HISTÓRIA PARA QUÊ?

July 19, 2017 | Autor: Alexander Vianna | Categoria: Critical Theory, Theory of History, Teaching & Learning of History
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HISTÓRIA PARA QUÊ? – ALEXANDER MARTINS VIANNA Ensaio crítico exclusivamente para Academia.edu

HISTÓRIA PARA QUÊ? por Alexander Martins Vianna 17 de maio de 2015 * digerir a pedra de cada dia feito a ostra: parir a pérola (Carlos Moreira) *

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Quando fazemos a pergunta “para quê?” sobre qualquer assunto, isso nos remete imediatamente às noções de função, papel, finalidade, etc. Logo, a pergunta parece nos colocar diante de uma questão pragmática: Isso serve para quê? No entanto, “para quê?” tem um lastro pronominal comum com “por quê?”, embora isso fique menos aparente em nossa língua do que em outras neolatinas. “Por quê?” muda o foco da função, papel ou finalidade de algo para suas supostas “causas”. Em todo caso, há algo em comum em “Para quê?” e “Por quê?”: Uma demanda tácita de sentido ou orientação sobre a vida. O pensamento histórico é uma dessas formas culturais de construção de sentido sobre a vida. O pensamento histórico está implicado com a forma como cada sociedade, agrupamento humano ou época concebe sentido para a relação entre presente, passado e futuro. Especificamente nas sociedades modernas ocidentais, a partir do século XVIII, tal relação foi concebida em termos processuais, sistêmicos, evolutivos e eminentemente humanos, ou seja, como o antítipo de uma narrativa teológica criacionista, embora conservando, em chave secularizada, alguns de seus elementos escatológicos salvíticos. Geralmente, é essa forma de pensamento histórico, em versão escolarizada, que os alunos de História trazem consigo quando entram no Curso de História.

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Um outro traço característico dessa bagagem escolarizada de pensamento histórico é a tendência da indistinção entre a “coisa histórica” (res gestae) e a “narrativa sobre a coisa histórica” (historia rerum gestarum). Um dos primeiros aprendizados importantes que introduz os nossos alunos da graduação no universo intelectual do pensamento historiográfico acadêmico atual é aprender a distinguir, metodologicamente, a “experiência vivida no passado”(res gestae) do “conhecimento mais ou menos distante produzido sobre uma experiência vivida no passado” (historia rerum gestarum). Trata-se, portanto, de um exercício de abstração própria do método científico, pois, na prática, sabemos que a “experiência vivida no passado” já é sentida e significada por meio de estruturas narrativas que configuram orientação ou sentido sobre os eventos observados – e na forma como são observados. E observar já é recortar por meio de categorias de percepção e avaliação próprias de uma época, lugar e cultura. Por isso, a pergunta “História para quê?” nos coloca o desafio de enfrentar dois dilemas centrais: (1) a dúvida cética sobre a possibilidade de haver um conhecimento efetivo sobre passado, no sentido rankeano de possibilitar fazê-lo falar tal como aconteceu por meio das convenções narrativas do historiador; (2) o desafio ético-político de responder a demandas de sentido ou de orientação cultural sobre o presente, sem as quais não se cumpriria a própria finalidade de uma formação ético-cidadã laica, prevista nos parâmetros curriculares nacionais. Em que medida a dúvida cético-historiográfica poderia ser uma aliada do desafio ético-político do pensamento histórico curriculado nos PCNs? É sobre este ponto que eu gostaria de desenvolver o meu argumento principal. Para tanto, é importante para nós o conceito de “contingência”. Por quê? Porque diferentemente do conceito filosófico (e teológico) de “necessidade”, a “contingência” evidencia o limite dos padrões culturais de sentido, significado ou continuidade. A dúvida cética na historiografia enfatiza justamente a “contingência” para demonstrar os diferentes padrões presentes (em disputa) de construção narrativa de sentido sobre passado. Ao fazer isso, chama a atenção para a dimensão temporalmente mutável e convencional, pactada ou disputada, entre os atores sociais em campos sociais específicos que firmam sentido sobre passado. A dúvida cética na historiografia carrega uma dimensão autorreflexiva importante para a “narrativa sobre a coisa histórica”, pois nos lembra que se trata de coisa feita e não de coisa dada, diferentemente, portanto, do tipo de percepção que uma narrativa fundamentalista religiosa teria de sentido ou orientação sobre a vida. Em si mesmo,

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constatar isso tem uma dimensão cultural e política importante: o pensamento histórico cético-historiográfico é o antítipo ético-político de expressões culturais fundamentalistas religiosas sobre “res gestae”. E bem sabemos o quanto é importante, no mundo atual, firmar esta distinção de pensamento histórico no universo escolar. No entanto, o pensamento histórico cético-historiográfico é também um antídoto ético-político importante contra formas seculares de metanarrativas que perpassam a forma dos arranjos de matérias na História Ensinada. Hoje, a forma iluminista de pensamento histórico que ainda configura os arranjos de temas curriculados para Ensino de História pretende integrar as experiências históricas mais díspares numa sensação segura e apaziguada de narrativa-mestra que leva inevitavelmente para o mundo contemporâneo capitalista. Umas das consequências tácitas desse tom narrativo é a promoção, como valor, de uma direção de autoestima social em que o sucesso individual, o pragmatismo individualista e o direito à propriedade precedem, em valor, o direito à sobrevivência. Ora, a tendência cético-historiográfica de ser criticamente desconfiada em relação às metanarrativas de modernidade que fecham o horizonte em chaves metafísicas com pretensões universais tem o papel ético-político importante de evidenciar que se trata de um sentido, entre vários possíveis e disputáveis, sobre a história da vida humana. A tendência cético-historiográfica de ser criticamente desconfiada em relação às metanarrativas civilizatórias nos possibilita pensar em formas de integrar experiências históricas negativas a um determinado padrão de narrativa-mestra que promove autoestima numa direção que tende a desvalorizar a diferença dos outros povos, ou simplesmente retira da agenda de sentidos possíveis qualquer outra possibilidade ou parâmetro de orientação global para a vida. Portanto, a crítica cético-historiográfica cumpre o objetivo de promover distanciamento crítico em relação a formas de narrativas historiográficas reguladas pelo consenso, pelo fechamento do horizonte ou pelo pressuposto de um passado arcaico, apresentado em chave de destino, como inevitavelmente formativo de traços sobre o presente. Nesse sentido, a saudável desconfiança cético-historiográfica em relação às metanarrativas civilizatórias nos reconduz novamente à pergunta “História para quê?”, ou seja, ao desafio de pensar a função das representações históricas de passado na orientação cultural da vida humana. Nos termos de um horizonte de ensino ético-cidadão, o pensamento histórico curriculado deveria cumprir algumas funções críticas: (1) ampliar a capacidade social de

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enfrentar permanências e mudanças, sem cair em narrativas-mestra consoladoras que levem à arrogância cultural ou à insulação identitária chauvinista ou fundamentalista; (2) ampliar a percepção de que as disputas sobre sentido de passado formam identidades provisórias sobre o presente e, portanto, participam da legitimação do poder político em determinada direção; (3) consolidar o entendimento de que “narrativa sobre a coisa histórica” agencia as intenções de ação humana no presente como meios de construir, formular e expressar identidade; (4) consolidar formas de “narrativa sobre a coisa histórica” que não vá numa direção consoladora, de modo que eventos traumáticos não sejam banalizados ou justificados em nome de alguma noção de necessidade histórica; (5) promover o permanente estranhamento sobre o presente por meio da perspectivação histórica do passado. Todas essas possíveis funções ético-políticas críticas do pensamento histórico abordado em chave cético-historiográfica convergem para um ponto fundamental já apontado inicialmente: a valorização da contingência na “narrativa sobre a coisa histórica” como um importante dispositivo cognitivo visando à perspectivação histórica e ao estranhamento cultural, de modo a desbanalizar os hábitos de percepção e avaliação atuais sobre homem, sociedade e natureza. Por tal viés, pensar historicamente equivaleria a um fino exercício de liberdade cultural e política, no qual construir sentido sobre passado para orientação no presente seria algo conscientemente disputado e cujo fim ético maior não seria ser consolador ou promover uma autoestima grupal e/ou individual excludente e cruel com a diferença. Fundamentalmente, a narrativa histórica não pode ser um conto de fada; pelo contrário, deveria abrir-se à complexidade traumática dos eventos do passado e do presente que testam a nossa própria capacidade de contê-los numa organização narrativa, cujo fim deveria ser: entre permanências e mudanças, orientar-nos a agir no contexto real da vida, mas sem cair em sentidos ou direções metafísicas que fecham o horizonte em ilusões consoladoras. As ilusões consoladoras são como as pérolas: A sedução de sua superfície nos faz esquecer que se originam de um trauma. No entanto, a História, seja como res gestae, seja como rerum gestarum, é toda a ostra (e o mar em que se encontra).

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