Histórias extraordinárias: cinema argentino contemporâneo

June 4, 2017 | Autor: N. Christofoletti... | Categoria: Argentina, Cinema, Argentinean cinema, Contemporary Cinema
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A mostra HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS foi realizada entre os dias 5 e 17 de abril de 2016 na CAIXA Cultural Rio de Janeiro - Cinema 1, com curadoria de Marcelo Panozzo e Natalia Christofoletti Barrenha.

www.cineargentino.com.br Este catálogo foi composto em Helvetica Neue LT Std, impresso em Couché Matte IMP 250g e Offset 90g na Stamppa Comercial Gráfica, Rio de Janeiro/RJ. Coordenação editorial de Natalia Christofoletti Barrenha e projeto gráfico de Carina Oliveira. EDIÇÃO COM 1.000 EXEMPLARES. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. VENDA PROIBIDA. RECICLE, REUTILIZE, REDUZA.

CAIXA Cultural Rio de Janeiro - Cinema 1 Av. Almirante Barroso 25, Centro. Tel: 21 3980.3815

www.caixacultural.gov.br CaixaCulturalRioDeJaneiro Baixe o aplicativo Caixa Cultural Alvará de Funcionamento: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.

A PRES ENTA Ç Ã O

A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade, e mantém comitês internos atuantes para promover entre os seus empregados campanhas, programas e ações voltados para disseminar ideias, conhecimentos e atitudes de respeito e tolerância à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade. A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 80 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos nas suas unidades da CAIXA Cultural além de outros espaços, com ênfase para exposições, peças de teatro, espetáculos de dança, shows, festivais de teatro e dança e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país. A presente mostra pretende trazer um olhar multifacetado e estimulante sobre a recente produção do cinema argentino, com a novidade de que haverá espaço também para o público infantil com uma seleção de filmes especialmente dedicados a esse segmento. O público brasileiro, e o carioca em particular, tem demonstrado grande interesse pela produção de filmes latino-americanos, que tem despontado com títulos que surpreendem pelas longas temporadas em cartaz. Ao patrocinar mais esta mostra para o público carioca, a CAIXA reafirma sua política cultural de estimular a discussão e a disseminação de ideias, promover a pluralidade de pensamento, mantendo viva sua vocação de democratizar o acesso à produção artística contemporânea. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

Í NDICE Histórias mínimas, selvagens, breves, extraordinárias:

................................................................................................ uma introdução - por Natalia Christofoletti Barrenha

O novo cinema argentino depois do nuevo cine argentino

................................................................................................

12 26

por Gonzalo Aguilar

MOSTRA PRINCIPAL

A mulher dos cachorros

A sombra

................................................................................................ O visitante dos escombros - por Pablo Piedras

44 48

Corpo de letra

56

Damiana Kryygi

................................................................................................ Uma história de reparação - por María Celina Ibazeta

Dois disparos

................................................................................................ O regresso dos mortos-vivos - por Román Setton

Fora de hora

................................................................................................ Entre frestas existem os olhares enviesados, observadores e desejosos - por Mônica Brincalepe Campo

80

Paulina

84

MARCO BECHIS

Garagem Olimpo / Filhos / O rumor da memória

52

................................................................................................ Traços da política na cidade - por Marília-Marie Goulart

O escaravelho de ouro

................................................................................................ A sátira como potência crítica - por Mariana Duccini

ESPECIAL

Como funcionam quase todas as coisas

................................................................................................ Road movie de “arredores” - por Regiane Ishii

74

................................................................................................ Cartografia da barbárie - por Julia Kratje

FILMOGRAFIA COMENTADA

................................................................................................ Vida de cão - por Yanet Aguilera

Jess & James

................................................................................................ Caminhos homoafetivos - por Rodrigo Ribeiro Barreto

................................................................................................ Marco Bechis e as memórias da ditadura argentina - por Patrícia Machado

90

CHIQUITOS E CHIQUITAS

Basicamente um poço

102

............................................................................................. Uma pá na mão e uma maçã na cabeça. Ou de

como fazer cinema utopicamente - por Lúcia Monteiro

60

Coletânea de curtas de Juan Pablo Zaramella

106

Rodência e o dente da princesa

110

Ficha técnica e Agradecimentos

114

............................................................................................. Juan Pablo Zaramella, um animador de histórias - por Jennifer Jane Serra

64 70

............................................................................................. Uma fábula latino-americana - Daniela Ramos

.............................................................................................

HISTÓRIAS MÍNIMAS, SELVAGENS, BREVES, EXTRAORDINÁRIAS:

UMA INTRODUÇÃO

por Natalia Christofoletti Barrenha

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

Em 2008, me encontrei pela primeira vez com Lucrecia Martel. Terminava a graduação em jornalismo e estava feliz e surpresa

desamparo de A menina santa (La niña santa, 2004).

por ter conseguido uma credencial de imprensa (uau!, pensava eu)

Pois bem, entrevistei Lucrecia, vi A mulher sem cabeça (La

para um prestigioso evento no qual a cineasta participaria no Brasil.

mujer sin cabeza, 2008) – tão desorientador quanto o estado zumbi

O objetivo era entrevistá-la para meu trabalho de conclusão de cur-

que acomete sua protagonista –, terminei a graduação. Ingressei

so. Por que ela? Nem ideia. Eu apenas sabia que não sabia o que

em um mestrado em cinema com um projeto sobre a obra dessa

iria fazer com aquele diploma de jornalismo que chegaria em breve,

realizadora. Não tinha noção do que era a vida acadêmica e o que

transformando-me de estudante em desempregada. Sabia também

significava pesquisar de verdade, mas aí estava todo um universo ao

que me divertia muito cuidando do cineclube da universidade.

qual terminaria felizmente me integrando.

Exibi O pântano (La ciénaga, 2001) nesse cineclube e foi

E então, por que Lucrecia? Acho que tudo isso está mais pra

quando o assisti pela primeira vez. Nunca me esqueci, ao final da

um MacGuffin para contar como nasceu esta mostra. Não achei

projeção, da cara de espanto de meu amigo Cesare Rodrigues

outro caminho (ainda mais às pressas!) para falar como me envolvi

(que para mim era a pessoa mais brilhante daquela universidade,

com o cinema argentino que não fosse através de Martel. Para

e escrevendo isso morro de medo dos erros gramaticais que ele e

entender melhor seus filmes quis entender todo o cinema argen-

seu português impecável podem encontrar aqui). Se o Cesare fazia

tino e a Argentina, empreitada infinita na qual mergulhei e pretendo

aquela cara, é porque havia algo de muito arrebatador naquele filme

continuar imersa. O desejo de compartilhar essa vivência é o que

e era preciso prestar atenção.

traz este catálogo a suas mãos e essa filmografia à CAIXA Cultural

Porém, não era meu debut com Martel. Pouco antes, bus-

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bilizadora: não podia deixar de pensar naquele final embebido de

Rio de Janeiro.

cando colocar em prática as aulas de espanhol, aluguei na locadora

Além disso, outra coisa que me diverte é como, nos últimos

(!) um DVD cuja capa era quase totalmente tomada pelas costas de

anos, muitas das pendengas resultantes da espirituosa rivalidade

um homem e, no centro da imagem, se vislumbrava o olhar de uma

entre a Argentina e o Brasil vêm se trasladando do campo de futebol

garota que se parecia com aquelas madonas que se pintavam no

para a tela grande: o país que tem o segundo melhor jogador de

século XVI. Era um olhar tão misterioso e assustado e inquisidor e

futebol do mundo tem também a prateleira abastecida por diversos

sedutor e inocente que exercia uma força centrípeta e nos puxava

prêmios internacionais que fazem do seu cinema um dos mais pres-

para ele apesar da pequena fração que ocupava no quadro. Bom,

tigiosos do globo.

não consegui ver o filme sem legendas e isso foi um pouco frus-

O cinema argentino é hit nas grandes premiações europeias,

trante, o que não impediu que a experiência fosse imensamente mo-

presença cativa na programação de festivais do mundo todo, e traz

15

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

no currículo dois Oscar – os dois únicos Oscar 1 em mãos lati-

fia vizinha permite, também, pensar nosso cinema, por tudo o que

no-americanas, diga-se de passagem. No Brasil, percebe-se um

temos de similar com a Argentina e para compreender melhor

grande interesse do público pelo cinema do país vizinho, manifesta-

as diferenças.

do tanto nas longas filas quando da exibição de filmes argentinos em

***

festivais quanto nos extensos períodos em que vemos produções

Historias extraordinarias (Mariano Llinás, 2008), título que

como Relatos selvagens (Relatos salvajes, Damián Szifrón, 2014) em

emprestei para nomear a mostra, é uma das produções que se con-

cartaz – já correram quinze meses e seguimos contando.

figuram como uma ruptura com o chamado nuevo cine argentino. O

Por que o cinema argentino vem batendo um bolão? A cada

nuevo cine floresceu em meados da década de 1990 impulsionado

estreia argentina no circuito brasileiro, essa pergunta se repete (às

por uma série de fatores como a criação de uma lei de fomento ao

vezes tendo como contraponto o cinema nacional) e lota as caixas

setor (que apoiava a produção através de créditos, subsídios, con-

de comentários dos sites dedicados à sétima arte.

cursos e programas de ação através do Instituto Nacional de Cine

Porém, na verdade, pouco se conhece da cinematografia

y Artes Audiovisuales – INCAA), a reativação da cota de tela para

hermana por aqui. Apesar do acordo Brasil-Argentina de codis-

filmes nacionais, o surgimento de inúmeras escolas de cinema e o

tribuição (um dos primeiros do mundo, assinado em 2003, e nunca

acesso a equipamentos devido à convertibilidade cambiária (1 peso

efetivamente cumprido) e de um público efusivo, dificilmente tem-

= 1 dólar), que provocaram imediata reativação e dinamismo inédito

se acesso a produções argentinas. O país realiza em média 180

no setor. Uma nova geração entrou em cena trazendo novas sen-

longas-metragens por ano, mas chegam apenas quatro ou cinco

sibilidades estéticas e novos princípios ideológicos. Negando com

ao circuito comercial brasileiro, além das esparsas exibições do

veemência o cinema produzido anteriormente, geralmente desen-

circuito alternativo.

volvido dentro de estúdios, o nuevo cine carregou suas câmeras

Dessa forma, a mostra HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS: CI-

leves, equipes reduzidas e orçamento restrito para filmar nas ruas.

NEMA ARGENTINO CONTEMPORÂNEO pretende preencher essa

Apesar de existir uma negação sistemática dos realizadores

lacuna com uma seleção dos mais interessantes filmes produzidos

do nuevo cine em pertencer a um movimento, não é difícil encontrar

nos últimos anos na Argentina – não com o objetivo de esfriar esse

elementos comuns entre suas obras. Em realidade, não houve uma

debate, e sim botar mais lenha na fogueira. Conhecer a cinematogra-

busca programática por parte dos novos cineastas, e suas poéticas são variadas. Porém, estabeleceu-se um novo regime criativo

Os ganhadores na categoria de Melhor Filme Estrangeiro foram A historia oficial (La historia oficial, Luis Puenzo, 1986) e O segredo dos seus olhos (El secreto de sus ojos, Juan José Campanella, 2010). 1

16

(para utilizar a expressão de Gonzalo Aguilar), no qual todos estavam atravessados por preocupações como a austeridade da mise en scène

17

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

e com um realismo estético. Lucrecia Martel, Pablo Trapero e Daniel

A ironia sobre os não atores e o cruzamento entre o documental e

Burman foram alguns nomes que despontaram nessa “onda”. Mas,

o ficcional em Estrellas; a ironia sobre o cálculo dos novos diretores

o que acontece com o cinema argentino 20 anos depois, para além

que fazem filmes pensando nos festivais em UPA!, demonstram o

da consagração de uma porção de diretores e do estabelecimento

esgotamento de um período e propõem (inclusive através do jogo e

dessa cinematografia como uma das mais prolíficas e incensadas

do humor) a necessidade de passar a outra fase”. 3

do mundo?

Finalmente, Historias extraordinarias de Llinás provocou

Há mais de uma década já se discute que o nuevo cine tran-

grande furor entre a crítica argentina, que o comparou, várias vezes,

sitou o tempo de uma geração inteira, lapso demasiado extenso

com Pizza, birra, faso (Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, 1997, con-

para a dinâmica própria de um movimento cinematográfico. David

siderado marco inicial do nuevo cine), no sentido que, depois dele,

Oubiña, por exemplo, escreveu em 2004 que, após dez anos, a

o cinema nacional não seria o mesmo. Agustín Campero escolheu a

renovação terminou por construir outro establishment, renunciando

produção de Llinás para fechar seu livro Nuevo cine argentino. De

frequentemente à experimentação para refugiar-se nas convenções,

Rapado a Historias extraordinarias; 4 Jaime Pena utilizou o título para

na autoindulgência e no conservadorismo.²

nomear a compilação Historias extraordinarias. Nuevo cine argentino

Sergio Wolf, em um debate promovido pela revista Otros Cines

1999-2008, 5 localizando-o como arremate da primeira década de

em 2007, denominado “Qual é a verdadeira situação do cinema ar-

nuevo cine ou inaugurador de um nuevo cine 2.0 que então se inicia-

gentino?”, prefere propor outro enfoque e fixar uma periodização do

va; e Gonzalo Aguilar o colocou como principal representante do que

nuevo cine argentino a partir da estreia, naquele ano, de dois filmes

chamou de cinema anômalo.

que ele considera definidores devido à capacidade de refletir so-

A consolidação do cinema anômalo, segundo Aguilar, foi um

bre suas próprias problemáticas: Estrellas (Federico León e Marcos

dos acontecimentos mais significativos no cinema argentino entre

Martínez) e UPA! Una película argentina (Camila Toker, Santiago Giralt

2006 e 2010, período entre a publicação de seu referencial livro

e Tamae Garateguy). Nas palavras do próprio Wolf: “Justamente, a autoconsciência de dois filmes recentes como Estrellas e UPA! me faz pensar em um modelo que já é um circuito fechado, encerrado.

OUBIÑA, David. “La fascinación por el margen” in Revista Todavía. Pensamiento y cultura en América Latina, número 08. Buenos Aires: Fundación OSDE, agosto 2004. Disponível em: http://www.revistatodavia.com.ar/todavia08/notas/oubina/txtoubina.html.

2

18

WOLF, Sergio. “La estética: el nuevo cine argentino no ha muerto” in Otros Cines, debate ¿Cuál es la verdadera situación del cine argentino?, 25 abril 2007. Disponível em: http://www.otroscines.com/nota-201-la-estetica-el-nuevo-cine-argentino-no-ha-muerto. 4 CAMPERO, Agustín. Nuevo cine argentino: de Rapado a Historias extraordinarias. Buenos Aires/Los Polvorines: Biblioteca Nacional/Universidad Nacional de General Sarmiento, 2009. 5 PENA, Jaime (ed). Historias extraordinarias. Nuevo cine argentino 1999-2008. Madrid: T&B Editores/Festival Internacional de Cine de Las Palmas de Gran Canaria,

3

2009.

19

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

Otros mundos e de sua reedição. 6 Com este termo o autor se refere

uma dezena de obras que, para nós, encarnam o frescor desse

a uma série de filmes que não se vinculam ao INCAA para conseguir

cinema; o mais nuevo após o nuevo. A diversidade de estéticas e

orçamento e que buscam instaurar outros circuitos de exibição. 7 As-

poéticas brindadas pelo momento atual da produção argentina per-

sim, apesar de sua narrativa de aventuras, do excesso de elementos

mite uma programação estimulante, em sintonia tanto com as mais

e da voz over predominante que confronta a estética minimalista de

inventivas correntes de renovação do cinema mundial contemporâ-

grande parte dos filmes do nuevo cine, Historias extraordinarias se

neo quanto com o apurado manejo do cinema clássico ou de gênero

configura como ponto de inflexão tanto pelo paradigma estético que

(e também suas releituras).

promove quanto por sua forma de produção.

8

Esses filmes foram lançados entre 2013 e 2015 e são quase

A primeira ideia que me mobilizou para a realização des-

todos inéditos no Rio de Janeiro. Da cada vez mais dinâmica cena

ta mostra implicava uma seleção composta por obras realizadas a

documental argentina estão Damiana Kryygi (Alejandro Fernández

partir da quebra que o filme de Llinás significou para o cinema ar-

Mouján, 2015) e Corpo de letra (Julián D’Angiolillo, 2015), títulos

gentino, propondo um olhar atualizado sobre essa cinematografia,

praticamente onipresentes nas listas de melhores filmes argentinos

mas naturalmente em relação ao já familiar nuevo cine. Entretanto,

do ano passado. Fernández Mouján investiga a barbárie da civilização

a imensa quantidade (e qualidade) das produções de todos esses

ao recuperar a triste história da cativa indígena Damiana Kryygi, en-

anos que se seguiram me levou a um recorte temporal em que a pa-

quanto D’Angiolillo – flertando com a ficção – conduz o espectador

lavra contemporâneo se limitou ao sentido de “tempo atual”: quais

pelo mundo desconhecido e sempre noturno dos grafites políticos.

histórias extraordinárias o cinema argentino oferece HOJE?

Movendo-se mais pelo que hoje se costuma chamar “ensaio”, A

Foi assim que, com muito prazer (e por vezes pesar, devido à

sombra (Javier Olivera, 2015) é a mise en scène de um exorcismo

impossibilidade de incluir tudo de incrível que pudemos ver), Marce-

particular: a demolição de uma casa, a expurgação de uma sombra,

lo Panozzo e eu chegamos a esse pequeno maravilhoso panorama:

a reflexão sobre um tempo. Como funcionam quase todas as coisas (Fernando Salem,

AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos. Un ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2006 e 2010. 7 Para melhor compreensão, ver neste catálogo o texto em que Aguilar desenvolve e atualiza sua ideia. 8 Ou, como provoca Nicolás Prividera (em El país del cine. Para una historia política del nuevo cine argentino. Villa Allende: Los Ríos Editorial, 2014), o filme de Llinás não possui nada de extraordinário em si mesmo – construindo-se, na verdade, como uma profusão de histórias mínimas e reproduzindo o modelo do título a que parece contestar: Historias mínimas, de Carlos Sorín (2002) – e seu maior mérito é obrigar a uma revisão do cinema argentino em geral e do nuevo cine em particular.

6

20

2015) e Fora de hora (Barbara Sarasola-Day, 2013) são os auspiciosos primeiros longas de seus diretores. Salem impõe ao estado de quietude e estancamento do deserto o movimento de sua protagonista Celina em uma pequena e, ao mesmo tempo, imensa jornada. Aos grandes planos abertos de Como funcionam... se opõem os planos sufocantes de Fora de hora, tomados pela perturbação fervi-

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

lhante que um visitante provoca nos personagens e no ambiente.

compreender e cicatrizar o ocorrido, como La historia oficial (Luis

Junto aos estreantes está o consagrado Martín Rejtman e seu re-

Puenzo, 1986), ou as reelaborações pensadas a partir de meados

torno à ficção após uma década com Dois disparos (2014) – que

dos anos 1990 como Montoneros, una historia (Andrés Di Tella,

reserva grandes surpresas (ainda que anticlimáticas) para a poética

1998), passando pelos inúmeros e inovadores documentários

rejtmaniana.

em primeira pessoa que atravessaram a década de 2000, como

Com trajetórias intrigantes e presença assídua nos princi-

o desconcertante Los rubios (Albertina Carri, 2003), até os mais

pais festivais internacionais estão Alejo Moguillansky e Santiago

recentes El premio (Paula Markovitch, 2011), Infancia clandestina

Mitre. No ácido e divertido O escaravelho de ouro (2014), o acaso

(Benjamín Ávila, 2012), Tiempo suspendido (Natalia Bruschtein,

da linguagem e das relações se encontra com a obsessão de Mo-

2015) ou Toponimia (Jonathan Perel, 2015), o cinema foi um impor-

guillansky pelo espírito de cálculo e domínio das situações. Paulina

tante meio para entender a ditadura que se autonomeou Proceso de

(2015), por sua vez, reafirma a vocação polêmica que Mitre havia

Reorganización Nacional, instituindo-se, também e especialmente,

inaugurado com seu impactante El estudiante (2011).

como um espaço de memória e de luta.

Resultado da parceria entre Laura Citarella e a fabulosa atriz

O nome de Marco Bechis é fundamental quando se discute o

Verónica Llinás, A mulher dos cachorros (2015) entrega, desde sua

Proceso no cinema argentino. Seu longa Garagem Olimpo (1999) é

abertura, uma nova ordem: a escuridão, os fragmentos de um cor-

um marco na abordagem ficcional desses anos escuros. Na época

po, os desconcertantes ruídos que emergem do silêncio remetem a

de seu lançamento, o filme deparava o público com uma situação

um registro onde prevalece o sensorial, a textura e outras formas de

incomodíssima comparada à tradição a que o cinema argentino

(con)vivência. Do outro lado do espectro formal se encontra Jess &

pós-ditadura estava acostumado – em especial sobre esse tema.

James (Santiago Giralt, 2015) com toda sua luz e extrema agitação.

Era um filme incômodo não por incorreção política, mas porque sim-

Além dessa seleção, o evento se completa com dois focos

plesmente (e finalmente) se dava ao trabalho de reconstruir o dia a

especiais. O primeiro é uma homenagem ao cineasta Marco Bechis.

22

dia de um centro clandestino de detenção e tortura.

No ano em que se completam quatro décadas do golpe de Estado

Filhos (2001) pode ser considerado uma espécie de continu-

que atingiu a Argentina 24 de março de 1976, (re)pensar as marcas

ação de Garagem Olimpo ao abordar a apropriação ilegal de bebês

que essa época deixou na História e nas histórias nos parece funda-

durante a ditadura e a recuperação de suas verdadeiras identidades

mental. A exploração e a discussão do violento período de exceção

quando adultos – como ecoam as mortes passadas nas vidas pre-

vivido pela Argentina entre 1976 e 1983 encontraram lugar privilegia-

sentes? Já no documentário recém-lançado O rumor da memória

do no cinema: desde a redemocratização, com filmes que buscavam

(2015), Bechis entrelaça sua experiência em um centro de detenção

23

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

clandestino da ditadura com a trajetória de Vera Vigevani Jarach,

aspiração de construir um mapa estático ou de pensar os longas

cuja vida é atravessada por duas tragédias históricas (além do Pro-

como exemplares representantes de uma totalidade cerrada. Assim,

ceso, o Holocausto).

a programação se identifica mais como um ponto de vista e, espe-

O segundo foco promove uma programação infantil que busca colocar os pequenos em contato com filmes que, dificilmente, são encontrados nos cinemas brasileiros ou na televisão. Além do

cialmente, um ponto de encontro com essa cinematografia. Será uma alegria compartilhar e discutir essas histórias extraordinárias!

potencial de entretenimento, as obras selecionadas procuram estender um caminho para que as crianças possam conhecer novas culturas – ou viajar para terras distantes em fantásticas aventuras. Buscamos formar novas plateias e encorajar os jovens espectadores a serem criativos, críticos e curiosos. Ademais, as três produções que compõem esse foco comportam diferentes registros, abrindo um leque para distintas percepções. Basicamente um poço, realizado coletivamente pelo festivo Grupo Humus (2009), pode ser descrito como uma mistura de ficção científica e comédia em live action. A fábula Rodência e o dente da princesa (David Bisbano, 2013) é uma animação gráfica. A lista se completa com um conjunto de curtas-metragens do premiadíssimo Juan Pablo Zaramella, formado por animações realizadas com diferentes técnicas como stop motion e pixilation.

Lucrecia Martel: resíduos do tempo e sons à beira da piscina (2013). Idealiza-

Enfim, a mostra HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS procura es-

dora, curadora e produtora da mostra Silêncios históricos e pessoais: memória

boçar uma ideia sobre o presente da produção argentina, tentando

e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo (CAIXA Cul-

pisar firme sobre a areia movediça que é o cinema contemporâneo

tural São Paulo, 2014). Membro do corpo editorial de Imagofagia – Revista de la

e buscando mobilizar os filmes como uma forma particular de pano-

Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA) e integrante de grupos de estudos sobre cinema latino-americano no Brasil e na Argentina.

rama. Apesar de soar como uma tarefa cartográfica, com a tentativa

Atualmente finaliza sua tese de doutorado sobre a cidade no cinema argentino

de assinalar tendências, rumos e linhagens, a atenção da curadoria

contemporâneo no Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universi-

sempre privilegiou a singularidade de cada película, prescindindo da

24

* Natalia Christofoletti Barrenha é autora do livro A experiência do cinema de

dade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

25

O NOVO CINEMA ARGENTINO DEPOIS DO

NUEVO CINE ARGENTINO

por Gonzalo Aguilar

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

Já se passaram quase duas décadas da exibição de Pizza,

ne estreavam seu terceiro filme: em 2001, Daniel Burman apresenta

birra, faso, de Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, no Festival Inter-

Todas las azafatas van al cielo; no próximo ano, Adrián Caetano apa-

nacional de Cine de Mar del Plata de 1997. Naquela ocasião, es-

rece com Un oso rojo, Rejtman com Los guantes mágicos (2004),

pectadores, críticos e todo o pessoal de cinema compreenderam,

Pablo Trapero com Familia rodante (2004), Albertina Carri com

imediatamente, que algo novo estava sendo gestado na Argentina. A

Géminis (2005), Lisandro Alonso com Fantasma (2006) e Lucre-

confirmação chegou no ano seguinte com a estreia de Mundo grúa,

cia Martel com La mujer sin cabeza (2008). Como costumava dizer

de Pablo Trapero, no BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional

Jorge Luis Borges: um é uma casualidade; dois, uma coincidência;

de Cine Independiente, e a aparição, pouco depois, de Silvia Prieto,

e três, uma confirmação. 2

de Martín Rejtman (1999), La ciénaga, de Lucrecia Martel (2001) e

Ao longo desses anos, esse novo cinema foi se forta-

La libertad, de Lisandro Alonso (2001). Se, no início, a denomi-

lecendo e, por volta de 2010, podia-se dizer que se tratava de

nação nuevo cine argentino foi utilizada com titubeios e dúvidas,

um fenômeno estabilizado, incorporado à indústria do cinema e

nos primeiros anos da década de 2000 já era um termo instalado

participante ativo nas decisões estatais que outorgam créditos,

e um brand para circulação no mercado interno, em festivais e em

além de um reconhecimento a nível internacional no circuito de

mostras de cinema de todo o mundo.

festivais (embora não apenas nele). Várias situações que no fim

O nuevo cine argentino não consistiu em uma mudança ex-

dos 1990 eram insipientes estavam consolidadas como, por exem-

clusivamente estética (ainda que tenham aparecido estilos originais

plo, o surgimento e a expansão de novas produtoras, mais afins às

e inovadores), nem se deveu a um grupo compacto de artistas,

estratégias de mercado contemporâneas, como comprova a quan-

como nas vanguardas. O que se denominou nuevo cine argentino

tidade de títulos lançados por Matanza (de Trapero e Martina Gus-

foi um novo regime criativo 1 que surgiu de transformações profundas

mán), BD Cine (de Burman e Diego Dubcovsky), Rizoma (de Hernán

tanto em suas propostas estéticas como nos modos de produção,

Musaluppi e Natacha Cervi) e, em menor medida, Sudestada (de

no ensino dessa profissão, na cultura dos festivais, nos gostos e na

Luis Ortega e outros). Dentro dos diretores do primeiro período,

interação com o público e nas relações entre Estado e cinema.

houve também aqueles que seguiram buscando formas alternativas

No começo dos anos 2000, a quantidade de óperas primas era impactante e – o que era mais estranho para uma indústria tão

de produção como Lisandro Alonso, e outros que se inseriram em modos mais industriais como Caetano ou Burman. De todo modo, uma pergunta persistiu: institucionalizar as for-

frágil como a argentina – vários dos diretores pioneiros do nuevo ciCom regime criativo me refiro ao cinema não somente como fato estético, mas também como fenômeno industrial, laboral e comercial.

1

28

BORGES, Jorge Luis. Siete noches. México: Fondo de Cultura Económica, 1980, p. 147.

2

29

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

ças que começaram a se desdobrar desde o fim dos 1990 ou tratar

te de ambos os legados. Como se a institucionalização – e este é

de continuar com a promessa de um cinema independente? O pes-

um fenômeno raro na cultura argentina – não implicasse no apaga-

soal do cinema não ofereceu uma resposta dogmática ou exclu-

mento da experiência anterior, mas numa nova potência.

dente a este dilema, e se inclinou por formas mistas nas tomadas

Então, quando o nuevo cine argentino conquistou um lugar e

de decisões que derrubam a oposição entre esses dois caminhos

se regularizou, 4 iniciou-se uma segunda (ou nova) fase que denomi-

propondo uma lógica híbrida de produção. Um bom exemplo é o de

no cinema anômalo, em que convivem e se articulam o cinema pos-

Pablo Fendrik, o cineasta da violência e da entropia segundo Ho-

sibilitado pelo fortalecimento e institucionalização dos anos prévios

racio Bernades, que fez um filme, La sangre brota (2008), com fo-

e o cinema que se faz em circuitos alternativos não por uma opção

mento do INCAA – Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales,

ideológica rígida mas como opção criativa.

3

e outro por fora dele e de maneira independente, El asaltante (2007).

Historias extraordinarias (2008) exerceu essa torção; a estria

Contudo, o mais importante é que uma mesma pulsão e uma mesma

que inaugurou uma nova modulação da imagem fora do molde da

tendência à efetividade atravessam a ambos.

produção previsível e convencional. Seu diretor, Mariano Llinás, faz

Os dois modelos, institucionalização e independência, ape-

parte da produtora El Pampero Cine, um dos expoentes mais po-

sar de distintos entre si, podem entreverar-se, manterem-se ativos

derosos do cinema anômalo, formada também por Alejo Moguillansky

ao mesmo tempo; serem atravessados ou sustentados temporaria-

(diretor e montador), Agustín Mendilaharzu (diretor de fotografia, ator

mente. Mais recentemente, Mi amiga del parque, de Ana Katz (2015),

e autor teatral) e Laura Citarella (diretora e produtora). Suas rea-

realizado com o apoio do INCAA, combina motivos do cinema inde-

lizações foram acompanhadas por artigos de Llinás – muitos deles

pendente (no casting, nos enquadramentos, no ritmo) e apostas de

na famosa revista El Amante – nos quais se criticavam as políti-

um cinema mais industrial (em sua distribuição, em sua minuciosi-

cas do INCAA e se defendia um cinema independente. Com frases

dade, em seu relato estruturado). O sucesso do filme não está em

cortantes e grandiloquentes (como “o dinheiro arruína os filmes” e

ficar no meio do caminho ou em oferecer uma poética pusilânime,

“nosso inimigo é a realidade”), Llinás abriu um caminho (ou soube

mas em mostrar a não pertinência de uma distinção estética e levar

ressignificá-lo) pelo qual seguiram outras produtoras como La Unión

adiante uma estratégia narrativa e de mise en scène que se aprovei-

de los Ríos e Pasto – que, no lançamento de El estudiante (2011),

BERNADES, Horacio. “Esferas de una violencia reprimida. La sangre brota, dirigida por Pablo Fendrik” in Página 12, Caderno Cultura & Espectáculos. Buenos Aires: 14 maio 2009. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/5-13871-2009-05-14.html

4

3

30

O fenômeno foi muito diferente ao do nuevo cine dos anos 1960, com o qual, frequentemente, é comparado. O novo cinema da chamada Generación del 60 justamente não pôde inserir-se nas instâncias de decisão e isso o impossibilitou sustentar uma produção.

31

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

de Santiago Mitre, publicaram uma espécie de manifesto a favor

Nesse cinema anômalo não encontramos obras similares ou que apos-

da produção alternativa, sem necessidade de recorrer ao Institu-

tem por uma mesma estética, mas filmes de diretores tão dissimiles

to. 5 É claro que estes não são os únicos representantes do cinema

entre si como Gustavo Fontán e Matías Piñeiro, Santiago Loza e Inés de

anômalo: a produtora Unacorda de Gonzalo Castro, Revolver Films

Oliveira Cézar.

de Matías Piñeiro e os filmes de Santiago Loza são modos de fazer

E o que os une? Quais seriam os núcleos desse cinema?

cinema muito diferentes entre si mas que sustentam um princípio

Em primeiro lugar, a independência com relação às exigências da lei

de independência. 6

implica a inclinação a um cinema que busca um público em outros

O cinema anômalo não é um cinema que necessariamente se en-

lugares e que evita as avaliações do INCAA. O princípio de pensar

frenta a uma ordem, mas que, simplesmente, se faz à margem dela. O

um cinema fora de si, um cinema que cria novos circuitos à medida

anômalo não é o que se opõe à norma, como explicaram muito bem Gilles

em que se exibe em um museu (principalmente no MALBA – Museo

Deleuze e Félix Guattari, senão o que difere, o múltiplo: “a-normal, adjetivo

de Arte Latinoamericano de Buenos Aires), em um centro cultural,

latino sem substantivo, qualifica o que não tem regra ou que contradiz a

em uma sala de cinema alternativa, em um festival. 8

regra, enquanto ‘anomalia’, substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o rugoso, a aspereza, o máximo de desterritorialização”.

7

Outra das características mais salientes do cinema anômalo é sua aliança com outras artes.9 Enquanto a primeira fase do nuevo cine apresenta, no geral, filmes com roteiros originais e com uma autorre-

Ver o manifesto assinado por Agustina Llambi Campbell, Santiago Mitre e Fernando Brom em http://www.cinenacional.com/blog/2011/09/carta-abierta-de-los-productores-de-el-estudiante e as opiniões de Mariano Llinás em http://www.pagina12. com.ar/diario/suplementos/espectaculos/2-28374-2013-04-16.html. Vale reforçar que este cinema é uma linhagem que convive com as produções feitas com os benefícios e as obrigações junto ao INCAA e não implica uma hierarquização. 6 Em seu instigante libro El cine y lo que queda de mí (Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012), Hernán Musaluppi critica o que aqui denomino cinema anômalo a respeito de El estudiante: “A perigosa contradição desse filme radica no fato de ter sido realizado fora do sistema quando lhe resultou conveniente (a etapa de produção, o momento das responsabilidades contratuais e regulamentárias) e de ter tentado pertencer ao sistema também quando lhe resultou conveniente (a confraria de críticos analfabetos à frente da barricada, a ajuda de um par de figurões da indústria e uns trocados do INCAA quando foram necessários). É um filme que, a partir da ambição, decide tomar o pior dos dois mundos: para eludir as responsabilidades, está feito fora do sistema; para todo o demais, está dentro” (p. 145). 7 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil mesetas. Capitalismo y esquizofrenia. Valência: Pretextos, 1980. No Brasil, foi publicado em diversos volumes pela Editora 34 sob o título Mil platôs. 5

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flexão sobre o meio e a mise en scène, na segunda etapa abundam os filmes realizados em diálogo com a música contemporânea, a dança, as artes plásticas e com a literatura em uma forma peculiar que não pode ser denominada adaptação nem transposição (como acontece com Historias extraordinarias e sua inspiração em Bioy Casares, R.L. Stevenson e Jack London,10 ou nos filmes de Matías Piñeiro com Sarmiento e Shakespeare). Gonzalo Castro é, além de cineasta, novelista, dirigindo Os filmes que se utilizam dos mecanismos de fomento do INCAA são contemplados, também, com uma janela de exibição, já que podem ocupar as salas oficiais. As obras que não passam pelo Instituto não podem estrear em suas salas e devem buscar outros circuitos de exibição. 9 Também com a história do cinema, como no caso de Paulina de Santiago Mitre. 10 O roteiro foi publicado em formato de livro com anotações e comentários do próprio Llinás: Historias extraordinarias. Buenos Aires: Mondadori, 2009. 8

33

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

ainda a editora Entropía. Alejo Moguillansky trabalha no teatro e seus

As novas narrações do cinema anômalo nos impulsionam a

filmes não podem ser entendidos sem a renovação que se produziu

nos desfazer da tirania dos relatos nacionais e das identidades con-

no teatro e na dança nos últimos anos. Gastón Solnicki, por sua du-

soladoras, a criar novos conceitos e, sobretudo, a fazer – mediante

pla formação cinematográfica e musical, pôde fazer süden. El breve

esses conceitos mas também com afetos, ideias e sensibilidades

regreso de Kagel a la Argentina, baseado na visita do músico Mau-

– a invenção de comunidades possíveis. A resposta de muitos dos

ricio Kagel à Argentina em 2006. Em 2013, o cineasta fez um espe-

filmes dos últimos anos à desagregação social e à crise dos relatos

táculo que combinava várias linguagens no Centro Experimental del

de comunidade são as composições coreográficas, imagens nas

Teatro Colón a propósito do centenário de Igor Stravinsky: Ital Park.

quais o central são as relações entre os corpos, o espaço e os pla-

Em linhas gerais, e levando em conta a simplificação que

nos. Como se pode, a partir da comunidade do cinema, criar outras

a afirmação comporta, enquanto a primeira fornada do nuevo cine

comunidades? Ou como o cinema pode se nutrir das comunidades

argentino se preocupou por se assentar e fortalecer o campo espe-

às quais se aproxima e retrata? Como aparecem os corpos, como

cífico do cinematográfico (como linguagem e como instituição), os

se relacionam, como se vinculam entre si?

novíssimos se preocuparam mais por realocar o cinema no mundo da arte e em estabelecer conexões e fricções.

34

As coreografias são uma mise en scène do corpo, uma exibição da teatralidade da vida e do poder do cinema para entregar

Em terceiro lugar, mudaram as condições do vínculo com o

performances mais poderosas. Estas coreografias não são utópicas

contexto político que, na primeira fase, esteve sob os signos do

ou revolucionárias (seu horizonte não é nunca o das coreografias

neoliberalismo e da crise de 2001. A consolidação do kirchnerismo

generalizadas que se podiam ver em Outubro de Sergei Eisenstein

no poder redefiniu o que se entendia por demanda política e iden-

[1927] ou nos latino-americanos La hora de los hornos de Getino/

titária. Falou-se de um regresso da militância e voltaram com muita

Solanas [1968] e Memórias do subdesenvolvimento de Gutiérrez

força – sobretudo com os festejos do bicentenário – os discursos

Alea [1968], que colocavam em cena o povo), mas buscam harmo-

da identidade nacional. E mais: discutiu-se, frequentemente, a

nias contingentes, locais e que produzem comunidades transitórias,

existência de um “relato kirchnerista” baseado na defesa dos

débeis e poderosas ao mesmo tempo.

direitos humanos e em um retorno ao Estado de bem-estar. De

Copacabana (2006), de Martín Rejtman, para começar com

modos muito diferentes, o cinema anômalo não confirmou relatos

um exemplo no qual se investigam as coreografias do popular, é um

de identidade nem aceitou a demanda política, e sim entregou

documentário que retrata a comunidade boliviana em Buenos Aires.

narrações que configuraram coreografias contingentes e ques-

Mais que os vínculos com o documentário contemporâneo (que

tionamentos das identidades fixas e tradicionais.

existem mas que são mencionados em geral como legitimação e des-

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

necessário signo de distinção), Copacacabana se aproxima a Bubsy

de Buenos Aires, que se dedica a oferecer atores para castings

Berkeley ou a Jacques Demy para ir além: as coreografias da co-

de publicidade, televisão e cinema. Em uma sociedade atravessada

munidade boliviana brilham por mérito próprio e a virtude do diretor

pela teatralidade, o protagonista de Estrellas se utiliza do paradoxo:

está, mais que armá-las, em observar seu funcionamento. Não há,

os que melhor podem atuar de marginais ou ladrões são aqueles

como se tem dito, o olhar de um diretor modernista e uma comuni-

que na “vida real” são marginais ou ladrões. “O lugar que não têm

dade disforme: os bolivianos de Copacabana, nas piores condições

na sociedade – escreveu Alan Pauls – encontram no espetáculo”. 12

e vivendo em um país que lhes é hostil, discutem seus problemas

O efeito de realidade que os meios procuram é aproveitado por es-

em assembleia, enfrentam mancomunadamente o problema da imi-

tes atores que devem fingir que não fingem: todos os preconceitos

gração e da diáspora e preparam festas com belíssimos números

e todos os medos dos olhares dos outros são usados por Arrieta,

coreográficos que são os que sustentam a narrativa do filme. Não há

que se converte em um grande manipulador. Como todos os ou-

nada disforme ali – exceto para uma visão muito exterior ou discrimi-

tros setores da sociedade, estão atravessados pela linguagem do

natória. Tampouco se trata de uma celebração de sua situação (que

espetáculo e sua sobrevivência depende de sua habilidade para se

é, em termos sociais, desafortunada), mas de observar o que está

aproveitar desse meio: Arrieta sabe que os diretores buscam algo

em construção, a comunidade que se sustenta com seus códigos,

“autêntico”. Não importa a classe social da qual se provém, é preci-

suas memórias e também seus inimigos exteriores. Sempre houve

so saber movimentar-se na sociedade do espetáculo.

algo rítmico e dançante nos filmes de Rejtman – entretanto, em Co-

Finalmente, o filme mais coreográfico de todos: Castro

pacabana a coreografia é feita pelos outros e o diretor sabe manter

(2009), de Alejo Moguillansky. 13 Em Castro, não só os personagens

essa distância.

se deslocam pela cidade como em um grande baile (com os ônibus

Em outro plano, Estrellas (2007), de Federico León e Mar-

de figurantes, inclusive), mas a medição dos planos está trabalhada

cos Martínez, é também um filme coreográfico, e não é casual que

em uma progressão geométrica e como uma linha melódica com

Rejtman e León tenham feito juntos, posteriormente, Entrenamiento

seus harmônicos, contrapontos e ritornellos. Em uma mise en scène

elemental para actores (2009), no qual pesquisam a teatralidade em

na qual não se pode evitar a rememoração do filme Invasión (1969),

que nos movemos não apenas no palco como na vida em si. Estre-

de Hugo Santiago, a teatralidade, o musical, o pictórico e o cinema-

llas é um documentário sobre Julio Arrieta, um habitante da villa

11

21

11 Como se denominam as favelas na Argentina. O nome é uma abreviação de villa miseria, que apareceu pela primeira vez na novela de Bernardo Verbitsky Villa miseria también es América (1957) [nota da tradutora].

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12 PAULS, Alan. “Los actores sociales” in Página 12, Caderno Radar. Buenos Aires: 09 dezembro 2007. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/subnotas/4298-698-2007-12-09.html. 13 O filme, embora não seja um musical, ostenta nos créditos o título de Direção Coreográfica, a cargo da bailarina Luciana Acuña.

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

tográfico confluem em um cinema que, como no curta que Samuel

nema anômalo é, sem dúvida, El estudiante de Mitre, que deve ser

Beckett fez com Buster Keaton, o slapstick se combina com a busca

lido no contexto do que, desde a assunção do kirchnerismo, se de-

metafísica de um tal Castro que, de modo lacaniano, funciona como

nominou o retorno da política. Quando alguns filmes pareciam fazer

o objet petit a.

eco dessa mudança (como o documentário NK de Caetano [2013],

14

Algo similar acontece com Historias extraordinarias e sua pro-

Infancia clandestina de Benjamín Ávila [2011], Tierra de los padres de

liferação de MacGuffins que movem a história e, com sua estra-

Nicolás Prividera [2012] ou os filmes de Paula de Luque), o debut

nheza, a tornam extraordinária nas planícies da pampa bonaerense.

de Mitre sustenta algo sobre um consenso que existia no fim dos

Em uma linha estética muito diferente, com mais excesso que

anos 1990: o desencanto da política. Ambientado na Facultad de

contenção, Historias extraordinarias leva muito longe essa épica de

Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires, El estudiante

uma identidade que nunca está fixa nem definida mas em perma-

é um bildungsroman (romance de formação) que conta a chegada

nente narração e processo. Historias extraordinarias conta a saga de

do interiorano Roque à cidade e sua incorporação à política univer-

três personagens aos quais um narrador onipresente – uma voz over

sitária pelas mãos de Paula e de Alberto Acevedo. Depois de ser

que não fraqueja ao longo de suas quatro horas de duração – chama

testemunha da corrupção nesse meio e de ser traído por Acevedo,

X (um homem que é testemunha de um crime), Z (quem chega a um

o filme termina com uma oferta que o próprio Acevedo faz a Roque

povoado para substituir alguém no serviço público) e H (encarrega-

de voltar à política. Ao que o protagonista, desencantado com tudo

do de uma missão). Mais que a psicologia dos personagens, o que

o que viu, responde: “não”.

importa são as funções que eles cumprem, que não são outra coisa

Mediante esta negativa, El estudiante afirma de um modo radical a pluralidade dos pontos de vista. O que possibilita a proposta de Acevedo? A ideia central de que lealdade e traição são coexistentes – em um mundo no qual a política é tática antes que convicção ideológica, as traições também são novas lealdades. Porém, a resposta de Roque não podia ser outra. Um “sim” (segundo esta leitura do “não”) teria sido uma celebração do oportunismo e da aceitação da política como transação. Talvez, ele podia ter respondido como em Invasión, quando o personagem jovem diz: “agora é nossa vez, mas terá que ser de outra maneira” – porém, para isso, deveria estar apoiado em uma esperança juvenil que o filme se ocupa todo o tempo de fissurar ou impugnar. Mais que uma resposta, o “não” é a única resposta possível.

que formas da imaginação: X, Z, H; observação, substituição, deslocamento; a Testemunha, o Substituto, o Viajante. Hipernarrativo – diferentemente do que sucedia com as primeiras obras do nuevo cine –, Historias extraordinarias se erige sobre indícios para, depois, desestabilizá-los como tais. Em termos de demanda política, o filme mais importante do ci14 Aqui, é interessante lembrar que Castro é livremente inspirado no primeiro romance de Beckett, Murphy (publicado no Brasil em 2013, pela Cosac Naify). E que, em 2008, Moguillansky dirigiu o filme Borges/Santiago: variaciones sobre um guión, especial que acompanhou o lançamento de uma nova edição do DVD de Invasión [nota da editora].

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

A cinematografia argentina recente transitou entre muitos “não”, muitos “sim” e muitos “terá que ser de outra maneira”. A variada e significativa produção que se desenvolveu no país a partir do fim da década de 1990 se regularizou de uma forma que, naquele momento, era imprevisível: uma prática intensa que – em muitos casos – supera a oposição entre cinema independente e cinema industrial para poder experimentar os filmes por sua potência e sua intensidade. Se a parábola que descreve o subtítulo do livro de Agustín Campero (“de Rapado a Historias extraordinarias”) 15 é verdadeira, essa parábola que o nuevo cine argentino traçou foi, então, a que vai de um filme independente (o de Rejtman, produzido em 1992 e estreado em 1996) a outro. Ou melhor, a passagem que vai do filme independente em um contexto hostil ao filme independente como estratégia e fortalecimento de um modo de pensar o cinema. Ambos constituíram gestos políticos, mas os contextos são obviamente diversos: enquanto Rapado foi descoberta e aprendizagem ante a escassez de opções, Historias extraordinarias é uma escolha, uma postura estética, política e vital. Deste modo, os diretores que lograram uma continuidade cinematográfica e foram reconhecidos pelo Instituto re-

* Gonzalo Aguilar é professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidad

alizaram, de alguma maneira, sua promessa de transformar o modo

de Buenos Aires (UBA) e dirige o programa de mestrado em Literaturas de América

de fazer cinema na Argentina – enquanto o cinema anômalo cumpriu a promessa do nuevo cine de fazer um cinema independente.

Latina da Universidad Nacional de San Martín (UNSAM). Pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), foi professor visitante na Stanford University, na Harvard University e na Universidade de São Paulo (USP). Autor dos livros El cine de Leonardo Favio, em coautoria com David Oubiña

(Tradução de Natalia Christofoletti Barrenha)

(1993); Poesía concreta brasileña: las vanguardias en la encrucijada modernista (2003, traduzido ao português); Episodios cosmopolitas en la cultura argentina (2009); Borges va al cine, em coautoria com Emiliano Jelicié (2010); Por una ciencia del vestigio errático. Ensayos sobre la antropofagia de Oswald de Andrade (2010);

CAMPERO, Agustín. Nuevo cine argentino: de Rapado a Historias extraordinarias. Buenos Aires/Los Polvorines: Biblioteca Nacional/Universidad Nacional de General Sarmiento, 2009. 15

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Otros mundos. Un ensayo sobre el nuevo cine argentino (2006, traduzido ao inglês); e Más allá del pueblo. Imágenes, indicios y políticas del cine (2015).

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FILMOGRAFIA COMENTADA

MOSTRA PRINCIPAL

A MULHER DOS CACHORROS La mujer de los perros Laura Citarella e Verónica Llinás, 2015, Argentina, 96’, 14 anos.

O contexto desta história são as margens do conurbano bonaerense, como se denomina a região metropolitana de Buenos Aires. A mulher do título é a protagonista e seus cachorros são os coprotagonistas. Ela é um mistério, e o filme não tentará revelá-lo: o importante é sua relação com o mundo e o acontecer das coisas; é o clima, são os tempos, os espaços, o deslocamento, a invenção de uma possível engenharia de vida, a impressionante música de Juana Molina. Sem passado, sem futuro, só presente, essa mulher é uma espécie de Diana Caçadora vagando pelos arredores da metrópole: enigmática, silenciosa e solitária deusa, seguida por uma dezena de cães.

VIDA DE CÃO por Yanet Aguilera*

Laura Citarella (La Plata, 1981) estudou na Universidad del Cine e desde 2005 faz parte da produtora El Pampero Cine. Trabalhou na produção de vários filmes e em 2011 dirigiu seu primeiro longa, Ostende.

Verónica Llinás (Buenos Aires, 1960) é uma reconhecida atriz que foi integrante do grupo humorístico Gambas al Ajillo. Participou de inúmeras peças de teatro, programas de televisão e filmes, colhendo diversos prêmios ao longo de sua carreira. A mulher dos cachorros, do qual é também protagonista, é seu primeiro trabalho na direção. A mulher dos cachorros esteve na programação do International Film Festival Rotterdam 2015, do 17º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente e do Riviera Maya Film Festival 2016, entre outros.

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A mulher dos cachorros mostra uma periferia argentina empobrecida e degradada, portanto relativamente conhecida, mas num outro registro iconográfico e narrativo. É a história de um ano da vida de uma mulher, sem teto, que mora nas margens do conurbano bonaerense, acompanhada por vários cachorros. Curiosamente, ela é uma mulher branca, loira e de meia idade. Em geral, não estamos habituados a ver uma euroargentina em tais condições, pois é a figura do argentino moreno, com feições indígenas, que ocupa este lugar. A situação inusitada desta mulher poderia tornar o filme uma exposição angustiada da enormidade da crise que assola a Argentina, não fosse uma série de elementos que parecem ir além das circunstâncias sociais e econômicas, sem negar o estado crítico da conjuntura atual desse país. A sequência antes do final do filme parece rebater esta leitura. São cenas de uma multidão de argentinos, todos eles com feições indígenas, fazendo um encontro motorizado no terreno descampado por onde circula a protagonista. Neste momento, o ritmo dinâmico da montagem, o som ambiente, e a maneira como se filmam as motocicletas e carros, que vão

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

invadindo o terreno, tornam as cenas vibrantes. A mudança de ritmo enfatiza aquilo que estava sendo construído no restante do filme: imagens da miséria que revelam uma dignidade e um brio desconhecidos para o público cinematográfico classe média. A propósito, os imigrantes dos países vizinhos são importantes para a construção desta outra imagem da miséria: estes argentinos-paraguaios, argentinos-bolivianos, argentinos-peruanos etc., aparecem se divertindo coletivamente. Aliás, a única amiga da protagonista é uma velha senhora de um destes países vizinhos. A câmera e a montagem tornam esta sequência pujante, como um contraponto à decadência moral, a qual geralmente o cinema nos habituou quando se trata de produzir imagens de um país latino-americano em crise. A relação entre campo e cidade não é diferente: reverte-se a imagem comum que temos dela. Pouco vemos do espaço urbano, mas ele está onipresente nos inúmeros detritos que contaminam o ambiente rural. Apesar de ter se transformado em um grande lixão, o campo resiste nos belos planos gerais, cuja paleta suave nos devolve uma imagem campestre ainda aprazível. Os tons pastéis das imagens reforçam o lirismo que o ritmo lento impõe à narrativa, apesar de tudo. Porém, não se acusa o filme, ao optar pela beleza das paisagens, de uma estetização da miséria – pois a roça, assim como a protagonista, apesar de sobreviver com nobreza, está toda maltratada e em péssimas condições. Mesmo o amor, casual, é um momento de ternura para esta senhora solitária. Não é que se trate de escamotear as inúmeras agressões que sempre estão presentes neste tipo de história. Aliás, a presença dos cães as deixa onipresentes. Sabemos que os moradores em situação de rua acolhem esses animais para se proteger dos constantes abusos com que são acossados pela população e pelo poder público. As mulheres sofrem ainda a violência sexual, impingida por homens na mesma situação que elas. Nesse sentido, o filme opera para que nunca esqueçamos a violência; ela está latente o tempo todo. O som e a montagem criam uma atmosfera em que algo de trágico parece iminente. A vida da protagonista é circunscrita por Citarella e Llinás a suas ações inteligentes que lhe permitem sobreviver a um cotidiano duro e atribulado, de modo que elas nos obrigam a vê-la não apenas como vítima. O filme nada diz a respeito do passado da personagem, não sabemos que

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circunstâncias levaram uma mulher branca a ficar sozinha e sem abrigo. Mas, isto pouco importa, o que vale é que nela se vislumbra outra forma de viver que, embora bastante precária, é mais digna e humana que aquela que parece ser a da cidade. O homem que abandona seu cão de estimação é um claro contraponto à figura da protagonista que, apesar da vida dificílima, acolhe o animal abandonado. O que nos leva a imaginar que há algo de podre no universo iluminista urbano e que a cidade, como símbolo do progresso moderno, contraposta ao campo atrasado, nunca passou de um engodo.

* Yanet Aguilera é doutora em Filosofia e Cinema pela Universidade de São Paulo (USP) e professora no curso de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Organizadora e curadora dos livros Entre quadros e esculturas: Wesley e os fundadores da Escola Brasil (1997) e Preto no branco: a obra gráfica de Amilcar de Castro (2005), além de editora de Imagem e exílio. Cinema e Arte na América Latina (2015). Idealizadora do COCAAL – Colóquio de Cinema e Arte na América Latina, realizado desde 2013, e coordenadora do grupo de estudos Cinema da América Latina e Vanguardas Artísticas: diálogos entre construção, expressão e espacialidade.

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A SOMBRA La sombra Javier Olivera, 2015, Argentina, 72’, 13 anos. Ainda que tenha um traço de ironia e outro de inegável amargura, não é gratuita a citação a Cidadão Kane que Javier Olivera desliza em seu filme-ensaio: há a história de seu pai como magnata do cinema nacional e a mansão na qual sua família tinha uma vida idílica. O diretor acompanha, no presente, a demolição dessa espécie de Xanadu, reflete sobre seu sentido como cenário e monumento, e entretece seus escombros com o passado exuberante (disponível em fragmentos de super8) para reelaborar sua própria biografia e exibir um olhar crítico sobre o fim de uma época.

O VISITANTE DOS ESCOMBROS por Pablo Piedras*

Javier Olivera (Buenos Aires, 1969), formado inicialmente em Pintura, estudou Cinema na University of California, Los Angeles (UCLA) e Literatura Ibero-Americana na Fundación Ortega y Gasset (Espanha). Entre seus longas estão El visitante (1999), Floresta (2007) e Mika, mi guerra de España (2013). Realizou também séries documentais e, desde 1990, desenvolve um corpo de obras composto por fotografias, pinturas, vídeos e videoinstalações exibidos na Argentina e no exterior. La sombra fez parte da programação do 15º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente, do Viennale International Film Festival 2015, do Transcinema Peru 2015 e do Cinélatino – Rencontres de Toulouse 2016, entre outros.

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As relações filiais ou, em todo caso, a conflitividade desses vínculos, têm sido protagonistas de numerosos documentários em primeira pessoa latino-americanos, dirigidos justamente por filhos e filhas de figuras relevantes da política e da cultura. Ainda que os exemplos sobrem, vale lembrar filmes como Papá Iván (María Inés Roqué, 2000), Diário de uma busca (Flávia Castro, 2010), Los rubios (Albertina Carri, 2003) e Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013). A sombra, já em seu próprio título, se dedica a um dos traumas recorrentes expostos nos filmes mencionados: o peso que adquire, sobre a vida dos filhos, a herança recebida de seus pais ou, em outras palavras, a dificuldade em enfrentar as sombras dos pais quando essas parecem cobrir o presente dos narradores. No caso do documentário de Javier Olivera, a ideia de sombra adquire um sentido preciso e visual, além de metafórico. Héctor Olivera tem sido um dos diretores e produtores mais prolíficos do cinema argentino, sobretudo durante as décadas de 1970 e 1980. Sua sombra, como as que projeta no cinema, é a que paira sobre Javier, seu filho, com quem compartilha a profissão. Essa obra, então, constitui-se em um ensaio audiovisual que procura exorcizar

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

essa sombra e, se nos ativermos a uma leitura eminentemente cinematográfica, poderia se dizer que o consegue: a filmografia anterior de Javier Olivera, em especial seus dois primeiros longas-metragens de ficção, era ainda muito relacionada às fórmulas narrativas daquele cinema do qual seu pai foi um exímio representante. Neste documentário, porém, o realizador encontra uma voz e uma forma próprias. A obra está organizada sobre uma premissa empregada por boa parte dos documentários contemporâneos cujo objeto é a memória: a relação solidária que as recordações têm com os espaços do passado. Aqui o espaço é único: a mansão que Héctor Olivera e sua mulher construíram para sua família em San Isidro, um lugar aparatoso e um tanto barroco que, com o passar dos anos, chegou ao ocaso. A tensão entre presente e passado e a grande metáfora que o filme expressa é elaborada mediante dois procedimentos. Em primeiro lugar, a articulação entre as imagens da demolição da casa (registradas por Javier Olivera) e as imagens em super8 (registradas entre os anos 1972 e 1981 por Fernando Ayala) dos velhos tempos. O trabalho sistemático, moroso e até implacável dos trabalhadores que desmancham todo e qualquer material de valor da casa (pisos de madeira, escadas de mármore, teto) contamina, irremediavelmente, as imagens familiares das épocas em que a casa teve uma vida social efervescente; porém, também se relaciona com as imagens que mostram o esqueleto da mansão, quando ainda se encontrava em processo de construção. Em segundo lugar, a trilha sonora também opera mediante efeitos de contaminação. Evadindo com insidioso rigor a utilização de sons diegéticos ou som direto, a montagem sintoniza a banda de imagens com sons provenientes de fontes heterogêneas. O espaço sonoro invade o espaço visual convertendo a indagação sobre a memória em um discurso de incerteza composto de canções entrecortadas, de imagens sabotadas por ecos difusos, de máquinas que demolem os restos do corpo vivo da casa enquanto o som que elas mesmas emitem se transforma em percussões de ritmo hipnótico. Esses dois procedimentos levam à formulação de uma narração de estranhamento, que desloca o filme de mero registro direto da demolição e da revisão nostálgica dos arquivos do passado. Assim, o discurso do documentário se aproxima, por momentos, ao do cinema experimental, e

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talvez sejam somente os fragmentados e explícitos testemunhos da voz over do cineasta os elementos que trazem maior referencialidade ao relato e permitem incluí-lo no terreno do documentário (auto)biográfico. Entretanto, nessa autobiografia de recorte experimental não parece haver reconciliação possível, porque justamente as confluências entre o passado e o presente traçadas entre as imagens visuais e sonoras jamais encontram concórdia. Um dos emblemas do conflito filial que não se pode superar é a montagem por justaposição da célebre sequência de La Patagonia rebelde (Héctor Olivera, 1973), quando a oligarquia canta “For He’s a Jolly Good Fellow” a um incomodado Tenente Coronel Zabala, sublinhando sua faceta mais sinistra de militar a serviço do poder – com as imagens de seu pai e de sua posição nos tempos da ditadura militar. (Tradução de Letizia Osorio Nicoli)

* Pablo Piedras é doutor em Filosofia e Letras com orientação em Teoria e História das Artes pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Foi codiretor do Centro de Investigación y Nuevos Estudios sobre Cine (CIyNE) e professor visitante da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). É autor de El cine documental en primera persona (2014) e coautor, entre outros, de Civilización y barbarie en el cine argentino y latinoamericano. Foi coautor e editor, junto a Ana Laura Lusnich, dos livros Una historia del cine político y social en Argentina – volumes I (1896-1969) e II (1969-2009). É professor na Universidad de Buenos Aires e pesquisador assistente do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Dirige a Revista Cine Documental.

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COMO FUNCIONAM QUASE TODAS AS COISAS Cómo funcionan casi todas las cosas Fernando Salem, 2015, Argentina, 93’, 13 anos. Celina trabalha na guarita de pedágio de uma remota estrada no deserto. O tempo parece estar suspenso, mas o entorno, perspectiva aberta na paisagem desolada, aponta um novo horizonte. Após a morte do pai doente, a protagonista empreende essa viagem à qual estava predestinada, iniciando uma deriva – meio road movie, meio fuga – em busca de questões determinantes de sua identidade familiar. Com frescor, Salem propõe que nem todas as perguntas têm respostas, e que o caminho é seguir caminhando, mesmo que às cegas.

ROAD MOVIE “DE ARREDORES” por Regiane Ishii*

Fernando Salem (Buenos Aires, 1976) estudou Ciências da Comunicação na Universidad de Buenos Aires (UBA) e se graduou realizador na Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica (ENERC). Seu curta Trillizas propaganda! (2006) colheu reconhecimentos em prestigiosos festivais, além de obter o Cóndor de Plata (Globo de Ouro argentino). Como funcionam quase todas as coisas é seu primeiro longa. Como funcionam quase todas as coisas teve sua estreia no 30º Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, onde Salem ganhou o prêmio de Melhor Diretor na Competição Argentina.

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“Tenho que ir”, diz Celina ao despedir-se de seu pai Aldo, rumo à estrada deserta onde trabalha como cobradora em um pedágio. Desde os primeiros minutos de Como funcionam quase todas as coisas reconhecemos que sua protagonista vive na iminência da partida. E nem haveria outra possibilidade. Seu olhar pela janela, seus movimentos na bicicleta, sua impaciência, sua prontidão de raciocínio, tudo converge para uma nova relação com essa estrada. Celina/Celi/Lina tem que ir. Em seu primeiro longa-metragem, o portenho Fernando Salem elegeu os povoados e as rotas da província de San Juan, junto à cordilheira dos Andes, no oeste da Argentina, como locações. A região compõe esse road movie “de arredores”, que parece tratar menos de longas distâncias e aventuras e mais de conexões inusitadas com o que está próximo e revelações a partir de pessoas que sempre estiveram no entorno. Nesse mesmo dia, ao retornar para casa, Celina encontra seu pai morto. Decide então começar um novo trabalho, como vendedora da enciclopédia Como funcionam quase todas as coisas, para economizar dinheiro e viajar à Itália com o objetivo de procurar sua mãe, que não vê desde muito

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pequena. De funcionária da Highway Administration passa a representante da Bestsellers International. O serviço consiste em bater de porta em porta e seduzir o cliente “com lógica e emoção”, convencendo-o de que o livro seria capaz de contemplar questões relacionadas a “quase todas as coisas”: saúde, natureza, dinheiro, sociedade... A decisão implica no rompimento com o namorado Sandro e na nova companhia de Raquel, com quem inicia a primeira viagem de vendas, condensando ainda mais o universo feminino da narrativa. Somos convidados a aproximar-nos de cada um desses personagens, ternamente, por meio de suas respostas às mesmas questões que poderiam estar na enciclopédia: “como ser feliz?”, “como descobrir sua vocação?”, “existe amor para toda a vida?”, “como alcançar seu primeiro milhão?”, “como sobreviver no deserto?”... No formato de entrevista, em que os personagens falam diretamente à câmera, esses momentos lembram os diálogos que podem se dar entre viajantes desconhecidos que têm seus caminhos cruzados. O tom geral das falas, assim como de todo o filme, apresenta uma bem dosada combinação de melancolia e humor. A atmosfera melancólica é bastante presente na direção de arte e de fotografia, que flertam com certo imaginário cinematográfico norte-americano como o de Wim Wenders. Entre as referências visuais, Salem cita o pintor Edward Hopper e seus “lugares no meio do nada”, além dos fotógrafos William Eggleston e Stephen Shore. Assim como essas imagens de subúrbios dos Estados Unidos, Como funcionam quase todas as coisas revela uma atenção especial em relação às cores e à luz que incide sobre objetos e locais que parecem desvanecer-se, como que destinados ao progressivo desaparecimento. Porém, não por acaso, a velha máquina de karaokê que vai disparar a conversa sobre o paradeiro da mãe de Celina ainda está funcionando. Se pode nos parecer cômica a ideia da enciclopédia que dá nome ao filme, vale a pena observarmos a quantidade de livros, aplicativos, receitas e serviços a que recorremos para lidar com o imponderável da vida, ser bem-sucedido e conviver com uma nova noção de tempo produtivo. Podemos ter coach profissional, plano de saúde e aulas de autodefesa, além de dezenas de tipos de suco verde, mapa astral e terapia holística. Porém, melhor que tudo isso, há o cinema. Depois de nove anos do

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lançamento de seu premiado curta-metragem Trillizas propaganda!, o diretor, roteirista e produtor Fernando Salem alcançou com seu novo filme aquilo que nunca poderia caber na página de um infográfico. A sensação ao fim de Como funcionam quase todas as coisas é de acalento no inexplicável e na certeza de que qualquer enciclopédia estará invariavelmente incompleta. Para quem estava sempre tão alerta para partir, Celina pareceu bem feliz em, finalmente, querer entrar.

* Regiane Ishii é graduada em Comunicação Social – Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestre em Artes Visuais pela mesma universidade. Realizou intercâmbio acadêmico na Universidade de Santiago de Chile. Atuou como jornalista em diferentes veículos, trabalhando como repórter de exposições na Folha de São Paulo. Atualmente integra o núcleo de pesquisa e conteúdo da Fundação Bienal de São Paulo, onde ingressou em 2013.

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CORPO DE LETRA Cuerpo de letra Julián D’Angiolillo, 2015, Argentina, 77’, livre. O diretor de Hacerme feriante confirma seu talento em revelar mundos semiocultos e suas lógicas, hierarquias e códigos. Em seu novo longa, um dos personagens está aprendendo a escrever: a letra deve ter um passo de largura e um braço de altura. A palavra tem que ser legível na distância veloz de uma rodovia. A cor fará o resto, identificando o nome grafado com o partido político. D’Angiolillo acompanha a pintura dessas letras, feitas por brigadas que, durante as campanhas políticas, transformam qualquer superfície livre da cidade em espaço publicitário.

TRAÇOS DA POLÍTICA NA CIDADE por Marília-Marie Goulart*

Julián D’Angiolillo (Buenos Aires, 1976) é graduado em Artes Visuais (Universidad Nacional de las Artes – UNA) e Dramaturgia (Escuela de Arte Dramático de Buenos Aires – EAD). Desde 2001 expõe obras em vídeo, desenho e instalação em diversos espaços ao redor do mundo. Seu primeiro filme Hacerme feriante (2010) recebeu, entre outros galardões, o Premio Sur (equivalente ao Oscar na Argentina) de Melhor Documentário. Corpo de letra é seu segundo longa-metragem. Corpo de letra estreou no 17º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente e teve exibições no Vienna International Film Festival 2015, Filmfest Hamburg 2015, Transcinema Peru 2015, forumdoc. bh.2015, entre outros.

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Muitas são as camadas e tramas que dão corpo às cidades. Algumas mais visíveis, outras mais ocultas, infindáveis dinâmicas se combinam a todo o tempo formando e transformando o urbano de modo cada vez mais veloz. Tendo Buenos Aires como palco e às vésperas da eleição presidencial e legislativa como tempo, encontramos em Corpo de letra uma paisagem genérica, bastante conhecida pelos moradores das cidades contemporâneas tão habituados ao diário deslocamento por vias que rasgam territórios e conectam bairros. Como espaços de passagem, as vias expressas são os locais da não permanência. Nelas estamos em trânsito com o objetivo de estar em outro lugar, o destino. As autopistas figuram entre os exemplos daquilo que Marc Augé classificou como “não lugar”, isto é, um espaço não identitário, não relacional e não histórico. A vocação primordial do “não lugar” é facilitar a circulação (e o consumo) de uma grande quantidade de bens, pessoas e imagens. Espaço do virtual e do fluxo veloz, o tempo do “não lugar” não é o presente, mas o tempo de um provável futuro. Em Corpo de letra as labirínticas paisagens de autopistas não são

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simples espaços do trânsito anônimo. Inserindo complexidades e tramas invisíveis à massiva população que circula pelas vias, o documentário revela personagens que fazem desses espaços o seu “lugar”. Nesses cenários pensados exclusivamente para o tráfego do automóvel, Eze, Franky e Narigón circulam pelas poucas brechas existentes para o corpo humano. No ousado transitar de seus corpos pelas vias expressas, eles preenchem os muros e estruturas que rodeiam as autopistas com toda sorte de pintura: grafite, pichação e, principalmente, inscrições com nomes dos candidatos que disputam as eleições argentinas tornam o cenário um pouco menos genérico. Diferente do que se passa com o grafite e com o “pixo”, em seus ofícios como letristas os personagens não registram uma marca sua, mas conteúdos e imagens que lhes são alheios. Tamanho da letra, cor, tipografia, espaçamento e o texto que registram nos muros são tecnicamente determinados para assegurar uma rápida e expressa apreensão da mensagem pelos incontáveis passageiros e motoristas que cruzem os espaços. Como imagens de rápido consumo, as mensagens são curtas, se restringem, via de regra, ao nome do candidato ou ligeiro slogan. Sem colocar em pauta as políticas defendidas pelos candidatos e partidos, as pinturas, com mensagens instantâneas, se inserem exclusivamente na esfera da propaganda. Como o texto e a entonação que Eze segue nas locuções dos comerciais que grava em seu segundo ou terceiro turno de trabalho, a distância entre os personagens e aquilo que comunicam é grande. Menos conectados com o que literalmente propagandeiam pela cidade, o que importa aos letristas (e ao letrista locutor) é a disputa pelo espaço. Os ousados movimentos entre carros e viadutos remetem à luta do homem contra a natureza tão presente nos clássicos documentários de Robert Flaherty. Aqui, a luta, talvez menos exótica, é também do homem contra seu meio. A voz da locução que tenta se impor contra o som da aeronave, o corpo que luta contra o gradil que dificulta o acesso ao muro e, enfim, o embate contra este espaço do automóvel tão hostil ao corpo humano. Em um verdadeiro trabalho de Sísifo, de constante pintar e repintar superfícies noite adentro, os grupos de letristas se multiplicam em um esquadrão anônimo e, de modo quase imperceptível, preenchem os muros com textos de extrema visibilidade. Fato impensável no atual contexto bra-

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sileiro, em Corpo de letra os grupos que trabalham para diferentes partidos não se enfrentam na defesa dos candidatos; sua disputa se dá exclusivamente em torno da visibilidade. Os espaços onde fazem esse outro, o candidato, visível são os locais onde eles, letristas, constroem também suas identidades. Por meio da assinatura discreta e outros elementos, esse “não lugar” aos olhos de quem circula velozmente se converte “no lugar”, no território em que esses sujeitos anônimos se afirmam, se identificam e de fato constroem relações. Corpo de letra opta por não entrar no debate político em torno da disputa eleitoral. O registro que acompanha com certa distância o ofício dos letristas, em seus invisíveis trabalhos na confecção das massivas propagandas que preenchem a cidade, instiga a reflexão sobre disputas, também políticas, que vão além das eleições e que cotidianamente são travadas no urbano.

* Marília-Marie Goulart, graduada em Ciências Sociais, é mestre pelo Programa de Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente trabalha com ações de educação e cultura na Coordenação de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania – Prefeitura de São Paulo.

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DAMIANA KRYYGI Damiana Kryygi Alejandro Fernández Mouján, 2015, Argentina, 94’, 12 anos. Em 1896, na densa selva paraguaia, uma criança Aché de três anos sobreviveu a um massacre perpetrado por colonos brancos. Esta pequena cativa foi batizada como Damiana e se converteu em objeto de interesse científico: seu corpo foi medido e fotografado, tornando-se tema de estudos nas mãos de antropólogos argentinos e alemães – mesmo depois de sua prematura morte, aos 14 anos. Um século depois, seu povo recuperou seus restos mortais e lhe deu um enterro digno em terras ancestrais. Para os Aché, Damiana Kryygi encarna a esperança e é motivo de unidade na recuperação de seus territórios.

UMA HISTÓRIA DE REPARAÇÃO por María Celina Ibazeta*

Alejandro Fernández Mouján (Buenos Aires, 1952) é formado na área de câmera e fotografia e trabalhou na indústria cinematográfica por mais de 20 anos. Em 1989, produziu e dirigiu seu primeiro documentário, Banderas de humo, ao qual se somaram diversas séries e mais de uma dezena de longas como Caminos del Chaco (1998), Espejo para cuando me pruebe el smoking (2005), Pulqui, un instante en la patria de la felicidad (2007) e Los resistentes (2010). Desde 2006 é responsável pela área de cinema da TV Pública Argentina (Canal 7). Damiana Kryygi recém começa seu recorrido por festivais, tendo passado até agora pelo 9º Atlantidoc – Festival Internacional de Cine Documental de Uruguay e pelo 24º Festival Internacional de Cine de Paraguay. No final de 2015, recebeu o prestigioso prêmio de Melhor Documentário do Ano da American Society for Visual Anthropology.

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A imagem de uma mulher cativa é extremamente significativa para a história das letras argentinas porque sua presença por si só nos remete ao próprio nascimento da literatura nacional como tal. La cautiva (1837), de Esteban Echeverría, é um poema épico pioneiro na descrição da realidade dos pampas, escrito pouco tempo depois da independência. Em El Aleph (1949), de Jorge Luis Borges, encontramos a figura da prisioneira em seu conto “Historia del guerrero y la cautiva”, e voltamos a encontrá-la anos mais tarde na novela de César Aira, Ema, la cautiva (1981). Sem o objetivo de simplificar o sentido profundo de cada texto e sua relação com o mundo, e com os outros textos, podemos destacar o que é óbvio a um simples olhar: para o imaginário social argentino, a figura da cativa se referiu sempre a uma mulher branca, raptada pelos indígenas, e levada para viver entre eles como prisioneira. Damiana Kryygi narra a história do cativeiro de uma menina indígena da etnia Aché nas mãos dos brancos. Obra necessária e fundamental para mostrar o reverso de uma história, sempre negada ou ocultada, de contínuos

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ultrajes às populações originárias. 1 O título do documentário menciona os dois nomes que, em momentos diferentes, foram utilizados para identificar a personagem principal do filme. Esses guardam entre si uma relação tensa, incômoda, até certo ponto antagônica. O primeiro, Damiana, foi escolhido pelos colonos paraguaios que se apropriaram da protagonista em 1896, quando tinha aproximadamente três anos, e depois a entregaram a dois antropólogos europeus que a trasladariam para a Argentina. O segundo nome, Kryygi, 2 foi escolhido pelos anciãos Aché para rebatizá-la quando seus restos regressaram ao Paraguai, junto aos seus, 114 anos depois. Alejandro Fernández Mouján se propõe a reconstruir a vida da moça. Mas, ao fazê-lo, consegue muito mais que isso. É uma história que conduz a outras histórias. Damiana Kryygi é uma crítica a essa prática antropológica colonialista, que buscava estabelecer tipologias raciais na América, hoje questionada e rechaçada pela própria antropologia. É uma denúncia da frequente apropriação de crianças indígenas 3 para a realização de serviços domésticos, conhecidos como “criados”, cuja lógica é semelhante ao trabalho escravo. 4 É, além disso, uma crônica do avanço das políticas capitalistas e suas consequências nefastas para a população Aché, que confinaram o indígena a áreas reduzidas para a posterior exploração da selva, como sucedeu durante a ditadura de Alfredo Stroessner, na década de 1970, como acontece na atualidade com o avanço do desmatamento e a agricultura mecanizada. Documentário subjetivo, realizado em primeira pessoa, consegue conectar o espectador ao sofrimento passado e presente da cultura Aché Gerónima (Raúl Alberto Tosso, 1986) é um filme baseado no livro Gerónima: historia de una mapuche que murió de tristeza (1982), de Jorge Pellegrini, inspirado em fatos reais, que de alguma forma trata o tema da cativa indígena em mãos dos brancos. 2 Em um artigo de Osvaldo Bayer publicado no jornal Página 12, esclarece-se que o nome de Kryygi mudou para Kryygimai, sendo que mai significa “que morreu”. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/contratapa/13-187811-2012-02-18. html. 3 A apropriação de bebês e crianças indígenas também é mencionada nos documentários Botín de guerra (David Blaustein, 2000) e Octubre pilagá, relatos sobre el silencio (Valeria Mapelman, 2010). 4 O documentário Criada (Matías Herrera Córdoba, 2009) trata do tema da criadagem na Argentina.

através do olhar sensível e comprometido de Fernández Mouján. O diretor percorre três países – Paraguai, Argentina e Alemanha – a fim de reunir a maior quantidade possível de elementos que lhe permitam refazer o caminho de Damiana Kryygi. Uma vida submetida à violência da barbárie ocidental. Um corpo feminino controlado, subjugado, mutilado e disperso. Uma história pungente que adquire uma dimensão diferente no ato de restituição de seus restos ao povo Aché. Um ato de reparação que converte Damiana Kryygi num símbolo da vitória da justiça e da memória histórica. É essa a imagem que inspira sua história. (Tradução de Letizia Osorio Nicoli)

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* María Celina Ibazeta é formada pela Universidad Nacional de Tucumán (Argentina) como professora em Letras. Fez o mestrado e o doutorado em Língua e Literatura Hispânica na Stony Brook University (EUA). Foi bolsista de pós-doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é professora no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e estuda a temática indígena no documentário.

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DOIS DISPAROS Dos disparos Martín Rejtman, 2014, Argentina/Chile/Alemanha/Holanda, 104’, 14 anos. “A tragédia como problema que a comédia deve solucionar”. É assim que o escritor argentino Alan Pauls descreve o que considera o maior experimento de Dois disparos frente à poética instalada por Rejtman em seus outros filmes. A tentativa de suicídio de um adolescente com os dois disparos do título – ato que encarna uma surpresa no repertório narrativo do cineasta, tão alérgico aos grandes acontecimentos – é mais que um MacGuffin que coloca a narrativa em movimento, ecoando em seus múltiplos anticlímax em que a comicidade se dá de maneira agridoce.

O REGRESSO DOS MORTOS-VIVOS por Román Setton*

Martín Rejtman (Buenos Aires, 1961) estudou cinema na New York University e é uma das figuras centrais na retomada cinematográfica argentina em meados dos anos 1990 – sendo considerado, por vezes, o pioneiro dessa nova onda com seu longa Rapado (1992, estreia em 1996). Antes, dirigiu os médias Doli vuelve a casa (1986) e Sitting on a suitcase (1987) e, depois, Silvia Prieto (1999) e Los guantes mágicos (2004), excursionando pelo documentário com Copacabana (2006) e Entrenamiento elemental para actores (2009, em colaboração com Federico León). Dois disparos é sua volta tão esperada à ficção após uma década. Rejtman também é escritor e seus livros foram publicados na Argentina e na Europa. Dois disparos estreou no Festival de Locarno 2014 e participou de inúmeros festivais e mostras de cinema pelo mundo. Foi escolhido como o melhor filme nacional de 2014 pela Federação Internacional de Críticos de Cinema – FIPRESCI Argentina.

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Em Dois disparos, grande parte do público parece ter encontrado o que foi procurar. Na sessão em que o redator deste texto assistiu ao filme, uma multidão de jovens – com aspecto de estudantes de cinema – riam maquinalmente. Pareciam personagens dos primeiros filmes de Rejtman. O equívoco provém de tentar explicar o novo pelo velho, de entender uma ordem nova com os parâmetros de uma antiga. Os professores das escolas de cinema devem ter indicado a seus alunos duas características de Silvia Prieto ou de Los guantes mágicos: um tipo de comicidade muito particular, formal, cinematográfica, e o sistema narrativo do diretor (a prescindência de afecções, a intercambialidade de pessoas e de coisas, o caráter ambulatório e disperso dos personagens e das histórias). Em Dois disparos, o público reconhecia o sistema narrativo, que talvez confundia com a comicidade, e riam cada vez que detectavam um elemento desse sistema. Porém, diferentemente das ficções anteriores de Rejtman, Dois disparos é um filme escuríssimo – algo que havia se insinuado em Los guantes mágicos e a continuidade entre a ficção de 2004 e a de 2014 está

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sublinhada pelo encadeamento entre o final daquela e o começo desta: o primeiro plano de Dois disparos, um homem dançando sozinho, retoma o plano final de Los guantes mágicos. A história começa com a tentativa de suicídio frustrado e repetido – e novamente frustrado – de Mariano. Os dois disparos sem explicação dão o tom à narração. E embora no filme abundem as passagens de comicidade aguda, estas são somente um recreio dentro de um universo extremamente angustiante. Os adolescentes e jovens dos filmes anteriores de Rejtman eram, no trânsito de uma ação à outra, vitais, e buscavam a mudança e a intensidade: iam dançar, se drogavam, assistiam a shows, andavam de skate, viajavam aos Estados Unidos, contraíam matrimônio e, inclusive depois de sair da cadeia, estavam dispostos a começar uma vez mais outra pequena aventura. Nada os fazia retroceder nem os detinha. Se lhes roubavam a moto, eles também roubavam uma; se alguém se separava, buscava-se outro companheiro; se deixavam um trabalho, procuravam outro ou iam a Mar del Plata. Nada importava muito, mas o impulso da vida estava ali, a busca de uma nova experiência, da transformação, ainda que a experiência e a transformação carecessem por completo de significação (ulterior). No início de Dois disparos, Mariano é, ainda, um personagem dos filmes anteriores. Passa de uma ação a outra sem parar: dança, volta pra casa, nada, começa a cortar a grama, tenta consertar a cortadora, se dispara, se dispara. É, provavelmente, mais ativo nestes três minutos que todos os personagens da filmografia de Rejtman. E isso se destaca desde a primeira imagem: a cena de Mariano dançando, de grande intensidade e atividade, se distancia muito do resto das cenas de festas ou baladas nos outros filmes do diretor (inclusive a do aniversário do próprio Mariano), em que a dança é pesada, cansada, desanimada. Toda essa atividade se apaga com os dois disparos. Quando volta do hospital para casa, Mariano é um zumbi, um revenant. E esta é, talvez, a diferença fundamental com os filmes anteriores. O começo de Dois disparos parece sugerir, então, que o sintagma “o mundo de Rejtman”, tão repetido pela crítica, mudou em seu sentido. Silvia Prieto, Los guantes mágicos foram exemplares em suas representações de um mundo em que as relações pessoais haviam alcançado um máximo de coisificação e mercantilização, um fato que aludia à realidade extracinematográfica argentina,

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ao universo social, econômico e relacional surgido no calor do consumismo e no frio da recessão econômica menemista. Em Dois disparos, as relações dos personagens já não estão determinadas em primeiro lugar pela lógica da mercantilização – embora a racionalidade quantitativa siga presente nos discursos –, mas falta, por outro lado, qualquer tipo de código de intersubjetividade. Em grande medida, os personagens de Dois disparos pertencem a um universo social caracterizado pela grande desvinculação dos indivíduos: grande desvinculação com respeito às instituições, aos códigos interpessoais herdados, aos vínculos familiares ou afetivos. Os protagonistas dos filmes anteriores contavam, ainda, com a grande vinculação do mercado e os rígidos códigos das relações coisificadas e mediadas pela televisão; por pouco substancial, por superficial que fosse o laço social, este era muito mais vigoroso que no mundo de Dois disparos. Esta ficção se caracteriza, portanto, pela anomia, a fragmentação e a ausência de relação entre as partes e o todo, e pela proliferação de subjetividades a-institucionais, a ausência de relações de reciprocidade e as instituições zumbis. Após os disparos, as ações carecem de peso no “desenvolvimento” dos personagens, como nos outros filmes, mas a razão desse fenômeno é completamente diferente aqui: agora há grandes acontecimentos na trama, mas não há peripécia porque os personagens são mortos-vivos. Estão absolutamente fora da vida. Isso se reflete de modo mais claro em Mariano, que após sua morte fica literalmente fora da vida. Pela bala que ficou alojada em seu corpo, Mariano começa a falhar na execução da flauta. Por isso, é abandonado por sua namorada Silvina e se vê obrigado a sair do quarteto de flautas. Quando acompanha seu irmão Ezequiel no trabalho, em uma empresa situada em um edifício com um sistema de segurança sonoro, deve ficar outra vez fora porque a bala faz o detector de metais reagir. Também na saída da discoteca Mariano deve permanecer ante portas por essa mesma razão. Mariano escapou da morte, mas não conseguiu regressar totalmente à vida. A tentativa de suicídio não deixou nenhuma sequela visível (mas sim audível) – contudo, o excluiu por completo da vida e agora é um corpo sem alma, que sempre fica de fora, do outro lado da porta: fora do amor (a namorada), fora da arte (o quarteto), fora da diversão (a discoteca), fora do trabalho (o edifício empresarial).

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O que acontece com Mariano de maneira exemplar representa todo o universo de Dois disparos. Sua mãe, Susana, toma comprimidos e dorme por três dias. Ela também é um revenant de maneira quase literal, enquanto a maior parte dos personagens o são somente de maneira metafórica. Em Dois disparos, qualquer um pode deixar a vida em qualquer momento – porque, na verdade, já a abandonou. Como não há códigos intersubjetivos, os sujeitos de Rejtman inventam seus próprios códigos e realizam as ações mais inverossímeis. Arturo, por exemplo, decide andar de carro à beira-mar e se encontra com um amigo que está dormindo sobre uma pedra. Tudo está fora de lugar: o carro andando velozmente sobre a areia, o indivíduo dormindo em uma pedra em um espaço amplo e deserto e, sobretudo, o encontro absurdo entre um carro que vai por um “não caminho” e um indivíduo que está em um “não lugar”. Sem contar o fato de que o carro, que circula em alta velocidade, se encontra com uma pessoa deitada, e que o condutor reconhece, contra toda lógica de visibilidade e de perspectiva, seu amigo. Os usos das coisas, os vínculos entre as pessoas, os modos como se vinculam as pessoas e os espaços: tudo está deslocado ou é absurdo. Todos os limites e as categorias usuais perdem vigência, e nada é, definitivamente, um elemento determinante – ou qualquer coisa pode ser. Isso, entretanto, já acontecia nos outros filmes de Rejtman. Porém, nas ficções anteriores as histórias avançavam um pouco à deriva e sem grandes choques, nem sobressaltos dramáticos. Em Dois disparos, ao contrário, o começo apresenta um conflito existencial: a tentativa de suicídio de um adolescente. Não se pode, portanto, seguir pensando o cinema de Rejtman segundo a matriz dos conflitos dramáticos de baixa intensidade. As formas das relações tradicionais com as pessoas e com os objetos desapareceram e são substituídas por ações que se executam mais ou menos por inércia, como fazem os zumbis, ou como invenção de um código novo no vazio, como fazem os sobreviventes do apocalipse zumbi. É que, uma vez que a ordem estabelecida (a social e a da natureza) perde vigência, aos personagens não lhes resta nada mais que improvisar uma ordem natural e outra social. Com o cenário pós-apocalíptico, também as identidades são transtornadas por completo e esvaziadas de significado;

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por isso as pessoas são perfeitamente substituíveis umas pelas outras e por isso não se pode saber se o corpo que se tem em frente se corresponde ou não com a pessoa (ou o animal): Susana vê um cachorro que, segundo ela, é muito parecido a Yago, mas não sabe se é Yago; Ezequiel, no fim do filme, acredita ver Ana, mas não sabe se é Ana. As pessoas e as mascotes morrem de fato ou simbolicamente, mas regressam em outros corpos ou nos próprios. (Tradução de Natalia Christofoletti Barrenha)

* Román Setton é pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e professor na Universidad de Buenos Aires (UBA) e na Universidad del Cine. Participa do Comitê Editorial da revista Kilómetro 111. Ensayos sobre cine e publicou grande quantidade de artigos sobre cinema argentino.

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FORA DE HORA Deshora Barbara Sarasola-Day, 2013, Argentina/Colômbia/Noruega, 102’, 16 anos. Helena e Ernesto são um casal de longa data no qual se percebe certo desgaste. Um dia recebem a Joaquín, primo de Helena que acaba de sair da reabilitação e vai passar uma temporada com eles. Há no rapaz algo inquietante que gera desequilíbrio no ambiente, traduzido em um clima de mistério que flutua sutilmente nas cenas. O filme nos apresenta a ideia de um triângulo e nos leva a imaginar coisas para depois nos surpreender: o que parecia evidente não é, sendo preciso reconsiderar nossas posições sobre o desejo e suas vicissitudes.

ENTRE FRESTAS EXISTEM OS OLHARES ENVIESADOS, OBSERVADORES E DESEJOSOS por Mônica Brincalepe Campo*

Barbara Sarasola-Day (Buenos Aires, 1976) cresceu entre sua cidade natal e Salta. Estudou Ciências da Comunicação na Universidad de Buenos Aires (UBA) e complementou sua formação com cursos de cinema em Londres, Barcelona e na própria Buenos Aires. Desde 2000 trabalha no meio cinematográfico, tendo atuado como assistente de direção e de produção. Dirigiu os curtas Exodia (2004), El canal (2005) e Fora de hora é seu primeiro longa. Fora de hora estreou no 63º Festival de Berlim e, entre outros eventos, esteve no 53º Festival Internacional de Cine de Cartagena de Indias, no 35º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano de La Habana, no 15º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente e no 8º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo.

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Fora de hora é o primeiro longa-metragem de Barbara Sarasola-Day, cineasta que cresceu no noroeste da Argentina, na região de Salta. Esta é também a região onde se passa a trama do isolado casal de fazendeiros de tabaco Ernesto e Helena. A fazenda com a plantação foi herdada por Ernesto e é cultivada há gerações. Eles estão casados há alguns anos e sofrem com a ausência de filhos, fato a alimentar a tensão entre o casal. Helena deve engravidar assim como Ernesto deve ser pai: este é o papel determinado a cada um deles na conservadora sociedade patriarcal formada nessa região. Ela passa seus dias entre cavalgadas, visitas aos vizinhos e mergulhos na represa artificial da fazenda; vive na frustração de não conseguir engravidar e busca ajuda em chás, conselhos de mais velhos e no médico, que a ajuda a remediar seu sofrimento. Ernesto é o bom patrão paternalista, afetuoso e zeloso com seus subalternos. Ele está sempre atento à produção e aos cuidados com sua propriedade, mas é displicente e distante das necessidades de sua companheira. Quando cumpre a função do ma-

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cho, isso ocorre de forma protocolar e sem grande cuidado ou afeto. Esse cotidiano é abalado com a chegada de Joaquín, primo de Helena. Ele está em processo de reabilitação e o casal o recebe fazendo um favor à tia, quem não sabe mais como lidar com o próprio filho. A presença de Joaquín desestabiliza o casamento modorrento, e coloca em risco os valores sobre os quais toda a estrutura de gerações está baseada. Relações de desejos incontidos e provocados a partir de olhares enviesados e obtidos em meio às frestas das portas velhas as quais mal se fecham – assim como dos espelhos sempre presentes nos diversos cômodos – suscitam o clima de crescente desejo entre todos; a curiosidade os desperta e tensiona. Os reflexos dos espelhos são providencialmente usados para espiarem e observarem uns aos outros, como para se exibirem e se deixarem ver. O ambiente sufocante e estreito dos cômodos da casa grande ocupa o cotidiano do triângulo estabelecido entre os protagonistas desta trama. A diretora/roteirista opta por construir sua narrativa utilizando a câmera muito próxima, em planos fechados e com ela sempre à mão. Algumas tomadas abertas são realizadas, mas ela decide, aos poucos, ir fechando o enquadramento e o restringindo a closes nos gestos e olhares. Se o espaço é aberto e natural, repleto de natureza, em contraste os personagens estão fechados em seus mundos, introspectivos, e sem saber se expressarem diante dos outros. Eles são seguidos de perto em todos os ambientes da fazenda, sendo que a câmera próxima parece invadir suas zonas de conforto, situação que remete ao próprio visitante-intruso que acaba de chegar. A ideia é transmitir a sensação de instabilidade que passa a existir nesse trio, e o foco narrativo é justamente o olhar observador sobre os personagens – nunca temos o ponto de vista deles porque passamos a ocupar o lugar de voyeurismo desse triângulo amoroso. A câmera capta a tensão e o tesão crescente entre todos. Os desejos começam a aflorar e são explorados com o destaque dos lábios, dos olhos, do toque contido, do acabrunhamento que desvia a ação e desfaz o que poderia ocorrer como, também, do exibicionismo confortável e provocador. Além dessa visualidade restrita e sufocante, o desenho de som submerge os personagens aos ruídos do campo que povoam o entorno, e traem a ilusão bucólica do silêncio. A ideia de silêncio no espaço rural é

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perceptivelmente inexistente em meio aos ruídos de insetos, animais, água, vento, folhagens, passos, e a respiração por vezes ofegante de todos. Há sons no silêncio. Helena se percebe observada por Joaquín e, nela, a sexualidade adormecida ou enfraquecida, pois insatisfeita, passa a despertar novas sensações. Mostrar-se a Joaquín enquanto mantém relação com o marido e sentir prazer a ponto de atingir o orgasmo em meio ao sexo frouxo surte seu efeito de prazer momentâneo. Ernesto também se dobra em atenções ao rapaz. Leva-o para conhecer a fazenda, a produção e os empregados, além de apresentá-lo aos divertimentos masculinos locais, a rinha de galo, o prostíbulo, e a caça. A sequência da “aula” de tiro fica carregada de sentido e afirma a ebulição existente entre os dois. A proximidade física entre ambos, sendo a arma o grande falo a conectá-los em meio ao encaixe dos corpos, constrói um clímax sobre os desdobramentos dessas relações. Entretanto, o extremo da tensão não se resolve com a mudança das estruturas organizadas desta sociedade patriarcal e conservadora desde sempre. O desejo que explode é contido, o silêncio dos sentimentos deve ser retomado, e a solução violenta é o desfecho natural. Estupro, assassinato, e o fim da paixão ficam apresentados e sugeridos. Ao menos, neste caso, ao que parece, não haverá herdeiro para perpetuar essa espécie, e a continuidade de toda esta violência em outra geração não seguirá adiante, já que o pseudo-macho não consegue procriar.

* Mônica Brincalepe Campo é doutora

em

História Cultural pela Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Possui artigos publicados em diversos periódicos e tem se dedicado às pesquisas em torno das relações entre História e Cinema.

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JESS & JAMES Jess & James Santiago Giralt, 2015, Argentina, 92’, 18 anos. O que seria apenas um encontro sexual casual entre os jovens e belos Jess e James se converte em uma viagem de liberdade e crescimento. As paisagens do interior argentino pelas quais transitam se intercalam com as paisagens dos corpos dos personagens – aos quais se une brevemente um terceiro elemento –, sensualmente acariciados pela câmera de Giralt e acompanhados pela pujante trilha sonora.

CAMINHOS HOMOAFETIVOS por Rodrigo Ribeiro Barreto*

Santiago Giralt (Venado Tuerto/Santa Fe, 1977) estudou na Universidad del Cine e é diretor, roteirista, produtor, ator, dramaturgo e romancista. Em sua prolífica filmografia, antecedem a Jess & James os longas Toda la gente sola (2009), Antes del estreno (2010), Here, Kitty Kitty (2014) e Anagramas (2014). Também coescreveu filmes de Albertina Carri e de Lucía Cedrón, e codirigiu UPA! Una película argentina (2006), Las hermanas L. (2008) e Upa 2! El regreso (2015). Jess & James passou por incontáveis festivais (especialmente LGBTs) como Tels Quels Brussels LGBT Film Festival, Inside Out Toronto LGBT Film Festival, San Diego Latino Film Festival, MIX México, Hong Kong Lesbian and Gay Film Festival e Bari International Gender Film Festival.

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Desde seu título, Jess & James sublinha a centralidade de seus dois personagens, rapazes argentinos na casa dos vinte anos, dispostos a resolver questões relacionais – amorosas e familiares – no decorrer de uma viagem espontânea e pouco planejada. Embora a combinação dos nomes dos protagonistas remeta (um tanto gratuitamente) ao conhecido fora da lei estadunidense (Jesse James), o filme de Giralt investe em uma marginalidade mais prosaica, ainda que sempre presente e efetiva em termos de preconceito e discriminação. Trata-se, em síntese, de um road movie homoafetivo, uma combinação entre gênero cinematográfico e temática LGBT já amplamente testada no cinema pelo seu grande potencial para o desenvolvimento de histórias com personagens às margens dos padrões heteronormativos da sociedade. Para citar uns poucos exemplos, é possível lembrar desde filmes francamente transgressivos, como The living end (Gregg Araki, 1992), representante do New Queer Cinema, passando por comédias populares, como Priscilla, a rainha do deserto (Stephen Elliott, 1994), obras de interesse transgênero, como Transamerica (Duncan Tucker,

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2005) até aqueles com revelação surpreendente (E sua mãe também, Alfonso Cuarón, 2001). De todo modo, pegar a estrada representa uma providencial fuga de suas realidades cotidianas, além de uma oportunidade de se deparar com outras figuras de valores e comportamentos os mais inusitados. Embora o tema mais persistente do filme seja o de relacionamentos entre homens, Giralt evita ostensivamente qualquer menção às palavras “gay”, “homossexual” ou equivalentes. Não aparecem as situações comuns de autodeclaração identitária, assim como nem mesmo são utilizados tais termos nos momentos em que personagens vivenciam preconceito ou oposição a seus vínculos sentimentais. Essa ausência soa como uma hesitação estranha para um filme que nem tem a justificativa de se orientar por investimentos queer ou pós-identitários e nem pode, definitivamente, ser acusado de timidez na exibição de cenas eróticas. A primeira relação física entre Jess e James, por exemplo, tem o mérito de não mitigar ou disfarçar o sexo entre dois homens. A escolha por uma cena diurna e a utilização cênica de espelhos buscam, inclusive, maximizar a visibilidade do ato. Esse encontro, no entanto, guarda um potencial de incomodar espectadores, não necessariamente pelo choque da exibição do homoerotismo (embora atitudes assim regressivas sejam sempre possíveis), mas, principalmente, por conta da assimetria estabelecida entre os dois rapazes. É tal o descuido por parte do agressivo Jess com o conforto e o prazer de James que não é possível deixar de enxergar a cena como uma demarcação paradigmática do restante da relação entre eles. Do primeiro, ouve-se nunca ter tido um orgasmo tão intenso como aquele; do outro, testemunham-se expressões de dor e óbvia frustração final. Desse modo, uma recorrência fica estabelecida: Jess esnoba e James insiste ou cede. O problema desse padrão para o filme é o fato de tornar mais difíceis a vinculação e a empatia de espectadores/as com Jess, cujas vontades e necessidades, no final das contas, conduzem a trama. A série de posições dicotomizadas assumidas, respectivamente, pelos protagonistas – Ativo-Passivo; Indiferente-Romântico; Agressivo-Doce – é balançada pela inclusão de um novo interesse afetivo, Tomás, vértice de um triângulo que merecia ter sido mais bem desenvolvido no fil-

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me. Comparando-se à sua abordagem afetiva mais franca e horizontal, fica sublinhada a relativa aridez emocional e a rigidez de papéis dos dois outros. De qualquer modo, o claro interesse de Tomás por James ajuda a desequilibrar a posição de poder de Jess. Mesmo no que se refere às relações familiares, o canal aberto de diálogo entre Tomás e seu pai parece mais bem resolvido do que o ódio declarado de Jess pelos seus parentes ou a relação neurótica de James com a mãe. Em cada caso, varia a aceitação da homossexualidade, mesmo que ela não esteja assumida ou persista no terreno da desconfiança por parte dos familiares. O pai de Tomás, aparentemente também impressionado por James, limita-se a pedir que ele seja discreto, de modo a preservar a imagem de ambos na cidade pequena. Jess está sendo coagido por seus pais – que sequer aparecem no filme – a se casar com uma garota grávida. James, por sua vez, é inquerido (e ofendido) pela mãe a respeito de suas eventuais andanças, parceiros e práticas sexuais em um fluxo contínuo que não cessa nem mesmo quando ele está trancado no banheiro, masturbando-se. O autocentramento e até a extrema inconveniência da mãe de James poderiam ser, por sinal, indícios interessantes de uma tentativa de rompimento com figuras maternas tradicionais. No entanto, o desenho da personagem não escapa de certa unidimensionalidade, uma característica partilhada por outras mulheres de Jess & James. Todas elas estão definidas por uns poucos traços superficiais e, às vezes, incongruentes, não ocupando assim papéis realmente relevantes na trama. O exemplo da transexual Brenda é emblemático: ela é descrita (em voice over) como prostituta e ainda como a única a saber do “segredo” do protagonista, uma posição, portanto, de amizade e confiança. Contudo, mesmo em um filme abordando questões relativas a minorias sexuais, sua aparição acaba se resumindo a servir de facilitadora do primeiro encontro sexual entre os protagonistas. Já Mimi, a garota grávida, age, embora existam indícios de sua situação financeira segura, como uma suplicante insistente que precisa ser salva de uma situação difícil. Há ainda uma namorada de Jess, cuja aparição breve e total falta de noção sobre o que está acontecendo tornam-na francamente dispensável. Finalmente, tem-se, ao final do filme, um resgate da mulher buscada com afinco por Jess, aquela com inclinações maternas e

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pouco mais além disso. É por isso que ele resiste à avaliação de James a respeito da estranheza da senhora que, despropositadamente, acolhe os rapazes, oferecendo-lhes comida e abrigo. A recorrência dos devaneios de Jess com a antiga babá (agora sua cunhada) é outro indicativo dessa busca mal elaborada. Fica a impressão de que a lacuna dessa figura materna é até mais importante para o protagonista do que a falta do próprio irmão, embora, no momento do efetivo encontro, a mulher ocupe uma posição secundária, persistindo apenas em seu papel doméstico. Eminentemente masculina, portanto, a errática jornada de Jess & James resulta em um filme com seus desvios e algumas pontas soltas, mas que se acompanha com interesse até o fim. Adicionalmente, vale destacar a importância de que a homoafetividade e o homoerotismo sejam tratados, de modo mais frequente e despudorado, no cinema latino-americano. Nesse sentido, Santiago Giralt acerta no ponto.

*Rodrigo Ribeiro Barreto é comunicólogo/jornalista com mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Realizou pós-doutorado com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

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O ESCARAVELHO DE OURO El escarabajo de oro Alejo Moguillansky e Fia-Stina Sandlund, 2014, Argentina/Dinamarca/Suécia, 100’, livre.

Allan Poe, R.L. Stevenson, Victoria Benedictsson, Leandro Alem, feminismo e colonialismo se combinam (ou não) nessa divertida e aguda reflexão sobre o cinema dentro do cinema. Em uma proposta tão politicamente correta quanto esotérica, Alejo e Fia-Stina são convidados a resgatar a vida de uma poetisa feminista sueca do século XIX em uma coprodução entre Argentina e países europeus. A equipe sul-americana, buscando locações, descobre a existência de um tesouro e resolve alterar a trama do filme para ir a sua procura.

A SÁTIRA COMO POTÊNCIA CRÍTICA Alejo Moguillansky (Buenos Aires, 1978) é cineasta, montador e professor na Universidad del Cine, além de diretor de teatro. Parte da produtora El Pampero Cine, é colaborador frequente de Mariano Llinás, Matías Piñeiro, Juan Villegas e Albertina Carri, entre outros, tendo seu nome nos créditos de edição de uma longa lista de filmes argentinos recentes. Antes de O escaravelho de ouro, dirigiu La prisionera (2006), Borges/Santiago: variaciones sobre un guión (2008), Castro (2009) e El loro y el cisne (2013). Fia-Stina Sandlund (Estocolmo, 1973) estudou na Academia de Fotografia e Cinema de Gotemburgo e na Konstfack – University College of Arts, Crafts and Design de Estocolmo. Vive entre esta cidade e Nova York, trabalhando na interseção entre jornalismo, ativismo social e arte. Diretora da trilogia She’s blonde like me (2011), She’s staging in (2012) e She’s wild again tonight (2015), baseada na peça Miss Julie de August Strindberg. O escaravelho de ouro foi produzido no marco do DOX:LAB (laboratório do Festival Internacional de Documentários de Copenhagen) e exibido em diversos eventos pelo mundo, como o Festival de Locarno 2014, além de ganhar o prêmio de Melhor Filme Argentino no 16º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente.

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por Mariana Duccini*

Já nas primeiras sequências, a montagem de O escaravelho de ouro alterna cenas do enredo e um pequeno texto em cartelas com a informação de que o filme é “baseado no conto O escaravelho de ouro, de Edgar Allan Poe, e também em A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson – adaptado para a tela segundo o ponto de vista dos piratas”, além de apresentar “algumas linhas da prosa de Victoria Benedictsson e de Leandro N. Alem”. Se a associação mais imediata faz crer que O escaravelho se constituirá como um exercício de adaptação cinematográfica, logo (por felicidade) a expectativa é frustrada. Trata-se de uma narrativa em que a subversão e a ironia movimentam um jogo paródico com a tradição, por meio de uma improvável aproximação entre textos e personagens da história e da literatura. O clichê da caça ao tesouro faz deslanchar a ação: o realizador Alejo Moguillansky e seus amigos atores/produtores/fotógrafos etc. (todos interpretando a si mesmos) preparam-se para a rodagem de um filme, na

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Argentina, sobre a escritora sueca Victoria Benedictsson que, devido ao conservadorismo do século XIX, assinava suas obras com um pseudônimo masculino. O projeto, viabilizado por uma coprodução europeia, intenta reabilitar o papel e o valor da escritora, em que pese o engajamento feminista da codiretora sueca Fia-Stina Sandlund (também, na película, desempenhando seu próprio papel). Quando um dos personagens revela estar em posse de um mapa do tesouro, o grupo latino-americano resolve “enganar” os colegas europeus, mudando drasticamente o roteiro para que a filmagem seja transferida de Buenos Aires para Misiones (onde a fortuna estaria escondida). Como pretexto, é inserida na trama a história de Leandro N. Alem, político argentino que liderou insurreições contra o conservador Partido Autonomista Nacional durante o século XIX. De saída, a estrutura de filme dentro do filme embaralha ficção e realidade. O escaravelho, de fato, tem origem em uma iniciativa do festival dinamarquês CPH: DOX, que financia coproduções em que um dos realizadores deve ser europeu e o outro, representante de um país “emergente”. O teor crítico do filme não se intimida diante dessa curiosa associação, que viabiliza trabalhos “na metade do caminho entre a experimentação artística e a caridade ao terceiro mundo”, como diz sarcasticamente um dos personagens. Mas a metalinguagem tematiza também o próprio processo da realização fílmica, com suas agruras, improvisações e divertimentos. Nesse sentido, a obra de Moguillansky e Sandlund alcança uma dimensão documental, que se mescla ainda aos gêneros do road movie (com a viagem de 1000 quilômetros entre Buenos Aires e Misiones) e dos filmes de época (com as pouco convencionais releituras das biografias de Benedictsson e de Alem). Com uma mise en scène ágil, em que se destaca o trabalho com os diálogos, O escaravelho é também uma sátira à História (aquela com “h maiúsculo”), não raro retorcida pelos interesses mais rasteiros dos homens. As diversas formas de disputa pelo poder, em suas inflexões políticas, econômicas, de nacionalidade ou de gênero estão lá, porém desestabilizadas pelo chiste e pela piada. É um filme que parece não se levar muito a sério, mas que, talvez por isso, alcance uma dimensão crítica mais potente do que certos discursos francamente engajados. E, definitivamente, não é uma adaptação de Allan Poe, Stevenson ou Benedictsson. Embora dialo-

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gue com eles de maneira criativa e inteligente, é demasiadamente “infiel”, no sentido preciso de Robert Stam: o da infidelidade como verdadeira vocação política.

* Mariana Duccini é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), mestre pela mesma instituição e graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Atualmente é professora no Insper Instituto de Ensino e Pesquisa.

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PAULINA La patota Santiago Mitre, 2015, Argentina/Brasil/França, 103’, 16 anos. Contra a vontade de seu pai, um importante juiz, Paulina abandona sua bem-sucedida carreira de advogada em Buenos Aires para se dedicar ao ativismo social em sua terra natal, na fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil. Após duas semanas trabalhando em um bairro marcado pela marginalização, ela é atacada por uma gangue. Apesar da brutalidade do ataque, Paulina não vai embora: decide se manter ainda mais firme em suas convicções e sobreviver, a qualquer preço. Uma releitura contemporânea do clássico do cinema argentino La patota (Daniel Tinayre, 1960).

CARTOGRAFIA DA BARBÁRIE por Julia Kratje*

Santiago Mitre (Buenos Aires, 1980) formou-se na Universidad del Cine. Foi corroteirista dos filmes de Pablo Trapero Leonera (2008), Abutres (Carancho, 2010) e Elefante branco (Elefante blanco, 2012), além de colaborar na escritura de diversas produções recentes, como Los salvajes (Alejandro Fadel, 2012). Codirigiu El amor – primera parte (2005), e sua estreia solo na direção se deu com El estudiante (2011). Em 2013, realizou Los posibles junto ao coreógrafo Juan Onofri Barbato e à companhia de dança KM29. Paulina estreou na Semana da Crítica do Festival de Cannes 2015 e levou o Grande Prêmio dessa seção. Participou de vários festivais pelo globo, entre eles o 68º Festival de Locarno, o 24º Festival Biarritz Amérique Latine e o 63º Festival de San Sebastián (onde recebeu o Prêmio Horizontes Latinos).

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Paulina, segundo longa-metragem do diretor de El estudiante, é, sem dúvida, um convite ao debate. Num contexto em que o cinema argentino redefine o estatuto do político, tornando-se menos explícito e declamatório que em outras épocas, a obra de Santiago Mitre é visivelmente política e politicamente problemática, ao mesmo tempo. Remake do filme (homônimo, no título original) La patota, de 1960, dirigido por Daniel Tinayre e escrito por Eduardo Borrás, o argumento pode assim ser resumido: Paulina, uma jovem profissional, começa a dar aulas em uma escola da periferia, enquanto seu pai, um prestigioso juiz federal, se manifesta contra a decisão. Uma noite ela é violentada por um grupo de alunos e engravida. Contra todos os prognósticos, resolve perdoar seus estupradores, não abortar e voltar ao trabalho. Quais são os motivos dessas ações? Por que razão a protagonista, uma mulher independente, absolve os estudantes que a violentaram e continua com a gravidez? São perguntas que percorrem a produção. Com ares de filme noir, a denúncia de um sistema social considerado injusto põe em primeiro plano os mundos

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em conflito: povo e elites, culturas populares e letradas, línguas nativas e línguas legítimas, sob uma racionalização que impõe inclusões e exclusões, distribui espaços, corpos, palavras. Se, na versão original, a moral católica permitia explicar as decisões da abnegada Paulina, até ao ponto de sacrificar-se a si mesma em uma missão evangelizadora, no filme de Mitre o clima é muito diferente: na província de Misiones, perto da tríplice fronteira com Brasil e Paraguai, não há um preceito religioso que encadeie culpas e arrependimentos. Os conflitos se disparam em múltiplas direções, assim como os desvios da narração perfilam soluções adversas – o poder institucional da justiça, por um lado, ou a justiça como produto de uma convicção individual, por outro. A primeira cena (um plano sequência de oito minutos) oferece um panorama da situação: Paulina discute com o pai sobre seu futuro profissional. O pragmatismo personificado na voz da autoridade entra em confronto com o projeto idealista de coordenar uma oficina sobre formação política e cidadã em uma escola marginal. Nos confins do Estado nacional, trama-se uma forma particular de crime que escapa a qualquer esquema lógico. O uso predominante de flashback oferece ao espectador uma pista para compreender as ações violentas sobre Paulina e sobre outras mulheres: estamos ante a mise en scène de uma mística viril. A patota, próxima à natureza turbulenta da geografia local, aparece representada como uma aglomeração perigosa e incontrolável; ameaçada pela presença vigorosa de um brasileiro, recorre ao estupro como uma forma bestial de vingar uma infidelidade. Por outro lado, descobrir por que motivos Paulina reage com indulgência não é uma tarefa simples, levando em consideração que a personagem dispõe do privilégio da palavra: o filme enfoca de perto suas tentativas de aproximar-se dos estupradores com propósito educador, mas, ao final, deixa aberta a incerteza. A frustração sucessiva de seus planos – em primeiro lugar, o de formar os cidadãos locais; em segundo, o de reunir-se com seu estuprador – mostra as dificuldades práticas de uma empreitada romântica. Porém, insistimos: qual é o motor das decisões de Paulina? Na busca de uma linguagem em comum, o paternalismo de Tinayre dava voz aos rapazes da gangue, marcava suas tensões, expunha

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seus matizes frente à culpa e, inclusive, era um deles que entregava uma prova na qual declarava de próprio punho sua responsabilidade. A cultura letrada, e a palavra em um sentido amplo, era a ficção que dava sentido aos esforços do apostolado cívico. Despojada de suas margens urbanas e integrada à paisagem incitante da selva misionera, a gangue de Mitre se move tangencialmente. Sua fonética espreita, seu olhar espreita, ou melhor dito: apontam. Apontam Paulina como objeto de desejo, apontam a ex-namorada de Ciro, o líder da gangue, como vítima de uma represália. O contato que o olhar e as palavras sugerem torna ainda mais evidente a distância intransponível entre o universo de Paulina e o dos outros. “Rapazes, vamos ver quem abre a boca”, pergunta Paulina. Opacidade da linguagem, os alunos falam entre si em guarani, uma barreira que a protagonista decide não cruzar. Divisões sedimentadas: de um lado, o som, os instintos, a natureza; de outro, os símbolos, a razão, a sociedade. Como resolver essas clivagens? A resposta do filme de Mitre consiste em uma afirmação do poder transformador das convicções pessoais. O núcleo argumental de La patota de Tinayre também se construía a partir das convicções de Paulina, quem via a si mesma sob a máscara negra do suplício, como a encarregada de uma missão arrabaldeira. Ilustração ou religião, Mitre anuncia a inconsistência de roteiro dessas premissas em tempos contemporâneos e traduz a convicção religiosa sob o código do político. Enquanto em Tinayre sua visão cristã justificava a diferença de classes, a humilhação de uma filha de juiz em uma escola pública suburbana, o estupro e o perdão, culminando na conversão da gangue, no remake, o subjetivismo, desprendido de todo o arraigamento social, parece circunscrever-se à rebeldia, sob os termos de uma política idiossincrática. Figura rebelde, que se desvia do caminho do pai, o personagem principal do filme de Mitre adota, depois do estupro, uma mudança de atitude. Silenciosa, solipsista, parece desprender-se dos laços de solidariedade com outras mulheres. Inclusive, podemos arriscar, com o espectador construído em chave de gênero. Da irmandade impossível à empatia improvável, Paulina se solta quando era o nó em que convergia certa consciência crítica da misoginia. O político aparece como um projeto impossível: devido ao perfil

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antissocial, pulsional, brutal da gangue, que se repete no interior da prisão, nas mãos da polícia que viola os direitos dos violadores encarcerados. Os conflitos sociais terminam absorvidos pelo entorno selvagem; a força coletiva se dissolve no impulso insondável da heroína. Nada resume melhor que a sequência final: na desolada natureza misionera, no serpenteante caminho da selva, o futuro se torna primeiro plano, o horizonte é devorado pelo rosto de Paulina. (Tradução de Letizia Osorio Nicoli)

* Julia Kratje é graduada e licenciada em Comunicação Social. Mestre em Sociologia da Cultura. Doutoranda em Ciências Sociais no Instituto de Estudios de Género de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires (UBA) e bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET).

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ESPECIAL:

MARCO BECHIS

GARAGEM OLIMPO

FILHOS

Garage Olimpo 1999, Argentina/Itália/França, 98’, 14 anos.

Figli/Hijos 2001, Argentina/Itália, 92’, livre.

Garagem Olimpo é uma das produções mais marcantes e discutidas sobre a violência de Estado nos anos de exceção vividos pela Argentina entre 1976 e 1983. O filme reconstrói a rotina existente nos centros clandestinos de detenção – e o caráter burocrático da máquina de matar – através da jornada de Maria, jovem professora em um projeto social e militante de esquerda que é sequestrada.

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O jovem Javier vive uma vida confortável em Milão. De repente, tudo é desestabilizado pela presença insistente de Rosa, uma argentina que aparece inesperadamente dizendo ser sua irmã. Ela traz notícias desagradáveis nas quais Javier se nega a acreditar, mas a dúvida acaba atormentando-o e mudando sua vida para sempre. Enquanto Garagem Olimpo se dedica a pensar a morte daqueles que lutaram contra a ditadura, Filhos investiga o que aconteceu com as vidas que eles deixaram.

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O RUMOR DA MEMÓRIA El ruido de la memoria 2015, Argentina/Itália, 58’, 12 anos.

Vera Vigevani Jarach nasceu na Itália e fugiu para a Argentina em 1939 por conta da II Guerra. Sua pungente história sintetiza dois horrores: o Holocausto e a última ditadura militar desse país sul-americano. Ela perdeu o avô, assassinado em Auschwitz, e também sua filha Franca, desaparecida aos 18 anos, em 1977. Bechis se aproxima com enorme sensibilidade dessa história de aviões (que jogam corpos) e de trens (que transportam prisioneiros), ligando-a com sua própria experiência durante o período de exceção na Argentina.

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Marco Bechis (Santiago do Chile, 1955) cresceu entre São Paulo e Buenos Aires e, em 1977, foi preso e detido em um dos centros clandestinos da ditadura argentina. Deportado por razões políticas, estabeleceu-se em Milão, passando alguns períodos em Nova York, Los Angeles e Paris. Trabalhou como fotógrafo, videomaker e dirigiu diversos curtas nos anos 1980. Em 1982 realizou a videoinstalação Desaparecidos, ¿dónde están?, acerca de um campo de concentração na Argentina – trabalho do qual extraiu material para o que se tornaria Garagem Olimpo. Alambrado (1991) é seu primeiro longa, seguido por Luca’s film (1997), o já citado Garagem Olimpo (1999), Filhos (2001), Terra vermelha (2008), Il sorriso del capo (2011), Tekoha (fragmento do filme coletivo Mundo invisível, de 2012) e O rumor da memória (2015).

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MARCO BECHIS E AS MEMÓRIAS DA DITADURA ARGENTINA por Patrícia Machado* O mar é atravessado do alto, em velocidade. O motor do avião produz um barulho perturbador. O mar, o avião, o som do motor são elementos visuais e sonoros que entrelaçam e estão fortemente presentes nas narrativas de Garagem Olimpo, Filhos e O rumor da memória, três filmes em que o cineasta Marco Bechis toca profundamente no tema da memória das vítimas da ditadura militar argentina. Entre 1976 e 1983, tempo de vigência da repressão, 30 mil pessoas desapareceram no país. Grande parte foi jogada ainda viva ao mar, do alto de aviões comandados pelos militares. Bechis escapou desse destino por pouco. Aos 20 e poucos anos, foi preso e levado para um dos Centros Clandestinos de Detenção (CCDS) que compunham o sistema concentracionário instalado no território argentino. Foi torturado, mas conseguiu escapar da prisão e da morte por conta da nacionalidade italiana. A partir dos anos 1980, atuou entre aqueles que lutaram pelos direitos humanos, pelo fim da impunidade e pelo reconhecimento da natureza criminosa dos representantes da ditadura. Bechis também fez do cinema um espaço de luta política ao realizar filmes, baseados nos testemunhos de sobreviventes e familiares dos desaparecidos, que se propuseram a expandir o debate público para tentar curar as feridas do passado. Diante dessa missão, é colocado o desafio: como elaborar a memória desse passado violento? De que modo transformar em matéria sensível o que a ditadura quis ocultar e apagar da história? De modos diferentes, os três filmes criaram imagens e sons que remetiam às torturas, assassinatos e desaparecimentos, imagens que entrariam no imaginário coletivo e ajudariam a constituir uma memória pública do período. Em Garagem Olimpo e Filhos, realizados com apenas dois anos de diferença, são reveladas duas faces cruéis do plano sistemático de repressão e aniquilação. De um lado, os métodos de prisão, tortura e ocultação do destino das vítimas. Do outro, as consequências da ditadura para a geração seguinte: os filhos dos militantes desaparecidos, muitas vezes entregues para outras famílias,

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que desconheciam suas origens, seus antepassados. As paredes sujas da prisão, o sangue e suor dos corpos violentados, a frieza dos agentes que se revezavam entre partidas de pingue-pongue indicam a prática das torturas em homens e mulheres, as quais não foram encenadas. As cenas de trabalho forçado, de encarceramento, do desgaste das vítimas em Garagem Olimpo apontam para o modo de funcionamento de um centro clandestino de detenção. O espectador experimenta a sensação de sufocamento e impotência das vítimas através da jornada de uma jovem idealista que foi presa no início da ditadura por conta do trabalho voluntário de alfabetização de pessoas pobres. No centro de detenção, escondido em pleno coração da cidade, os gritos de dor durante as sessões de tortura eram abafados pelo alto volume do rádio que escapava pelos buracos dos bueiros, nas ruas onde a vida seguia normalmente. Em Filhos, é a mensagem de uma jovem desconhecida que vai levantar no personagem principal, um burguês italiano que se diverte praticando paraquedismo, a suspeita sobre quem são de fato seus verdadeiros pais. A ausência de fotos da gravidez da mãe, a tensão do pai quando toca no assunto e o conhecimento de uma história distante, que se passou na Argentina há alguns anos, afetam drasticamente a vida dele. Na narrativa, o retorno do barulho do avião, da bolinha de pingue-pongue, das ondas do mar remetem o espectador a Garagem Olimpo. Só que, dessa vez, não se trata de reconstituir o passado, mas sim investigar os efeitos do que se passa no presente. Mais de uma década depois de Filhos, o cineasta produz um documentário que vai dialogar e, por vezes, entrar em disputa com essas imagens ficcionais. Em O rumor da memória Bechis conta, pela primeira vez, a própria experiência da prisão em um centro clandestino. No entanto, a narrativa não se concentra no relato em primeira pessoa e no movimento documental argentino que passou a apostar fortemente nessa proposta para elaborar as memórias da ditadura, como já demonstrou a pensadora Beatriz Sarlo no livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. 1 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo/Belo Horizonte: Companhia das Letras/Editora da UFMG, 2007.

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O filme narra a história de Vera Vigevani Jarach, uma judia-italiana que escapou para a Argentina fugindo do nazismo, no final da década de 1930, e que viveu a terrível experiência, anos depois, de ver a filha de 18 anos desaparecer nos primeiros tempos da repressão no país sul-americano. Bechis e Vera se conheceram vinte anos antes da realização do documentário, durante o julgamento dos militares argentinos acusados de cometer crimes contra os direitos humanos durante a ditadura. Guardavam em comum as dores provocadas pela violência do Estado e o desejo de punir os criminosos. Ao longo do filme, Vera percorre lugares por onde a filha passou, entre eles um centro clandestino, e encontra pessoas que trouxeram pequenos fragmentos, lembranças que tornaram possível reconstituir parte da história oculta pelas Forças Armadas. No entanto, O rumor da memória não se limita às memórias da ditadura. A história do avô que morreu em Auschwitz e as lembranças do comboio que partia de Milão levando os judeus para os campos de extermínio são retomadas. Vera é, assim, a linha a ligar duas tragédias históricas que, como procura mostrar a obra de Bechis, devem ser rememoradas, elaboradas para, justamente, jamais serem esquecidas.

* Patrícia Machado é doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com passagem pela Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 (estágio de doutorado sanduíche). Publicou artigos em revistas do campo da comunicação e capítulos de livros sobre as relações entre cinema e ditaduras. Pesquisa temas voltados para o documentário, as imagens de arquivo e as políticas de memória.

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CHIQUITOS E CHIQUITAS

MOSTRA INFANTIL

UMA PÁ NA MÃO E UMA MAÇÃ NA CABEÇA. OU DE COMO FAZER CINEMA UTOPICAMENTE por Lúcia Monteiro*

BASICAMENTE UM POÇO Básicamente un pozo Grupo Humus, 2009, Argentina, 70’, livre.

O professor de uma escola primária tem uma ideia absurda mas cientificamente coerente para demonstrar a existência do movimento constante. Seu plano consiste em fazer um poço que chegue até o outro lado da Terra. Assim, disfarçará este sonho de trabalho escolar, envolvendo seus alunos e todo o povoado em sua deliciosa e cômica obsessão que atrai e abisma cada segundo do filme. Humus é um coletivo de artistas dedicado à produção de conteúdos audiovisuais. Formado em 2004, em Buenos Aires, combina integrantes procedentes das artes plásticas, da música, do teatro e do cinema: Agu Grego (Cipolletti/Río Negro, 1983), Ber Chese (Cipolletti/Río Negro, 1981), Ignacio Laxalde (Coronel Vidal/ Buenos Aires, 1980) e Federico Barroso Lelouche (Tres Arroyos/ Buenos Aires, 1981 – que já não faz parte do Humus mas esteve na realização do longa de 2009). Além de Basicamente um poço (que ganhou o Prêmio do Público no Baficito, seção infantil do BAFICI, em 2009), o grupo dirigiu inúmeros curtas exibidos e reconhecidos em festivais do mundo todo, além de programas para a televisão.

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Quão utópico lhe parece que quatro amigos, na faixa dos 20 anos, decidam começar a fazer cinema meio que por diversão e, munidos de uma Super8 e uma mini-DV, conquistem com seus curtas-metragens prêmios em importantes festivais? Soaria mais improvável ainda se eu contasse que eles se organizam em um coletivo em que tudo é decidido de maneira colaborativa e que eles se revezam nas diferentes tarefas – do roteiro à música, da produção à direção, da fotografia à montagem? Mais: você acreditaria se eu dissesse que, em 2009, esse grupo consegue rodar seu primeiro longa-metragem, e que o filme é selecionado para festivais em países como Colômbia, Chile, Singapura, Bangladesh, Espanha, Equador e Estados Unidos, além da Argentina, país de origem dos quatro amigos? Pois saiba que tudo o que está escrito no parágrafo acima é verdade, e faz parte do currículo do coletivo Humus. O grupo, como você já deve ter percebido, vem desafiando absurdos há mais de dez anos. Seu primeiro longa-metragem, Basicamente um poço, conta a história de um professor de língua que não tem medo das ideias malucas que brotam de sua cabeça – do mesmo modo que seus criadores, Ber Chese, Fede Barroso Lelouche, Nacho Laxalde e Agu Grego (sim, como se tudo já não fosse suficientemente inverossímil, esses são os nomes dos cineastas fundadores do Humus). É tarde da noite e o professor está fechado em sua oficina. Vê a bandeja de comida em sua mesa e, ao tentar comer, esbarra em uma maçã, que cai no chão. O lance lembra a lenda que envolve a descoberta da gravidade por Isaac Newton – uma maçã teria caído na cabeça do cientista inglês que, assim, deu-se conta da força que atrai todos os objetos para o centro da Terra. O professor então encontra um globo terrestre escondido em uma de suas estantes e pensa: “Se eu furar um poço aqui em minha cidade que seja profundo o bastante para chegar ao outro lado da Terra, os objetos serão ao mesmo tempo atraídos e expelidos”. Para testar na prática esse pa-

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radoxo gravitacional, o professor convida seus alunos e um outro professor, seu amigo. Essa é a aventura narrada por Basicamente um poço. Já na abertura fica claro que tudo no filme é feito segundo a mesma receita que move o protagonista: uma dose de utopia, outra de diversão, e imaginação à vontade. Não se trata de fabricar cenários com altos investimentos nem de produções luxuosas, muito pelo contrário. Basicamente um poço mostra como é possível dispor dos recursos existentes de maneira criativa e inteligente. Assim, um plano-sequência mostra, num desvio, o nome do coletivo Humus bordado no guardanapo que o professor usa para limpar a boca enquanto janta em sua oficina; outro movimento de câmera mostra os nomes dos atores escritos na forma da brincadeira de “ligar os conjuntos”, colado sobre um caderno. E assim por diante. Tudo bem que alguns elementos da história parecem impossíveis. Como pode o professor chegar ao centro da Terra e mandar um bilhete para os alunos que, da superfície, enviam-lhe um sanduíche de linguiça? Ou, de dentro do poço, conseguir comunicar-se com sua mulher por um telefone de lata? Mais importante do que apontar cada uma das impossibilidades físicas que o filme desafia é embarcar com ele nas divertidas aventuras que vão surgindo – e sofrer junto nos momentos de desânimo, que também existem, é lógico. Esse espírito de diversão envolve não somente os espectadores, mas todos que participam da realização do filme. Na cena em que os alunos e seus pais fazem um churrasco enquanto o professor e seu amigo trabalham no poço, dá para ver que aquilo se transformou em uma verdadeira festa, com música boa, dança, comida apetitosa. Basicamente um poço compartilha do clima que imperava à época do surgimento do cinema. Antes de existir o que mais tarde foi chamado de a “Sétima Arte”, inventores certamente mais malucos que o professor do filme trabalharam em engenhocas de nomes esquisitos – praxinoscópio, fenaquistiscópio, etc. – com o objetivo de reproduzir o movimento em imagens e entreter adultos e crianças em feiras parecidas com os parques de diversões de hoje em dia. Sim, o que fazem o professor e os realizadores do coletivo Humus é, cada um a sua maneira, reinventar o cinema.

* Lúcia Monteiro é doutora em Estudos Cinematográficos pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como professora visitante na Universidad de las Artes, em Guayaquil, Equador, e como professora assistente do curso de cinema da Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, França. Em parceria com Philippe Dubois, é co-organizadora do livro Oui, c’est du cinéma/Yes, it’s cinema (2008). É autora de uma série de artigos sobre a estética do cinema e do audiovisual, sobre a catástrofe no cinema e sobre cinema latino-americano.

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NA ÓPERA At the opera 2010, Argentina, 1’01”. Uma noite realmente emocionante na ópera.

DESAFIO À MORTE El desafío a la muerte 2011, Argentina, 3’30”. O Fahaki Ayunanda enfrenta uma das provas mais difíceis de sua vida.

COLETÂNEA DE CURTAS DE JUAN PABLO ZARAMELLA A LUVA El guante 2001, Argentina, 9’54”. Um homem recebe misteriosamente uma estranha caixa com uma luva dentro. A partir desse momento, passará a fazer parte de um plano que mudará sua vida.

VIAGEM A MARTE Viaje a Marte 2004, Argentina, 16’13”. Antonio é um garoto que quer ir a Marte. Por sorte, seu avô sabe como chegar lá.

LAPSO Lapsus 2007, Argentina, 3’24”. A curiosa aventura de uma freira no lado mais escuro de seu mundo.

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HOTCORN! Hotcorn! 2011, Argentina, 1’05”. As incríveis habilidades de um homem do campo.

LUMINARIS Luminaris 2011, Argentina/França, 6’15”. Em um mundo controlado e programado pela luz, um homem comum tem um plano que pode mudar a ordem natural das coisas. Juan Pablo Zaramella (Buenos Aires, 1972) é diretor e animador independente. Formado no Instituto de Cine de Avellaneda, começou sua carreira profissional fazendo curtas que atraíram a atenção de agências e produtoras, o que o leva a dirigir publicidades para todo o mundo. Paralelamente, realiza ilustrações para diferentes meios, obtendo numerosos prêmios da Society for News Design. Seus curtas ganharam três vezes o Cóndor de Plata (prêmio que corresponde à versão argentina do Globo de Ouro), além de centenas de reconhecimentos internacionais. Em 2010, o Festival Internacional de Animação de Annecy apresentou uma retrospectiva de sua obra.

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JUAN PABLO ZARAMELLA, UM ANIMADOR DE HISTÓRIAS por Jennifer Jane Serra *

O cinema de animação tem o potencial de tornar visível tudo o que imaginarmos, mesmo o que não existe, uma habilidade que justifica a origem de seu nome: animar significa “dar alma ou vida a alguma coisa”. Essa é a especialidade do cineasta Juan Pablo Zaramella que, com um humor particular, dá vida a um universo fantástico de histórias lúdicas, surrealistas ou mesmo insólitas. De um garotinho que sonha em visitar outro planeta a um homem que deseja se libertar de um mundo opressor, vemos materializadas na tela a imaginação e a genialidade desse prestigiado animador argentino, uma das referências mundiais em stop motion, técnica de animação em que o movimento é construído quadro a quadro, através da manipulação de materiais, objetos e até de pessoas. Formado como diretor de cinema de animação no Instituto de Cine de Avellaneda, Zaramella começou sua carreira ainda na adolescência como cartunista, realizou vídeos publicitários e trabalhou com ilustrações e infografias até se tornar um animador independente notável. Ele traz em seu currículo o prestígio de ganhar uma retrospectiva de sua obra no mais importante festival de cinema de animação do mundo, o Festival de Annecy (França), e o mérito de ter sido o diretor mais premiado com um curta-metragem, recebendo mais de 300 prêmios internacionais com Luminaris, além do sucesso obtido com seus outros filmes. A presente coletânea é uma homenagem a esse animador da imaginação, com a exibição de curtas-metragens que o tornaram conhecido pelo uso de animação com plasticina (claymation, popularmente conhecida como animação com massinha), como Desafio à morte (2001), Viagem a Marte (2004) e Na ópera (2010) e da técnica de animação de atores, chamada pixilation, empregada nos filmes A luva (2001), Hotcorn! (2011) e Luminaris (2011). A mostra também inclui Lapso (2007), feito com animação gráfica, uma prova de que Juan Pablo Zaramella mantém seu talento com ilustrações.

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Sucesso de crítica e de público, suas produções se destacam por apresentar narrativas originais e bem-humoradas combinadas com perfeccionismo técnico e domínio da linguagem cinematográfica, conformando um cinema que é sofisticado, mas também acessível. Se seus filmes mais infantis, como Viagem a Marte, nos transportam ao tempo da infância inocente, seus trabalhos mais adultos, como Hotcorn!, apresentam a malícia com leveza, recorrendo a um humor espirituoso. Assistir aos filmes de Juan Pablo Zaramella é ter uma experiência fascinante que anima, também, nosso espírito.

* Jennifer Jane Serra é doutoranda em Multimeios na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Formada em Produção Cultural pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), tem mestrado em Multimeios também pela UNICAMP. Atualmente pesquisa o documentário animado e sua produção no Brasil.

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UMA FÁBULA LATINO-AMERICANA por Daniela Ramos*

RODÊNCIA E O DENTE DA PRINCESA Rodencia y el diente de la princesa David Bisbano, 2013, Argentina/Peru, 87’, livre.

História de aventuras e amor do ratinho Edam, atrapalhado aprendiz de feiticeiro, e da bela e segura ratinha Brie. Juntos, eles terão que enfrentar os mais diversos perigos para obter o poder que é dado pelo dente de uma princesa humana e, assim, derrotar o exército de ferozes ratazanas comandado pelo malvado Rotex, que invade Rodência, o pacífico reino dos ratinhos, para dominá-los e ficar com seu tesouro. No meio do bosque, o amor e o rancor vão se enfrentar. David Bisbano (Buenos Aires, 1974) estudou direção e direção de fotografia na Escuela Superior de Cinematografía. Trabalhou em publicidade, filmou curtas experimentais e fez parte do Departamento de Arte da Pol-ka, célebre produtora de cinema e TV. Dirigiu os longas B (corta) (2004), María y Juan (no se conocen y simpatizan) (2005) e Valentino y el clan del can (2008), coprodução entre Argentina e Peru que abriu caminho para a realização de Rodência e o dente da princesa, premiado como Melhor Filme Infantil no 15º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente e lançado em diversos países.

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Rodência é o nome dado a um reino fantástico que compreende uma enorme floresta, ora se esparramando por cadeias montanhosas, ora por extensas planícies e construções suntuosas. Um lugar pacífico, onde vive Edam, um pequeno e desastrado ratinho camponês, aprendiz de mago, que precisa lutar contra a própria descrença em seu potencial mágico. A inseparável amiga Brie é um exemplo de confiança e otimismo, virtudes tão necessárias a Edam, o qual – juntamente com dois nobres guerreiros, Gruyère e Roquefort, e a ajuda do mago ancião Blue – deverá proteger o reino contra as maldades do vilão Rotex, que planeja roubar o tesouro de Rodência. A essência de Rodência e o dente da princesa é a fábula, haja vista que a narrativa conta especialmente com ratos dotados de emoção que enfrentam as vicissitudes da existência humana com ingenuidade e muito humor. Cada uma das escolhas empreendidas nesse longa-metragem atende a um propósito maior e, de certa forma, ousado: transformar a América Latina num reino. Em outras palavras, Bisbano precisaria ser renovador, haja vista que o design e a estética estadunidenses da Disney Studios ainda são parâmetros para grande parte dos espectadores quando se trata da animação de seres antropomórficos e contos de fadas. 1 Para tanto, dentre a equipe de produção é significativa a diretiva empreendida pelo roteiro e pela direção de arte ao buscarem, meticulosamente, elementos definidores do universo cultural latino-americano, que se exibem desde a modelagem virtual dos cenários aos minuciosos detalhes de objetos de cena, como as texturas das roupas dos personagens. Sobre a história e as diferentes técnicas de produção da animação, bem como as circunstâncias e conquistas criativas que levaram Walt Disney ao prestígio alcançado no mercado cinematográfico, sugere-se consultar a publicação Arte da animação: técnica e estética através da história, de Alberto Lucena Barbosa Júnior, publicada pela Editora Senac de São Paulo.

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O roteiro pauta-se em uma relação muito particular que o idealizador mantém com sua cultura de formação. Num movimento tradutório e criativo, o diretor incorporou ao argumento do filme um conto advindo da tradição popular da América Hispânica. Em todo o mundo existem lendas em que figuram os ratos, nas quais são peças centrais da narrativa ou peças participantes do fato. Aliás, o rato sintetiza um símbolo duplo, ao passo que surge nas culturas quer como figura protetora, quer como criatura impiedosa e disseminadora de pragas. Há um mito muito peculiar que circula entre as regiões da Espanha e por todos os países influenciados por essa cultura. Trata-se da lenda do Ratinho Pérez ou Rato dos Dentes (Ratoncito Pérez ou Ratón de los Dientes). A história tem suas raízes na Espanha do século XIX, na corte de Madrid, durante o reinado de Alfonso XII. Conta-se que o príncipe Alfonso XIII (na época com oito anos de idade), cuja mãe havia carinhosamente apelidado de Buby, ao passar pela experiência da perda do primeiro dente, foi acalentado com um presente: um conto fantástico criado pelo jesuíta Luis Coloma Roldán. A historieta narra o inusitado encontro entre o Rei Buby I e um rato muito especial, cuja família abrigava-se nas redondezas do Palácio Real. O pequeno rei, ao perder seu primeiro dente, resolve deixá-lo embaixo do travesseiro a fim de conhecer o famoso Ratinho Pérez, popular entre as crianças por sua prática de trocar dentes bem tratados por presentes. Dado o encontro, o rei pede ao rato que permita acompanhá-lo por Madrid para conhecer melhor o seu trabalho, ao passo que o roedor lança-lhe um feitiço transformando-o também em um rato. Pérez leva Buby a observar um lado da urbe que o pequeno rei desconhecia: aquele em que habitam os famintos e os desfavorecidos. Mas a jornada se interrompe e o menino desperta. Depois dessa aventura, o Rei Buby I passa a criar leis em benefício dos desprovidos madrileños. No roteiro, Bisbano inverte a relação: não são os pequeninos que projetam sua ansiedade na fantasia da recompensa dada pelo fictício rato, mas são os humanos que podem salvar um reino fantástico. Talvez, seja essa a grande metáfora (ou moral) do filme: a possibilidade de se educar um olhar para a América Latina, vendo-a como um reino a ser desvendado. Para adensar tal proposta, há que mencionar o cuidado com a pesquisa iconográfica. Para compor Edam, Bisbano recorre a uma fusão cultural: para caracterizá-lo como aprendiz, o diretor opta pela veste talar, a indumentária típica dos magos, cuja origem remonta aos trajes usados pelos sacerdotes na Roma Antiga, fato que, provavelmente, levou o imaginário contemporâneo a perpetuar

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à imagem do bruxo a mesma túnica larga e comprida. Já no chapéu de Edam se indicia o mágico latino-americano. O diretor aborta o emblemático chapéu cônico dos magos optando por um gorro muito característico do povo peruano: o chullo. O capuz que possui as pontas laterais mais compridas (orelhas) como estratégia de proteção ao frio insere comicidade à figura de Edam, uma vez que o chullo do atrapalhado ratinho deixa à mostra suas salientes e redondas orelhas. Os motivos geométricos que contornam o adorno lembram os temas abstratos dos povos andinos pré-colombianos, especialmente os incas. A cultura inca irradia por todo o longa-metragem: desde a forma piramidal do Palácio Real – que foge ao estilo medieval da representação dos castelos – aos ornatos de seu interior, tais referências estão explícitas em duas interessantes cenas: em uma delas, dois homens do povoado montam as peças de uma maquete que reporta à cidade de Machu Picchu; em outra, acompanha-se num sobrevoo a colcha estampada sobre a cama da “princesa” humana, cujos motivos lembram a tapeçaria inca tocapu. 2 Soma-se a isso a referência à paisagem andina, especialmente os altiplanos, que se destacam nas cenas quando as montanhas emolduram os enquadramentos. Além disso, o tesouro de Rodência é uma moeda dourada – outro elemento que ressalta as manifestações da arte inca, a qual se destacou entre os povos pré-colombianos pelo domínio da ourivesaria. Bisbano surpreende e rompe com as expectativas de quem prevê na animação mais um conto de fadas. Se, por um lado, as crianças se identificarão com a fábula descobrindo os dois lados de uma mesma moeda, ou no trocadilho do mago Blue quando diz que “os humanos não são todos maus, da mesma forma que os ratos não são todos bons”, por outro ficarão admiradas ao descobrir nas telas uma cultura rica e fascinante – no entanto, pouco explorada pela animação cinematográfica.

* Daniela Ramos é mestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professora de História da Arte na Faculdade São Luís (FESL).

Trata-se de uma espécie de linguagem gráfica presente nos trabalhos têxteis dos povos incas. De acordo com Blenda Femenias (em Tudo sobre moda. Rio de Janeiro: Sextante, 2013), não há um consenso quanto ao significado do tocapu (t’oqapu), a não ser o de sua estrutura esquemática e geométrica que lembram pequenos carimbos retangulares cujas formas não se repetem, mas se serializam em um efeito arrebatador.

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FI C HA TÉC N I C A PRESIDENTA DA REPÚBLICA DILMA ROUSSEFF

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO MALU TOSTES

MINISTRO DA FAZENDA NELSON BARBOSA

PROJETO GRÁFICO E WEBSITE CARINA OLIVEIRA

PRESIDENTA DA CAIXA MIRIAM BELCHIOR

VINHETA GRUPO KINO-OLHO

EQUIPE

ASSESSORIA DE IMPRENSA MAIS E MELHORES PRODUÇÕES ARTÍSTICAS

REALIZAÇÃO OLIVER PRODUÇÕES

COMUNICAÇÃO E MARKETING SEVEN STAR

IDEALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO GERAL NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA

TRADUÇÃO E LEGENDAGEM 4ESTAÇÕES DANIEL MAGGI BALLIACHE

CURADORIA MARCELO PANOZZO NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA

AUDIODESCRIÇÃO NARA MONTEIRO

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO TERESA SANCHES PRODUÇÃO EXECUTIVA FABIANA AMORIM PRODUÇÃO DE FILMES MARINA DA COSTA CAMPOS PRODUÇÃO LOCAL BUENDÍA FILMES FERNANDA TEIXEIRA 114

SESSÕES COMENTADAS MARCELO PANOZZO MARÍA CELINA IBAZETA MARINA CAVALCANTI TEDESCO MARINA DA COSTA CAMPOS NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA PATRÍCIA MACHADO VINICIOS RIBEIRO

CATÁLOGO COORDENAÇÃO EDITORIAL NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA

AUTORES DANIELA RAMOS GONZALO AGUILAR JENNIFER JANE SERRA JULIA KRATJE LÚCIA MONTEIRO MARÍA CELINA IBAZETA MARIANA DUCCINI MARÍLIA-MARIE GOULART MÔNICA BRINCALEPE CAMPO NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA PABLO PIEDRAS PATRÍCIA MACHADO REGIANE ISHII RODRIGO RIBEIRO BARRETO ROMÁN SETTON YANET AGUILERA TRADUÇÃO LETIZIA OSORIO NICOLI NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA REVISÃO MARINA DA COSTA CAMPOS PAULA NOGUEIRA RAMOS

AGRADECIMENTOS ADRIANA CHRISTOFOLETTI AGUSTINA LLAMBI CAMPBELL AGUSTÍN MASAEDO ALEJANDRO DE GRAZIA ALEJANDRO SÁNCHEZ HURTADO ALEXANDER MELLO ALEXANDRE MARTINS ANA LÚCIA OLIVEIRA DA SILVA ANA LUIZA BERABA

ASSOCIAÇÃO FILMES DE QUINTAL BRENO LIRA GOMES BRUNO CHRISTOFOLETTI BARRENHA CARLA MAIA CARLOS MAGARIÑOS COSIMO SANTORO DIEGO CORDES DIOGO TORRES EMI PINHEIRO EQUIPE CAIXA CULTURAL RJ ESFERA CULTURAL FABRÍCIO PEDRON FERNANDA MIGUEZ BASTOS FLÁVIA MACHADO FLORENCIA RIVEROS FRANCESCO NARRACCI IRENE DEPETRIS CHAUVIN JÔ SERFATY JOSÉ SAMPAIO LETÍCIA SANTINON LINEKER OLIVEIRA LÚCIA TEIXEIRA MATEUS NAGIME NAIRA CHRISTOFOLETTI SILVEIRA ÒSCAR PUJOL RIEMBAU PEDRO PIPANO PIERRE EMÖ ROSA MARTÍNEZ RIVERO SEBASTIÁN D’ALESSIO SUELI SCOPINHO BORTOLIN SUSANA SANTOS RODRIGUES VINÍCIUS BRUM WENDEL YOKOYAMA YVES MOURA E a todos os realizadores, produtores e distribuidores que confiaram seus filmes à mostra Histórias extraordinárias.

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PRODUÇÃO

PRODUÇÃO LOCAL

APOIO

PATROCÍNIO

A CAIXA está junto com o Brasil no combate ao mosquito.

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