HISTÓRIAS EM QUADRINHOS COMO POSSIBILIDADE DE INVESTIGAÇÃO POÉTICA [TCC]

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Descrição do Produto

Universidade Estadual de Londrina Centro de Educação Comunicação e Artes Departamento de Arte Visual

Valter do Carmo Moreira

Histórias em quadrinhos como possibilidade de investigação poética

Londrina

2014

Valter do Carmo Moreira

Histórias em quadrinhos como possibilidade de investigação poética Trabalho de conclusão de curso, apresentado como parte das atividades realizadas para obtenção do diploma de licenciatura em Artes Visuais do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina

Londrina 2014

BANCA EXAMINADORA

Luiz Carlos Sollberger Jeolás Prof. Dr°. Orientador Universidade Estadual de Londrina - UEL Marta Dantas da Silva Prof. Drª. Componente da banca Universidade Estadual de Londrina - UEL Marcos Rodrigues Aulicino Profº Dr°. Componente da banca Universidade Estadual de Londrina - UEL

para Juliana

Agradecimentos

Agradeço, imensamente a minha família por todo o apoio que me deram no início da minha jornada. À minha mãe, Sandra, por tudo. Ao professor Luiz Carlos Sollberger Jeolás, meu orientador e amigo, que acreditou nessa pesquisa e em mim desde o início. À professora Marta Dantas da Silva, por me fazer entender o que é pesquisa e por guiar meus passos. Ao Professor Marcos Rodrigues Aulicino, pela fé depositada no meu trabalho e por todo o seu apoio. À todos os professores da UEL, que contribuíram imensamente para minha formação e continuam a contribuir. À Universidade Estadual de Londrina, Minha casa, e todos os funcionários do Departamento de Artes Visuais / CECA pela estrutura e auxílio necessários. Aos Amigos e colegas de curso, Fábio, Vinicius, Leto e Dani, que contribuíram direta e indiretamente para a realização desse trabalho. Aos Amigos da “velha guarda” Boy, Beto, Doug, Tema, chico e Ronaldo, pelas trocas de quadrinhos e pelas saudosas conversas que, mal sabem eles, foi o alicerce de tudo isso. À Ju, pelo apoio e amor incondicional, por acreditar em mim antes de qualquer um e por dividir comigo sua vida e sua paixão pelos quadrinhos.

“Ninguém é escritor das oito ao meiodia e das duas às seis. Quem é poeta é poeta sempre, e se vê continuamente assaltado pela poesia. Assim como o pintor é assediado pelas cores e pelas formas, assim como o músico se sente procurado pelo estranho mundo dos sons (o mundo mais estranho das artes), o escritor deve pensar que tudo é argila, com que fará da miserável circunstância de nossa vida alguma coisa que possa aspirar à eternidade”.

Jorge Luís Borges

Resumo O presente trabalho de conclusão de curso, desenvolvido no âmbito da pesquisa em poéticas visuais, compreende três trabalhos que definem minha trajetória e minha iniciação cientifica no campo da pesquisa. Estes pensam os quadrinhos como linguagem autônoma, e apontam suas relações com questões contemporâneas, assim como suas possibilidades de investigação poética. A partir de uma base histórica, entendendo minha própria produção dentro do campo das histórias em quadrinhos, como herdeira dessa ruptura do paradigma dos quadrinhos engendrada por diversos autores ao longo de sua história. Palavras-chave: graphic novel; arte; investigação.

Abstract This senior research paper, which was carried out in the area of visual poetics, encompasses three studies that define my career as well as the beginning of my scientific journey in the research area. The previously mentioned studies see comics as an autonomous language and point out their relationship with contemporary issues as well as their possibilities of poetic research. Based on a historical analysis, I can therefore understand my own poetic production within the field of comics as a heir to the break of the paradigm of comics, made by several authors throughout their history. Key-words: graphic novel; art, research.

sumário

11 Lista de imagens.....................................13 Resumo/Abstract...................................

INTRODUÇÃO

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INCONCEBÍVEL

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Das relações iniciais...............................

Processo e criação............................

TRAJETÓRIA Experimentações plásticas e descoberta de

CONSIDERAÇÕES FINAIS

uma vontade narrativa...........................

Um novo começo..............................

O TERRITÓRIO DOS QUADRINHOS

BIBLIOGRÁFIA

19 Criando imagens com palavras...............48

56 Ruptura e a vanguarda dos Quadrinhos.61

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Referências Bibliográficas.................

Em busca de um novo olhar...................

Dos quadrinhos alternativos ao

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reconhecimento das graphic novels..........

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Histórias em quadrinhos..................

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Referências da internet.....................

imagens

01 à 19 Série: Estudo sobre a figura de Jorge Luis Borges (2012)..................19 à 24 20 à 24 Fotos da exposição: ENTRE EU E O OUTRO (2014)............................42 à 46 25 Foto da produção da exposição: ENTRE EU E O OUTRO (2014)............................47 26 à 31 O Evangelho do infanticida (2010).....................................................51 à 52 32 Asilo Arkham (1989) Grant Morrison e Dave Mckean............................................57 33 Fritz the Cat (1965) Robert Crumb........................................................................62 34 Zap Comix 1 (1967) Robert Crumb.......................................................................62 35 Drowning Girl (1963), óleo e magma sobre tela, Roy Lichtenstein..........................62 36 Comic Code Authority (1958)................................................................................62 37 Métal Hurlant 1 (1975) Vários...............................................................................65 38 O Incal (1981-1988), Alejandro Jodorowsky e Moebius ........................................65 39 O Mundo de Edna (1983-2001), Moebius..............................................................65 40 Um Contrato com Deus (1978), Will Einer.............................................................66 41 Maus (1986), Art Spiegelman................................................................................66 42 Batman, O cavaleiro das trevas (1986), Miller, Jonson e Lynn Varley....................69 43 Watchmen (1988), Alan Moore e Dave Gibbons.....................................................69 44 Pagando por sexo (2011), Chester Brown..............................................................71 45 Jimmy Corrigan (2000), Chris Ware......................................................................72 46 Daytripper (2010), Fábio Moon e Gabriel Bá.........................................................72 47à 50 Inconcebível: Concepts de Lis, texto em prosa, roteiro e rascunhos....78 à 81 51 Foto da produção de INCONCEBÍVEL (2014).........................................................82 52 Projeto da capa de INCONCEBÍVEL (2014)............................................................83

introdução

Das relações iniciais

Neste presente trabalho de conclusão de curso, apresento os fios condutores que norteiam minha pesquisa poética. Nela intencionou-se discutir as possibilidades que as histórias em quadrinhos podem trazer, enquanto plataforma poética dentro de um processo investigativo. A fundamentação teórica e prática foi erigida em cima da produção atual de diversos artistas do meio. Assim, por intermédio do diálogo estabelecido com teóricos e especialistas dos quadrinhos, tais como Will Eisner, que dentre vários feitos ajudou a perpetuar o termo graphic novel1, que na indústria significou colocar os quadrinhos em outro patamar, uma vez que possibilitou maior seriedade perante a mídia e a crítica. Seus principais livros teóricos: Narrativas Gráficas (EISNER, 2008) e Quadrinhos e a Arte sequencial (EISNER, 2001), seguem como material de referência até hoje. Outra base teórica importante foi a de Scott mcCloud, discípulo de Will Eisner, que disseca as estruturas narrativas dos quadrinhos, pontuando a presença dessa linguagem em vários momentos da história da humanidade, fazendo também uma aproximação com as artes plásticas e outras mídias a partir da própria linguagem dos quadrinhos. Sendo eles: Desvendando os quadrinhos (McCLOUD, 2005), Desenhando os quadrinhos (McCLOUD, 2010) e Reinventando os quadrinhos (McCLOUD, 2016). Vale destacar também os pioneiros da pesquisa no âmbito das histórias em quadrinhos no Brasil, como Álvaro de Moya e Moacy Cirne, que me acompanharam até o fim dessa jornada. Dentre os historiadores e pesquisadores das artes, gostaria de destacar Walter Benjamin que com o seu livro A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1975), antevia a reprodução como uma nova forma da arte. Embora não se referisse necessariamente aos quadrinhos, Benjamin já apontava os produtos advindo de reprodução como por exemplo o cinema, como uma forma de arte. No seio do avanço cada vez maior das técnicas de reprodutibilidade e difusão, surge a possibilidade das histórias em quadrinhos florescerem e ganharem espaço. 16

“As histórias em quadrinhos são como magia, servem para engendrar mudanças na consciência, é o poder de manipular símbolos e signos”. Alan Moore

2 É um termo criado nos anos sessenta por Richard Kile e popularizado mais tarde pelo autor e teórico da arte sequencial, Will Eisner, para definir um seguimento das histórias em quadrinhos que tem como característica um maior desenvolvimento dos personagens e do enredo, se pensado em literatura, seria parecida com a utilizada para diferenciar e designar contos, crônicas, novelas e romances.

Elenco ainda autores como Giulio Carlo Argan e Umberto Eco, que me ajudaram a estabelecer relações no que consiste a análise das obras de artistas modernos assim como seus processos, faço uso também de obras de pesquisadores da arte contemporânea com quem pretendo fazer aproximações com os quadrinhos, dentre eles: Anne Cauquelin, Michael Archer, Katia Canton e Agnaldo Farias. É importante frisar como a arte sequencial e as artes plásticas podem e devem se relacionar, contaminarem-se, sem necessariamente se preocupar em ultrapassar aquilo que se aceita como limite de uma e de outra, mas produzindo algo novo para cada uma delas. E por fim, trago a minha própria produção poética que consistiu, além da retomada de parte do trabalho desenvolvido dentro da graduação, como também de alguns trabalhos que antecederam essa inserção. Esta pesquisa teve como cerne a produção de uma história em quadrinhos intitulada: “Inconcebível”, que conta a história de um jovem casal em crise, tendo a falta de comunicação como eixo central. Produzida concomitantemente à realização desta pesquisa, discutiu-se os quadrinhos enquanto linguagem, forma e conteúdo, proporcionando uma fuga do senso comum ao propor investigações plásticas e conceituais, abrindo assim, caminhos às novas proposições estéticas para a produção de uma história em quadrinhos, testando seus limites, elevando seu potencial e renovando seu discurso enquanto linguagem poética.

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1

capítulo

“O quadrinho é um meio monossensorial que depende de um só sentido para transmitir um mundo de experiências”. Scott McCloud

TRAJETÓRIA Experimentações plásticas e a descoberta de uma vontade narrativa Em 2010 decidi prestar vestibular para o curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina, a princípio, com o intuito de revigorar o que até então era apenas um hobby adquirido na infância - desenhar. Sempre fui fascinado pelo mundo das imagens, ora, pelos desenhos animados que marcaram a minha infância, ora, pelo cinema que desde muito cedo já me cativava. Sucessivamente, a fotografia e a literatura me proporcionavam as mais incríveis e intransponíveis paisagens mentais, que qualquer outra mídia podia comportar, as quais, tiveram um papel fundamental na minha formação. No entanto, minha maior paixão é, e sempre foram os quadrinhos. Na Universidade o leque de possibilidades se expandiu e se multiplicou, efetuando mudanças significativas na forma como eu via as artes, a vida e o mundo. Nas aulas de história da arte percebi o quanto a arte estava impregnada do seu tempo. Antes, eu não enxergava a relação contextual intrínseca às manifestações artísticas, muitas vezes fruto de questionamentos feitos pelos artistas à sua época, e às suas próprias contradições. Essas descobertas me fascinavam e ainda me fascinam. Nas aulas práticas, eu me reencontrei. Já havia algum tempo que eu não desenhava com o mesmo vigor e interesse. Sentia-me estagnado e vicioso. Meus desenhos não me satisfaziam mais. Antes, fonte de prazer, o desenho se tornara uma decepção constante. Na época eu não suspeitava, mas essa inquietude e insatisfação, essa necessidade de desprender-se de minhas vicissitudes apontava para uma busca poética, que veio tomar forma durante as aulas práticas por meio das experimentações com os diversos tipos de suportes e materiais, nunca antes empregados por mim. Em 2012, nas aulas de pintura, essas experimentações formais resultaram numa série de trabalhos intitulados: “Um estudo sobre a figura de Jorge Luis Borges”. 19

Como o título sugere, tomei a figura do escritor argentino como objeto de estudo plástico-formal. Nesse trabalho não é sua obra que me guia especificamente, apesar de autor e obra serem indissociáveis. O trabalho se deu na relação sensível estabelecida com a sua figura mítica, mortal e imortal. Faz-se uma busca por um outro Borges, além da carne. Dessa produção, porém, emergira certa vontade narrativa que só percebi ao expô-la nas aulas da disciplina Fundamentos da Pesquisa, ministrada pelo Professor Dr. Ronaldo Oliveira, quase um ano depois de tê-la produzido. Essas aulas foram imprescindíveis para que nós (os alunos), nos reconectassemos com os nossos trabalhos, na busca de estabelecer um fio condutor que perpassasse toda a nossa produção poética relacionando-a com nossas pesquisas. Assim, a narrativa ocorreu por meio dos enquadramentos e recortes que eu adotara sem um critério específico. Ao produzir, meu interesse era a materialidade, os contrastes, as escalas de cinza e as texturas. Só mais tarde notei que essa materialidade também poderia ser impulsionadora de um sentido narrativo.

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série:Borges

1. Borges - 2012

10. Borges - 2012

guache, nanquim sobre canson 27 x 33 cm..............21

grafite sobre canson 59 x 84 cm.....................30

2. Borges - 2012

11. Borges - 2012

grafite, guache e nanquim sobre canson 29,5 x 42 cm.. ...............................................................................22

3. Borges - 2012

grafite, carvão, guache e nanquim sobre canson 30 x 31cm.......................................................................23

4. Borges - 2012

guache sobre canson 42 - 29,5 cm...........................24

5. Borges - 2012

grafite e carvão sobre canson 1,18 x 1,68 cm...........25

6. Borges - 2012

grafite sobre canson 59 x 42 cm...............................26

7. Borges - 2012

guache sobre canson 29,5 x 34 cm...........................27

8. Borges - 2012

guache sobre canson 30 x 36,5 cm...........................28

9. Borges - 2012

guache sobre canson 29,5 x 34 cm...........................29

guache sobre canson 79,5 x 99 cm................31

12. Borges - 2012

guache sobre papel paraná 1,00 x 80 cm..........32

13. Borges - 2012

grafite sobre canson 42 x 51 cm.....................33

14. Borges - 2012

guache, nanquim sobre canson 1,78 x 84 cm..34

15. Borges - 2012

grafite sobre canson 59 x 84 cm.....................35

16. Borges - 2012

grafite sobre canson 59 x 84 cm......................36

17. Borges - 2012

grafite sobre canson 42 x 51 cm.....................37

18. Borges - 2012

nanquim sobre canson 25,5 x 38 cm...............38

19. Borges - 2012

nanquim sobre canson 77,5 x 1,07 cm...........39

Em 2014, realizei na galeria do departamento de Arte Visual – CECA/UEL a exposição intitulada: Entre eu e o outo, com a curadoria do amigo e colega de turma, Leto William. Foi uma experiência importantíssima que possibilitou um entendimento do meu trabalho no espaço, que por sua vez, reforçou aquele sentido narrativo, percebido antes apenas na aula do Professor Ronaldo, conforme citada acima. O meu Borges, é “um outro”, que vai além da mera releitura de sua imagem. É o resultado de uma relação entre o “eu” introspectivo, íntimo e o “outro”, aquele inalcançável, que por vezes é espelho, por outras é reflexo. A potência desse trabalho se fez da relação do observador com a figura de Jorge Luis Borges, seja pelos recortes ousados, seja pela cadência criada pela articulação que o observador faz de uma imagem para outra, construindo caminhos possíveis, evocando um sentido narrativo, onde o fator determinante é a própria experiência individual do observador com sua imagem, seja ele ou não, um leitor de Borges. Para abertura da exposição, Leto William, preparou um recorte curatorial, uma mediação que através de um entendimento particular, sugere caminhos possíveis para a leitura das obras expostas. Entre eu e o outro

"A experiência de desenho se constitui enquanto exteriorização do indivíduo, externando-se através do material que risca a superfície e pelo olhar que penetra o objeto de desejo. Ao se debruçar sobre este desejo o artista se apropria e torna-se o objeto momentaneamente e/ou definitivamente. Desenhar é um ato de apropriação, de suprir a vontade de ter. Os trabalhos apresentados nesta exposição foram criados como forma de apropriação da figura de um ícone (no caso, o escritor argentino Jorge Luis Borges) desejo de se apossar da figura alheia achando-se e perdendose nela. Tateando o mundo pela visualidade, buscando na materialidade de cada trabalho uma resposta que ajude a entender o que existe entre eu e o outro".

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20. Flyer criado por Vinicios Escano, para exposição (2014)

21. Foto: Daniele Rosa (2014)

22 e 23. Fotos desta página e dá seguinte: Daniele Rosa (2014)

24. Foto: Daniele Rosa (2014)

Mas, antes de chegar a este ponto a vontade de mudança a qual me refiro, juntamente com a necessidade de desprender-se de minhas vicissitudes, no que consiste ao desenho, me levou a essas experimentações plástico-formais em um dado momento, outrora, me levou a seguir um caminho diferente, em outro território, aliás, muito caro a mim: O das letras. Começara então, a escrever.

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25. Foto: Leto William (2014)

Criando imagens com palavras Em meados de 2009, surgiu a oportunidade de participar de uma antologia de quadrinhos, através de um projeto organizado pela editora Multifoco, que propunha a realização de uma coletânea de histórias em quadrinhos intitulada: Quadrinhos em História, organizado pela escritora Jana Lauxen e o editor Sérgio Chaves, através do selo LiterArte, que reuniu artistas e roteiristas de todo o Brasil. Quando tomei conhecimento do projeto faltavam poucas semanas para a data final do envio do material a ser avaliado. O meu interesse naquele momento era apenas escrever. Então, contatei um amigo, Francisco Elber, que já tinha experiência com quadrinhos incluindo algumas publicações. Assim, decidi propor um trabalho colaborativo, onde eu criaria a história e escreveria o roteiro, enquanto ele desenharia. A proposta seria uma história de seis páginas. Muito prolixo, não conseguia condensar qualquer ideia dentro dessas limitações. Foi quando decidi resgatar um conto escrito há algum tempo, e transformar a prosa em roteiro de quadrinhos. O conto intitulava-se: “O exterminador de criancinhas”, que após a adaptação ganhou o título de “O evangelho do infanticida”. Era uma história de humor negro, escatológica e pós-apocalíptica, imaginando um futuro onde a humanidade passara por um processo de involução, descendo paulatinamente a um estado bestial, onde as crianças não nasciam, mas sim abriam o caminho para fora do útero a dentadas, devorando suas próprias mães ao nascerem. O período de gestação se tornara cada vez mais curto, e não nasciam mais crianças normais. Os homens viraram gado de sua própria prole. A humanidade estava condenada. A partir deste enredo, Minha ideia era contar tudo isso em seis páginas de quadrinhos, com uma narrativa em “off” e na primeira pessoa, sendo essa composta por trechos do diário de um velho, uma testemunha que relatara desde o início o crepúsculo da humanidade. Esta narrativa seguiria justaposta às imagens, que mostrariam esse homem velho em seus últimos minutos de vida, na iminência de ser devorado por crianças bestiais. O diário do velho representa uma última fagulha de esperança, onde ele deixa registrado o que ele mesmo chama de “Novo Gênese”. Em suas próprias palavras: 48

“Finalmente chegamos ao Ômega, o crepúsculo do homem, ou pelo menos de como ele era. Eu deveria estar orando agora pela salvação da minha alma. Mas quem oraria ao Deus que o condenou? Com essas minhas palavras finais, eu destituo esse Deus vigente, e reescrevo o novo Gênese. Que aqueles que a este diário encontrarem, num futuro em que a humanidade possa ascender novamente à centelha da consciência e da razão, que o homem do porvir ache uma maneira de entender o que escrevo e aprenda com os erros de seus ancestrais, e a partir daí, darem continuidade a aurora vindoura do homem”. (MOREIRA, 2011)

Esse conto surgiu de uma consternação com as crianças que habitavam o meu bairro e que agiam como verdadeiros “selvagens”, vandalizando e aterrorizando a vizinhança. A azucrinação era tanta que chegaram a levar um vizinho idoso ao infarto fulminante. Essa história foi uma espécie de resposta a essa realidade que me cercava. Eu estava (mesmo sem saber) discutindo o meu tempo, o meu entorno. Mesmo que de forma ficcional e exacerbada, a relação com a vida é latente. Por mais que não a desenhasse, eu continuava a criar imagens e com elas contava histórias. Dei-me conta de que o processo de escrita não difere do desenho, ao menos no meu trabalho. Onde muitas vezes parto de um dado real para confabular um outro mundo possível, atribuindo-lhe sentido.

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26 e 27.O Evangelho do infanticida (2011) Valter do Carmo e Francisco Elber

28 e 29.O Evangelho do infanticida (2011) Valter do Carmo e Francisco Elber

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30 e 31.O Evangelho do infanticida (2011 Valter do Carmo e Francisco Elber

Já no processo deste primeiro trabalho formal, onde o meu suporte era os quadrinhos, surgiram questionamentos que se tornariam as sementes do presente trabalho de conclusão de curso, sendo eles: Quais as possibilidades dessa linguagem? Como abarcar dentro das HQs questões do mundo? Que território é esse que os quadrinhos habitam? Como mapear esse território onde texto e imagem se mesclam, sobrepondose ou justapondo-se num encadeamento fragmentário? Como abordar um suporte de leitura específica, que compreende um espaço de tempo único e intrasferível, que varia de leitor para leitor, possibilitanto que o mesmo infira sentido? Comecei então a perceber os quadrinhos como um “meio”, que de acordo com Marshall McLuhan, seria uma extensão de nós mesmos, de nossas mentes e de nossos sentidos, tornando-se um catalizador capaz de engendrar mudanças, influindo nas atividades e relações humanas através da mensagem (McLUHAN, 2005). Nesta pesquisa, procurei entender os quadrinhos como possibilidade de investigação poética capaz de afetar o leitor. Neste sentido, dialogando com a arte contemporânea, e entendendo o observador/leitor como força motriz e principal impulsionador deste processo transformador e reflexivo, Michael Archer, em seu Livro Arte contemporânea: uma história concisa, nos fala que “Observar a arte não significa “consumi-la” passivamente, mas tornar-se parte de um mundo ao qual pertencem essa arte e esse espectador. Olhar não é um ato passivo; ele não faz com que as coisas permaneçam imutáveis” (ARCHER, 2001, p.235).

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Esta aproximação que proponho dos quadrinhos com a arte contemporânea vem dessa sensação de esgotamento, onde o cânone (tanto das artes, quanto dos quadrinhos e suas HQs de “gênero” estabelecido como super herói, aventura, ficção científica, tirinhas de humor, charge etc.) não dá mais conta de abarcar esse mundo que nos cerca. A obra não é mais definidora, e tão pouco definida, como aponta Agnaldo Farias, que entende que a arte contemporânea (pode) ser, por definição, algo em processo (FARIAS, 2002, p.16). Assim, como os quadrinhos que veem se desenvolvendo em paralelo às artes desde o final do século XIX, sofrendo o mesmo impacto com a revolução industrial, a invenção da fotografia e do cinema. Muitas vezes, trilhando caminhos similares, mas sempre posto de lado, tido como uma expressão menor constantemente associado à dita baixa cultura ou a cultura de massa. Agnaldo Farias (2002), faz ainda uma analogia da arte contemporânea, equiparando-a a um arquipélago, “[...] porque cada obra engendra uma ilha, com topografia, vegetação e atmosfera particulares, eventualmente semelhante a outra ilha, mas sem confundirse com ela” (FARIAS, 2002, p.20). Para buscar esse novo olhar sobre as HQs, devemos entender os quadrinhos como mais uma ilha, onde: “Percorrê-la com cuidado equivale a vivenciá-la, perceber o que só ela oferece” (FARIAS, 2002, p. 20). Dessa forma, foi encarando os quadrinhos com esse olhar que meu interesse foi despertado para de alguma forma, engendrar-me, em uma pesquisa mais profunda sobre o universo e as possibilidades poéticas das histórias em quadrinhos, suas articulações com as artes plásticas e outras mídias. Isso proporcionou-me um retorno a tudo aquilo que tanto estimava na minha infância, sob uma nova ótica, mesclando, a minha bagagem pessoal com essa nova bagagem recém-adquirida, e em processo de mutação e contaminação mútua.

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2

capítulo

O TERRITÓRIO DOS QUADRINHOS Em busca de um novo olhar Em 2013, a partir da constatação de que parte da produção dos quadrinhos atuais, mais especificamente das graphic novels, apresentarem relações com as propostas das vanguardas históricas da primeira metade do século XX, (ainda se fazem atuais), me levou até o artista plástico inglês Dave McKean e seu trabalho como ilustrador da graphic novel Asilo Arkham: Uma séria casa num Sério Mundo [32], escrito por Grant Morrison, cuja relação maior com as vanguardas históricas se dá através do Dadaísmo e Surrealismo. Isto desencadeou em mim a vontade de pesquisar mais a respeito. Surgiu então a possibilidade de participar do PROIC (Projeto de Iniciação Cientifica) com a orientação da Professora Drª. Marta Dantas. Essa primeira incursão no campo da pesquisa se desdobra no presente trabalho de conclusão de curso, que também corrobora a ideia de que parte dessas graphic novels, ou “romances gráficos”, como também são conhecidas no Brasil, apresentam uma produção que não só estabelece relações com as propostas das vanguardas históricas, através das experimentações formais, da desconstrução, da não linearidade das narrativas, como também das micropolíticas e demais questões caras a arte contemporânea. Começo então a lançar um novo olhar sobre os quadrinhos, entendendo-o como possível herdeiro dessas questões de investigação formal e conceitual, como também de sua apropriação por parte da arte contemporânea. Dessas incorporações, Katia Canton Afirma que: Elementos herdados do modernismo – a abstração, a valorização dos aspectos formais da obra de arte, a não linearidade das estruturas de pensamento, a valorização dos mecanismos que compões os processos de concepção de uma obra – foram incorporadas pela arte contemporânea, que, por sua vez, a eles acrescenta uma relação de sentido, significado ou mensagem, criando nos processos aglutinadores da obra contemporânea, uma narrativa fragmentada, indireta, que desconstrói as possibilidade de uma leitura linear (CANTON, 2011. p. 36).

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“A arte sequencial opera sob um método empírico que define “visual” como uma série ou sequência de imagens que substitui uma passagem que seria descrita apenas por palavras”. Will Eisner

Essas confluências da arte moderna e contemporânea, suas relações de conceitos, significados e a desconstrução das linguagens, igualmente se reflete nas histórias em quadrinhos.

32. Asilo Arkham (1989) Grant Morrison e Dave Mckean

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É importante frisar que na recorrente pesquisa pretendeu-se falar dos quadrinhos de forma específica, tratando-os por graphic novel. Minha escolha por esse termo se deve ao fato de que este segmento da arte sequencial, segundo alguns estudiosos (CIRNE: p.58. 1977), é o que melhor define o presente objeto de pesquisa e que aproveita-se do meio para contar uma “história séria”2, tornando-se uma obra mais elaborada, com desenvolvimento de enredo e aprofundamento psicológico, do que comumente se vê nas prateleiras das bancas de jornal, isto é, trata-se de um segmento de história em quadrinhos mais autoral e menos comercial, no sentido de liberdade de criação e expressão por parte de seus autores, independentemente do tema tratado. No entanto, seu significado e uso no meio editorial e também entre os profissionais da área podem ser contraditórios. Não existe um consenso e não é o objetivo desta pesquisa dissertar sobre “este” ou “aquele” emprego do termo. Todavia, a utilização do termo graphic novel tem a pretensão de se pôr à contramão do senso comum, onde os quadrinhos ainda são vistos genericamente como uma forma de entretenimento massificado, alienante, escapista e fugaz, que resiste até os dias de hoje. Muito desse preconceito foi inflamado por teóricos famosos como Theodor W. Adorno e Max Horkheimer em a Dialética do esclarecimento (1985) como bem pontuou o professor e pesquisador das histórias em quadrinhos Moacy Cirne “... embora voltado basicamente para questões que dizem respeito ao cinema, critica com ênfase os mecanismos da comunicação de massa, indiretamente os quadrinhos são atingidos em sua fúria demolidora” (CIRNE, 2004, p.1). No entanto, Walter Benjamim em sua A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, nos traz uma visão mais otimista das possibilidades dessas novas mídias: Com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram tal nível que, em decorrência, ficaram em condições não apenas de se dedicar a todas as obras de arte do passado e de modificar de modo bem profundo os seus meios de influência, mas de elas próprias se imporem, como formas originais de arte. (BENJAMIN: p.12. 1975).

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Para os anglo-saxões existe o termo serious comics para designar este grupo de histórias e que também pode se referir a histórias que lidem com o humor (CIRNE: 1977, p.58). 2

Embora não se referisse necessariamente aos quadrinhos, Benjamin já apontava os produtos advindo de reprodução (cinema por exemplo) como uma forma de arte, no seio do avanço cada vez maior das técnicas de reprodutibilidade e difusão, surge a possibilidade das histórias em quadrinhos florescerem e ganharem espaço. Com a explosão das técnicas de reprodutibilidade a arte não se restringe mais a atitude contemplativa de poucos e privilegiados espectadores, modificando a atitude da massa diante da arte, novos caminhos puderam então ser traçados em função de milhões de consumidores. Essa massa acaba assumindo o papel de matriz, porque os novos acontecimentos artísticos, fundamentados na reprodutibilidade, permitem uma reação criativa em cadeia. Assim como o cinema (a maior aposta de Benjamin) os quadrinhos ampliaram as coordenadas da linguagem, da produção e investigação artística. Dentro desse nicho das histórias em quadrinhos, as graphic novels especificamente assumem aqui o papel de vanguarda, problematizando a produção imagética. Segundo Cirne, “[...] além da importância ideológica e social, os quadrinhos registram uma problematicidade expressional de profundo significado estético, tornando-se a literatura por excelência do século XX” (CIRNE, 1970, p.17). Esse tipo de definição proposto por Cirne é arriscada, mas compreensível se levado em conta a época em que foi escrito esse ensaio, entre as décadas de 60 e 70, as teorias comunicacionais ao redor do mundo buscavam a emancipação dos quadrinhos e, de alguma maneira, colocá-los ao lado das artes já institucionalizadas como a literatura e o cinema. Através de um novo olhar crítico sobre a descoberta das potencialidades criadoras dos quadrinhos, Umberto Eco, com sua A obra aberta de 1962, levanta uma série de preocupações acadêmicas, que mais tarde se cristalizaria num livro considerado por muitos pesquisadores como o próprio Moacy Cirne, um marco desse novo olhar (para a época) sobre os quadrinhos: Apocalípticos e integrados (1970). Com essa obra, Umberto Eco lança as bases de uma crítica semiótica das histórias em quadrinhos, que o autor chama de “semântica dos quadrinhos”. No alvorecer do século XXI, Moacy Cirne em seu livro: Quadrinhos, sedução e paixão (2000), aponta novas possibilidades para a crítica dos quadrinhos, procurando compreender os mecanismos criativos das histórias em quadrinhos, seus desdobramentos, suas vertentes e seus possíveis caminhos, através de uma leitura aberta às mais diferentes vertentes do pensamento ocidental do século XX, tais como a epistemologia, o marxismo, o existencialismo e a antropofagia. Mas, infelizmente sua trajetória foi interrompida com seu falecimento em janeiro de 2014. 59

Aliando essa primeira experiência no campo da pesquisa (o trabalho desenvolvido no PROIC, com a orientação da Prof.ª Drª Marta Dantas) junto ao desenvolvimento do meu trabalho poético, surgiu a ideia de produzir a minha própria Graphic novel, intitulada: “Inconcebível”, que conta a história de um jovem casal em crise, tendo a falta de comunicação como eixo central da história. A ideia seria explorar isso por intermédio de uma narrativa fragmentada e anacrônica, desconstruindo a estrutura formal da página de quadrinhos, através da justaposição de imagens e seu encadeamento, da dissociação de imagem e texto, experimentando, plástica e conceitualmente, as possiblidades de desenvolvimento de novas formas de linguagem que as histórias em quadrinhos proporcionam. Almejei neste momento dar continuidade a ruptura no paradigma da arte sequencial, que já vem sendo questionada e trabalhada por diversos artistas ao longo dos anos, rompendo com seu caráter sempre associado à cultura de massa que traz consigo certas barreiras que parecem impedir seu desenvolvimento pleno como manifestação artística tal qual o é. Para Scott McCloud, “o potencial desse meio é ilimitado, mas perpetuamente obscurecido por sua aplicação limitada à cultura de massa” (McCLOUD, 2006 p.1). Algumas graphic novels, como Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo, escrita por Grant Morrison e ilustrada por Dave McKean (meu objeto de pesquisa no PROIC), se mesclam à outras linguagens artísticas e, constantemente, se alimentam não só das práticas mais diversas como o cinema e a fotografia, mas também encontra uma fonte inesgotável na história da arte. Assim sendo, a proposta da presente pesquisa, consistiu em explorar as possibilidades de investigação poética e os possíveis caminhos que as histórias em quadrinhos nos colocam, contribuindo na construção de um novo olhar e entendimento sobre essa mídia, tão rica de possibilidades e em constante ebulição.

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Ruptura e a vanguarda dos quadrinhos

CRUMB, Robert. Introdução in: Fritz the Cat. São Paulo, SP: Corad Livros, 2002. p. 9.

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Michael Archer no seu livro Arte contemporânea uma história concisa (2001), nos aponta que depois da década de 1960 já não existiam mais certezas ou permanências no que diz respeito a classificação da arte, ou seja, os parâmetros usados anteriormente para avaliar as qualidades do objeto artístico já não davam conta da diversidade de ocorrências e manifestações engendradas no campo das artes da citada data em diante (ARCHER, 2001, p.1). Nos quadrinhos, a década de 1960 foi marcada pelo surgimento dos quadrinhos underground norte-americanos, altamente influenciado pela geração Beat da década anterior, corporificando-se na figura de Robert Crumb, que começou publicando seus quadrinhos em revistas independentes como a Help! Editada por Harvey Kurtzman, criador da MAD, segundo Crumb, sua principal fonte de inspiração3. Tamanha é a importância e influência do trabalho de Kurtzman, que em 1988, foi criado o Harvey Award, importante premiação que distingue obras e autores de histórias em quadrinhos. Foi na Help! Que Crumb publicou pela primeira vez um de seus mais famosos personagens, Fritz the cat [33]. Em 1967, Crumb prepara uma nova revista em quadrinhos que seria o marco inicial dos quadrinhos underground, a Zap comix n° 1 [34]. Crumb trazia temas da geração Hippie, discutindo o seu tempo e o seu entorno, com uma liberdade criativa que contrastava com tudo que fora feito até o momento. Essa efervescência juvenil dos anos 1960 percorreu o mundo levando consigo os ideais da geração paz e amor, a moda, o rock psicodélico e também os quadrinhos underground. Segundo Giulio Carlo Argan, A Pop Art encarava as histórias em quadrinhos “como um dos sintomas mais preocupantes da propensão da sociedade contemporânea a negligenciar o discurso, a linguagem articulada e a literatura” (ARGAN, 2010 p. 584). Seus dois principais representantes Andy Warhol e Roy Lichtenstein [35], parecem não terem levado em consideração o que estava sendo feito à margem dos quadrinhos comerciais, atendo-se apenas à banalidade de publicações que pouco exploravam as possibilidades da linguagem e do discurso dos quadrinhos, restringindo-se às questões técnicas de reprodução tipográfica. 61

34. Zap Comix 1 (1967) Robert Crumb

35. Drowning Girl (1963), óleo e magma sobre tela, Roy Lichtenstein

33 Fritz the Cat (1965) Rbert Crumb

36. Comic Code Authority (1958)

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Produzidos paralelamente ao mercado editorial, os quadrinhos autorais passam muito longe do escapismo pueril das histórias em quadrinhos comerciais. Esse vazio criativo produzido em escala industrial, com suas imagens assépticas e repetitivas, são frutos da submissão da indústria à CMAA - Comics Magazine Association of America ou Associação Americana de Revistas em Quadrinhos, organização a qual foi atribuída a autoridade pela observância da aplicação do “Código dos Quadrinhos” (Comic Code Authority) [36], foi criada na década de 1950 pelas editoras como uma forma de autocensura em resposta a uma recomendação do Congresso e ao clamor moralista insuflado pelo psiquiatra Fredric Wertham4, autor do livro Seduction of the Innocent (Sedução do inocente)5. Essa auto-regulamentação modificou o conteúdo de todas as revistas que ostentavam o selo, devendo submeter-se quanto a escolha de temas, o uso de palavras, e até mesmo as cores usadas nas histórias. Os quadrinhos underground por outro lado, transgrediam todo e qualquer tipo de regra, seja moral, gráfica ou editorial, seus autores tiveram que reinventar quase completamente os quadrinhos, segundo Santiago García, “conservando o suporte, mas refazendo seus orçamentos industriais, seus processos de produção e distribuição, e também conteúdos e forma de expressão.” E ele ainda afirma que “essa ruptura foi equivalente à ruptura do modelo acadêmico hegemônico por parte das vanguardas artísticas, ou seja, uma autêntica mudança de paradigma”, convertendo definitivamente as histórias em quadrinhos em leitura para adultos (GARCÍA, 2012 p. 276-277).

Psiquiatra Norte-americano, chefe do Bellevue, Maior hospital psiquiátrico de Nova York. Werthan publicou em 1954, Seduction of the Innocent, que descreveria em detalhes a suposta influência nefasta que as histórias em quadrinhos exerciam sobre as crianças americanas. 4

5 JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Nome pelo qual são chamadas as histórias em quadrinhos nos países francófonos. 6

Os comix, como ficaram conhecidos os quadrinhos underground norte-americanos, chegaram à Europa, misturando-se à tradição da Bande Dessinée6 Franco-belga, culminando numa das mais influentes publicações de toda a década de 70 e 80, a revista Métal Hurlant (1975) [37] contribuindo substancialmente no desenvolvimento experimental da linguagem dos quadrinhos, renovando o sistema tradicional, produzindo histórias eletrizantes e surreais, mantendo uma predileção pelo fantástico e pela ficção cientifica. Desse novo celeiro criativo, podemos destacar um artista que sintetiza a inovação visual perpetrada pela Bande Dessineé, Jean Giraud, mundialmente conhecido como Moebius. Dentre seus trabalhos mais influentes podemos destacar O Incal (1981-1988) [38] feito em parceria com esotérico roteirista, escritor, poeta, dramaturgo e cineasta, Alejandro Jodorowsky. Moebius também escrevia suas próprias histórias, como Arzach (1976), A Garagem hermética (1976-1980), O Mundo de Edna (1983-2001) [39], e tantas outras. Seus quadrinhos atravessaram gerações fazendo escola, não só na Europa, mas também ao redor do mundo. 63

Dos quadrinhos alternativos ao reconhecimento das Graphic novels Will Eisner é tido hoje como um dos maiores responsáveis pela elevação do status dos quadrinhos pela crítica e pela mídia, via nos quadrinhos undergrounds uma possibilidade das HQs aspirarem a um novo patamar de reconhecimento, paralelo ao mercado dominado por histórias em quadrinhos de super-heróis, empreendidas por gigantes editoriais como a Marvel, lar do Homem-Aranha, X-Men, Vingadores e companhia, e a DC, com os medalhões: Batman, Super-Homem, Liga da justiça, entre outros. Tanto os quadrinhos underground norte-americanos, quanto os luxuosos albums de Bande Dessinée europeus, já haviam comprovado a validade da linguagem dos quadrinhos como meio de comunicação capaz de atingir leitores maduros, que ansiavam por algo mais que mero entretenimento, aprendendo que os quadrinhos não são inerentemente infantis e podem alçar novos horizontes como forma artística. Eisner pretendia alcançar esses leitores adultos criando quadrinhos com temas adultos, que interessasse não só a esse público já formado de leitores de comics, mas que pudesse alcançar também um público que não era leitor habitual de quadrinhos. Para isso os quadrinhos precisariam alcançar uma respeitabilidade literária, lançando mão do termo “graphic novel”, último recurso na tentativa de vender seu trabalho a alguns editores de livros que jamais lhe dariam a atenção se passassem por suas cabeças que aquilo que tinha em mão era um gibi. Foi com muito esforço e dificuldade que em 1978, Eisner consegue publicar Um contrato com Deus, [40] criando o embrião que se tornaria um novo formato para a publicação de histórias em quadrinhos. Um contrato com Deus, segundo Santiago García, apresenta: Um dos traços que serão característicos dos quadrinhos alternativos e que se manterão como artéria principal da novela gráfica atual: a introdução da autobiografia, ou pelo menos da memória e dos elementos autobiográficos (GARCÍA, 2012, p. 216).

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37. Métal Hurlant 1 (1975) Vários

39. O Mundo de Edna (1983-2001) Moebius

38. O Incal (1981-1988) Alejandro Jodorowsky e Moebius

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41. Maus (1986) Art Spigelman

40. Um Contrato com Deus (1978) Will Einer

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Na história, o religioso protagonista se rebelava contra Deus após a morte de sua afilhada, passando de um homem bondoso e caridoso a uma pessoa mesquinha e cruel, acreditando que seu contrato particular com Deus havia sido rompido. Segundo declarações feitas pelo próprio Eisner, a ideia de escrever essa história surgiu como consequência do falecimento precoce de sua filha Alice. Experiências pessoais e memórias de infância são recorrentes nos trabalhos posteriores de Will Eisner, onde rememoraria inúmeras vezes uma Nova York dos anos 20, através dos olhos de seus personagens. Apenas dez anos depois que Eisner plantou sua semente no meio editorial e na cabeça de muitos leitores, é que sua contribuição gerou frutos. Assim, como Harvey Kurtzman, Eisner foi agraciado com a homenagem de ter uma premiação que prestigia os profissionais dos quadrinhos, com o seu nome, o Eisner award. Em 1986 ganharia a luz uma obra prima dos quadrinhos, Maus [41] de Art Spiegelman, que veio a consolidar a graphic novel de uma vez por todas. Spiegelman se propôs a testar os limites da narrativa e da representação, colocando em xeque todas as convenções do meio. Maus, conta a história vivida por seus pais em Auschwitz, da forma como seu pai a narrava para ele o que havia acontecido. Transcendendo o tempo, além do momento histórico do holocausto, apresentando-nos também o legado de suas chagas, através das gerações, de pai para filho. A grande sacada narrativa de Spiegelman foi, sem dúvida, a representação dos personagens da história como animais antropomórficos, sendo os judeus como ratos; os nazistas como gatos; os poloneses como porcos; os americanos como cães, etc. Lançando mão dessa alegoria com animais, Spiegelman se propôs a contar o episódio mais traumático do século XX, através da linguagem dos quadrinhos. “A questão da ‘realidade’ que era tão crucial para os quadrinhos autobiográficos, se tornava em Maus verdadeiramente urgente”, aponta Santigo García, “ao reconfigurar a memória como uma fantasia de ratos e gatos falantes, Spiegelman não só nos permitiu imaginar o que aconteceu ali, mas nos obrigou a fazê-lo, talvez pela primeira vez” (GARCÍA, 2012 p. 228). Em 1992, Spiegelman foi agraciado com o prêmio especial Pulitzer, tal categoria foi propostas pelo comitê de premiação, pela indecisão em categorizar Maus como uma obra de Ficção ou biografia. 67

Na esteira do reconhecimento crítico da graphic novel, Os quadrinhos mainstream também se reinventaram, disposta a chacoalhar o mercado, a gigante editora DC comics lança no final da década de 80 duas HQs que iriam mudar a maneira de se ver e se fazer gibis de super-heróis. Frank Miller e Alan Moore, os primeiros a assentarem o termo graphic novel na indústria de quadrinhos de super-heróis, com trabalhos ousados e instigantes, revitalizaram o gênero a muito desacreditado. O primeiro, com uma história de Batman, intitulada: O cavaleiro das trevas (1986) [42] escrita e desenhada pelo próprio Frank Miller, responsável por redefinir o personagem. E o segundo, com uma série que transformaria para sempre o jeito como os leitores olham para os super-heróis: Watchmen (1988) [43] escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. Ambos ousaram a imaginar sob um olhar mais realista e adulto, como seria o mundo se os super-heróis realmente existissem. Com um profundo apelo psicológico e político, apresentaram-nos uma desconstrução irônica e pós-moderna, criticando duramente os caminhos que a sociedade vinha tomando. Esses autores provaram ser possível “criar trabalhos com alguma relevância para um mundo que se altera rapidamente, no qual a indústria e os leitores que a sustentam realmente sejam considerados” (MOORE, 1988, p.2). Agora, no século XXI, os quadrinhos chegaram ao auge desse processo, não tendo mais que se desculparem por ser gibi, tornando-se definitivamente uma plataforma de investigação poética. Novíssimos autores surgem e continuam surgindo a fim de contribuir para a proliferação de possibilidades estéticas e conceituais dos quadrinhos, desconstruindo-os, utilizando-se de seus recursos próprios enquanto linguagem, fugindo de uma tradição de “narrativa cinematográfica” e recuperando o valor da página como elemento visual, que se lê as palavras e imagens simultaneamente. Levando ainda em consideração o desenho e sua materialidade, forçando seus limites ao extremo. Dessa nova safra de autores que vem fazendo um trabalho distinto, podemos destacar Chris Ware, e o seu Jimmy Corrigan (2000) [45] cujo tema central é a solidão e o abandono, explorado a linguagem dos quadrinhos de forma pouco convencional; Chester Brown, com seu Pagando por sexo (2011) [44], traz uma discussão insólita e inusitada para os quadrinhos, relatando as memórias do período em que o próprio autor se relacionava com prostituas, revelando-nos como é ser um “John”, gíria inglesa utilizada para os clientes das profissionais do sexo. Segundo Erico Assis, “uma espécie de ensaio em defesa do sexo pago e contra a tirania do amor romântico” (Assis, 2011). 68

42. Batman, O cavaleiro das trevas (1986), Miller, Jonson e Lynn Varley

43. Watchmen (1988), Alan Moore e Dave Gibbons

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E por fim, os gêmeos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá que com Daytripper (2010) [46] consolidaram seu reconhecimento ao redor do mundo. Daytripper é uma história sobre o cotidiano, o dia a dia e tudo que pode acontecer independente de nossa vontade e de nossas decisões. Os gêmeos propõem submeter seu protagonista Brás de Oliva Domingos, escritor de obituários de um jornal de São Paulo, a “viagens de um dia”, ao longo de 10 capítulos, começando pela inusitada morte do personagem principal. A cada episódio temos um momento distinto da vida de Brás, que vai desde sua infância a velhice, onde o inevitável destino sempre o alcança. A morte não é encarada pelos gêmeos como uma fatalidade, mas, como o caminho natural da vida, mostrando o quanto estamos sujeitos às banalidades do destino. Esse pequeno panorama das histórias em quadrinhos, muito longe de ser qualquer coisa que não uma mínima amostragem do que essa linguagem pode proporcionar, não cabendo aqui um mergulho mais profundo, o que infelizmente me obrigou a deixar de lado pelo menos umas centenas de outros incríveis autores e tantas outras obras extraordinárias. O leitor interessado em se aprofundar nesse universo deve encarar os quadrinhos citados apenas como um ponto de partida para suas leituras, e então, começará a arranhar a superfície das possibilidades de investigação poética e articulações com outras linguagens que só as histórias em quadrinhos possibilitam. Na minha tentativa de mapear o território presente das histórias em quadrinhos, ecoa em minha mente as palavras de Leo Steinberg, ouvidas em uma aula incrível ministrada pela professora Maria Carla Guarniello de Araújo Moreira, na disciplina história da Arte contemporânea em meados 2013, onde, se bem me lembro, ela nos narrava o confronto de “foices” entre Leo Steinberg e Clement Greenber, onde o primeiro se rebelava contra um dos pilares do pensamento Greenberguiano, que seria a crítica como uma rede de princípios sólidos e imutáveis, em seguida nos leu uma passagem do texto Outros critérios de Steinberg:

O crítico interessado numa nova manifestação, mantem afastado seus critérios e seu gosto. Uma vez que foram formulados com base na arte anterior, ele não presume que sejam adequados hoje. Enquanto busca compreender os objetivos subjacentes a nova arte produzida, nada é excluído ou julgado irrelevante a priori. (STEINBERG: p. 183. 1987).

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Daquele dia em diante, aquela aula ficou na minha memória, assim como o problema trazido por Steinberg. Encontro-me face a face com essas questões de análise crítica, e me arrisco dizer que para mapearmos o território dos quadrinhos, devemos avançar sobre sua densa vegetação, sem ignorar suas nuances, vegetações especificas ou se deixar desanimar pelo terreno muitas vezes sedimentado. E por mais que retornemos, muitas vezes ao ponto de partida, é preciso ir em frente e olhar tudo novamente, como se fosse a primeira vez.

44. Pagando por sexo (2011) Chester Brown

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45. Jimmy Corrigan (2000) Chris Ware

46. Daytripper (2010) Fábio Moon e Gabriel Bá

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capítulo

INCONCEBÍVEL Processo e criação Inconcebível é uma HQ escrita e desenhada por mim, que conta a história do jovem casal Lis e Fernando. Eles vivem em um apartamento alugado, estão juntos há dois anos, mas ainda não se conhecem de verdade. Existe um abismo que os separa, uma distância criada pela falta de comunicação recíproca, e tudo aquilo que não foi dito,mudará suas vidas para sempre. Este é o ponto de partida desta HQ, assim como O evangelho do infanticida (2011), Inconcebível surge de uma consternação: a falta de comunicação. O nosso drama é a incomunicabilidade que nos isola uns dos outros criando abismos invisíveis, e é destes abismos que trata Inconcebível. Tudo começa com uma ideia, e essa ideia se torna uma imagem, e uma vez introjetada em mim, como uma semente, ela se ramifica e floresce, tornando-se com o tempo, mais complexa. Neste ponto, o meu dever é cuidar para que essa ideia não morra antes de dar seus frutos. Foi no terreno fértil dos quadrinhos, que eu encontrei um lugar ideal para semear essa ideia, um lugar de possibilidades, capaz de abarcar essa história, que não é uma história de grandezas, muito pelo contrário, Inconcebível trata das pequenezas cotidianas e seus potencias de estranhamento. Muitas vezes próximos a nós, os personagens enfrentam um problema comum a todos, a dificuldade de se relacionar com o outro. Existe hoje nos quadrinhos atuais um interesse por parte dos artistas, nas questões do cotidiano, na memória, e nas banalidades do dia a dia. É dessas particularidades e idiossincrasias da vida que surge um novo folego para as histórias em quadrinhos e para a arte em geral. A artista Vania Mignone, em sua fala na abertura da exposição Cartografias cotidianas (2011), fala um pouco sobre isso: 74

“É da sequência dos eventos que deriva a nossa ideia de tempo”. J.B. Priesley.

Ás vezes, o artista tem dúvidas sobre o que fazer e procura informações longe de sua vida, usando como referências guerras, tribos distantes. No entanto me parece mais coerente prestar atenção no dia a dia, naquilo que está acontecendo nas suas proximidades, na maneira com que os móveis estão dispostos em casa, no que se pendurou para enfeitá-la, no filme assistido. As referências podem estar absolutamente próximas, e quebra-se a cabeça tentando pensar em algo grande, poderoso, que impressione e chame a atenção, quando acredito que não é nada disso; o que é poderoso e significativo é a coisa mais banal, aquilo que as pessoas nem percebem quando passam, não veem, mas está muito perto, ao lado. Isso, no início, é muito importante – mesmo para quem vai fazer coisas gigantescas – o começo deve considerar o que é íntimo: o jeito que um sapato ficou no chão, a própria mão ou o pé. É por meio da atenção a esses detalhes, do que é mais particular, que surgem as motivações para fazer arte (MIGNONE In, VILLA; COELHO, 2011. p.116).

É esse interesse citado por Mignone que move os quadrinhos atuais, estabelecendo diálogos com questões contemporâneas. Nesse sentido, Katia Canton nos diz que “Em vez de uma arte per se, potente em si mesma, capaz de transcender os limites da realidade, a arte contemporânea penetra as questões cotidianas, espelhando e refletindo exatamente aquilo que diz respeito à vida” (CANTON, 2011. p. 35). Percebo os quadrinhos como um território onde a imagem e a escrita confluem e se justapõe de forma indissociável. Essa linguagem singular então torna-se uma rica plataforma de investigação poética.

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A matéria prima deste trabalho é o cotidiano, suas idiossincrasias e contradições. Em Inconcebível exploro as relações humanas através de suas particularidades intrínsecas, fazendo-se perceber como coisas simples, ou, aparentemente banais, tomam, dimensões estrondosas, e coisas tão simples como a comunicação pode desestabilizar uma vida. Isso aponta para o nosso tempo, onde tudo é dito e nada que realmente importa tem voz, um mundo onde não se consegue dizer. Se existe uma linguagem que possa encarnar o meu trabalho, essa seria o desenho, pois é por meio dele que eu ressignifico o mundo, ou crio o meu próprio. É pelo desenho que se inicia o desenvolvimento do meu processo criativo, ele (o desenho) sempre me acompanha, é por meio dele que eu foco e desvendo o meu entorno. No entanto, apenas o desenho não dá conta de tudo que eu tenho a dizer, e nos quadrinhos, encontrei a minha voz. Como dito antes, a ideia para Inconcebível partiu de uma consternação particular, ao perceber o nosso drama que é a incomunicabilidade. A partir daí, várias imagens brotaram na minha cabeça e uma delas era a de uma garota jovem que não conseguia contar para seu namorado que estava grávida. Ela simplesmente não sabia o que fazer. Imaginei essa garota, com os dentes incisivos maiores que o normal e projetados para frente, o que na verdade é um problema maior do que aparenta. Essa garota ganhou o nome de Lis, Elisângela. Para contar a história da gravidez de Lis, era preciso não só criar tal história, mas criar-lhe toda uma vida. Para existir, Lis precisaria ter um passado. E assim, começou o meu processo de concepção de Inconcebível. Paralelo aos desenhos que brotam da minha imaginação, comecei a escrever a história de Lis em prosa, como uma novela. Para criar seu temperamento, e tornar suas ações verossímeis, precisei criar um passado e uma infância, onde diversas circunstâncias de sua vida moldariam sua personalidade. Foi mais de um ano, desde a ideia inicial, escrevendo esta história, mesmo sabendo que boa parte dele não chegaria ao conhecimento de um futuro leitor, pois o que viria a ser o Inconcebível, seria apenas o recorte de um momento de sua vida. 76

47. Lis Concept, Tamanhos diversos.

Diferente do que se imagina, esse não é um processo linear, tão pouco a sua forma de organização. Idas e vindas no tempo foram necessárias para constituir a sua história, sua personalidade e os acontecimentos que marcaram sua vida. Mas Lis não é a única personagem dessa história, temos também Fernando, seu namorado, e sua mãe, só para citar os que aparecem na história contada na HQ. Vários desenhos foram feitos até eu encontrar a imagem ideal para dar vida a Lis. Tanto sua imagem presente, quanto de sua infância, precisaria, de alguma forma, refletir sua persona. Depois disso, passo para a estrutura do roteiro, onde organizo e planejo cada quadrinho de cada página do livro inteiro. Este processo também não é linear, e o fato de ser um processo meticuloso não impede de que o acaso e novas ideias surjam. Em cada parte do processo, tudo que foi criado antes, muda, é tudo muito orgânico, e quanto mais complexo é o universo criado, mais parece que ele tem vida e vontade própria. Depois do roteiro completo, passo para os Layouts das páginas. É aqui que consigo pela primeira vez ter uma ideia de como as páginas vão ficar visualmente, onde será colocado o texto, se usarei balões, ou outros recursos. Neste projeto, só comecei a desenhar de fato, após a finalização dos Layouts. Não existe uma regra, todo esse processo é intuitivo, e a hora de transpor para o desenho, o que previ no roteiro inicial em palavras, é o que torna todo o processo mágico. Nem tudo que foi escrito é possível de se traduzir em imagens, e ao mesmo tempo, existem imagens indescritíveis. O que torna o processo de se fazer histórias em quadrinhos maravilhoso, é poder articular com esses dois mundos, o da imagem e o da palavra, buscando algo além de suas limitações. Após a finalização dos Layouts, começo a desenhar as páginas “verdadeiras”. Aqui tudo muda, pois as decisões que forem tomadas, serão definitivas.

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48. Inconcebível, as duas primeiras páginas da história em prosa.

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49. Layout e finalização, Inconcebível página 05 (2014).

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50. Inconcebível, Rascunhos manuscritos, e roteiro, páginas 04 e 05.

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51 e 52, Foto Valter (2014). Ao lado, Capa de Inconcebível (2014).

A HQ Inconcebível, existe não como anexo, mas como desdobramento dessa pesquisa, mantendo dialogo com tudo que foi discutido até aqui. Se faz presente não como mero exercício, mas como experimentação formal e conceitual, unindo a pesquisa e a poética em um único corpo, embora o conhecimento do pesquisador e a vontade do artista nada podem fazer, a não ser submeter-se ao fluxo de potência que é a criação, espontânea e surpreendente, nos conecta com o mundo de uma outra forma, estabelecendo um elo de comunicação, por vias inesperadas.

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considerações finais

Um novo começo Ao longo dos últimos dois anos, essa pesquisa me proporcionou um novo entendimento do que é a Arte, desierarquizando os quadrinhos em relação a ela, percebendo-o como mais um fio condutor da vontade e expressividade do homem, mais um viés de comunicação, assim como o é o cinema, a fotografia, a música e tantas outras linguagens que erroneamente avaliamos em separado, como se não fizesse parte de um mesmo conjunto de coisas que tronam presentes à vontade e imaginação do homem no mundo. Os quadrinhos, hoje mais do que nunca, nos mostra ser possível discutir através de sua linguagem específica questões profundas e caras ao homem, seja a falta de comunicação, as dificuldades de se relacionar com o outro, conflitos de ordem psíquica, ou arquétipos do imaginário coletivo; imaginário esse muitas vezes catalizador das contradições que definem o drama humano. Os quadrinhos ainda nos fazem olhar para nossa herança artística com frescor, sendo capaz de atualiza-la e junto também suas discussões, achatando nossa ideia de tempo ao estabelecer diálogos ora com as pesquisas e investigações que dizem respeito a arte contemporânea, ora com o Barroco, ou mesmo as vanguardas artísticas. Realizar essa pesquisa foi um grande desafio, devido à escassez de material de referência atual em nosso país, tanto por parte dos pesquisadores brasileiros, quanto à tradução de pesquisas internacionais que relacione as HQs com as artes visuais. Sendo grande parte destas referentes a semiótica, educação ou teorias da linguagem. Pouco se trata da subjetividade dos quadrinhos ou sua capacidade de se relacionar com as demais linguagens e campos do conhecimento, que é o que interessa a este pesquisador. Que esse trabalho de conclusão de curso seja só o começo que em um futuro próximo, essa pesquisa possa desabrochar e vir a tornar-se uma dissertação, ou até mesmo uma tese. Que essa primeira inserção contribua de alguma forma para que novos pesquisadores se lancem com coragem nesse campo de vegetação vasta, embora não mais virgem, carente de trilhas que nos levem a lugares maravilhosos escondidos em seu interior. 86

“Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a volta a contemplar elementos já vistos. Assim, o ‘antes’, se torna ‘depois’, e o ‘depois’ se torna ‘antes’. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o do eterno retorno” Wilém Flusser

bibliográfia

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