado brasileiro, o entrevistado demonstra que tem uma visão do campo de batalha como um local sem muitos conflitos. Entre os nossos soldados e hierarquia militar, havia uma espécie de democracia militar que só na realidade da guerra poderia existir.

Sua idéia de soldado está relacionada a uma construção

ideológica positiva que os brasileiros tinham de si e de sua cultura. Em sua entrevista, ele acrescenta: “O soldado brasileiro encara, de modo alegre, todas as situações, até as aparentemente sem solução.” ou “Eu fiquei com a impressão de que o soldado brasileiro aceita bem a morte quando no cumprimento da missão. Não havia brigas entre nós, éramos todos amigos.” E quanto ao relacionamento com os oficiais, conseguia recordar que o relacionamento entre oficiais, sargentos e soldados era fraterno.

É uma visão particular sobre as lembranças da participação dos ex-combatentes na Segunda Guerra Mundial, recordações que foram transformadas, modificadas com o passar do tempo, pelas quais esses veteranos construíram uma representação dos acontecimentos, que os identificam, uma criação que os une num projeto social memorialista. Unidos, suas concepções tornam-se oficiais para o grupo.7

Finalizando o trabalho

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São oficiais no sentido que o grupo dos veteranos tinha um projeto de cuidar de suas lembrança para que fossem reverenciados como heróis, mantedores da ordem e protetores da Pátria.

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Para terminar a análise das entrevistas catalogadas no CD-ROM podemos utilizar o depoimento do Dr. Sebastião Cammarosano, Sargento Enfermeiro da 3ª Companhia de Evacuação do I Batalhão de Saúde. Em 1944, foi convocado para integrar a FEB, juntamente com outros colegas de Faculdade. Apresentado ao Exército, foi incorporado, inicialmente, no setor de saúde da 1ª Companhia de Intendência Regional. Com a criação do I Batalhão de Saúde, em Valença, no Rio de janeiro, foi transferido para aquela Unidade que iria compor a Divisão brasileira destinada a combater em solo europeu. Quartanista de Medicina foi comissionado na graduação de 2º sargento, para exercer a função de enfermeiro. Nessas condições, participou de toda a campanha da Itália. Em 1946, formou-se na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Faleceu em 19 de maio de 2000.

Segundo ele, os pracinhas precisavam se unir em torno de órgãos representativos porque tinham temor de ficarem desprotegidos. O temor não era infundado, e o peso dessa preocupação norteou muito as reivindicações dos ex-combatentes, junto às exigências de um culto cívico em memória de sua participação na guerra. Seu comentário está relacionando a questão do amparo governamental, e o medo dos ex-combatentes de ficarem abandonados tornou-se uma neurose, por isso o grande empenho em conseguir leis que protegessem os veteranos e suas famílias.

O Dr. Sebastião Cammarosano conclui que era preciso ampliar a proteção aos excombatentes que eram abnegados, já que estes homens abandonaram suas famílias pelo amor à Pátria e para combaterem no além mar, no Teatro de Operações da Itália, em defesa da honra nacional ultrajada pelo nazi-fascismo. Os representantes dos poderes públicos deveriam defendê-los contra a indigência. Em relação a isso, nos diz Cammarosano: [...] naquelas circunstâncias, por ser capaz de prover o seu meio de subsistência, na idade em que se encontra hoje, na faixa etária de 55 a 60 anos de idade, já não possui mais condições de empregar-se e, diante dos seus companheiros, reformados e com acumulação junto ao INPS, fica em situação de inferioridade. Aí sim, há muitos anos, em decorrência do

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problema socioeconômico provocado, criou-se uma verdadeira neurose, neurose do amparo estatal. (TOMO 8, p. 130)

Outro comentário de um ex-combatente, que não faz parte da coleção, mas que revela a noção de sacrifício compartilhado pelos pracinhas é o seguinte: “sabe o quanto o Brasil lhe deve, mas, declara que a Pátria não lhe exigiu nem mais nem menos do que o cumprimento do seu dever de cidadão” (LACET, 2000, p 95). Enquanto lutavam em terras estrangeiras desviava-se sua atenção do regime. O sentimento de culpa coletivo foi ocultado por instantes, por causa da luta benéfica contra os fascistas, enquanto no Brasil vivia-se um regime não-democrático. No mesmo artigo supracitudo lê-se: “eram apenas homens conscientes do dever a cumprir para a defesa das liberdades essenciais e democráticas, ameaçadas pelo totalitarismo nazi-fascista” (Ibidem, p 94).

Todos esses relatos estão impregnados do discurso patriótico e militar de sacrifício. Os testemunhos revelam que os ex-soldados possuem uma representação de si muito positiva, apesar dos diversos conflitos, mas essa imagem identitária é uma construção feita ao longo dos anos. Essas concepções serviram como modelos para uma visão singular de cidadão-soldado que surgiu após a Segunda Guerra Mundial. As entrevistas revelam o cotidiano de campo dos pracinhas e sobre quais eram os conflitos, as dificuldades, a engenhosidade empregada, a criatividade, para eles, típica do brasileiro. Elas também nos falam das aspirações e preocupações dos febianos, que com o término das lutas nos campos de batalhas estrangeiros, ao retornarem a Pátria, tiveram outras reivindicações a decidir, seja em busca do amparo estatal, ou influenciar ideologicamente os cidadãos.

Não poderíamos deixar de perceber que o impacto do envio dos soldados sobre nossa sociedade foi muito menor, comparado com o esforço de guerra do Paraguai, quando a sociedade perdeu muito de sua mão de obra produtiva, e as relações do escravismo foram sensivelmente abaladas acelerando a crise do Império. Nos anos 40, do século XX, inicialmente os planos do Estado brasileiro para com os expedicionários, era enviar um número estimado em cerca de 100 mil homens, mas somente 25 mil foram enviados.

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Se levarmos em conta o total relativo da população do Brasil da época, em torno de 46 milhões de pessoas, os efetivos em comparação à população brasileira eram 0,05 % (SANTOS, Op. cit). Os recursos empregados e as consequências foram bem menores do que aqueles da participação da guerra da Tríplice Aliança.

Os soldados brasileiros entraram na Segunda Guerra Mundial após anos sem ter participação em embates internacionais. Os contatos com os meios modernos tecnológicos de destruição deixaram sequelas psicológicas devastadoras sobre os veteranos. Muitos voltaram com neuroses de guerra.

Para terminar, este trabalho não trata das origens dos diversos modelos ideológicos que serviram ao Exército brasileiro durante anos. O artigo se preocupou com a noção de sacrifício e a possibilidade de uma leitura sobre concepção patriótica que era norteadora dos eventos. Além disso, é possível perceber que os entrevistados construíram uma memória relativamente positiva sobre a atuação dos soldados brasileiros. Estes vistos com certo ar de desprezo pelos militares aliados, mas também valorizados pelo inimigo como seres nobres. Há muito a ser pesquisado, novos livros memorialísticos e sites na Internet demonstram que a criação, recriação e preservação da memória são contínuas. Outros aspectos não foram explorados, como a construção de monumentos, apesar de constar na dissertação de mestrado de Patrícia da Silva Ribeiro que, para os febianos sobreviventes, não é o tipo de homenagem desejada (RIBEIRO, 1999, p 104).

Analisando a dissertação de Luís Felipe da Silva Neves, este pesquisou a produção de obras sobre a FEB e como estas se desenvolveram. É também um estudo sobre a instituição, e sua importância dentro da nossa sociedade. Na introdução de sua obra, ele começa com o relato do Pracinha Felício Nagib Salomão que era um sapador. 8 Este febiano sofreu um acidente de combate e ficou com um olho vazado e o outro comprometido. Quando volta para o país, passa por privações, e fica decepcionado com o tratamento do estado para com ele. Diante do descaso com os ex-pracinhas, Luís 8

Responsável por colocar a minas terrestre ou limpar o terreno das colocadas pelo inimigo.

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Felipe fica surpreso que nenhum levantamento tenha sido feito sobre o número de excombatentes que se suicidaram diante da falta de amparo. Esses homens “desprivilegiados” lutaram por seus direitos e conseguiram algumas vantagens sem alcançarem o reconhecimento que tanto reivindicaram. Agora com as mortes dos membros das diversas associações, o receio é que o material produzido por eles seja perdido. O presente trabalho procurou novas possibilidades de compreensão do fenômeno febiano para demonstrar que o tema tem diversas perspectivas a serem exploradas.

Fontes primárias utilizadas 

A coleção: História oral do Exercito na Segunda Guerra Mundial, é uma obra de oito volumes com entrevistas de Ex-combatentes.

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O Arquivo Conselho Nacional da Associação dos Ex-combatentes do Brasil, este arquivo possui documentação, atas de reuniões, convenções regionais e nacionais. A sede nacional fica na cidade do Rio de Janeiro, endereço na Praça Duque de Caxias 25, Centro.



História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro. Copyright by Biblioteca do Exército Editora 2001. 1 CD- ROM.

Referências bibliográficas

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LACET, Osmáro Alifait. A FEB ajudou a construir a vitória. Revista do Exercito brasileiro. Rio de Janeiro, 137. Jun/ab 2000. LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória. Tradução Bernardo Leitão... et al. Campinas: UNICAMP, 1990. pp. 465-466. MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre a Natureza e a Função do Sacrifício. In: Ensaios de sociologia. 2ªed. São Paulo: Perspectiva, 2001. pp 141-227. NEVES, Luís Felipe da Silva. A Força Expedicionária Brasileira: uma perspectiva histórica. 1991. 234 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro. 1992 RIBEIRO, Patrícia da Silva. As batalhas de Memória: uma História da memória dos Ex-combatentes brasileiros. 1998. 217 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Niterói.1999. SANTOS, Wellington Corlet dos. A desmobilização da Força Expedicionária Brasileira

e as suas conseqüências político-sociais no Brasil entre 1945 e 1965 Disponível: . Acesso: 09/07/2010. SILVA, R. F. A Praça dos Ex-Combatentes: Memória e Esquecimento. 2002. 60 f. Monografia (graduação de Licenciatura em História) – Faculdade de Formação de Professores, UERJ, São Gonçalo, 2002. ___. Historiografia sobre os Ex-combatentes. 2004. 57 f. Monografia (Especialização em História do Brasil) – Faculdade de Formação de Professores, UERJ, São Gonçalo, 2004.

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