Histórias Embriagadas: uma análise diferenciada sobre garrafas de sítios foqueiros na Antártica nos séculos XVIII e XIX

July 22, 2017 | Autor: André Siqueira | Categoria: Historical Archaeology, Storytelling, Antartica, arqueología en Antártida
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Histórias Embriagadas: uma análise diferenciada sobre garrafas de sítios foqueiros na Antártica nos séculos XVIII e XIX

ANDRÉ CRUZ MORENO SIQUEIRA

Histórias Embriagadas: uma análise diferenciada sobre as garrafas de sítios foqueiros na Antártica nos séculos XVIII e XIX

Monografia de Graduação apresentada ao Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais Professor Orientador: Dr. Andres Zarankin

BELO HORIZONTE ABRIL DE 2014 André Cruz Moreno Siqueira Copyleft

André Cruz Moreno Siqueira

Histórias Embriagadas: uma análise diferenciada sobre as garrafas de sítios foqueiros na Antártica nos séculos XVIII e XIX

Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal de Minas Gerais como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais

BANCA EXAMINADORA Professor Doutor Marcos André Torres de Souza

Agradecimentos Esta tese foi fruto de um longo caminho, penosamente percorrido e do qual várias pessoas participaram de sua construção. Primeiro gostaria de agradecer ao Professor Andres Zarankin por me permitir a possibilidade de estudar Antártica e por compartilhar a paixão pelo assunto, além das diversas oportunidades a da confiança em mim depositada. Muito obrigado. Da mesma maneira gostaria de agradecer imensamente a todo o pessoal do LEACH e ao pinguim-rei: ao Will, pela sua maravilhosidade com a vida, a Fernanda, por se recusar a encaixar as pessoas em caixinhas e sempre tentar ver as coisas boas, a Jimena, por compartilhar a paixão por séries e pelo título, à Gerusa, por toda sua malemolência. E também aquela que me disse um dia que é imbecilidade desistir de um sonho só porque é dificil, é so ir lá e fazer; também a Ba, sem você eu não seria quem sou hoje. Gostaria também de agradecer a minha familia, em especial a meu pai que, por mais que não compreenda, aceite e ao meu cão, pela amizade e amor sem julgamento. E a meu irmão, pela revisão. Aos meus amigos mais antigos: Pedro, Tampa, Túlio, Lulu e o resto dos batatas: se eu pudesse escolher pessoas para passar mais vinte anos da minha junto, seriam vocês.

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Por fim, gostaria de agradecer a Quel, sem você essa monografia não teria existido, muitoo obrigado pela ajuda, bibliografia e, principalmente, amor durante o processo.

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Resumo Este trabalho se insere dentro de uma pesquisa mais ampla sobre a forma de vida dos foqueiros que exploraram a Antártica durante o século XIX, pesquisa essa coordenada pelo professor Zarankin. Esta pesquisa busca, com o uso de uma metodologia diferenciada, dar voz a atores silenciados pela arqueologia tradicional e evidenciar de que forma a vida cotidiana pode ser observada através do estudo das relações entre os humanos e os objetos. Nesta monografia é abordado o lugar das bebidas alcóolicas dentro do dia a dia dos foqueiros, sempre tratando os objetos como seres históricos, capazes de influenciar a realidade. Palavras chave: Arqueologia Histórica, Arqueologia Antártica, Biografia de um objeto, garrafa. Abstract This work is integrated in a bigger research about the way of life of the sealers who visited the Antarctic during the XIX century; this research is coordinate by the professor Dr. Zarankin. This research objectifies, using a different methodology, give voice to normally silenced actors by the traditional archaeology and shows how the daily life can be watched by the study of the relation between the humans and the objects. This research is about the liquor, and the place it’s occupy in the daily life of the sealers and whalers, always treating the objects as historical beings, capable of influence and negotiate the construction of reality. Key Words: Historical Archaeology, Antarctic archaeology, Biography of an object, bottle.

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Sumário

Prefácio………………………………………………………………………………....9 Capítulo1: Sobre meu nascimento…...............………………………………..…….…12 Capítulo 2: Uma jornada muito esperada.......................................................................18 Capítulo 3: Vida no navio .............................................................................................39 Capítulo 4: No continente gelado...................................................................................51 Epilogo...........................................................................................................................69 Capítulo 5: Discussão Teórica e conclusões..................................................................70 Bibliografia....................................................................................................................72

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“contra uma visión angostadora y restrictivamente eurocéntrica contra uma inapropiada separación de la historia antártica y la historia del Pacífico, contra la asimilación de historia de la Antártica sudamericana que es eminentemente marítima a la histoira terrestre de la conquista del Polo, y otras extrapolaciones y simplificaciones que han contaminada la historia de la Antártica debe proyectarse um pensamiento histórico que comprenda apropiadamente que la historiografía de la Antártica, a diferencia de la de otros continentes, no es uma histoira en sí misma, sino la forma particular que el ser humano ve reflejado el sentido próprio de su existencia” (BERGUÑO, 1966)

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Prefácio A idéia de fazer um trabalho de conclusão de curso sempre me assustou um pouco, não só devido ao tamanho e complexidade, mas principalmente pelo que viria depois. Sair da academia e se tornar estatística de desemprego nunca foi uma coisa que esperei com ansiedade. Porém, o que sempre me assustou mais foi a perspectiva de reproduzir algo que não acredito em meu trabalho. Seguir os paramêtros da academia nunca foi uma coisa simples para mim, não somente por sua complexidade mas, principalmente, por não concordar com várias das premissas básicas que a gerem, em especial as dicotomias clássicas estruturadas durante o período que deu origem a acadêmia e que perduram até hoje - tais como a divisão entre academia e sociedade, subjetividade e objetividade, a estrutura tradicional de sala de aula, a própria formação dos currículos - organizados de forma publish or perish, etc. Outro ponto, que também me incomoda e ao qual também tentei fazer uma crítica com a construção deste trabalho, é sobre o machismo que marca a construção acadêmica e é sustentado pela nossa lingua, que por sua própria estrutura – ao tratar os plurais como masculinos e tratar o homem como personagem principal; dificulta a criação de discursos mais plurais – assim como diversas outras linguas que tem origem no latim. Assim, essa monografia se coloca também enquanto feminista, na medida em que tenta fugir dessa lógica com o uso da letra x, sempre que tratar de plurais. Além de tentar explorar, utilizando palavras diferentes ou com a própria idéia da construção das personagens, outras maneiras de tratar a lingua de forma a evitar que o discurso machista seja reproduzido nestas páginas.

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Assim, procurei durante toda a execução deste trabalho realizar um exercício que objetive fugir destas definições clássicas e proponha um tipo de trabalho acadêmico menos restritivo, que, não apenas possa ser compreendido por indivíduos alheios ao mundo acadêmico, mas que seja também objeto de interesse por parte destas pessoas. Em poucas palavras: algo que fosse interessante, chamasse a atenção e fosse compreensível. Porém, como fazer isto? De que forma é possivel retirar a arqueologia deste lugar que ela ocupa, separada da realidade e presa na torre de marfim? Comecei a pesquisar e ler diversos trabalhos que buscavam este mesmo objetivo, principalmente aqueles relacionados à arqueologia pública. Alguns autores que tratam sobre isso no contexto brasileiro são: Andres Zarankin – Histórias de un pasado em blanco, Tânia Andrade de Lima – com os trabalhos ligados a escavação do calongo, e suas obras mais clássicas, José Roberto Pellini com seus trabalhos de arqueologia sensorial, Pedro Paulo Funari com seus textos introdutórios que permitem uma fácil aproximação e famialirização com a linguagem arqueológica e Márcia Bezerra. Já pensando em um contexto mais internacional, alguns dos autores que mais me chamaram a atenção são Cornerlius Holtfort, Mary Beaudry, Alejandro Haber, dentre diversos outros. Porém, nenhuma das obras que li encontrou a abordagem que eu procurava, que não fosse somente compreensivel para pessoas fora da academia, mas também atrativa, algo que chamasse a atenção e trouxesse leitorxs não familiarizados com a disciplina, neste sentido o trabalho que mais me chamou a atenção e, para mim, o que mais obteve sucesso foi a novela gráfica de Mats Brate e Petter Hanberger intitulada Places people stories.

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Refleti sobre esse problema durante um longo tempo, não apenas para fazer este trabalho, mas também como uma forma de buscar respostas aos meus anseios e – por que não? - novas indagações. Finalmente me vi na perspectiva de realizar a monografia até o final do período – um prazo notavelmente curto - ainda sem ter uma resposta clara às minhas inquietações. Decidi que gostaria de estudar garrafas, em parte pelo grande potencial inexplorado deste tipo de material na Antártica1, e também pelo grande interesse que tenho com este tipo de vestígio material. Garrafas fazem parte do nosso cotidiano e são parte primordiais em diversas relações e situações ritualizadas. Depois de decidido o tema passei a considerar o aspecto prático da pesquisa: noites em claro foram passadas lendo, relendo, vendo, ouvindo e sentindo todo e qualquer tipo de material relacionado com garrafas que consegui encontrar, sem resultado. A resposta veio, finalmente, quando desisti momentaneamente de procurá-la. Nesta noite em específico havia terminado de ler o conto de Edgar Allan Poe, entitulado Narrative of A. Gordom Pye Of Nantucket - a história em si faz diversas referências à bebidas alcóolicas e me reafirmou a importância da realização deste trabalho -, resolvi que aquilo era o suficiente por um dia e me pus a fazer companhia a uma garrafa de whisky guardada usualmente para ocasiões especiais. Adormeci com essa preocupações e foi com isto que sonhei. 1

Apenas um trabalho foi escrito sobre o assunto, por Paula Moreno, intitulado de “Botellas de vidrio en

la Península Byers, Isla Livingston, Shetlando Del Sur”. Mesmo esse trabalho trata apenas acerca de um análise fica do objeto e não objetifica observar o comportamento por trás dele.

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Capítulo 1 – sobre meu nascimento

Nasci na Inglaterra, em uma cidade de interior tão pequena que mal merecia ter um nome e o qual nunca ouvi; no final do século XVIII, a cidade existia em função da fábrica de onde sai. As memórias que tenho deste dia são difusas, pouco me lembro. Não nasci sozinha, mas junto a muitas outras, que chamo de irmãs. Apenas um amontoado de sílica, cal, soda, magnésio e carvão em chamas. Dessa massa primordial surgi, assim como muitas antes e depois de mim. Segundo me contaram minhas irmãs mais velhas eram produzidas através de sopro livre. A técnica consistia em um artesão, nossa creatrix2 que, utilizando um tubo soldador oco de forma cilíndrica (blowpipe) nos formava e concebia nossos corpos.Seu sopro nos dava uma uma consciência, enquanto, com suas mãos, gerava nossa forma. Do ponto de vista humano, haviam alguns problemas nesta técnica, desde a falta de simetria dos corpos, não apenas sobre a aparência mas também a espessura; até uma fragilidade maior, o que impedia que nossa irmãs mais velhas viajassem por longas distâncias, já que acidentes que levavam a quebras eram comuns. Meu nascimento, porém, ocorreu de forma distinta, tanto o material quanto as técnicas utilizadas foram diferentes.

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Palavra latina que denomina criador, poré, co, gênero indefinido – como o trabalho advoga em prol do

feminismo e contra a mascunilização do conhecimento considerei tentar separar não utilizar criador, ou pai, mas sim uma palavra que abordasse ambas as categorias.

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A partir de 1620 foi proibido o uso de madeira como combustível na Inglaterra. Desta forma, nossxs creãtricis começaram a utilizar carvão, o que levou a um melhor aproveitamento térmico; além disso, Sir Kenelm Digby, na década seguinte, inventou uma nova técnica que aumentou nossa resistência, o que possibilitou o comércio e uma vida mais longa para todas de nós que fomos produzidas posteriormente,: surgiu daí a fama das garrafas inglesas. Graças a esse novo processo, ganhamos também uma nova cor característica: verde escura, quase negra (McKearin 1978)3. Eu e minhas irmãs fomos concebidas entre os anos de 1785 e 1820 – os motivos que me levam a afirmar isso serão apresentados depois - na Inglaterra. Nossa creatrix me escolheu e, com o uso do tubo (blowpipe), me soprou; junto a seu sopro recebi o embarco do molde, que conteve minha forma e me restringiu. Fui concebida por uma técnica conhecida como sopro em molde fundo (deep mold) – esse tipo de método foi comum durante um grande período, desde o final do século XVII até a segunda metade do século XIX; porém, a forma com a qual fui retirada, sem o uso de nenhuma ferramenta especial foi utilizado somente até 1820 (Hume, 1969). Ganhei então meus primeiros contornos: um corpo e uma base.

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Para mais informações checar Jones. Les boutilles à Vin et à Bière Cylindriques Anglaises, 1735-1850.

Ottawa, Environnent Canada – Parcs. 1984.

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Imagem do nascimento de uma das minhas irmãs, acima o artesão e embaixo o útero onde fui concebida (Prostes, 1908).

Depois deste processo fui retirada do molde, que não se abriu: permaneceu imóvel, pronta para repetir a ação e cumprir seu papel na reprodução do sistema capitalista que então se consolidava. Meu ombro e meu pescoço ganharam forma através das mãos de minha creatrix, sem o uso de nenhum molde ou de nenhuma ferramenta, apenas o bastão cilíndrico para me manusear e uma superfície para me aplainar. Minha boca foi formada com o uso de um instrumento chamado de Liping Tool, que me deu um contorno e uma forma. Gosto de pensar que meus lábios foram formados de forma a se moldar com os humanos, não sou utilizada; é uma troca: um beijo por um gole. A técnica para produzir meus lábios começou a ser utilizada somente em 1785, o que é visível pelo fato do meu lábio superior ser notorialmente maior que o inferior, além do perfil abaulado do pescoço para cima. Um charme especial.

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Resumindo, fui produzida com um método que se tornou famoso no mundo inteiro por permitir que fôssemos comercializadas para grandes distâncias pela primeira vez. Para se ter uma idéia da grande popularidade que alcançamos, durante todo o século XVIII a França criou fábricas que permitissem que outras de nós, “la façon d’angleterre’, fossem produzidas e a partir dali comercializadas. Porém, tão importante quanto o processo que me deu a existência, são também os motivos que levaram a isto, ou seja, me inserir dentro do contexto dentro do qual fui concebida. Nós, garrafas, temos certos privilégios negados aos seres humanos. Para mim o principal deles é saber exatamente porque vim a existir. Tenho certo orgulho de dizer que nasci em uma época de mudanças, compreendida como um recorte de 1789 até 1848; ficou famosa por ter sido posteriormente descrita por Hobsbawn como o período de dupla revolução: a revolução francesa e a revolução Industrial (Hobsbawm, 1991). Estes processos revolucionários – entendidos aqui como mudanças graduais e não como eventos pontuais – culminaram em grandes transformações que afetaram o mundo moderno de forma radical. Essas grandes mudanças não se aplicaram somente na produção, no comércio ou na política; mas principalmente no dia a dia da população em geral (Thompson, 1967). Hobsbawm caracteriza este período como uma era de superlativos: “Os novos e numerosos compêndios de estatística, nos quais esta era de contagens e cálculos buscava registrar todos os aspectos do mundo conhecido, chegariam com à conclusão de que realmente cada quantidade mensurável era maior do que em qualquer época anterior” (Hobsbawm, 1991).

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Dentro de todas estas mudanças a transformação a que me afetou mais diretamente foi a mutação da relação entre os humanos e nós, objetos. De maneira geral podemos dizer que esta transformação material se deu a medida em que nós nos tornamos mais acessíveis, - tudo era produzido numa velocidade e num ritimo completamente novo – a era dos superlativos, conforme me referi anteriormente -, graças a isso os preços baixaram e indivíduos que não podiam ter acesso a certos bens passaram a conseguir adquiri-los. Um exemplo disso aconteceu às mobílias – sei disso porque convivi durante anos com uma mesinha de canto insuportável nos porões de um navio, mais a frente tratarei sobre isso. Antes da revolução Industrial, com raras exceções, somente os indivíduos com maior poder aquisitivo eram capazes de adquiri-las. Após, com o advento da produção em massa e o barateamento dos custos; eles se tornaram acessíveis para uma parcela maior da população. Além disso, estes objetos ganharam também uma nova função, ao se colocarem enquanto objetos de desejo e estarem presentes dentro das práticas sociais (Braudel, 1997). Graças a essa maior acessibilidade de nós, objetos em geral, para a população de baixa renda ocorreu, como já foi dito, uma profunda mudança em nosso relacionamento: nos tornamos mais descartáveis e menos valiosos, bens antes conservados durante gerações passaram a ser descartados mais rapidamente. Uma destas mudanças, aquela que me afeta mais diretamente, relaciona-se ao armazenamento de bebidas alcoólicas. Durante todo o século XVII e XVIII o transporte de bebidas por longas distâncias era normalmente realizado com o uso de tonéis, principalmente pelo maior capacidade de armazenamento, além da maior resistência deste material. Éramos,

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porém, comumente vendidas a granel, sem bebidas, devido à nossa resistência característica 4 Depois da segunda metade do século XVII, tornou-se mais comum o uso de garrafas para armazenamento de cerveja, vinho, cidra – as soft drinks - e os licores destilados – liquors.5 Os tratados sobre envelhecimento de bebidas escritos durante este período aconselhavam o uso de vidro ao invés do grès. Também recomendavam que as garrafas fossemos guardadas encostadas em alguma superfície com a boca para baixo, de forma a evitar que a rolha secasse. Os tratados também abordavam as formas corretas de nossa manutenção, especialmente se não fosse o primeiro uso (Moreno, 2000). Tendo em posse todas essas informações sobre o período e sobre meu nascimento, é fácil concluir que provavelmente fui concebida de forma a ser vendida para algum lugar distante, onde me relegaria a dois destinos que ainda não tinha muito claros: ser utilizada para armazenamento de bebidas ou ser utilizada enquanto recipiente para vendas particulares. É sobre isso que trato em seguida.

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“It is probably impossible to determine the original contents of individual glass bottles. Many were

simply shipped empty and filled with various liquids upon arrival in the colonies (Adams 2003; Otto 1984; Pittman 1990). 5

Embora hoje entendamos todas essa bebidas como alcoólicas é importante lembrar que durante aquele

período não faria sentido caracterizas as soft drinks na mesma categoria que os liquors (ou spirits) , o tema será tratado profundamente mais adiante.

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Capítulo 2 – Uma jornada muito esperada Como mencionei anteriormente, fui concebida especialmente para ser capaz de percorrer grandes distâncias. Assim, depois de ter passado por todo o processo de criação e me despedir daquelxs que me deram forma, fui embalada em uma caixa forrada com palha, junto à diversas de minhas irmãs, rumo a um destino incerto A viagem foi marcadamente desconfortável: fomos carregadas em uma parelha de bois, junto a uma grande quantidade de outras caixas, todas elas repletas de outras iguais a mim. Quando nasci tive atenção total de todxs aqueles que me manusearam, ali, pela primeira vez; percebi que era só mais uma dentro de um grande universo de garrafas. A partir desta viagem tive que me acostumar com a idéia de não ter escolha, sou mercadoria: comprada e vendida de acordo com o critério de meu dono. Quando fomos retiradas dali tive outra amostra da insensibilidade humana: três de minhas irmãs, que estavam na mesma caixa que eu; haviam se quebrado durante o trajeto e foram descartadas, abandonadas no chão junto à sujeira do mercado – espero que elas também tenham a oportunidade de um dia poder contar sua história. Está viagem funcionou como um divisor de águas para mim, percebi que eu não era especial da forma como havia imaginado, mas apenas mais uma garrafa inserida dentro deste contexto capitalista onde os bens tem valor apenas no momento em que são comercializados e fetichizados, sendo descartados e rapidamente substituidos. No mercado eu e minhas irmãs fomos expostas durante algum tempo, um período extremamente desconfortável durante o qual fomos tocadas e manuseadas indiscriminadamente; até que, por fim; vendidas para um comerciante norte-americano que nos levou para o seu navio: o Clare Bell.

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O Clarre Bell era um típico navio comercial norte-americano de 76 toneladas. Pelos fragmentos de conversas que ouvimos ele havia vindo do porto de New Bedford com os porões abarrotados de peles de foca para serem vendidas no mercado de Macau – aparentemente as peles de lontra estavam se esgotando e até agora as peles de focas eram os melhores substitutos encontrados -; haviam lucrado enormemente e, como bons comerciantes que eram, não podiam voltar com os porões vazios. Pararam e encheram o navio com todo o tipo de mercadorias que foram capazes de encontrar; a idéia era revender todos os produtos no recém-independente Estados Unidos para conseguir ainda mais lucros, já que a independência significava uma diminuição das exportações oriundas da Inglaterra. Fomos todas armazenadas juntas no porão durante um espaço de tempo extremamente longo, foi um período bastante aterrador, nos encontravámos em estado de anômia: sem idéias do que aconteceria, simplesmente aguardando o futuro sem saber o que nos aconteceria. Tanta coisa sobre meu futuro era incerta e estava fora da minha alçada de decisões que por grande parte do tempo eu torcia por uma batalha ou uma tempestade que me lançasse ao mar. A vida a bordo do navio mercante era bastante entediante, pelo menos para mim. Para os marinheiros o dia era dividido em vigílias alternadas de quatro horas, de forma que eles tinham quatro horas de trabalho e quatro horas de descanso – totalizando por dia doze horas gastas à serviço do navio e doze horas para outras atividades, incluindo o sono, alimentação, lazer e ócio. A alimentação se baseava principalmente em pão mofado, queijo velho, manteiga ransoça, ocasionais bifes de porco ou boi, whisky, tabaco e feijão. Tive a oportunidade de ver, apenas um breve relance; a lista que continha as provisões

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embarcadas no Clarre Bell que serviriam para alimentar 120 pessoas durante o intervalo de um ano: “74 barrels of beef, 70 barrels of pork, 24 barrels of flour, 27500 pounds of bread, 1600 pounds of cheese, 650 pounds of butter, 2064 gallons of whiskey, 286 gallons of vinegar and 72 bushels of beans” 6

Os marinheiros compravam seus uniformes de trabalho, ou slops, do mercado do navio, ou purser. Muitos deles faziam suas proprias roupas, já que os capitães tinham liberdade para criar os preços e manter o lucro para eles mesmos. As peças mais utilizadas eram: “Common hats, pea jackets, cloth jackets, duck jackets, cloth and duck trousers, duck frocks, Guernsey frocks, check shirts, shoes, stockings, blankets, mattresses 7. Alguns dos marinheiros ficavam tão endividados com a compra de roupas e comida extra que acabavam por terminar a viagem em dívida com o capitão. A época na qual nasci ficou famosa pelos seus inúmeros confrontos, especialmente aqueles envolvendo a Nova Inglaterra e a Inglaterra, a saber: a guerra de independência que durou de 1775 a 1783 e a guerra de 1812, que durou de 1812 a 18158. Este clima notavelmente bélico gerava um clima de incertezas para todos os mercadores que atravessava aquelas águas, com sorte, ou não; nossa viagem transcorreu sem maiores acidentes. Chegamos, por fim; ao porto de New Bedford.

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Retirado de www.hamilton-scourge.hamilton.ca. Último acesso em 14 de março de 2014 as 20:38.

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Retirado de www.hamilton-scourge.hamilton.ca. Último acesso em 14 de março de 2014 as 20:38.

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Para mais informações sobre a guerra de 1812 Hitsman e Graves 1999; sobre a guerra de independência

ver Royster 1979.

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Durante o período que permaneci na cidade aprendi bastante sobre a história da cidade e sobre a caça de mamíferos marinhos, tentei organizar estas idéias a seguir, com o objetivo de contextualizar x leitor(a) sobre a atmosfera que encontrei naquele local. A cidade de New Bedford foi anexada aos Estados Unidos em 1787 com o objetivo de funcionar como um porto de mais fácil acesso aos mares do Sul, facilitando a chegada e a partida dos navios que partiam para a exploração de recursos marinhos, antes deste ano o porto de Nantucket era o único que funcionava para este tipo de atividade (Cruz, 2011). Todo este período do final do século XVII até o meio do XIX foi um de grande crescimento para a cidade, principalmente devido a exploração dos grandes animais marinhos: os cetáces, focas e leões marinhos. O mercado para peles de focas e leões marinhos, como já foi mencionado, surgiu graças a grande demanda oriunda da China – mais especificamente do porto de Macau -, que costumava suprir sua demanda com lontras, até que elas chegaram tão perto da extinção com a caça desmedida que a atividade se tornou inviável (Berguño 1993b, Stackpoke 1955). Já o mercado de óleos - de baleia, foca ou leões-marinhos - era oriundo da grande demanda Européia para a iluminação pública e privada – as velas mais caras eram feitas com o uso destes óleos -; além do raro espermacete – utilizado na perfumaria. As peles de focas eram utilizadas, principalmente; para a fabricação de capas, malas, baús, calçados e diversos outras peças de vestuário, outros subprodutos da exploração destes mamíferos também eram amplamente utilizados, principalmente o óleo, para iluminação (Cruz, 2011). 21

Até 1786 o comércio era dominado pelos norte-americanos, somente a partir de 1793, junto a crescente demanda do mercado Europeu; os ingleses resolveram ingressar nesta atividade (Stackpoke 1955). Havia muita conversa no cais sobre novas áreas de caça, já que a grande rentabilidade do mercado nos últimos anos implicava em uma matança desenfreada para continuar suprindo a demanda e obtendo lucros maiores, inutilizando rapidamente as áreas de caça conhecidas. Era consenso geral que os navios foqueiros e baleeiros funcionavam também como exploradores, na medida em que estavam sempre em busca de terrenos mais férteis para suas atividades de caça. Herman Melville, autor da clássica obra Moby Dick, diz que: “for many years past the whale-ship has been the pioneer in ferreting out the remotest and least known parts of the earth. She has explored seas and archipelagoes which had no chart, where no Coke or Vancouver had ever sailed”. (MELVILLE, 1988). A tendência geral era seguir em direção ao Sul, sempre buscando regiões desconhecidas - para evitar competição. Desta forma foram descobertos e fisicamente explorados9 inúmeros locais ao redor do globo com o intuito de serem economicamente explorados10. Depois que, finalmente, fomos descarregadas para o porto, me senti aliviada, qualquer que fosse o destino que espreitava era melhor que a longa espera forçada

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Compreendida aqui como uma grande exploração dos recursos naturais (exploitation) destas regiões,

não uma exploração física (exploration) (ZARANKIN, SENATORE, 1997). 10

Alguns dos locais descobertos desta forma foram as Ilhas do Índico, o Sul da Patagônia e algumas

Ilhas do Atlântico Sul (ZARANKIN, SENATORE, 2007).

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dentro de uma caixa de madeira no porão de um navio, sempre sem perspectiva sobre o futuro. Desta vez não fomos levadas para o mercado, mas para um bar: The Whale's Mouth. O estabelecimento era especializado na venda de bebidas alcóolicas para marinheiros, especialmente aqueles que trabalhavam com a exploração de mamíferos marinhos; o que era claramente perceptivel, não apenas pelo nome do lugar; mas também pela placa, que continha o desenho de uma grande baleia azul. Lá ouvi uma negociação e, depois que um punhado de moedas trocou de mão; fomos preenchidas com um líquido de cor âmbar que era conhecido como whisky. A sensação de êxtase foi quase inexplicável, não que antes eu me sentisse inferior ou incompleta; saber que estava sendo útil, cumprindo o papel pelo qual sempre ansiei me trouxe uma sensação inexplicável. Foi ali a primeira vez que finalmente estava fazendo o que sempre quis fazer: armazenar e distribuir líquidos. Pelo que pude entender do diálogo que ocorria enquanto era negociada, o whisky, produzido no meio oeste dos Estados Unidos, era o destilado mais consumido, principalmente devido a seu baixo custo e acessibilidade. Fui então carregada para o balcão do bar, onde fui trocada por cinco centavos de dólar e levada até a uma mesa11. Os integrantes daquele grupo, deveriam ser por volta de vinte ou trinta; eram indivíduos muito diversos, variando em uma míriade de cores – negros, indigenas,

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Em 1830 o preço do galão de whisky era de cerca de vinte e cinco a cinquenta centavos de dólar

(RORABAUGH, 1979), assim a garrafa inglesa com whiskye deveria custar aproximadamente cinco centavos de dólar.

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brancos e diversas miscegenações - e etnias que dificilmente seriam encontrados sentados juntos partilhando uma garrafa em outro lugar. Não que as relações entre o grupo parecessem ocorrer de forma pacífica e igualitária, pelo contrario era clara a divisão em subgrupos de semelhantes, porém era visível que eles se identificavam enquanto pertencentes a um grupo em comum. Na mesa havia uma grande quantidade de garrafas e cachimbos largados, aparentemente vazios. Pelo tom de voz dos que se encontravam ali, que observi serem marinheiros graças a fala, modo de caminhar e roupas características; conclui que eles estavam comemorando. Pelo que pude compreender, enquanto era passada de mão e mão e beijada por todos que estavam ali; aquele grupo havia acabado de chegar em terra de uma viagem de caça que havia sido muito bem sucedida12: eles conseguiram encher todo o navio de peles e óleo, haviam recebido suas respectivas partes e estavam coçando para gastá-las. A viagem havia durado três anos, a maior parte do tempo passada no navio procurando por novos territórios de caça. Por fim eles haviam encontrado uma região desconhecida no extremo Sul do Pacífico, infelizmente o local já era conhecido e estava sendo explorado havia alguns anos – embora não de forma intensa e sistêmatica -, 12

Essa história se baseia no seguinte trecho de Moby Dick: "That's the Grampus's crew. I seed her

reported in the offing this morning; a three years' voyage, and a full ship. […] They had just landed from their boat, and this was the first house they entered. No wonder, then, that they made a straight wake for the whale's mouth-- the bar--when the wrinkled little old Jonah, there officiating, soon poured them out brimmers all round. One complained of a bad cold in his head, upon which Jonah mixed him a pitch-like potion of gin and molasses, which he swore was a sovereign cure for all colds and catarrhs whatsoever, never mind of how long standing, or whether caught off the coast of Labrador, or on the weather side of an ice-island” (MELVILLE; 1853).

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porém ainda existia ali um grande potencial e certas regiões deste local ainda não haviam sido visitadas. Antes que eu pudesse ouvir mais sobre esse misterioso novo local de exploração entrou na taberna um minister da temperança. Para que x leitor(a) possa entender sobre do que se trata este movimento é necessário que eu faça aqui um parênteses e volte um pouco no tempo. O objetivo é explicar o papel das bebidas na vida das pessoas daquele lugar, o que ela significava e o que era esse novo movimento. As informações que apresentarei a seguir foram obtidas de diversas formas: desde a escuta de discursos de outros ministers, as conversas que ouvi nos navios até, mais recentemente, os diálogos que ouvi entre os integrantes da minha nova casa – este assunto será retomado mais adiante. Durante aqueles anos, do final do século XVIII e início do XIX – como já mencionei anteriormente -; as bebidas que contém álcool em sua composição não eram todas tratadas da mesma fora. As bebidas fermentadas, como cidra, cerveja e vinho; eram pensadas em uma categoria completamente diferente das bebidas destiladas - ou liquors -, como whisky, rum e vodka (DIETLER, 2006). Assim, apenas alguns tipos de bebidas eram tidos como contendo características psicoativas, sendo as bebidas fermentadas vistas como mais semelhantes a água. Não era usual colocar os licores e os fermentados na mesma categoria13 (BLOCKER, 1989).

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“[…] the concept of alcohol as a collective term linking such things as beer, wine, and whiskey is a

discursive product of the nineteenth-century temperance movement. This is not necessarily a universally shared folk category, especially among peoples who had/have not been exposed to the recent EuroAmerican demonization and medicalization of drinking that arose in the context of an emerging urbanindustrial order and the demands of capitalist work discipline” (DIETLER, 2006).

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As bebidas fermentadas – cerveja, vinho e cidra -, pelo que pude observar e a partir das conversas que presenciei; eram onipresentes na vida dos moradores dos Estados Unidos, elas não pareciam ser consumidas devido a seus efeitos embriagantes, mas sim como uma classe de alimentos essencial para a população que por acaso vinha a ter princípios psicoativos.14 Para se ter uma idéia do local que a bebida ocupava na vida daquelas pessoas transcrevi aqui um discurso que ouvi de um dos adeptos da temperança – o movimento em si será tratado mais adiante: “Strong drink in some form is the remedy for every sickness, the cordial for every sorrow. It must grace the festivity of the wedding; it must enliven the gloom of the funeral. It must cheer the intercourse of friends and enlighten the fatigues of labor. Success ‘deserves’ a drink and disappointment’ needs’ it. The busy drink because they are busy; the idle because they have nothing else to do. The farmer must drink because his work is hard; the mechanic because his employment is sedentary and dull. It is warm, men drink to be cool; it is cool, they drink to be warm” (STEINSAPIR, 1814. In: BLOCKER, 1989 – grifos do autor)

Me parece que o consumo de álcool, principalmente bebidas fermentadas; fazia parte de grande parte das atividades diárias, principalmente as refeições. Nas ocasiões

“In the America of the 1790s alcohol was omnipresent, and no one conceived of beer, wine, or cider as intoxicating beverages in the same class as distilled liquors […]” (BLOCKER, 1989). 14

Para mais informações ver: Dietler, 2006. “In fact, it is perhaps more appropriate to think of alcohol

as a special class of food with psychoactive properties resulting from the application of alternative culinary techniques: The same grain can become porridge, bread, beer, or whiskey, depending simply on the techniques applied to it” (DIETLER, 2006).

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sociais – casamentos, funerais, batizados, festas de igreja, etc – era socialmente aceito, se não esperado; um grande consumo de licores (BLOCKER, 1989). O movimento da temperança, inserido aqui dentro de um contexto maior junto ao surgimento das práticas higienistas na Europa do final do século XVII; tinha como objetivo civilizar o proletariado, de forma a adequá-lo ao novo regime de trabalho capitalista15 (NICHOLLS, 2011). O movimento foi iniciado no final do século XVIII pelo Dr. Rush que escreve a obra “An inquiry into the Effects of Ardent Spirits Upon the Human Body and Mind”, o autor criou uma separação que atribuia qualidades beneficas ao álcool produzido através de fermentação e dava ao álcool produzido através de destilação qualidades negativas, ele conclui sua obra da seguinda forma: “Thus we see poverty and misery, crimes and infamy, diseases and death, are all the natural and usual consequences of the intemperate use of ardent spirits. Not less than 4000 deaths are caused annually in the United States from the use of distilled liquor” (RUSH, 1784).

Seu argumento girava principalmente em torno dos efeitos malignos dos liquors, ele menciona danos as faculdades morais, mentais e espirituais. Ele concluiu em sua obra que bebidas destiladas não ajudavam o corpo a aguentar situação extremas de temperatura ou trabalho, sendo outras substâncias melhores para tal fim como: água, café, chá e, sobre certas circunstâncias, ópio. Para Rush a única forma de evitar os perigos do consumo de destilados era através da abstinência completa. O autor sugere que o governo dos Estados Unidos deve tomar precauções para acelerar o fim do consumo deste tipo de produto. 15

Para mais informações ver: Norbert Elias – O processo civilizador.

27

Voltando ao bar, este homem que havia entradado era um minister que pertencia a um grupo chamado de MSSI16 (Massachusets Society for the Suppression of Intemperance). Seu objetivo era conseguir mais sócios para sua organização, o que ele fazia utilizando-se de todos os meios possíveis17. Felizmente, para mim; aqueles marinheiros não pareciam dar muita atenção ao discurso do minister e, mais que ignorá-lo sumariamente; começaram a cantar a plenos pulmões uma ode ao whisky e as bebidas alcóolicas de uma forma mais geral, tentei reproduzir os versos a seguir (erros são esperados, não somente pela minha memórias mas também pela dificuldade de compreender a gritaria embriagada daqueles marinheiros): “Oh, whiskey is the life of man, Whiskey! Johnny!

It always was since time began, Oh, Whiskey for my Johnny!

16

Para mais informações ver: Blocker 1989.

17

“In pursuit of their reform, temperance reformers argued, pleaded, cajoled, confessed, denounced, and

declaimed; they produced articles, stories, poetry, plays, songs, and novels; published books and sang, marched on saloons, marched in parades, marched in demonstrations, and attended meetings and conventions. They destroyed the contents of saloons with axes, hatchets, hammers, rocks and metal bars. They formed associations at every level of neighborhood to the nation; they appeared in courts as prosecutors, plaintiffs, informers, and defendants; they created pressure groups and political parties, petitioned, circularized candidates, canvassed, voted, and watched the polls” (BLOCKER, 1989).

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Oh, Whiskey makes me wear old clo's, Whiskey! Johnny!

'Twas whiskey gave me a broken nose, Oh, whiskey for my Johnny! A glass of grof18 for every man, Whiskey! Johnny!

And a bottle full for the Chantey Man, Oh, Whiskey for my Johnny!”19

O minister tendo sido assim silenciado se resignou e, não sem soltar algumas impregnações; se retirou do bar, seguiram-se estrondosas gargalhadas por parte de quase todos os que estavam presentes. Por esses e outros motivos percebi que a temperança era um movimento sem força durante este período, pelo menos para os marinheiros. Somente alguns anos depois, com a fundação da American Society for the Promotion of Temperance –

18

19

Grof é a denominação utilizada para se referir a qualquer bebida destilada Canção retirada da obra Moby Dick, or the Whale de Herman Melville. Escolhi por manter a formatação

e as palavras da canção original para conferir a(o) leitor(a) a sensação mais próxima possível sobre a música.

29

conhecida também como ATS (American Temperance Society) – que o movimento finalmente ganharia força e alcance nacional20. Depois que os marinheiros conseguiram expulsar o minister aproveitaram a desculpa e compraram mais uma garrafa de whisky para comemorar, me deixando de lado, ainda meio cheia. Depois que beberam metade dela decidiram que queriam levar a festa para um lugar que oferecesse outro tipo de serviços e, um dos marinheiros, percebendo que eu ainda tinha o potencial para embebedá-lo ainda mais; me levou junto com o grupo. Fomos então para um bordel. O estabelecimento, The Mermaid, era uma casa de madeira charmosa de inspiração vitoriana. Do lado de foram haviam dois leões-de-chacára, que cobraram quinze centavos de dólar de cada um dos integrantes do grupo para permitir a entrada. O interior do local gritava luxúria, uma luxúria decadente. A maioria das mulheres já haviam passado da juventude e estavam mais próxima dos 40 do que dos 20, elas usavam roupas curtas e provocantes que mostravam as panturrilhas e o início dos seios. Haviam cerca de 5 mesas no local, todas cercadas com madeiras de aparência extremamente desconfortável. Por conta do horário, ainda não havia muito movimento, apenas uma das mesas estava ocupada.

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A campanha lançada pela ATS foi uma das reformas mais bem sucedidas da história Norte-Americana,

quando mensurado a curto prazo foi responsável pela diminuição maciça do consumo de destilados em todo o país, e quando pensado a longo prazo; foi responsável pela consolidação da idéia de que bebidas alcoólicas são nocivas a saúde e pelas idéias de temperança e bons costumes que, ainda hoje, imperam (BLOCKER, 1989).

30

Quando nosso grupo entrou algumas mesas foram juntas e todos se sentaram juntos. As mulheres perceberam a possibilidade de dinheiro fácil e correram para atender seus novos clientes com garrafas e cachimbos cheios, prontas para agradarem aos homens. As mulheres que trabalhavam ali eram um grupo bastante heterôgeneo, haviam brancas, indígenas, negras, mulatas e diversas outras etnias. Enquanto os marinheiros bebiam whisky direto de nossa boca, as mulheres bebiam de copos, que serviam de uma garrafa com base quadrada. Percebi que ela era preenchida com uma bebida diferente da que eu retia: rum. Depois de algum tempo os quatro homens que estavam na outra mesa vieram se sentar junto com os foqueiros, curiosos em escutar histórias sobre os mares e terras distantes. Vários foram contados, todas eles sobre o novo terrítorio ao Sul, que prometia novas e imensuráveis riquezas para todos que ousassem seguir para lá. Depois de ouvirem os relatos e as promessas de riqueza fácil resolveram sair dali e procurar um navio foqueiro imediatamente, a idéia era negociar com os shipowners e com o capitão para aumentar um pouco o salário deles em troca de informações sobre o possivel novo local de caça21.

21

Essa idéia é sustentada por Creighton em sua obra Rites & Passages de 2010, que se opõe a idéia

tradicional de que os marinheiros eram repetinamente arrastados bêbados vítimas de roubos ou artimanhas perpetradas pelos capitães dos navios. Ela sustenta sua tese baseada em dois pontos: primeiro e mais óbvio é o fato que os foqueiros, ou possiveis foqueiros, não eram tão inocentes assim, as listas de deserção pré-viagem falam por si mesmas sobre a recorrente resistência dos marinheiros em relação a cumprir as expectativas de seus empregadores. Em segundo, e mais importante, é que está imagem do homem que é continuamente raptado para ser empregado nestas viagens de caça simplesmente não é sustentado por dados demográficos, as listas nos contam que são raros os navegantes do “foremast” que

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Fui carregada para o bar com estes quatro homens, preenchida novamente com whisky e rumamos em direção ao porto. Ainda era o meio da tarde, horário de grande movimentação nos portos: havia uma multidão de pessoas andando para todos os lados com caixas cheias de mercadorias, diversos ambulantes vendendo comida, alguns pedintes, alem disso outras formas de serviços, bem semelhantes à aqueles do bordel, eram oferecidas nos becos. Porém o que mais chamava a atenção era a imensa quantidade de navios sendo descarregadas e carregadas ao mesmo tempo. Fomos em direção a um dos navios que estava sendo carregado, o The Flying Squid. Uma escuna com 150 pés de comprimento e 25 pés de largura com 350 toneladas22. Lá os quatro entraram em uma sala onde haviam três homens sentados, discutindo com alguns papéis sobre a mesa, aparentemente o tema era o local para onde o navio deveria ir em busca de maiores lucros. As apresentações foram feitas e descobri que um daqueles homens era o capitão – dono da menor parte do navio, cerca de 8% -, os outros dois eram acionistas majoritários – shipowners -, cada um deles proprietário de 32% do navio, o restante era dividido entre diversos capitães de outros navios23.

tenham mais de 25 anos, as evidências também sugerem que grande parte destes marinheiros eram “greenhands” (Hohman, 1972). 22

But oddly enough, on this occasion, with the news of the South Shetlands arriving at a time when swift

action was demanded to catch the season, the first Nantucket vessels dispatched were schooners. 23

“Owners safeguarded their investments in a number of ways. Like their predecessors in the colonial

fishery, they diminished personal risk by sharing ownership. They divided up their property between a group of partners on a fractional basis – usually in multiples of eight” (Creighton, 2010).

32

Segundo eles, a idéia de investir na caça de focas e leões marinhos já estava sendo considerada, agora com a descoberta deste novo território a viagem parecia ainda mais promissora. Decidiram por fim que o navio zarparia o mais cedo possível, este tempo que seria gasto com a compra e armazenamento de todas as provisões necessárias para uma viagem deste calibre. Depois disso decidido trataram sobre os salários daqueles que haviam me levado até lá, como eram marinheiros de primeira viagem normalmente ganhariam 1/189 de tudo aquilo que fosse conseguido durante a viagem. Como o local foi sugerido por eles, conseguiram negociar e ganhariam uma parcela maior, 1/150, o salário normalmente reservado a experientes homens do mar24. Mesmo com um salário baixo, comparado a outras atividades que poderiam exercer25, eles concordaram que valia o risco, a chance de ficar milionários sempre existia e as histórias os excitavam26.

24

“Ship-owners gave the captain a wide range of power and responsibility, and for this they awarded

him a lay of around 1/15th […] The chief, or first, mate was the master’s right hand man […] for his troubles the mate received an average ‘short’ lay of around 1/24 th […] These men (the lesser mates), who earned shares of the catch ranging from 1/40 to 1/70[…] The ‘boy’, who earned the longest lay of any of individual on the vessel, averaging around 1/400 th […] These foremast hands included unskilled seamen (greenhand), who earned an average lay of 1/189 th, and semiskilled (ordinary) and skilled (able) seamen, who received lays ranging from 150th to 170th”(CREIGHTON, 2010). 25

“Recent studies of whaling wages show us that the earnings of whalemen before the mast compared

poorly to the earnings of unskilled army recruits ashore, farm laborers, unskilled factory workers, and, not least significantly, merchant seamen” (CREIGHTON, 2010) 26

The work may have paid poorly on the average, but the potential was always there, however slim it

might actually be, for a future bonanza. A man might know of hundreds of disillusioned ex-whalemen who

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Fui deixada como um presente para aqueles três que, depois que os recém contratados foqueiros se retiraram; começaram a discutir aspectos mais práticos do empreendimento como quanto de provisões levar, quantos barris vazios para armazenar óleo de foca, quanto tempo a viagem deveria durar, o tamanho da tripulação e diversas outras coisas. Os próximos quinze dias passaram muito rapidamente, todxs estavam muito ocupadxs tentando aproveitar os dias ao máximo, para que tudo ocorrese de forma ideal, embora a presença de bebidas alcóolicas fosse presentes em diversas atividades diárias, principalmente nas refeições e nas negociações. O recrutamento de novos membros para a tripulação ficava a cargo de homens conhecidos como tubarões, eles buscavam interessados e ofereciam um pequeno adiantamento. Em troca os shipowners pagavam uma pequena taxa, se um homem era contratado por 5 doláres adiantados, os tubarões recebiam 1 dólar por cada homem27. Preparar o navio para este tipo de viagem era um trabalho extremamente trabalhoso, as tarefas a serem realizadas eram várias, para se ter uma idéia da grande quantidade de coisas que eram necessárias serem pensadas retirei um trecho da obra Moby Dick que trata sobre está questão: “Everyone knows what a multitude of things—beds, saucepans, knives and forks, shovels and tongs, napkins, nut-crackers, and what not, are indispensable to the business of housekeeping. Just so with whaling, which necessitates a three-years’ housekeeping upon the wide ocean, far from all grocers, costermongers, doctors, bakers, and bankers […]Hence, the spare

had come home to measly sums of money, but what would catch his eye would be the rare tale of the giant catch, the story of the full ship brimming with oil, the reports of men paid off in hundreds of dollars” (CRAIGHTON, 2010). 27

Stackpole, 1955.

34

boats, spare spars, and spare lines and harpoons, and spare everything, almost, but a spare Captain and duplicate ship.” (MELVILLE, 1988).

Durante este período fui ciclada diversas vezes, sendo preenchida com whisky e vinho. Devido a minha boa posição na cabine do capitão consegui ter uma boa idéia do que estava acontecendo. Este tipo de expedição, que rumava para territórios considerados periféricos para a caça de pelos de foca, normalmente contava com arpoadores, para que a caça de baleia também fosse praticada durante a viagem. Porém, devido a recém descoberta da nova região de caça ao Sul, foi decidido que a viagem seguiria para lá o mais rápido possível, antes que a notícia se espalhasse muito e a concorrência tornasse o local economicamente invíavel – este tipo de notícia não tinha o costume de permanecer em segredo28 Foi então decidida uma rota: o The Flying Squid seguiria primeira para as ilhas de Cabo Verde, onde se abasteceria de novos viveres alimentícios e, principalmente, sal - item essencial para a caça de focas e leões marinhos, já que era necessário curar as peles -; depois de abastacida a escuna partiria para as ilhas de Falkland do Sul, lá se informariam melhor sobre a nova área de caça e se preparariam para questões mais práticas – tais como o que levar nas chalopas que iriam para a terra, quais, quantos e que papéis teriam os homens durante a caça, etc. O novo terrítorio ao Sul fazia parte de uma zona glacial, assim, para que a caça fosse bem sucedida, o tempo tinha que ser planejado de forma que a escuna chegasse durante o verão, caso chegassem durante o inverno teriam que lidar com grandes quantidades de gelo que, provavelmente, impediriam ou dificultariam a aproximação dos navios para a terra.

28

STACKPOLE, 1955.

35

Foi interessante notar que durante toda essa discussão, nenhuma vez foi citado o bem estar dos foqueiros que desceriam a ilha para explorar os recursos – ou dos objetos que os acompanhavam, apenas os aspectos econômicos eram discutidos. Tive a impressão de que os marinheiros eram tratados de forma muito semelhante a mim neste aspecto, ambos erámos considerados como mercadorias que serviam para um único propósito, sem vontade, ação ou desejo que devessem ser levados em conta. A tripulação foi instruida a embarcar um dia antes, assim o navio zarparia no dia 18 de maio, assim que a maré permitisse. Assim, no dia 17, os marinheiros começaram a chegar, haviam indivíduos Africanos, Americanos, Ingleses, Australianos e alguns indígenas de origens diversas. O que mais me surpreendeu foram as diversas ausências, muitos dos homens que eu havia visto a bordo e que haviam assinado o contrato não estavam a vista: no total a tripulação contava com 32 integrantes.29. O dia passou de forma agitada, os homens do foremast 30 tinham que se acertar e descobrir seu lugar, muitos deles eram greenhands e nunca haviam trabalhado ou 29

Está idéia é apresentada por Craighton, a saber: “[…] the biggest challenge facing owners with regard

to recruitment was not finding men to form a crew or shipping them but seeing the weight anchor. There was a long distance, both temporally and psychologically, between a man’s visiting a shipping agent’s office, his signing articles (the employment contract), and his actually sailing” (CREIGHTON, 2010). 30

“Os homens do foremast - ou castelo de proa - se diferenciavam dos homens do aftercabin. O foremast,

aonde os marujos comuns dormen, tem um formato triangular e é composto geralmente, pela aglutinação de 24 beliches. Não há bancos, mas à frente de cada beliche inferior, dispõem-se dois baús, cuja utilização como assento era corriqueira pela tribulação. No aftercabin, temos: os aposentos do capitão, separados em cabine – com sofá e mesa – e quarto – cama, lavatório e toilet adjacente; a dispensa, com pratos, talheres e mantimentos; e os quartos dos intendentes (o Primeiro Intendente, com um quarto individual; o Segundo e o Terceiro, dividindo um mesmo” (PENA, 2013).

36

morado em um navio antes, era um trabalho de aclimatação que demandava tempo, não era uma coisa simples. A luz do sol acabou cedo e, depois que escureceu o capitão liberou dois tonéis de whisky, o objetivo era criar laços que facilitassem a convivência dos marinheiros. Quando se colocam 32 indiviíduos de origens, culturas e crenças distintas reunidas em um mesmo espaço – extremamente limitado – durante um período de tempo extremamente longo é fácil pensar nos inúmeros conflitos que podem surgir de todas estas diferenças. Porém, para que o navio funcione de maneira ideal é necessário que os marinheiros trabalhem em conjunto, para isso o álcool era uma ferramenta essencial. Nós, garrafas com bebidas alcóolicas, tinhamos diversas funções: servir como recompensa, punição, marcador de identidade, marcador de masculinidade, parte essencial nas refeições e diversas outras31, porém, o papel que considero mais importate é aquele que assumimos enquanto lubrificante social.

31

“Alcohol drinking, like tea drinking, was also usually part of a larger social performance. Communal

punckbowls and multihandled drinking cups underscore the links between alcohol and society” (SMITH, 2008).

37

Claro que isso funcionava como uma via de mão dupla, algumas vezes o álcool levou também a exaltação dos ânimos, o que acabou gerando inúmeras discussões e brigas durante a viagem – relatarei um dos casos sobre isso a seguir.32 Felizmente aquela noite transcorreu sem maiores incidentes, vários vínculos foram formados, embora a maior parte deles tenha sido entre pessoas que compartilhassem uma origem cultural. A noite de festas foi precedida por um amanhecer de vômitos e enjoo, isso seria normal para os marinheiros de primeira viagem, porém se tornou ainda pior depois da bebedeira desenfreada. Mais tarde, ainda naquela manhã, rumamos em direção ao extremo Sul do mundo.

32

“Alcohol enhances sociability, yet drinking also has the potential to disrupt otherwise stable social

situations” (SMITH, 2008).

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Capítulo 3 – Vida no navio

O primeiro mês em alto mar foi o pior, os greenhands ainda não haviam se acostumado ao balanço do navio e, entre o enjoo, nauséas, narizes sangrando, trabalho, constantes vômitos e atividades diárias; não sobrava muito tempo para beber. Todo o navio fedia a vômito, era necessário limpar o convês e o castelo de proa no mínimo duas vezes por dia para que ficassem habitáveis. As piadas dos homens do mar mais experientes eram constantes, os novatos estavam, em sua maior parte, tão debilitados que nem tinham força para revidas as ofensas. Depois de passado este período inicial, os marinheiros se acostumaram e o navio entrou em sua rotina normal. O tempo era dividido em escalas, assim como no navio mercante: quatro horas de descanso e quatro horas de trabalho. A maior parte do tempo livre, e este era uma grande parte do tempo – já que mesmo em serviço não havia muito a ser feito no navio – era dedicado ao tabaco e ao alcóol33. De fato, grande parte daquilo que foi trazido pela tripulação como bagagem particular consistia de tabaco, cachimbos e garrafas de bebidas alcóolicas. Assim como no navio mercante as roupas eram vendidas no próprio navio, por preços estipulados pelo capitão, para tentar fugir deste sistema que endividava e diminuia ainda mais seus ganhos, alguns dos foqueiros gastavam parte do tempo livre costurando novas roupas ou remendando suas antigas. 33

É fácil imaginar que Melville fala dos foqueiro, tanto quanto dos baleeiros em alguns aspectos de sua

obra:“[…] the whalemen’s life was one of incessant drudgery, continual training and endless work from the time they gained the open sea until they reached the ‘grounds’ or those portins of the ocean where whales were likely to be seen”. (MELVILLE, 1988)

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De forma geral, a viagem foi extremamente maçante, um dia se seguindo ao outro em uma rotina morna, repetitiva e automática. O uso de drogas – álcool e tabaco era um importante ritual diário34; gosto de pensar que aqueles marinheiros - tão longe de casa e de tudo que conheciam – me viam como uma forma de se lembrar daquilo que haviam deixado para trás, criando toda uma nova teia de significados ligados ao ato de beber, para eles o simples gesto de beijar uma garrafa estaria sempre associado a imagem de casa, da esperança do retorno35. Essa rotina, pelo menos a parte que dizia respeito aos turnos que deviam ser observados pelos foqueiros, era controlada pelo capitão – autoridade máxima no mar, representante dos interesses dos donos do navio que haviam ficado em terra e responsável por reforçar a disciplina36 -, que por acaso era branco e origem americana, através do imediato, que era o homem responsável por conduzir o diálogo entre os oficiais e a tripulação. Embora muitos tenham falado sobre o suposto caráter homogêneo de tratamento concedido aos marinheiros em alto mar – especialmente durante o período de contratação no porto -, minha experiência contradiz este tipo de discurso. Embora de 34

“[…] alcoholic beverages often have a heightened valuation in ritual contexts, and they frequently

even serve as a crucial indexical sign of ritual” (DIETLER, 2006). 35

“In other words, drinking is seen as a significant force in the construction of the social world, both in

the sense of creating an ideal imagined world of social relationships and in the pragmatic sense of strategically crafting one’s place within that imagined world, or challenging it.”(DIETLER, 2006) 36

“The captain was expected to have skills not only as a navigator, a sailor, a boatman, and a whalemen

but also to be a financial agent, a business manager and last, but not least, a supervisor of personnel. […] At sea he walked the delicate line between pleasing his owners and pleasing his sailors enough to prevent mutinity or massive desertion” (CREIGHTON, 2010).

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fato o salário que o foqueiro recebesse pelo seu serviço dependesse apenas de sua posição, diversas pequenas coisas que aconteceram a bordo me fizeram descreer neste tratamento igualitário. O cozinheiro, por exemplo, era americano – na verdade todos os oficias do navio tinham essa origem em comum37 - e branco, como forma de demarcar sua preferência ele costumava servir porções maiores para seus conterrâneos, os africanos eram os mais prejudicados, sempre pegavam os piores pedaços do ensopado e as menores porções. O padrão da alimentação era distinto do que obsservei no navio mercante, consistia de guisado de boi ou porco salgado, sopa, arroz, vinagre e melaço. Para evitar o escorbuto havia: meia ração de biscoitos e chá para cada refeição, café ou chocolate, de acordo com a estação e o preço do mercado38. Um outro incidente, este quase resultou em tragédia e foi um dos mais marcantes da viagem: uma cerimônia que ocorreu logo que chegamos à latitudes próximas a linha do Equador.

37

“[...] menos da metade dos muitos milhares de homens empregados pela indústria da pesca baleeira

americana nasceu na América, enquanto quase todos os oficiais são americanos natos”(MELVILLE, 1989). 38

“De acuerdo com Preira Salas, em las naves de origen americano hay tres comidas a bordo,

consistentes em guisado e buey o puerco salado, papas, arroz, vinagre y melaza para alejar el escorbuto: media ración de galleta marinera para cada comida y te, café o chocolate, según la estación. [...] Completa la dieta el licor y el tabaco, abundantes a bordo

y que amenizan las reuniones de

esparcimiento. El alcohol es suministrado en forma gratuita sólo em contadas oportunidades lo que obligaba a adquirirlo em los puertos a precios especulativos, seis, ocho o más veces que em el lugar de procedencia del licor.” (STEHBERG, 2003).

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Era um dia tranquilo de sol quente e ventos amenos. Havia a pouco passado do meio dia e alguns dos marinheiros já se encontravam embriagados, o resto se empenhava em seguir o mesmo caminho. Subitamente, quebrando a monotonia daquela tarde, ecoou um grito do topo do mastro: “SAIL HO!” - vela à vista. Aqueles que estavam no convés pararam o que estavam fazendo e começaram a procurar, encontrar outra embarcação era sempre uma ocasião especial – eram trocados jornais, informações sobre novas áreas de caça e cartas, além disso era comum que os capitães se encontrassem em uma das embarcações para trocarem histórias, porém o que mais agradava os marinheiros era a oportunidade de ver novos rostos e ouvir novas fábulas, além das comemorações fartamente regadas a álcool que obviamente se seguiam a isto – segundo o diálogo o segundo imediato, como era mandatório de sua função, perguntou “EM QUAL DIREÇÃO?”. “TRÊS PONTOS A BOMBORDO!”, responde o gajeiro a largos pulmões. Todos dirigiram o olhar para a esquerda da embarcação, mas, como não foi possível discernir nada concluiram que o navio estava muito longe para ser visto do convés. “COMO É O NAVIO?”, indaga o segundo imediato, no que, sem demora; desce a resposta tão ansiosamente esperada pelos foqueiros experientes e temida pelos greenhands: “A LOW BLACK SCHOONER”. Sem que mais nada fosse dito se seguiu um ritual extremamente violento no mar: Rei Netuno viera conhecer seus novos filhos. Tudo aconteceu de forma muito rápida, o que relatei aqui consegui observar por sorte: estava no convés durante a chegada do navio quando a escuna de Netuno chegara e fui carregada para baixo com o intuito de cumprir minha parte do ritual, que será apresentada mais a diante no texto.

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Os foqueiros de primeira viagem foram levados – aqueles que se recusaram foram amarrados e carregados até lá – até o castelo de proa e lá vendados. O rei dos mares sob a bordo e os marinheiros de primeira viagem são levados um a um até ele, ainda vendados. Lá são compelidos a fazer uma série de juramentos – contrários aquilo que é pregado pelos vitorianos e adeptos da temperança - e, depois de barbeados, algumas vezes tem todos os pelos raspados do corpo, amarrados em uma corda são atirados ao mar, de onde emergem como homens do mar: filhos do Rei Netuno39. Depois que todo o ritual foi realizado os marinheiros, agora iguais enquanto filhos de Netuno, se reuniam para beber com seu pai. O capitão havia liberado o whisky naquele dia, com a idéia de que o ritual talvez pudesse reforçar os laços entre os integrantes daquele grupo40. Porém, devido as diferenças étnicas, raciais e culturais que ocorriam no navio o que ocorreu foi justamente o contrário! Depois de passarem o dia inteiro bebendo, alguns dos foqueiros experientes amarraram um dos greenhands – um africano que havia bebido demais e dormido no convês - e, depois de amarrá-lo na mesma corda utilizada durante o ritual jogaram-no ao mar.

39

40

Para mais detalhes acerca do ritual do Rei Netuno checar Pena, 2013. O ritual do Rei Netuno visava reforçar a coesão de um navio, sendo assim possível conseguir a

cooperação necessária para que as atividades do navio corressem de forma ideal, facilitando o sucesso da viagem (Creighton, 2006), podemos pensar nas possibilidades que o álcool oferece enquanto lubrificante social como uma faca de dois gumes, nas palavras de Smith: “Alcohol enhances sociability, yet drinking also has the potential to disrupt otherwise stable social situations” (SMITH, 2008).

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O homem acordou sobressaltado e, como estava com os braços atados não conseguia se manter acima da água nem mesmo por tempo suficiente para gritar. Por fim um desastre foi evitado graças ao segundo oficial, que por sorte passava por ali naquele momento, ele estava sóbrio o suficiente para perceber o desastre iminente, puxar a corda e salvar o homem. O Africano, quando conseguiu chegar ao convés, estava tão cansado que não conseguia nem mesmo revidar o ataque que havia recebido, recuou para seu grupo e todos foram para seus quartos. O episódio resultou em uma briga de facas que foi punida com uma semana sem grogue, até que as duas facções entraram em um acordo e a paz, assim como o alcoolismo, foram reestabelecidos no Flying Squid. As tensões nunca retornaram ao estado anterior depois disso, embora os grupos tenham conseguido conviver em paz até o final da viagem sem nenhum outro conflito de grande porte. Alguns outros acidentes, nem todos envolvendo questões raciais embora elas estivessem sempre presentes na tensão entre os diferentes grupos, quebravam a monotonia e geraram histórias interessantes para ilustrar o papel e a relevância que nós, garrafas, tinhamos enquanto parte da tripulação daquele navio. O segundo evento que me marcou durante a viagem diz respeito à um dos foqueiros, um indígena – o único de sua etnia à bordo e um dos que mais sofria discrimação - que bebia quantidades anormalmente grandes de rum, de forma que se encontrava durante quase todo o tempo embriagado. Para se ter uma idéia do que isto representava durante o início da viagem o primeiro oficial, responsável manter um registo escrito do que ocorria no navio, costumava tentar retratar os eventos de forma mais fiel possível, coisas como “Hoje o 44

indígena e o capitão estavam bêbado” ou “Hoje todos estão bêbados, com exceção do primeiro oficial” eram sempre descritas. Depois de algum tempo de viagem ele percebeu que este tipo de entrada era um acontecimento tão comum que não merecia ser registrado; então suas entradas mudaram, passaram a ser coisas como: “Hoje o capitão não está muito bêbado” ou “Hoje o cozinheiro está tão bêbado que confundiu o sal com o açucar na hora de cozinhar”.41 Enfim, este indígena em especial era conhecido como o maior beberrão do grupo. Em certa ocasião ele estava mais alcoolizado que o comum, para o horário da manhã, e era seu turno de ficar no castelo de proa, vigiando no alto do mastro à procura de possíveis outros navios ou quaisqueres outras coisas fora do comum. Eu estava no foremast, sendo passada de mão em mão pelos marujos que estavam de descanso. Estavam jogando cartas – fabricadas por eles mesmos com o uso de pedaços de couro incisos - e fumando, quando ouvimos um barulho extremamente alto e nauseante, seguido de um mais baixo e ligeiramente metálico.

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“And now let me read you some entries from what is most probably the strangest and most humorous

log in existence, the log, or rather the journal, of the bark ‘Alexander’, which set sail in 1835 and which was kept by the cooper, Ephraim Billings, the captain and mates being so drunk throughout the voyage that they could not keep either log nor journal […] During the first part of the cruise the cooper tried his best to enter the daily events faithfully, but as he soon found that they were monotonous and consisted mainly of such items as: ‘The skipper came aboard drunk’, ‘The mate was very drunk’, ‘All hands but the cooper were drunk’ he soon became discouraged or careless and only mentioned the unusual or remarkable things which happened, such as, ‘The mate was only a little drunk, ‘Skipper not very drunk’”

” (STACKPOLE, 1955 – grifo do autor). 45

Rapidamente todos correram para a proa para ver o que estava acontecendo, fui levada junto, a cena que nos esperava era a seguinte: haviam cacos negros espalhados por uma grande área próxima ao mastro, todos eles cobertos de sangue. No centro de toda essa cena lastimável estava o indígena - ou o que havia sobrado dele – quase que totalmente despedaçado. Ouvindo algumas das testemunhas que presenciaram o ocorrido, descobri que ele havia caído do mastro. Aparentemente sua queda havia sido motivada pelo elevado consumo de licores que havia consumido. O que mais me ultrajou foi o tratamento dado aos dois, ambos foram varridos e jogados ao mar, o indígena foi embalado e jogado ao mar, já a garrafa foi simplesmente varrida para as águas42. A única homenagem que fizeram aquela morte foi uma festa – regada a whisky e tabaco – na qual o indígena foi pranteado e algumas palavras bonitas foram ditas à seu respeito, nem mesmo um luto foi estabelecido. O momento no qual todos se rebelavam contra os abusos do capitão e do imediato, a opressão daqueles que estavam acima na cadeia hierárquia servia como um catalisador para a quebra de diferenças entre os marinheiros subalternos. Em algumas instâncias todos eram abusados igualmente e esse “inimigo em comum” servia como para criar laços de irmandade, planejar motins ou simplesmente troçar das autoridades

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Está história se baseia naquela citado por Edgar Allan Poe, o objetivo é retratar o lugar central que o

álcool assumia na vida e nos rituais diários dos marinheiros: “Simms, one of the common hands, fell overboard, being very much in liquor, and was drowned” (POE, 1837) e outros relatos semelhantes, como: “In April 1843 the Lahaina missionary Dwight Baldwin noted that the mate of the ‘Governor Troup’ had fallen ‘down the after hatch of his ship’ and had died of a broken neck, the cause of his fall being ‘that cursed fiery plague’ alcohol” (DRUETT, 2011).

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nas dependências do Castelo de Proa unia marinheiros em uma comunidade consonante. Mais do que isso, arquitetaram-se verdadeiros laços de amizade e companheirismo, sem os quais a convivência forçada durante um período longo de tempo se tornaria muito mais complexa (PENA, 2013). Um dos eventos que ilustra isso foi quando um dos negros foi pego passando mal em seu turno de vigia no deque – alguns dos marinheiros tinham dificuldade em engoliar a água sem vomitar – e, tentou argumentar com o com o primeiro imeditado contra a péssima qualidade da alimentação inadequada direcionada aos subalternos; a resposta foi uma surra dada pelo oficial e pelo capitão pela “resposta audaciosa”. Em resposta, foi armado um boicote aos turnos de vigia, que acabou por ser pacificado com uma semana inteira de whisky liberado. Achei interessante a união que os foqueiros demonstraram neste tipo de situação, todos aderiram e demonstraram sua solidariedade43. Depois de, aproximadamente quatro meses vivendo essa rotina no navio – pontuada por eventos excepcionais, que eram discutidos a exaustão nos dias que se seguiram, mas de forma geral maçante e repetitiva – chegamos a Cabo Verde. Toda a idéia de seguir para a ilha era comprar sal, produto necessário para a curação das peles de focas e leões marinhos. Porém, quando descemos em terra os marujos se transformaram radicalmente. Creio que quando se viram livres daquela rotina normatizante, e novamente tratados

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Está história foi retirado do sítio http://www.whalingmuseum.org/explore/library/library-project/atkins-

adams (último acesso em 28 de março de 2014 as 17:51). O diário de William A. Abbe, durante sua viagem no Atkim Adams (1858-1859), foi integralmente transcrito por Bill Wtatt e encontra-se disponível no sítio virtual do New Bedford Whaling Museum.

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como indivíduos capazes de tomar sobre o que fariam a seguir, vários deles foram para bordéis, bares ou festas. As histórias que escutei após o embarque foram realmente incríveis44. Quando se viram subitamente libertos, os grupos se dividiram ainda mais, rompendo aquele sentimento de pertencimento que havia sido favorecido pelo convívio, pelas pressões e abusos do capitão e do imediato. Em terra eles deixaram de serem foqueiros do Flying Squid e se tornaram novamente indivíduos. Um dos integrantes, um Africano, havia ficado as 72 horas que o navio permaneceu no porto acordado, visitando bordel atrás de bordel, bar atrás de bar sempre buscando novos locais para conhecer e contrair dívidas. Outros, de forma contrária, buscaram se afastar da cidade e do convívio de seus pares, buscando locais tranquilos, como igrejas ou em meio a natureza. Estes excessos não se limitaram à população do forecastle, mas também o capitão e os oficiais também participavam dos excessos cometidos durante este tempo passado em terra45.

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“The drinking bouts, for instance, were legendary. It was traditional for seamen to get on a spree when

in port and the whalemen did it more flamboyantly than most, whether the place were roistering was Honolulu, Tahiti, Sydney Town or Kororareka in the Bay of Islands (DRUETT, 2001). 45

“The captains were often no better than their men. When the reverend Daniel Wheeler visited Tahiti in

1835 he was scandalized to find that even the so called ‘temperance’ ships, many skippered by Nantucketers who were Quakers like himself, smuggled large amounts of liquor on shore. It was landed in ‘the supposed empty casks which are sent on shore the water’, he recorded with horror. Wheeler shuddered for ‘the awful and woeful consequences’ for ‘the daughters ‘’of Tahiti’, and so did all his fellow preachers” (DRUETT, 2001).

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Durante os três dias nos quais o navio ficou ancorado novas provisões – além de uma grande carga de sal - foram embarcadas: principalmente whisky, tabaco, bifes de boi e biscoito de viagem. Depois de recolher os foqueiros o navio partiu em direção Sul-Sudoeste, em direção as ilhas Falkland. O objetivo era conseguir novas informações sobre o território de caça localizado no extremo Sul do Pacífico, em que regiões caçar, como desermbarcar e outras informações de uso prático. A rotina, novamente, foi estabelecida, e os dias passaram, afogados em whisky e cegos pela fumaça do tabaco. Por fim o navio chegou em Falkland. Lá, para evitar que as cenas que ocorreram em Cabo Verde se repetissem, foi acordado que o navio ficaria ancorado por apenas 24 horas, depois ele zarparia, rumo ao novo destino. A idéia era que, com menos tempo em terra, os foqueiros não conseguiriam cometer tantos abusos, além disso, os foqueiros que demorassem a chegar sofreriam sanções – ficariam uma semana sem grogue. Mesmo com todas essas medidas a maioria dos marinheiros chegaram entorpecidos ao navio no dia seguinte, inclusive o capitão e todos os oficiais. Em terra conseguiram informações que confirmaram a existência do novo território de caça, vários navios haviam capitaneado o local para seus países, embora nenhum nome ou dominância fosse seguido durante o período, aparentemente o local era um novo continente ao Sul, ainda não conquistado por nenhum país, embora algumas ilhas já houvessem sido reclamadas pelos Ingleses. Também descobrimos que para chegar na ilha de Livingston, arquipélago das Shetland do Sul, era necessário continuar por Sul-sudoeste, evitando os icebergs que se

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tornariam frequentes mais para perto. Todos foram advertidos contra o frio que se seguiria, embora não tenham sido providos com quaisqueres roupas para se protegerem contra a temperatura. Partimos, então, para o extremo Sul do Pacífico. Com o leme em direção ao Sul-sudeste e a promessa de dinheiro rumamos para a Antártica, me lembro da ansiedade que sentia, por tudo que eu sabia iria ser a primeira garrafa a viajar para terras tão longíquas.

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Capítulo 4 – No continente Gelado

A viagem das ilhas Falkland para a ilha de Levingston demorou doze dias46? Sem dúvida os mais ocupados de toda a viagem, alem dos perigos iminentes que os icebergs e as grandes placas de gelo apresentavam – era preciso redobrar a atenção para evitar acidentes – haviam muitas decisões para serem feitas. Várias pequenas coisas foram decididas nestes dias, quem iria para terra, como eles iriam, quantos tempo permaneceriam, os procedimentos que seriam tomados para levar a cabo a atividade de extração das peles de foca, a hierárquia que seria obedecida e diversas outras miudezas. Vários pequenos detalhes também foram resolvidos, coisas tais como qual a quantidade de carvão seria levada para terra até coisas como quantas peles seria possível salgar com o sal que havia disponível foram calculadas, outro limitador para a quantidade de peles que poderiam ser extraidas era a quantidade de cavilhas - pequenas estruturas de madeira que serviriam para esticar as peles em terra, de forma a evitar que elas encolham durante a secagem. -; como o problema parecia sério grande parte destes dias foi passada com manufatura de novas peças . O maior problema seria em relação a aproximação – em terra não haviamos conseguido muitas informações sobre possiveis portos -, onde deveriámos ancorar e a rota que seria tomada só seriam possíveis de ser decididas no momento, já que não havia nenhum mapa naútico do local, além disso era possível, se não provável, que haveriam outras embarcações lá com o mesmo objetivo – afinal, se conseguissimos notícia sobre essa terra é bem provável que outros navios também tenham obtido as mesmas informações. 46

Retirado de STACKPOLE, E. 1955.

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Finalmente, no décimo segundo dia de viagem foi avistada terra. Porém, a medida que nos aproximávamos, percebemos que ele estava cercado por grandes placas de gelo que impediriam a aproximação por aquele lado, alem disso todas os portosvisíveis eram estéreis, com pouco tipo de verde ou vida animal visível. O relevo também era um fator que dificultava a aproximação, já que todas os portos eram montanhosas e nenhuma delas parecia contar com uma área que fosse minimamente segura para a aproximação do navio. Como explicar aquela paisagem? Para mim que havia nascido, criada e vivido toda a minha curta existência no sol, a visão de tanto gelo me deixou espantada. Para qualquer lugar que eu rolasse a paisagem era predominantemente branca, pontuada com pequenas manchas marrons que indicavam terra. Havia a presença quase constante, de um nevoeiro que impedia que maiores detalhes fossem visíveis, porém era notável a falta de pontos características naquela região, tudo aparentava repetitivo e monótono, sem nenhum sinal de ocupação humana. A ausência de verde também me marcou muito, não era possivel observar rnenhum tipo de vegetação47

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“The whole line of coast appeared high, bold, and rugged; rising abruptly from the sea in

perpendicular snow cliffs, except here and there where the naked face of a barren rock shewed itself amongst them. In the interior, the land, or rather, the snow, slopped gradually and gently upward into high hills […] Three days after this we anchored in an extensive bay […] words can scarcely be found to describe its barrenness and sterility. Only one small spot of land was discovered on which a landing could be effected […] being bounced by innaccesible cliffs […] a single beach, on which there was a heavy surf beating, and from which a small stream of fresh water ran into the sea. Nothing was to be seen but the rugged surfaces of the barren rocks, upon which myriads of sea fowl had laid their eggs – the multitudes of the finest fur-seals […] the fur is the finest and longest I have ever seen (YOUNG in STACKPOLE, 1955).

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Foto retirada da coleção do LEACH48

Aparentemente, as informações que o capitão e seus imediatos haviam conseguido no porto com a ajuda de minhas irmãs eram falsas, não havia nenhuma praia que permitisse um desembarque por aquele lado da continente, além da grande quantidade de icebergs que cercavam a região. O capitão e seus imediatos decidiram então mudar de rumo e tentar contornar essa parede de gelo e montanhas, circundando a região pelo Nordeste. Pelo que eu pude observar - depois que embebedei um dos marujos que estava de guarda e me vi livre para faze-lo - a paisagem pouco mudava: sempre seguia-se pequena ilha átras de pequena ilha, todas cercadas por icebergs e por paredes de pedra que não pareciam nem um pouco convidativas para o Flying Squid.

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Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas, coordenado pelo professor Dr. Andres

Zarankin na Universidade Federal de Minas Gerais. Essa foto foi tirada durante o trabalho de campo de 2012.

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Depois de alguns dias seguindo está rotina subiu um súbito grito do vigia do navio: “DIKE AHOYY!!!!” aparentemente havia ali um canal e, no final dele, apenas levemente visível devido a nevóa que cercava o lugar, uma praia. O primeiro imediato, que comandava o navio naquele momento - devido ao grande estupor alcóolico no qual o capitão se encontrava - decidiu que deveriam entrar naquele canal e ver onde daria. A medida que nos aproximavámos o mar foi ficando mais calmo e livre de icebergs. A praia, que antes não pasava de uma mancha negra em meio a imensidão branca, também foi tomando forma e, o melhor de tudo, estava tão povoada, do que pareciam ser, de leões marinhos, focas e pinguins que eles estavam, literalmente, amontoados aos milhares, uns sobre os outros. Finalmente, aquilo que era apenas um sonho para a maioria dos foqueiros se tornava verdade para aqueles que estavam à bordo do The Flying Squid, eles haviam chegado em uma nova zona de caça que prometia riquezas imensuráveis. Pude observar nos olhos dos foqueiros com os quais eu dividia a embarcação que ali eles não enxergavam animais, eles enxergavam dinheiro. Para eles aquele aglomerado de rechonchudas e indefesas criaturas era apenas uma pilha de moedas, esperando para ser colhida, o valor daquelas vidas para eles não passava do valor que as peles teriam no mercado de Macau. Depois de feita a descoberta, começou um período de intensa agitação, os últimos detalhes foram acertados e ficou resolvido que os foqueiros permaneceriam em terra pelo máximo de tempo possivel, o tempo que demorasse até que o sal se esgotasse, todos foram instruídos para trabalhar rapidamente e se preparar para o frio extremo.

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Os escolhidos para descerem em terra foram aqueles que já tinham alguma experiência com o trabalho de peles, foram incentivados pelo resto da tripulação, afinal, tudo que ganhariam no porto dependeria do desempenho daqueles homens pelo curto espaço de tempo que eles permanecessem em terra, apenas um oficial embarcou junto aos outros quinze homens49 que rumariam para o continente, ele ia como autoridade máxima e representante do capitão em todas as instâncias em terra. Durante os últimos preparativos, escorreguei do baú onde estava ancorada e segui em direção as escunas que iriam em terra, me coloquei no lugar mais visível que pude alcançar para que algum foqueiro que passase me embarcasse junto à minhas irmãs que seguiriam para terra. Com sorte um daqueles que desceria achou que ia precisar de um trago extra e consegui embarcar. A escuna foi descida ao mar, ela continha comida – biscoitos de marinheiros e carne salgada de porco - e água – insalubre devido ao longo período que havia permanecido armazenada nos barris - para dez dias, carvão suficiente para esse período, dois barris de whisky e duas garrafas por cabeça, alem de tabaco e café suficiente para durar por vinte dias. Fora isso foram também levadas panelas e facas para a retirada e cozimento das peles, alem de sal suficiente para realizar o salgamento das peles. O que mais ocupava o espaço da pequena escuna eram os barris vazio, que se empilhavam por toda a parte – neles seria guardado o precioso óleo de elefante marinho Quando todos estavam prontos para sair os que ficaram no navio se despediram, felizes por não terem sido escolhidos para aquela tarefa ingrata e tentando encorajar aqueles que iriam fazer o trabalho por eles.

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Stehberg estima que, a partir de referência escritas, os grupos de foqueiro que rumavam para a terra

variavam de 15 a 20 homens.

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A viagem na escuna foi marcadamente veloz, a terra se aproximava rapidamente. Era cada vez mais nítido a imensa quantidade de focas, leões marinhos e pinguins que habitavam aquele lugar, qualquer canto que se mirasse o olhar naquela praia estava repleto destes animais. Todos eles indefesos, sem idéia do que o futuro lhes apresentaria, alem disso haviam diversos esqueletos de baleias em vários estados de decomposição diferentes espalhados pela praia, algumas recém mortas e outras, que provavelmente serviram de alimento para as aves e os pinguins do local, já somente no esqueleto. Quando chegamos em terra a primeira coisa foi batiza-la, o oficial decidiu chama-la de Punta Elefante50 decido a grande quantidade de elefantes marinhos que era visíves naquele lugar, era dificil até se locomover sem pisar em alguns deles.

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Mapa com a localização dos sítios arqueológicos escavados na Antártica, o sítio de Punta Elefante 2 –

no qual se passa grande parte desse capítulo - está marcado em verde.

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Foto por Roberto Michale, PROANTAR

Depois que chegaram em terra decidiram que a primeira coisa a fazer era achar um abrigo, uma caverna ou algo do tipo que permitisse, ao menos, um pouco de proteção contra o frio e os ventos durante qualquer tempesatade e durante a noite, um local onde fosse possível fazer um forno e acender um fogo. Ele não deveria ficar muito distante da praia, já que o objetivo principal da viagem era matar os animais e retirar seus couros. Decidiram então por um local próximo a uma elevação natural rochosa, dessa forma um dos lados do abrigo estaria protegido das intempéres, em especial do vento, além disso a rocha poderia ser utilizada para apoio. Começamos então a pensar como montar um abrigo, resistente o suficiente para nos proteger do frio e ao mesmo tempo que fosse construido de forma rápida e com os poucos materiais disponíveis.

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Foto por Andres Zarankin, coleção Leach, temporda de 2012.51

Alguns dos que desceram a praia comigo haviam trabalhado em um navio baleeiro e se lembraram daqueles esqueletos de baleia que haviamos visto durante o trajeto até a ilha, tiveram então a idéia de utilizar aqueles ossos para improvisar um tipo de estrutura que funcionasse como um abrigo. Retiraram um grande osso de forma cilíndrico, para servir de pilastra, e, apoiados a ele, colocaram diversas costelas de baleia para formar as paredes do abrigo52.

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No fundo da imagem é possivel perceber o local escolhido pelos foqueiros para a construção do

acampamento, é visível um osso longo que, provavelmente, teria servido como base para a sustentação das vertebras. Está foto foi retirada antes da escavação. 52

“Do ponto de vista estrutural quase sempre se utilizavam de alguma ocorrência rochosa na qual o

local de ocupação estava ‘enconstado’. Desta forma, o afloramente já constituía uma das paredes do abrigo a ser construído. Com blocos de pedra, que ocorrem em todo o ambiente, eram construídas paredes, definindo o espaço a ser utilizado. A cobertura, como já dito, era implantada com o uso de

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Ao redor de tudo isso foi construido, com muito trabalho, um muro de pedras empilhadas, sem nenhum tipo de reboco, apenas para oferecer proteção aqueles que deitassem; com cerca de 1m de altura. Para formar uma proteção ao redor das costelas que desse a eles uma proteção maior contra o vento, tiveram a idéia de caçar algumas focas e costurar suas peles, como um grande cobertor de couro ao redor do abrigo. Infelizmente, ninguém havia pensado em levar agulhas ou linha para o local, por sorte havia uma fonte praticamente ilimitada de ossos ali por perto – que serviria para improvisar uma agulha – e os cabelos mais longos de alguns dos que ali estava serviria para improvisar uma linha. Considero importante interromper o relato do que observei lá para abrir um pequeno parênteses na história para relatar uma observação muito curiosa, que somente me dei conta depois porém já se faz relevante neste ponto da narrativa. Enquanto estavam no navio, todas as decisões eram tomadas pelo capitão, transmitidas ao primeiro imediato, que então as comunicava para o resto da tripulação; o capitão era a autoridade máxima e não aceitava ser questionado à bordo em nenhuma instância, seja ela de navegação, alimentação ou qualquer outra – também relatei que isso, de certa forma, unia os marujos do aftermast em oposição aos oficiais. Outro ponto que tentei frisar durante a minha narrativa é a existência de uma rotina, repetitiva e monôtona que existia a bordo, e era um tipo de rotina imposta pelo capitão que não aceitava nenhum tipo de modificação. Porém, ao chegarmos em solo Antártico, já nessa primeira experiência, tudo isso se modificou de forma brusca. O imediato que havia seguido como superior, não dava costelas de baleia ou peças de madeira (vigas) sobre as quais se colocavam peles de niamsi ou lonas Estava construído o abrigo (GUIMARÃES e MOREIRA, 2011).

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ordens ou ditava o que devia ser feito, ao invés disso tudo era conversado, as experiências pessoas daqueles poucos que já haviam participado de outras expedições deste tipo eram levadas em conta na hora de tomar quaisqueres decisões, especialmente aqueles que diziam respeito a sobrevivência do grupo naquele local. Os itens eram todos compartilhados, nós eramos passadas de boca em boca, sem distinção de hierárquia; todos comiam diretamente da grande panela de ferro, alem de diversos outros pequenos fatores através dos quais observei a brusca transformação na hierárquia e na própria manutenção, reprodução e utilização do poder. A rotina aqui, pelo menos até o momento não era semelhante aquela do navio, aqui todos tinham que trabalhar junto para garantir a sobrevivência do grupo, tudo era meio improvisado e aquela rotina de oito horas de trabalho seguido por quatro horas de descanso foi rapidamente abandonada. Voltando a história: depois de fixar as costelas, o osso longo e as pedras que cercariam o campo no local que lhes pareceu mais adequado se viram na incubência de começar o trabalho para o qual toda essa viagem aqui narrada foi realizada, embora matar apenas uns 15 ou 20 animais, apenas o necessário pra cobrir as paredes do abrigo de peles. Fiquei, então, esperando para ver a atividade da qual tanto ouvi falar: a caça aos elefantes-marinhos e as focas. Na minha cabeça a cena transcorreria da seguinte forma: dois ou três homens perseguiriam uma das focas para algum lugar onde ela não conseguisse se defender, de lá ela lutaria com os homens, onde finalmente seria morta. O que aconteceu me chocou, um dos foqueiros mais experientes era um homem que se orgulhava da sua habilidade de matar leões–marinhos e focas, ele dizia ser famoso pela sua velocidade nesse tipo de atividade, principalmente nas ilhas Malvinas; 60

foi demonstrar aos green hands como faz: ele se posicionou átras de um dos lobosmarinhos, que pacatamente observava o homem, e simplesmente lhe deu uma pancada com uma clava que levava a mão, nenhum grito ou tentativa de defesa foi feita por parte do animal, então o homem puxou sua faca de caça e tirou a pele do rabo até a cabeça, em uma peça única que saiu facilmente. Essa primeira pele foi então salgada e, em seguida, estendida e segura no lugar por quatro cavilha, que funcionavam para evitar que as peles encolhessem durante a secassem e assim perdessem o valor, toda a cena durou menos de um minuto53. A primeira reação do resto dos homens foi a mesma que a minha: choque, não podia ser tão fácil, creio que todos imaginavem que, na pior das hipóteses, os animais reagiriam. O pior, na minha visão, era a reação do resto dos animais: exatamente nenhuma. Eles simplesmente acompanharam a cena de forma plácida, sem eesboçar reação alguma quando uma de sua espécie foi massacrada sem piedade ao seu lado. Os outros rapidamente se voltaram ao principal – e único – remédio ao qual tinham acesso naquele local: o whisky. Uma de nós foi rapidamente passada e, depois que cada um dos homens ali tomou um grande gole eles se voltaram ao trabalho: matar leões-marinhos suficientes para cobrir sua tenda. Os foqueiros menos experientes tiveram muita dificuldade, a princípio, para realizar essa matança a sangue frio de forma tão precisa quanto o homem mais experiente. Os primeiros lobos mortos por eles sofreram vários golpes distintos, as 53

“[...] we killed them with clubs. A single blow across the nose is sufficient to bring down the larges,

when they are finished with the touch of a knife is then passed round the head and flippers, and the skin being slit from head to tail in front, it is taken off with much ease. When taken to our rendez-vous, the skins were beamed with a currier’s knife, and stretched out on the ground in proper shape to dry, fourteen pegs being put in each skin” (Phelps 1871 in Richards 1992).

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vezes dois ou três para cada morte e, quando isso ocorria, as focas guinchavam de forma horrivel, cientes da futura morte que as aguardava. Mesmo com toda essa ineficiência e inabilidade demonstrada pelos foqueiros iniciantes o processo correu rapidamente e logo cerca de 20 peles haviam sido separadas. O solo, antes branco de neve e verde de musgo, se encontrava manchado de vermelho. Vários dos homens, depois de realizada a matança, desabaram na neve e se voltaram para nós, suas eternas companheiras. Com muito custo a tenda ficou finalmente pronta, os homens provavelmente ficariam extremamente apertados ali dentro, mas qualquer coisa era melhor do que o intenso frio que faria do lado de fora e, pelo lado bom, quanto mais perto ficassem uns dos outros mais o calor seria mantido. O dia já estava quase no fim e todos estavam famintos quando perceberam que faltava uma coisa crucial: um fogão. Pegaram mais algumas vertebras da baleia e, com o auxílio de algumas pedras com as quais fizeram um muro junto à enconsta rochosa apoiaram as vertebras para formar uma cobertura. Embaixo desta cobertura colocaram uma placa de metal que haviam trazido especialmente para esse fim.

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Foto da Coleção do LEACH, provável fogão.

Resolveram levar, também, algumas vertébras de baleia para utilizar como banco, que espalharam pelo abrigo provisório, no final o local ficou apertado, porém com espaço suficiente para abrigar cerca de dez pessoas, seis sentadas sobre as vértebras e o resto espalhada no chão.

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Foto do Sítio Punta elefante 2 após a escavação.

Depois que tudo ficou pronto se prepararam para jantar, recolheram uma das focas que haviam esfolado e, depois de descarná-la, fizeram um ensopado de lobomarinho usando neve derretida acompanhado de muito whisky e alguns biscoitos de marinheiro, tentaram economizar os biscoitos, de forma que eles durassem durante o máximo de tempo possível. Foi a água mais pura que eles tomaram em meses e, muitos deles, diminuiram no whisky para aproveitar a oportunidade e beber água pura, para variar um pouco daquela água salobra e velha do navio. Naquele dia muitos foram dormir bêbados, para tentar fugir do frio e se aconchegaram juntos, ansiando e temendo o dia seguinte, quando teriam que começar a matança desenfreada pela qual realizaram toda essa viagem e passaram por todas essas experiências. Por sorte aquela noite não fez muito frio, e o abrigo improvisado resistiu as intempéres. O dia seguinte amanheceu cedo demais, como costuma acontecer naquela parte do mundo e os foqueiros se viram despertos pelo barulho infernal que as centenas de pinguins, focas e leões-marinhos fazem durante o amanhecer, todos levantaram e, depois de um café da manhã composto por sobras do jantar do dia anterior e de alguns goles de whisky se prepararam para o dia que viria. Depois que todos haviam levantados e estavam prontos para começar garrafas e cachimbos foram distribuidos e o trabalho começou. Dos quinze, os dez mais experientes ficariam responsáveis pela matança, retirada das peles e salgamento,

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enquanto o resto seria responsável pelo cozimento das focas para a retirada do óleo, que seria embarcado junto às peles. Dessa vez, para acelerar o processo os foqueiros adotaram a seguinte técnica: fizeram uma linha de oito homens entre os animais e o mar, e uma dupla passava espantando as focas em direção a essa linha, assim elas se acumulavam e os homens não precisavam se locomover muito para realizar a matança. Os homens mais produtivos conseguiam retirar uma média de até sessenta peles por hora54. A matança continuou pelo resto do dia de maneira eficiente, a quantidade de animais ali era tão grande que a impressão que eu tinha é que mesmo se esse tipo de chacina podia continuar por meses ininterruptos. Por volta do meio dia fizeram uma pausa para uma segunda refeição que consistia de ensopado de pinguim. A partir dai teriam que tomar cuidado, pois o estoque de carvão já estava no fim e o trabalho mal havia começando. Alguns dos foqueiros conheciam as técnicas utilizadas pelos baleeiros para lidar com esse tipo de situação:

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“The method practised to take them was to get between them and the water, and make a lane of men,

two abreast, forming three or four couples, and then drive the seal through this lane; each man furnished with a club, between five and six feet long and as they passed, he knocked down such of them as he choose, which are commonly the half-grown. […] When stunned, knives are taken to cut and rip them down on the breast from the under jaw, to the tail, giving a stab in the breast that will kill them. After this the hands got to skinning. I have seen men, one of whom would skin sixty in an hour. They take off all the fat, and some of the lean, with the skin, as the more weight there os to the skin the easier it will beam” (DELANO, 1818).

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eles utilizavam a própria gordura dos animais para alimentar as fogueiras, e decidiram que tentariam o mesmo procedimento a partir de agora55. Retornaram ao trabalho depois de algum tempo, embora o ritimo tivesse diminuido um pouco e as pausas para beber e relaxar com o tabaco eram cada vez mais frequentes. Durante a matança, não sei se devido ao frio intenso ou graças a má qualidade, o sapato de um dos homens se rompeu, e ele foi obrigado a improvisar um, utilizando o couro de um dos elefantes-marinhos que já havia secado. Creio que isso funcione bem para demonstrar a que precariedade estavam submetidos os trabalhadores que iam para terra e de que forma a subsistência era quase que inteiramente baseada em estratégias de adaptação. Depois de mais algumas horas de labuta deram o dia por encerrado, a cena era indescrítivel: todxs estávamos vermelhos, quase que completamente sujos de sangue dos animais que haviamos matado. De maneira geral, havia sangue em todos so lugares visíveis. Por mais que o abrigo não fosse literalmente do lado da praia, era muito próximo, e o próprio transporte das peles para próximo ao local de descanso já cheirava e marcava todo o lugar, depois de uma rápida e tosca contagem os foqueiros chegaram ao incrível número de 2400 peles recolhidas apenas naquele dia – a quantidade era quase inacreditável. Os sonhos sobre foqueiros que ficavam ricos depois de achar novos territórios para a extração de peles havia se tornado realidade.

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“[...] usava-se a madeira para iniciar o fogo embaixo das caldeiras, mas, depois que começava a

fervura, os pedaços anelados de gurdura que flutuavam na superfície do caldeirão – conehcidos como refugos ou lascas – eram removidos e lançados ao fogo, como combustível. As chamas que derretiam a capa de gordura da baleia eram, portanto, alimentadas pela própria baleia. (PHILBRICK, 2000).

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Não consegui deixar de me sentir parte daquilo, eu e minhas irmãs haviamos participado daquele procecsso na medida em que permitimos aos foqueiros que nos utilizessem como válvula de escape e como forma de relaxar. Porém, de forma parecida, não consegui me eximir da culpa se omitir aqueles homens, não sei se todos fingiam não senti-la ou mascaravam-na com o uso de entorpecentes, mas eu sentia que era a única ali que sentia que a morte de tantos animais para a produção de combustível não era algo a ser comemorado, mas pelo contrário, deveriámos lamentar e enxergar a limitação do pensamento capitalista que nos levou a tomar tais ações. Consigo, até certo nível, compreender aqueles foqueiros: eles eram homens oprimidos pelo sistema – que haviam se acostumado a serem tratados como ralé -, que haviam sido criados em uma lógica predominantemente capitalista, na qual eles tinham pouquissimas oportunidades, faziam de tudo para sobreviver. Assim, quando se viram tão próximos a uma riqueza imensa, palpável e a qual eles, finalmente, poderiam ter acesso, agarraram a oportunidade com unhas e dentes, dispostos a abrir mão de sua consciência em prol de serem vistos não mais como a ralé, mas como homens ricos – e toda a carga sui generis que acompanha esse status. Porém, não era obrigada a concordar com eles por compreende-los. Assim, passei a torcer para que algum acidente acontecesse e eu terminasse por me quebrar. Esse momento veio, finalmente, alguns dias depois, durante uma tempestade. Todos os homens se encontravam dentro do abrigo, onde foram obrigados a permanecer, espremidos e entediados, até que a neve cessasse de cair.

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Durante esse tempo haviam duas coisas para ser feitas: beber e fumar. Os outros dois grandes vícios e passatempos, jogar e apostar; dos marinheiros não haviam sido pensados quando desembarcaram, assim eles improvisaram: com o uso de alguns fragmentos de osso que estavam jogados perto da entrada da tenda fizeram algumas peças e um tabuleiro, para jogarem dama. Esse tempestade em especial durou por todo o dia e, como grande parte dos mantimentos estavam do lado de fora, a bebida já estava quase no fim, eu era a única que ainda estava parcialmente cheia, o resto das minhas irmãs haviam sido esvaziadas. Então, os marinheiros começaram a discutir sobre quem ficaria com a bebida, o que acabou por acarretar uma briga e, por fim, um deles me derrubou acidentalmente e pos fim as contendas. Foi então que começou um período de isolamento muito grande, fui deixada para trás pelo grupo que partiu e fiquei ali, enterrada e esquecida. Fui fragmentada e deixada em pedaços pelos foqueiros, porém continue uma, minhas memórias ainda viviam em cada um dos pedaços.

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Epilogo - Arqueólogos

Me lembro de muito pouco do que aconteceu depois que me quebrei, a solidão e a repetição interminável dos dias me deixava pouco para gravar e menos ainda para chamar minha atenção. Até que um dia comecei a escutar barulhos diferentes do usual, em vez do caminhar rítimico dos pinguins e do arrastar lento das focas o que predominava era um barulho de raspagem. Depois de algum tempo comecei a ouvir também vozes. Por fim, depois de um grande hiato no qual permaneci esquecida e enterrada, fui retirada da terra por um grupo: todos eram bastante semelhantes, embora a roupa mascarasse grande parte das características daquelas pessoas, era até dificil identificar sem haviam alguma mulher. Fui, então, retirada com todo o cuidado do meu túmulo de gelo e, depois de examinada e passada na mão de todos, fui guardada com todo o cuidado em um recipiente macio e seco. Passei algum tempo ali e, depois de mais um grande viagem que me levou ao Brasil, fui desempacotada e tratada um grupo que se autodenomina “arqueólogos”. Comecei então o último ciclo de minha vida. Embora somente alguns pedaços de meu corpo tenha sido encontrados, foi o suficiente para que eu conseguisse contar minha história. Hoje, depois de já ter passado algum tempo no laboratório e ter sido tratada e reconstruida fico enterrada na reserva

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técnica, de onde sou retirada as vezes para ser exibida em uma vitrine durante alguma exposição.

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Capítulo 5 – Conclusão

Como já disse durante a introdução, gostaria de frisar novamente que este trabalho é um ensaio, que visa preencher uma lacuna observada por Tânia Andrade de Lima em seu artigo: “Tecnologia de mais, comportamente de menos: o olhar da arqueologia sobre vidros históricos”. A autora crítica as escolas arqueólogicas hegêmonicas no Brasil que, de forma geral, tendem a analisar os vidros por um viés predominantemente tecnológico, deixando de lado os comportamentos que perpassam este tipo de cultura material. Além disso, ela questiona qual o valor de analisar as estruturas tecnológicas de construção de um objeto se seu uso, contexto e significados são deixados de lado, a arqueologia se resume a construção de uma cadeia operatória? Assim, tentei com o uso de um método diferenciada abranger novas formas de demonstrar a vida cotidiana das pessoas através do objetos, tentando mostrá-los como sujeitos não-humanos também relevantes para a construção das realidades e não como sem poder. Com este trabalho queria explorar novas formas de fazer arqueológico, buscando, talvez, linguagens alternativas, novas metodologias e formas de apresentar resultados, que não retrinjam o público e abram mão de uma tipologia acadêmica em prol de um trabalho mais abrangente que chame a atenção e viabilize uma divulgação maior do que é realizado dentro da academia.

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Dentro destes paramêtros, considero que o trabalho, ou melhor a construção deste projeto; ajudou a responder diversas de minhas dúvidas e criou novas possibilidades para pensar e pesquisar arqueologia. Desta forma, este trabalho e esta pesquisa ficam como uma primeira aproximação as distintas formas com as quais os foqueiros se relacionavam com o álcool, tentei abordar de forma sucinta o tema para tratá-lo tanto dentro do continente como fora. Assim, é necessário aprofundar o tema, trazendo mais sítios, mais bebidas, novos diários, histórias e quaisqueres outras fontes que possam vir a ajudar a responder as inúmeros perguntas geradas durante a pesquisa.

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