Histórias desenhadas: desenho infantil e formação humana

September 30, 2017 | Autor: Luciane Goldberg | Categoria: Arts Education, Childrens Drawings
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In: Ercília Maria Braga de Olinda. (Org.). Artes do Sentir: trajetórias de vida e formação. Fortaleza: Edições UFC, 2012, p. 59-76.

Histórias desenhadas: desenho infantil e formação humana A linha sonhadora Uma imagem que sempre me vem na cabeça, quando desenho, ou vejo outras pessoas desenharem, é a de que a linha é um ser vivo e sonhador. Quando um lápis ou uma pena, ou uma caneta, movidos por uma vontade, começam a percorrer a superfície branca do papel e nesse serpentear mágico, principia a criar riscos, garatujas, construções, sêres, mundos, é como se a linha estivesse sonhando tudo aquilo [...] (TACUS, in DERDYK, 1989, p. 234).

Este texto vem refletir sobre as a importância do desenho infantil para a formação humana, para o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e cultural de crianças e jovens. As idéias compartilhadas aqui são resultado de reflexões geradas por meio de vivências e pesquisas teórico-práticas em projetos e experiências educativas em arte junto a crianças e jovens de variadas faixas etárias. Situações em que surgem as primeiras ‘histórias de vida’ em rabiscos e figuras no espaço do papel, sensibilidades latentes e estéticas de um universo por descobrir e desenvolver. O breve ensaio está dividido em duas partes: “Muito além de ‘rabiscos’ no papel” que busca, de forma sucinta, trazer um pouco do histórico do desenho infantil como objeto de pesquisa e compartilhar, com base na bibliografia especializada, a sua importância e amplitude para o desenvolvimento humano; e “Rascunhos, esboços e arte final: o desenho infantil como objeto de pesquisa” em que faço um relato de experiências contando um pouco de minha trajetória de vida enquanto artista (desenhadora), arte/educadora e pesquisadora do desenho infantil, trazendo alguns projetos vivenciados nesse horizonte. Muito além de ‘rabiscos’ no papel O desenho manifesta o desejo da representação, mas também o desenho, antes de mais nada, é medo, é opressão, é alegria, é curiosidade, é afirmação, é negação. Ao desenhar, a criança passa por um processo vivencial e existencial (DERDYK, 1989, p. 51). O que é preciso considerar diante de uma criança que desenha é aquilo que ela pretende fazer: contar-nos uma história e nada menor que uma história, mas devemos também reconhecer, nesta intenção, os múltiplos caminhos de que ela se serve para exprimir aos outros a marcha dos seus desejos, de seus conflitos e receios (WIDLOCHER, 1971, p. 19 in MOREIRA, 2009, p. 20). Cada desenho reflete os sentimentos, a capacidade intelectual, o desenvolvimento físico, a acuidade perceptiva, o envolvimento criador o gosto estético e até a evolução social da criança, como indivíduo (LOWENFELD e BRITTAIN, 1970, p.35).

Segundo pesquisas realizadas por Read em seu livro “A educação pela arte” (2001), o interesse pelo desenho infantil como objeto de estudo iniciou com John Ruskin (1857), Ebenezer Cooke (1885), Corrado Ricci (1887) e, principalmente James Sully (1895), o qual ensaia as primeiras definições teóricas sobre o desenho infantil no livro “Studies in Childhood”, (p. 128). Inicialmente, tais estudos seguiram uma linha evolucionista,

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aproximando as representações gráficas infantis dos fenômenos da ‘cultura primitiva’ e já propondo distinções entre os diferentes estágios de desenvolvimento (READ, 2001, p.129). Desde o início dos estudos do desenho infantil, e para a maioria dos pesquisadores seubsequentes, como Luquet (1969), Lowenfeld e Brittain (1970) Lowenfeld (1977), Kellogg (1985), Peralta (1998), Mèredieu (2004) e Iavelberg (2008), o grafismo infantil inicia com os primeiros rabiscos e vai evoluindo por meio de fases ligadas aos estágios de desenvolvimento. Cada autor varia nas denominações com semelhanças entre os estágios buscando avançar no entendimento dessa linguagem para o desenvolvimento infantil. Tais classificações variam entre aspectos sociais, psicológicos, culturais, cognitivos e pedagógicos – conhecimentos que devem ser considerados de extrema importância para os pais e/ou educadores em geral que lidam com a criança e sua arte. Podemos assim começar nossas reflexões a partir de uma afirmação bastante contundente: “O desenho é sua primeira escrita” (MOREIRA, 2009, p. 20). Assim, é consenso entre os autores o fato de que a criança começa a ‘rabiscar’ espontaneamente nos seus primeiros anos de vida, assumindo um prazer sensorial e corporal em seus movimentos que iniciam de forma desordenada e se desenvolvem aos poucos ordenadamente até que tais rabiscos abstratos, denominados por alguns como ‘garatujas’ dão espaço a signos e figuras que podem ser nomeadas e identificadas fazendo elo entre o universo íntimo e imaginativo da criança e o universo real estabelecido em seu entorno. Esse desenvolvimento levará, aproximadamente à aquisição da escrita em torno dos 5 a 7 anos de idade. Logicamente, devemos considerar como diferencial as influências culturais, sociais e ambientais em que a criança está inserida: Existe uma parcela do desenvolvimento gráfico infantil que é patrimônio universal da inteligência humana, e outra parcela que corresponde às circunstâncias geográficas, temporais e culturais do curso humano (DERDYK, 1989, p.53).

Sobre os primeiros rabiscos e o desenvolvimento do grafismo, Arnheim (1980) complementa: Os primeiros rabiscos de uma criança não têm como objetivo a representação. Constituem uma forma de atividade agradável na qual a criança exercita seus membros, com o prazer maior de ter os traços visíveis produzidos pela vigorosa ação que o braço faz de um lado para o outro. É uma experiência fascinante fazer surgir alguma coisa visível que não existia antes (1980, p.162). [...] a simplicidade do desenho infantil é apropriada ao nível de organização no qual a mente do jovem desenhista opera. À medida que a mente se torna mais refinada, os padrões que criam tornam-se mais complexos (idem, p.161).

Por incrível que pareça, por mais latente e significativo que seja esse início, e a importância da continuidade desse desenvolvimento gráfico para as crianças, pais, educadores e pessoas em geral desconhecem sua importância e acabam por discriminar as atividades criativas nas escolas e no tempo livre fora dela, considerando mais importante as atividades ditas racionais ou, aparentemente, mais lucrativas futuramente em uma sociedade pautada nos valores capitalistas. Uma pena que tais rabiscos, passem

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despercebidos, pois esse é o início da construção de uma personalidade única e singular que tende a se desenvolver gradativamente trazendo à tona ideias e percepções de um ser em formação. Mèredieu (2004) afirma que a linguagem gráfica infantil se caracteriza como um modo de expressão próprio da criança, podendo constituir assim “uma língua que possui seu vocabulário e sua sintaxe” (p.14). Continuando, o autor confirma que a criança possui um repertório de signos gráficos: “signos emblemáticos cujo número aparece idêntico através de todas as produções infantis, a despeito das variações próprias de cada idade” (p.14). Assim, é como se a criança possuísse um “vocabulário plástico” que constitui uma “verdadeira gramática dos signos básicos do desenho”. Para o autor o grafismo infantil é narrativo e figurativo, sendo assim, tais desenhos narram e procuram transmitir mensagens do universo em que a criança está inserida. Há todo um envolvimento emocional e cognitivo no ato de desenhar. Lowenfeld expõe, em seu livro “A criança e sua arte” que quando a criança se ocupa do desenho ou de outra atividade criadora como a pintura, ela sempre inicia sua atividade artística pensando em ‘alguma coisa’ o que exprime sempre um confronto com seu próprio ‘eu’, com sua experiência pessoal. Em seu registro gráfico encontraremos aquilo que foi mais significativo para ela e para aquele momento de criação: [...] a pintura [para a criança] não é uma representação objetiva. Ao contrário, ali se expressam suas preferências bem como as coisas que lhe desagradam, suas reações emocionais com seu próprio mundo e com o mundo que o cerca. Combina então dois fatores importantes: seu conhecimento das coisas e sua relação própria individual, para com elas (LOWENFELD, 1977, p. 14).

Podemos assim observar que o desenho é um importante meio de comunicação e representação da criança, apresentando-se como uma atividade fundamental, pois a partir dele ela desenvolve-se integralmente, refletindo suas idéias, sentimentos, percepções e descobertas. Para a criança, muitas vezes o desenho é tudo, é seu mundo, é sua forma de transformá-lo, é seu meio de comunicação mais precioso. Nele estão seus medos, suas vontades, suas carências e suas realizações.1 De acordo com Derdyk (1989), a criança, por meio do desenho, interage com o meio ambiente, experimenta novas realidades e as compartilha com o mundo: O desenho constitui para a criança uma atividade total, englobando o conjunto de suas potencialidades. Ao desenhar, a criança expressa a maneira pela qual se sente existir. O desenvolvimento do potencial criativo na criança seja qual for o tipo de atividade em que ela se expresse, é essencial ao ciclo inato de crescimento. Similarmente, as condições para o seu pleno crescimento (emocional, psíquico, físico, cognitivo) não podem ser estáticas (p.52).

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GOLDBERG, L.G. Arte-Pré-Arte: um estudo acerca da retomada da expressão gráfica do adulto. Monografia (Graduação em Educação Artística-Licenciatura Plena) Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 1999.

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Outra questão importante de ser destacada aqui é o caráter processual do desenho infantil. Ele sempre deriva de um conjunto de situações, memórias, conhecimentos, sensações e percepções, aliado ao estímulo externo que pode vir da família, dos colegas na escola, da professora, de uma história lida, de uma música, de um filme, etc. Desta forma, o desenho em si não pode ser visto apenas como um produto, um resultado, um ponto final e sim uma atividade em processo de conhecimento de si e do mundo. Sobre esse aspecto Mèredieu (2004) afirma que: A interpretação de um desenho – isolado do contexto em que foi elaborado e da série dos outros desenhos entre os quais se inscreve – é, portanto nula. Ocorre com o desenho o mesmo que com a imagem cinematográfica, que recebe seu sentido das imagens que a precedem e a seguem: determinado pormenor só se torna pertinente retrospectivamente, pela repetição do mesmo tema ou redundância formal. Nesse caso, é toda a dinâmica do sistema de signos que deve ser considerada (MEREDIÈU, 2004, p.19)

Ampliando essa reflexão a respeito da importância do desenho infantil enquanto um processo significativo de aprendizagem, importante trazer o conceito de ‘experiência’ de Dewey (1976), o qual define que uma experiência educativa depende da qualidade, a qual tem dois aspectos: deve ser uma atividade agradável e deve gerar novas experiências futuras (p. 16). Assim, ele considera que a continuidade e a interação são elementos fundamentais para uma experiência que se considere educativa. Posto desta forma, “o princípio de experiência significa que toda e qualquer experiência toma algo das experiências passadas e modifica de algum modo as experiências subseqüentes” (p. 26). O autor também afirma que “se uma experiência desperta curiosidade, fortalece a iniciativa e suscitam desejos e propósitos suficientemente intensos” (p.29), elementos presentes no ato de desenhar. Para Duarte Júnior (2002), a atividade artística da criança representa uma forma de organização de suas experiências, pois por meio delas (desenho, música, pintura, teatro) “a criança seleciona os aspectos de suas experiências que ela vê como importantes, articulando-os e integrando-os num todo significativo” (p. 112). Desta forma, ela busca um sentido geral para sua existência no ambiente no qual está inserida, levando a uma maior autocompreensão e identificação com aquilo que produz (p.113). Se há esse caráter de autoconhecimento, de construção de conhecimento sobre o mundo ao redor, de organização das experiências vividas, de criação de um sentido existencial no ato de desenhar poderíamos dizer que a criança ‘se conta’ por seus símbolos e signos no papel? Segundo Morais (1985) in Derdyk (1989), p.43: [o desenho] É menos uma técnica ou meio expressivo e muito mais um modo de comportar-se (por exemplo, fazer aflorar um certo intimismo do artista, um tom confessional, como se desenho fosse um diário.

Certamente, esse exercício do olhar e da habilidade de desenhar, que principia espontaneamente e vai ficando cada vez mais complexo à medida que a criança cresce e se desenvolve seja o princípio de um processo artístico em construção que pode evoluir para a criação de um universo singular de representação que caracteriza o aspecto mais rico da essência do ‘artista’ – representar o seu modo de ver o mundo, expressar do seu jeito sua história.

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Desenhar se configura então nesse aprender-crescer, aonde a percepção de espaço, de ambiente e de sociedade vai amadurecendo e vai revelando um universo único e existencial de cada indivíduo. É fato que a expressão artística principia nas crianças muito cedo, e se expressa mais basicamente pela linguagem do desenho. Se este é um veículo de suprema importância para que ela continue a se desenvolver artisticamente o que pode acontecer se for interrompido em fases essenciais ao desenvolvimento? É exatamente a capacidade de expressão que está sendo cerceada desde cedo. É como se o artista de cada um adormecesse na primeira dificuldade ou frustração ou na seqüência de acontecimentos em fase escolar, os quais contribuem para que as crianças parem de desenhar, desistindo de querer desbravar o território do desenho, pois este presume muita vontade, envolvimento, persistência e, acima de tudo: autoconfiança. Somente uma criança confiante em si mesma e estimulada a desenhar desde cedo acredita em seus desenhos e mantém a sua originalidade. Precisamos pensar nas influências das imagens e das vivências das crianças em seu desenvolvimento psicológico, intelectual, social, tendo em vista que elas buscam no espaço do papel organizar, conjugar, classificar e relacionar os elementos que têm em seu imaginário. Privá-la da evolução de sua capacidade criadora que opera pela arte é privá-la da descoberta de si mesma e da expressão única que teria acesso através da linguagem simbólica da arte, o que é muito sério e traz lacunas quase irreparáveis na formação dessa criança em indivíduo adulto. Desenhar é conhecer, aprender, expressar, formar conceitos, por isso é tão importante no desenvolvimento humano, em especial na fase infantil. Não queremos que todos venham a se tornar artistas, o que seria praticamente impossível, mas dar a chance para que desenvolvam essas habilidades e percepções no interior da linguagem artística, para que pelo menos o indivíduo possa optar conscientemente se quer continuar a se expressar pela arte, quando já tiver desenvolvido aquilo que era necessário para formar sua sensibilidade e sua consciência estética. Longe de esgotar assunto tão vasto como o universo do grafismo infantil e o desenvolvimento das potencialidades cognitivas, afetivas, culturais, sociais e ambientais, poderíamos lançar um olhar para a expressão gráfica de uma criança como o princípio de sua história de vida contada pelos desenhos? Rascunhos, esboços e arte final: o desenho infantil como objeto de pesquisa Desenhos são pra gente folhear, são para serem lidos que nem poesias, são haicais, são rubaes, são quadrinhas e sonetos (ANDRADE, 1984, p.65). [...] depois de algum tempo, resolvi folhear alguns dos meus cadernos de esboços. Senti, então, como se uma espécie de esperança voltasse a despertar dentro de mim. Por enquanto o interesse de ser espectador deste processo mantém-me vivo e desperto. Um interesse autobiográfico (KLEE, 1990, p.218).

Penso que sempre desenhei – quando foi que me tornei uma ‘desenhadora’ de verdade tenho certeza que meus próprios desenhos podem revelar, pois é no traço que residem os sonhos, as ideias, as descobertas, os sentimentos e as experiências. Por entender que esse processo de exercício visual e gráfico contribuiu sobremaneira na minha formação

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como pessoa, artista e arte/educadora adentrei, além do universo da criação e da educação o da pesquisa, buscando aprofundar conhecimentos a respeito do desenho como elemento de formação e desenvolvimento humano. Durante a faculdade de Educação Artística – Artes Plásticas, no extremo sul de nosso país, comecei a me questionar porque tantas pessoas afirmavam não saber desenhar, sempre com um tom de quase tristeza, ou até mesmo frustração. O que teria acontecido em suas vidas que o desenho foi então banido restando somente esse vácuo do ‘nãodesenho’? Essa foi a primeira motivação à pesquisa que resultou no primeiro exercício teórico-prático de minha inicial carreira acadêmica. Descobertas fundamentais surgiram nesse singelo exercício reflexivo em contato com diversos autores, os quais me permitiram aprender, ainda que inicialmente, sobre as fases do grafismo infantil, sobre o ‘bloqueio’ do grafismo e sobre a necessidade de se pensar em estratégias educativas que tanto resgatassem a capacidade criadora das pessoas adultas, quanto impedissem que mais crianças parassem de desenhar cedo, mais precisamente durante o processo de alfabetização. Como afirma MOREIRA (2009), “Se toda criança desenha, e a maioria destas crianças quando cresce diz: ‘eu não sei desenhar...’ e também não cria histórias, endurece seu corpo e não canta mais” (p. 51). Foi aí que iniciou minha ‘militância’ em defesa do desenho infantil, pois: Muito depressa o desenho-fala se cala e o desenho-certeza se passa à certeza de não saber desenhar. É muito comum ouvirmos crianças de menos de 10 anos dizerem que não sabem desenhar (MOREIRA, 2009, p. 51).

No decorrer do mestrado, publiquei um artigo sobre o desenho infantil e o desenvolvimento humano2 encontrando elos com as idéias da Abordagem Ecológica do Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner. Este artigo teve como objetivo compreender a relação entre a percepção, o desenho e o conceito de atividade molar na perspectiva ecológica de Bronfenbrenner, pressupondo o desenho como uma forma de expressar criativamente a percepção que as crianças têm dos ambientes que habitam e ressaltando a importância da imaginação e o potencial da expressão do desenho como importante ferramenta na construção de conhecimentos e integração de experiências originadas em contextos variados, revelando que tais experiências gráficas fazem parte do crescimento psicológico e são essenciais para a formação de indivíduos sensíveis, criativos e capazes de transcender e transformar a realidade, pois: Desenhar, narrar um fato são formas de ação, de domínios sobre a emoção: modela-se o próprio real. A pessoa pode ser invadida e mergulhada em imagens e sonhos, e ficar paralisada por eles. Em compensação, se ela conseguir dominar a explosão dessas imagens e sonhos, se possuir um modo de utilizá-los através dos jogos ou das formas, chegará à criação (POSTIC, 1993, p.18).

Tais construções teóricas derivaram do estudo de desenhos infantis oriundos de atividades interdisciplinares de artes, ciências e educação psicofísica realizadas no interior de uma Organização Não-Governamental - ONG no extremo sul do país. Essas

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GOLDBERG, L. G. et al. O Desenho Infantil na Ótica da Ecologia do Desenvolvimento Humano. Psicologia em Estudo, Maringá, v.10, n.1, p.97-106, jan./abr. 2005. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-73722005000100012&script=sci_arttext

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pesquisas originaram minha dissertação de mestrado em educação ambiental3. Importante atentar para o fato de que a ONG em estudo atua na região costeira do Rio Grande do Sul desde os anos 80, sendo referência na formação de profissionais na área educação ambiental constituindo um grande laboratório multidisciplinar. Escolhi essa ONG, primeiramente por ser integrante dela e por observar que desde o início de sua prática educativa o desenho infantil foi usado, inicialmente de forma empírica, como um recurso de avaliação das atividades de educação ambiental. Com o tempo, a partir do trabalho mais aprofundado de arte/educação, o desenho passou a assumir um lugar de destaque na instituição e seus integrantes passaram a percebê-lo não apenas como um resultado das atividades, mas como um processo de construção de conhecimento, pensando que o processo de realização do desenho envolve muitas coisas, desde a idéia, as dificuldades encontradas, o diálogo com os colegas, as tentativas, os erros, os acertos, o que estavam sentindo no momento... Enfim, todas essas coisas unidas a questões individuais de cada uma das criança envolvidas, que também trazem sua vivência prévia: Se considerarmos este trabalho artístico como um processo que a criança usa para significar e reconstruir o seu meio, então, o método de realizar um desenho torna-se muito mais complexo do que uma simples tentativa de representação visual. Nesse caso, a criança pode estar dando uma nova expressão ao meio que a rodeia ou está manipulando certas partes desse ambiente, e essas partes são meramente simbolizadas por qualquer acontecimento que seja suficientemente satisfatório para conotar a imagem ou o objeto (LOWENFELD e BRITTAIN, 1970, p. 58).

Assim, ao perceberem que o desenho era um processo, os educadores dessa ONG viram que isso envolvia todo um preparo e uma vivência anterior, e que deveriam estimular a observação e sensibilizar a criança para um contato mais aprofundado com o ambiente. Além de ver, era preciso também ouvir, cheirar, tocar, vivenciar, proporcionando assim uma série de atividades que poderiam preencher seu imaginário e dar subsídios para a criação, pois se imaginário tem em si a palavra imagem e imaginação depende do repertório imagético e vivencial do indivíduo (imagem + ação), é preciso estimular e enriquecer com imagens do ambiente e com atividades em interação direta com o meio natural e cultural. Nesta pesquisa coletei, aproximadamente, 114 desenhos do acervo da ONG, realizados por crianças entre 4 e 9 anos com o objetivo de fazer uma leitura dos desenhos realizados após atividades interdisciplinares de educação ambiental, ressaltando sua importância enquanto formação de uma consciência estética e expressão do imaginário ambiental dessas crianças, fundamental para o seu desenvolvimento integral. Busquei fazer uma leitura destes desenhos a fim de confirmar a importância destes para, além de um registro e avaliação da aprendizagem, o desenvolvimento de indivíduos mais sensíveis, observadores, ativos, críticos, capazes de expressar suas percepções e de exercer sua cidadania, pois o desenho pode revelar como estas crianças crescem nos

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GOLDBERG, L. G. Arte-Educação-Ambiental: o despertar da consciência estética e a formação de um imaginário ambiental na perspectiva de uma ONG. Dissertação de Mestrado Não-Publicada. Pós-graduação em Educação Ambiental, Universidade Federal do Rio Grande, 2004. http://www.nema-rs.org.br/teses/arte_educacao.pdf

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diferentes meios que habitam e o quanto a educação ambiental é capaz de proporcionar um novo olhar, um novo agir. Buscar ‘ler’ esses desenhos significou tentar entender e conhecer mais a fundo o universo da criança, pois neles ela traz suas vivências, que têm com a família, com os amigos e com o ambiente. Cria relações, articula idéias, desenvolve conceitos. O espaço do papel é o seu território, onde ela decide o que vai desenhar e como vai desenhar, tendo um significado muito importante para ela. Também foi verificada uma grande diferença nos desenhos de crianças que tem um maior contato com o ambiente natural em relação àquelas que moram em zonas urbanas. As crianças que moram perto da praia crescem no ambiente, correndo nas dunas, brincando com a areia e com o mar. Elas conhecem o ambiente e interagem com ele, portanto, é mais fácil expressarem esses elementos e o fazem de uma forma muito singular. Já as crianças de zona urbana não contam com essa liberdade de brincar nas ruas e interagir com os elementos do ambiente natural. Convivem em ambientes construídos, de concreto, carros e apartamentos. Conseqüentemente assistem mais televisão, brincam mais dento de casa e, portanto, estão mais expostas às influências da mídia e da cultura massificante da televisão aberta, que determina, de certo modo, suas representações. Pude observar também que os desenhos das crianças realizados após palestras – com projeção de imagens ou saídas de campo – revelavam os elementos que mais se destacaram para elas de uma forma muito singular. Daí a importância de se ter imagens em qualidade e variedade e se estimular a observação detalhada para formas, cores, texturas, proporções, o que enriquece o desenho e contribui para um aprendizado mais efetivo, pois a criança, ao retornar ao ambiente, saberá identificar os elementos que o compõe e assim saberá mais sobre o seu lugar, iniciando um processo de valorização e autoconhecimento. Portanto, tudo aquilo que for ensinado de uma forma integrada e estimulante poderá gerar um envolvimento maior da criança com esse conhecimento, até mesmo um envolvimento afetivo – a experiência educativa da qual fala Dewey (1976). Uma prática educativa que tem como ponto de partida o desenvolvimento de potencialidades únicas dos indivíduos não pode, de maneira alguma, deixar de lado o desenvolvimento da consciência estética e uma alfabetização ecológica, pois é a partir da aquisição de conhecimentos sobre os elementos que compõe seu ambiente que a criança se desenvolve em harmonia com este espaço. Pude concluir ao final da pesquisa que se o desenho infantil não é só avaliação, mas revela o verdadeiro aprendizado das crianças, aquilo que lhes chamou mais atenção, que foi mais significativo e, integrando o crescimento psicológico dessas crianças, revela seu imaginário e a percepção que as crianças têm dos ambientes que habitam. Assim, é fundamental que haja uma preocupação com o desenho infantil, disseminando informações essenciais para que o desenvolvimento gráfico das crianças não seja interrompido por eventuais falhas no processo educativo. Portanto, se o imaginário das crianças é alimentado pelas imagens e vivências proporcionadas a elas, é imprescindível pensar na importância de se enriquecer o cotidiano dessas crianças e mostrar a elas a beleza dos ambientes naturais e culturais em que estão inseridas, desde cedo. É importante então preencher seu imaginário com exemplos positivos das relações entre eu-outro-ambiente.

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Outro exemplo de pesquisa, quase no outro extremo do país, e que seguiu caminho semelhante foi o projeto “Os Cadernos de Campo do Bom Jardim: observar, imaginar e criar a vida”4. O objetivo geral do projeto foi conhecer e analisar as representações sociais que as crianças de periferia têm sobre o meio em que estão inseridas, mais precisamente no município de Fortaleza, Ceará, no Bairro Bom Jardim. O Caderno de Campo, instrumento de estudo e produção de conhecimento de muitos pesquisadores ao longo da história, como Alexandre Von Humboldt, Levi-Strauss, Margaret Mee, entre outros, constitui ferramenta de notável importância para as mais variadas áreas do conhecimento, como nas áreas biológicas (ex: zoologia, botânica), geográficas (ex: topografia, cartografia, geologia), sociais (ex: antropologia, sociologia, arqueologia) e artísticas. Desta forma, este recurso foi utilizado e as crianças puderam exercitar seu olhar de cientista-artista na construção de suas páginas, registrando suas representações do meio ambiente e proporcionando um olhar mais sensível e aguçado a respeito de si mesmo. O projeto foi desenvolvido a partir de uma relação interdisciplinar entre artes e geografia e contou com a participação de dois estagiários de geografia, uma da Universidade de Montréal, participante do Projeto Brasil (Project Brésil) e um da Universidade Estadual do Ceará. Aproximadamente 30 crianças e jovens, de 08 a 13 anos, do bairro Bom Jardim e adjacências passaram pelo projeto e foram convidadas a revelarem seu ambiente, um pouco de sua história e do lugar onde vivem a partir do desenho - como forma de autoconhecimento e de valorização do 'seu' lugar. No projeto, os cadernos de campo foram confeccionados artesanalmente por um grupo de monitores do CCBJ e suas capas foram feitas com mapas da cidade de Fortaleza. A partir de oficinas multidisciplinares, que reuniram conhecimentos das artes e da geografia para estudo do meio natural e cultural, os desenhos partiram de uma perspectiva micro (o ambiente sou eu) até um crescendo para uma perspectiva macro (o ambiente é minha casa, minha escola, meu bairro, minha cidade até o planeta); com os temas norteadores: 'quem sou eu', ‘minha família’, 'minha casa', 'minha escola', 'meu bairro', 'minha cidade' e 'meu país', entre outros relacionados à questão ambiental. Inicialmente, pretendíamos fazer um estudo comparativo entre as representações de crianças de periferia no Brasil e em Montréal, no Canadá, em virtude de um contato estabelecido com o prof. Dr. Pierre André para estudos de doutoramento em geografia ambiental, projeto que infelizmente não teve essa continuidade. Apesar de o desfecho ter sido outro, foram registrados nos cadernos das crianças que participaram do projeto centenas de desenhos nas categorias propostas, trazendo à tona elementos da vida pessoal e da realidade socioambiental em que estão inseridos – representações ricas que merecem uma análise mais aprofundada futuramente. Diante de um universo tão rico e prenhe de significados, a pesquisa há de continuar, aprofundando aspectos teóricos e propondo leituras do conteúdo gerado nessas oficinas junto às crianças do bairro Bom Jardim, periferia de Fortaleza-Ceará. Podemos concluir que as experiências foram muito significativas para essas crianças, que dificilmente faltavam aos encontros e carregavam seus cadernos e suas histórias desenhadas junto ao peito, como quem guarda a si mesmo. Ficam, por enquanto, os registros, seus traços e histórias de vida e o desejo de continuar e proporcionar mais experiências como essas a crianças e jovens que merecem a oportunidade de desenhar, criar e contar sua história. 4

ver blog: http://carnetdeterrain.wordpress.com/

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Para além de tudo, paira a certeza de que é nos grafismos da infância que construímos o arcabouço da humanidade que construíra pontes ou erguerá muros.

REFERÊNCIAS: ANDRADE, M. de. Do Desenho. In ANDRADE, M. de. Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1984. ARNHEIM, R. Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 1980. DERDYK, E. Formas de pensar o desenho: Desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo: Scipione, 1989. DEWEY, J. Experiência e Educação. 15 ed. São Paulo: Companhia editora Nacional. (trad. Anísio Teixeira), 1976. DUARTE JÚNIOR, J. F. Fundamentos estéticos da educação. 7. ed. Campinas: Papirus, 2002. GOLDBERG, L. G. Arte-Pré-Arte: um estudo acerca da retomada da expressão gráfica do adulto. Monografia (Graduação em Educação Artística-Licenciatura Plena) Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 1999. ____. Arte-Educação-Ambiental: o despertar da consciência estética e a formação de um imaginário ambiental na perspectiva de uma ONG. Dissertação de Mestrado Não-Publicada. Pós-graduação em Educação Ambiental, Universidade Federal do Rio Grande, 2004. GOLDBERG, L. G. et al. O desenho infantil na ótica do desenvolvimento humano. Psicologia em Estudo, Maringá, v.10, n.1, p.97-106, jan./abr. 2005. IAVELBERG, R. O desenho cultivado da criança: prática e formação de professores. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2008. KELLOG, R. Analisis de la expresion plastica del preescolar. 3. ed. Espanha: CINCEL: 1985. KLEE, Paul. Diários. São Paulo: Martins Fontes, 1990. LOWENFELD, V. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977. LOWENFELD, V. e BRITTAIN, V. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1970. LUQUET, G. H. O desenho infantil. Porto: Civilização, 1969. MÈREDIEU, F. de. O desenho infantil. 14 ed. São Paulo: Cultrix, 2004. MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: a educação do educador. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2009. PERALTA, C. H. G. A arte do grafismo infantil e a construção simbólica. Proposta para assessoramento e acompanhamento da implantação do padrão referencial de currículo, 1998 (manuscrito não publicado). READ, H. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. POSTIC, M. O. Imaginário na Relação Pedagógica. Trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993.

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