Historiografia na obra Historiens de Philippe Auguste

October 5, 2017 | Autor: Eduardo Medeiros | Categoria: Historiografía, Historiografia Medieval, Philippe Auguste, História Política Século XII e XIII
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Disciplina HH794 Teoria da História e Historiografia Professor Doutor Renan Frighetto Nome: Eduardo Luiz de Medeiros Turma: 2ºSemestre 2012 Historiografia na obra Historiens de Philippe Auguste 1 Um dos grandes desafios sobre o qual o historiador se depara ao longo de sua caminhada acadêmica como produtor e multiplicador do conhecimento científico, sem dúvida, está em inserir seu trabalho em um período considerado historiográfico.2 Este problema se agrava, na medida em que o objeto de estudo se afasta do presente no qual o historiador está inserido.3 Este desafio está, principalmente na especificidade de cada documento, que deve ser analisado em função de uma série de variáveis como tempo de escrita, distância temporal entre os acontecimentos e a narrativa sobre eles, o local de escrita, eventuais patrocínios ou influências, enfim, todos estes elementos apontam para um norte que deve ser verificado pelo historiador da Antiguidade e do Medievo de maneira especial: a partir da fonte de pesquisa o quadro historiográfico deve ser elaborado e não o contrário. O período conhecido como Idade Média, dentro de suas especificidades e variações temporais e espaciais apresentam desafios adicionais para a pesquisa historiográfica, de maneira especial em duas áreas. A primeira delas, uma evidência bastante analisada de que no âmbito medieval em especial no século XII, existe um 1

DELABORDE, H. François. Oeuvres de Rigord et Guillaume Le Breton. Historiens de PhillippeAuguste. Tome Premier Chroniques de Rigord et de Guillaume Le Breton. Paris: Librairie Renouard, 1852. 2

ALLONSO-NUÑES, José Miguel. “La transición del mundo antigo al medieval em La historiografia. La primeira Historia Universal Cristiana: las Histoiae Adversum Paganos de Paulo Orosio”, in: De La Antiguedad al Medievo, Siglos IV-VIII. III Congresso de Estúdios Medievales. Ávila: Fundación SanchezAlbornoz, 1993, p-145, “Sin lugar a dudas que uno de lós domínios donde mejor se refleja esta transformación es la Historiografia al narrar lós hechos, y no solamente esto, sino em el espíritu com el que se aborda esa narrativa, lógicamente difiere según el tiempo em que se compone La obra, el lugar em el que se escribe, el médio social del historiador, La audiência a la que va dirigida la obra em cuestión y el gênero que consiguientemente se adopta dando lugar a una diversidad de corrientes dentro de la Historiografia.” 3

FRIGHETTO, Renan. “A longa Antiguidade Tardia: problemas e possibilidades de um conceito historiográfico.”, in: Programas de Estudos Medievais, Por uma longa duração: perspectivas dos estudos medievais no Brasil. VII Semana de Estudos Medievais. Brasília: UNB, 2010. p- 101 e 102. “Tais preocupações, comuns aos partícipes da História dos Século XX e XXI onde a velocidade das informações acaba por atingir a um público maior, devem ser muito ponderadas na medida em que mergulhamos em fontes manuscritas, epigráficas e arqueológicas dum passado mais distante, revelador de sociedades portadoras de ideais, valores e conceitos um pouco distintos daqueles que são válidos em nosso mundo contemporâneo.”

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discurso historiográfico bastante vívido, de maneira especial nos espaços monásticos, mesmo que os autores responsáveis por esta produção intelectual, não tenham sido, por definição, historiadores. Inseridos nesta dinâmica do claustro, a escrita da história não é a principal preocupação daqueles que recebem esta tarefa, portanto este trabalho historiográfico se apresenta em momentos específicos, com razões nem sempre claras aos nossos olhos contemporâneos. A segunda área a respeito desta historiografia medieval, em grande parte em decorrência da primeira que se o registro narrativo de uma dada memória é uma atividade que possui um sentido específico no interior da produção monástica do século XII, apresentando aquilo que segundo João Gomes da Silva Filho seria praticamente linhas de uma especulação teológica 4. Segundo o autor, ainda não seria possível prever um discurso historiográfico autônomo, porém esta historiografia teológica seria a base que alimentaria as novas escolas urbanas. 5 Essas questões preliminares apontam para a dificuldade do pesquisador do medievo nas questões de uma pretensa historiografia medieval, razão pela qual na o tema tem sido bastante abordado por historiadores nas últimas décadas.6 O presente ensaio tem como objetivo verificar e analisar alguns elementos de uma das fontes de pesquisa utilizadas desde nosso ingresso no programa de Pós Graduação em História na Universidade Federal do Paraná, buscando desta forma, apreender de que maneira o autor percebia e identificava conceitos como: passado, História, tradição entre outros para obtermos elementos historiográficos oriundos do cronista francês Rigord em sua narrativa acerca dos feitos do Rei Filipe Augusto de França entre o final do século XII e início do XIII. Para tanto, uma breve descrição a respeito do documento em questão e seus autores pode auxiliar neste processo. O documento intitulado Gesta Philippi Augusti escrita pelo Cronista Francês Rigord e por Guilherme o Bretão é um dos principais documentos escritos a respeito do rei Filipe II de França, A Crônica de Filipe Augusto é

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FILHO, João Gomes da Silva. Guibert de Nogent (c. 1055-c.1125): entre História e exegese no século XII. In: Varia Historia vol. 24 nº40. Belo Horizonte, UFMG, 2008. p- 2. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-87752008000200015&script=sci_arttext 5

FILHO, João Gomes da Silva, Op Cit. p-4.

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Entre os vários autores que buscam analisar a composição historiográfica do século XII, podemos citar, a título de exemplo, pois muitos outros o têm feito: GUENEE, B. Histoire et Culture Historique dans l'Occident Médiéval, Paris: Aubier, 1980, COLEMAN, J. Ancient and Medieval Memories. Studies in the reconstruction of the past, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1995; CLANCHY, M. T. From Memory to Written Record. England 1066-1307, Oxford: Blackwell, 1993 e LE GOFF, J. História e Memória, Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

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um documento bastante interessante em diversos pontos. Em primeiro lugar, por ter sido escrito a “quatro mãos” O primeiro autor, chamado de Rigord, viveu de 1150 a 1209, foi um cronista francês, provavelmente nasceu próximo a Alais no Languedoc e se tornou um físico. Esta função em pleno século XII atribuía a Rigord o papel de médico, fato este que fica bastante notório ao longo da crônica ao mostrar seu conhecimento de filósofos clássicos como Sócrates e Platão por exemplo. Após um período exercendo esta função, Rigord se torna um monge no mosteiro de Argenteuil e então de Saint-Denis e descreve a si mesmo como o “Regis Francorum chronographus”. Ele escreve a Gesta Philippi Augusti, que narra a partir da coroação de Filipe em 1179 até o ano de 1206. Seu trabalho foi bastante reconhecido, na medida em que foi concluído por Guilherme o Bretão. Um fato interessante na narrativa de Rigord está na distinção clara da maneira como o rei é retratado na primeira parte da Crônica, onde o discurso do autor é bastante concernente ao rei através dos seus escritos. A segunda parte apresenta algumas críticas ao monarca Filipe. O discurso favorável descrevendo o campeão dos cristãos muda drasticamente a partir do ano de 1196. Através da análise historiográfica do reinado de Filipe Augusto, constata-se que este é o mesmo ano do casamento considerado pelo papa Inocêncio III como adultério do rei com a princesa Agnes de Merania da Dalmatia, enquanto ainda estava casado com a princesa Ingeborg da Dinamarca. Não se sabe ao certo qual a razão para a repulsa de Filipe com sua esposa que ficou confinada a um convento e solicitada a nulidade do matrimonio ao papa Celestino III, o qual foi negado em favor da princesa dinamarquesa. Tamanho foi à indisposição que a decisão do rei tomou que o papa Inocêncio III colocou a França sob interdito entre 1199 e 1200 até que o rei reassume a princesa e legítima rainha francesa ao seu posto. Esta atitude de Filipe vai modificar a maneira como Rigord o descreverá o monarca na última parte de seu relato. A Crônica foi, segundo os editores franceses, composta por três manuscritos por Rigord. O primeiro, concluído antes de 1196, foi precedido pelo prólogo. O segundo manuscrito, abrangeu até cerca do ano 1200, sendo acompanhado por uma carta dedicatória ao príncipe Luis. A terceira e versão que chegou até nós foi à versão que inclui o período pós 1196 chegando até 1206. A conclusão da Crônica foi escrita por Guilherme o Bretão (1165-1225) cronista francês, que pelo que nos indica o nome provavelmente nasceu na Bretanha. Ele foi educado em Nantes e na Universidade de Paris, depois de tornar uma espécie de capelão

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do rei Filipe Augusto, que o nomeou como preceptor de seu filho, Pierre Charlot. Guilherme supostamente esteve presente na famosa Batalha de Bouvines. Ele trabalhou também na escrita das Philippides traduzido para o francês como Poema Heroico de Filipe Augusto. O texto é um clássico e épico poema em XII livros e composto em três redações, dando interessantes detalhes sobre Filipe Augusto e de seu tempo, incluindo algumas informações a respeito de estratégias militares, mostrando a fluência de Guilherme no Latim. Na sua forma final, a Gesta é a conclusão ao trabalho de Rigord que escreveu a respeito da vida de Filipe Augusto entre 1179 e 1206 e a continuação de Guilherme o Bretão aborda de 1207 até a morte do monarca em 1223. Rigord em sua narrativa elabora uma complexa reconstrução histórica da linhagem dos francos para evitar a seus leitores dúvidas sobre a origem e legitimidade da dinastia de Filipe Augusto. Este texto é o cerne do entendimento do autor com relação à tradição da monarquia e, por conseguinte sua visão do passado7. Através da leitura da genealogia proposta pelo autor, é possível perceber alguns elementos muito importantes na busca por uma, digamos, historiografia na qual o autor está embasado com o intuito de legitimar o novo monarca da dinastia dos capetos que é representado pelo autor como pertencente a casa dos francos. Importante destacar três elementos fundamentais no texto de Rigord para entender sua base historiográfica. O primeiro deles é o vínculo da dinastia presente a um passado heroico, mítico voltado à perspectiva grega8. O segundo elemento está na ideia

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Et quoniam multi solent dubitare de origene regni Francorum, quomodo et qualiter reges Francorum ab ipsis Trojanis descendisse dicantur; ideo sollicitus, prout poltuimus colligere ex historia Gregorii Turonensis, ex chronicis Eusebii et Hidachii et ex aliorum multorum scriptis, in hac nostra historia satis lucide determinavimus. DELABORDE, H. François. Oeuvres de Rigord et Guillaume Le Breton. Historiens de Phillippe-Auguste. Tome Premier Chroniques de Rigord et de Guillaume Le Breton. Paris: Librairie Renouard, 1852 p-55. 8

Uma lenda a respeito da origem da dinastia franca envolvendo o nome mítico do rei Faramund ou Pharamond que seria um descendente do próprio rei de Tróia Príamo. O nome aparece em primeiro lugar na obra anônima Liber historiae Francorum datada do século VIII sendo reproduzida por outros autores como Gregório de Tours em seu Annales Francini e texto mais próximo de Rigord a Gesta Francorum de 1110 onde é descrito no capítulo 8 como os francos mudaram as leis sob o reinado de Pharamond. Rigord informa: Eo tempore Marcomirus cum suis Gallias intravit, et audientes Parisii quod de Trojanis descenderat ab ipsis honorifice receptus est: quos quia ad exercitium armorum docuit et civitates, propter frequentes incursos latronum, murari fecit, ab ipsis defensor totius Gallie constitutus est. Hic Faramundum fillium suum militem strenuum, primum regen Francorun diademate insignivit, qui ob honorem Paridis, filii Priami regis Troje, a quo ipsi populi denominati fuerant, et ut magis ipsis placeret, civitatem Parisiorum que tune Lutetia vocabatur, de nomine Paridis Parisius vocari voluit. Affectabant enim omnes Trojani qui de excidiu Troje descenderant, quod nomen eorum per universum orbem longe lateque diffundereteur. Faramundus genuit Clodium: Clodius genuit Meroveum a quo rege utili reges

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de tradição dos francos9. Uma longa linhagem de reis e imperadores, atribui credibilidade a esta dinastia, a partir da ideia de ordem e legitimidade divina para a sucessão.10 O terceiro e último elemento a ser analisado neste trabalho, está na dicotomia entre civilização e barbárie11, muito aplicado nos tratados nas fontes de origem tardo antiga, mas que se perpetua até o baixo medievo. O vínculo entre o presente e um passado heroico pagão, como no exemplo apresentado com Troia e seu rei mais expoente, Príamo era algo recorrente dentro das narrativas medievais, mesmo considerando um cronista cristão oriundo das fileiras eclesiásticas de mosteiros importantes desta latinidade ocidental. No caso de Rigord, sendo considerado físico, o conhecimento de autores clássicos era parte de sua ocupação. A utilização de elementos de uma herança Greco-romana por parte dos pensadores da igreja foi incorporada, atingindo seu ápice na chamada idade de ouro da Patrística, entre os séculos IV e V. Na gênese da igreja cristã, havia a necessidade em diferenciar a filosofia cristã daquela dita clássica, em especial nos autores do século II

Francorum Merovingi sunt appellati. Meroveus genuit Childericum: Childericus genuit Clodoveum primum regen christianum, a quo nomina regum Francorum ab ipso descendentim, propter ordinem historie memoriter tenendum, hic posuimus. DELABORDE, H. François. Op. Cit. p-57. 9

Clodoveus genuit Clotarium; Clotarius genuit Chilpericum, qui Dagobertum primum. Hic ecclesiam hieromartyris Dionysii fundavit et multa donaria eidem ecclesie contulit. Dagobertus genuit Clodoveum, qui Clotarium, Childericum et Theodericum. Isti tres fuerunt frates, filii Clodovei, filii Dagoberti primi et sancti Baltildis. Childericus genuit Dagobertum, qui Theodericum, qui Clotarium. Deinde regnavit Ansbertus qui genuit Arnoldum, qui sanctum Arnulfum postea Metensem episcopum; qui Anchisen vel Ansegiisilum vel Ansedunum, qui Pipinum majorem domus, qui Karolum Martellum imperatorem,qui Pipinum reges, qui Karolum Magnum imperatorem, qui Ludovicum Pium imperatorem, qui Karolum Calvum imperatorem. Hic attulit ad ecclesiam ter beati Dionysii clavum et spineam coronam et brachium sancti senis Simeonis et cristam auream cum gemmis pretiosissimis impretiabilem, et crucem aurean cum lapidus pretiosis pondere LXXX marcarum et multa alia carissima dona jam dicte ecclesie contulit, que longum esset hic ponere. Karolus Calvus genuit Ludovicum regem, qui Karolum Simplicem. DELABORDE, H. François. Op. Cit. p-59. 10

Quanto a você, sua dinastia e seu reino permanecerão para sempre diante de mim; o seu trono será estabelecido para sempre". 2 Samuel 7:16 11

Tempore istius, Dani de Scythia per Oceanum vecti ceperunt Rotomagum, habentes ducem nomine gentis sue nomine Rollonem, qui multa ecclesiis Dei intulit mala. Iste totam sibi Neustriam subjugavit et a nomine gentis sue Normannian vocavit. Normanni vero língua Barbara homines septentrionales dicti sunt, eo quod primum ab illa mundi parte venerint. DELABORDE, H. François. Op. Cit. p-55 Inde digressi, juxta Thraciam super ripas Danubii fluvii consederunt; sed post paululum temporis, Turchus eum suis, a Francione consanguíneo suo recendens, in Seythia inferiore se transtulit et ibi regnavit; a quo descenderunt Ostrogoti, Ypogoti, Wandali et Normanui. Frâncio autem circa Danubium fluvium cum suis remansit et edifican ibi civitatem, Sicambriam vocavit DELABORDE, H. François. Op. Cit. p-60

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como Tertuliano por exemplo.12 Os pensadores da Patrística mudam a perspectiva e incorporam parte destes elementos da tradição clássica em seus escritos de maneira especial no campo da filosofia.13 Claro está que esta apropriação da cultura pagã por parte do cristianismo em sua origem não pode ser percebida como algo contínuo e estanque, mas sim de maneira seletiva e fragmentada. Trechos desta tradição são adotados e adaptados para a realidade no contexto que a recebe. A primeira experiência, em maior medida restrita ao campo das ideias entre os pensadores cristãos, até meados do século IV, foi sucedida pelos levantes bárbaros a partir do século V que ofereceram a Igreja uma nova experiência de adaptação no contato com povos que oscilavam entre o paganismo e o Arianismo. Importante salientar que estas estratégias de aculturação dos povos que ocuparam os lugares de cultura e poder deixados pelo esvaziamento do império romano não foram oriundas de um plano central arquitetadas pelo núcleo de poder eclesiástico, ainda em formação neste período. Ainda assim, algumas estratégias foram utilizadas visando aproximação entre a igreja e esta nova realidade de povos “não cristãos” em contato e habitando este espaço. Segundo Leila Rodrigues de Roedel:

Apesar da inexistência de um plano geral deliberadamente estabelecido, alguns mecanismos, como a criação de mosteiros nas áreas rurais, a instrumentalização e melhor preparação dos membros da igreja local; e a aproximação entre eclesiásticos e monarcas, foram adotados com maior ou menor empenho, dependendo principalmente, das especificidades de cada grupo germano em questão 14.

Desta forma, a partir desta nova realidade, a partir da desestruturação do império romano, a mentalidade unificadora e civilizatória adotada ao longo do império, será transmitido para as fileiras da igreja a partir da vinda e estabelecimento de reinos de origem germânica nos espaços desta latinidade. Este esforço, passa do campo estritamente teórico para algo mais prático, no sentido em que as especificidades de cada povo exigem estratégias pensadas e orquestradas para cada caso. Neste sentido, a tradição clássica não será abandonada, mas mantida a partir dos escritos dos autores da

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TERTULIANO. El Apologetico. Versión y notas Germán Prado. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991. (Los Santos Padres, 6). 13

Para maiores detalhes ver ROEDEL, Leila Rodrigues de. ”A Cristianização e a tradição clássica na transição da antiguidade para a Idade Média: o caso Suevo.“ in Boletim do CPA nº 4. Campinas: UNIP, 1997. p-111. 14

ROEDEL, Op Cit. p – 112

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Patrística e novos elementos serão incorporados, e apresentados sob uma nova perspectiva, a partir da ótica cristã. Neste sentido, a opção de Rigord em utilizar a História de Gregório de Tours, as Crônicas de Eusébio15, Idácio entre outras obras não citadas, mostra a tendência de manutenção da escrita das linhagens que permaneceu bastante presente durante a baixa idade média entre os cronistas16. Alguns elementos contribuíram para esta expansão do trabalho do cronista na manutenção destes elementos clássicos em seus escritos como a fundação das universidades, o aumento de importância e poder por parte da nobreza e o progressivo aceite de livros em suas cortes. Interessante como esta prática se manteve ao longo de mais de sete séculos entre a escrita de Rigord e sua fonte de pesquisa, a qual após uma análise das obras apontadas pelo cronista é possível perceber uma maior influência de Gregório de Tours em sua Historiarum como o próprio Gregório aponta no segundo livro de sua obra:

Sic et Eusebius, Severus Hieronimusquae in chronicis atque Horosius et bella regum et virtutes martyrum pariter texuerunt. Ita et nos idcircum sic scripsemus, quod facilius saeculorum ordo vel annorum ratio usque nostra tempora tota repperiatur. Venientes ergo per antedictorum auctorum historias, ea quae in posterum acta sunt Domino iubente disseremus.17

O segundo elemento historiográfico utilizado pelo cronista de Filipe Augusto em sua obra está na tentativa de considerar a continuidade e sucessão de monarcas desde um passado remoto até o seu presente. Esta tentativa em criar uma dinastia perpétua tem sua origem nos próprios escritos bíblicos, como é possível perceber na leitura do livro de 2 Samuel capítulo 7 verso 16:

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Sobre a Crônica de Eusébio, sugerimos o trabalho de SANCHEZ, Pedro Juan Galan. El Gênero Historiográfico de la Chronica – Las Crônicas Hispanas de época visigoda. Cáceres: Universidad de Extremadura, 1994. Segundo o autor: La Crônica de Eusébio de Cesárea marca el comienzo de la Crônica Cristiana, Eusébio estabelecio, em el s. IV d.C., lós constituyentes esenciales Del gênero, constituyentes que, em general, habrián de mantenerse vigentes durante vários siglos. 16

MEDEIROS, Eduardo Luiz de. “Análise da estrutura da fonte cronística e registros chancelares na monarquia francesa entre 1180 e 1223” in. Atas da IX Semana de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. p-249. “A partir do século XIII o contato com as referências antigas, em especial do imaginário romano tornou-se mais intenso, em razão da participação de senhores laicos na produção escrita e do crescente aceite dos livros no âmbito das cortes. A disseminação de universidades e o crescimento das cidades, com o desenvolvimento de corporações de ofícios laicas podem ter contribuído para este vislumbre ao laicismo clássico encontrado nos relatos cronísticos. Mesmo assim, o ideário cristão permanece impregnado em todas as esferas desta sociedade” 17

Gregorii Turonensis. Historiarum Líber Secundus. http://www.thelatinlibrary.com/gregorytours/gregorytours2.shtml

Prólogue.

Disponível

em

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Quanto a você, sua dinastia e seu reino permanecerão para sempre diante de mim; o seu trono será estabelecido para sempre".

Este texto é uma das bases para a visão eclesiástica sobre a monarquia. Dentro desta ideia, a dinastia que se perpetua, apresenta a benção e a aprovação divina para seu governo18. Esta permanência da descendência do monarca dependia de sua obediência aos princípios cristãos e sua justiça de acordo às qualidades para um governante de origem nos escritos romanos de vários escritores, entre eles Cícero19. Dentro do viés historiográfico, esta vertente seguida por Rigord, aparece em outros manuscritos como na Historiae adversum paganos de Paulo Orósio20, identificada por José Miguel Allonso Nuñes, como a teoria da sucessão dos impérios universais21. A prática é adotada por Orosio no mesmo estilo literário, atribuindo uma origem mítica aos povos pagãos formando, na cosmogonia orosiana, quatro impérios universais: Babilônia, Macedônia, Cartago e Roma. Sua obra é fortemente influenciada pela Crônica de Eusébio e Jerônimo22. O discurso de legitimidade dinástica é algo recorrente desde os primórdios do cristianismo, oriundos da legislação romana acerca do poder e da divinização do príncipe23. Podemos citar, por exemplo, o Panegírico de Trajano, escrito por Plínio, o 18

MEDEIROS, Eduardo Luiz. Historia de Israel. Curitiba: SGEC.2011. p-77: Após a morte de Salomão, seu filho Roboão assume o poder , porém o contexto político do jovem rei é bastante diferente de quando Davi entregou o posto nas mãos de seu filho. Acompanhamos isto no capítulo 6 , quando vimos que a apostasia e a idolatria de Salomão levantaram inimigos que fizeram oposição a seu governo. 19

FRIGHETTO,Renan. Transformação e Tradição: A influência do pensamento político e ideológico do mundo romano clássico na antiguidade tardia. Revista Diálogos, Maringá, v.12, n. 3, p-24, 2008: Dos pontos de vista político e filosófico a obra de Cícero pode ser enquadrada no âmbito das idealizações (se preferimos, elaborações) teóricas relativas à Res publica perfeita, aquela que é definida pelo pensador romano como a optima re publica. 20 20

A flumine Tigri usque ad flumen Euphraten Mesopotamia est, incipiens a septentrione inter montem Taurum et Caucasum. 21 cui ad meridiem succedit Babylonia, deinde Chaldaea, nouissime Arabia Eudaemon, quae inter sinum Persicum et Arabicum angusto terrae tractu orientem uersus extenditur. 22 in his sunt gentes XXVIII. 23 A flumine Euphrate, quod est ab oriente, usque ad mare Nostrum, quod est ab occasu, deinde a septentrione id est a ciuitate Dagusa, quae in confinio Cappadociae et Armeniae sita est haud procul a loco ubi Euphrates nascitur, usque ad Aegyptum et extremum sinum Arabicum, 24 qui ad meridiem longo angustoque sulco saxis insulisque creberrimo a Rubro mari id est ab oceano occasum uersus extenditur, Syria generaliter nominatur, habens maximas prouincias Commagenam Phoeniciam et Palaestinam, absque Saracenis et Nabathaeis quorum gentes sunt XII. ZANGEMEISTER, C. Pauli Orosii Historiae Adversum Paganos.Liber I. Leipzig, 1889. 21

ALLONSO-NUÑES, José Miguel. Op. Cit. p-150.

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ALLONSO-NUÑES, José Miguel. Op. Cit. p-153.

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LE GOFF, J., NORA, P. História: novos problemas. 2ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.130. Entre as fontes documentais mais acessíveis e nas quais o ensinamento encontra-se mais claro, figuram

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jovem, em 100 d.C., a vida de Apolônio de Tiana de Filóstrato, do século III e a coletânea de biografias imperiais conhecida pelo título de História Augusta, composta no século IV. Cada uma delas mostra a maneira exemplar como o príncipe deveria se portar, objetivando a perpetuação de sua dinastia. São estes os discursos que os cronistas medievais utilizarão para definir as regras de conduta dos monarcas, ao menos no plano teórico, nos séculos posteriores24. O interesse dos cronistas do século XII, assim como o de seus antecessores era o de criar uma imagem ideal do monarca para o outro. Para tanto, a criação de um modelo teórico dentro da estrutura do feudalismo denominado como “Espelhos de Príncipes”, cujo objetivo principal era o ser um instrumento didático a ser utilizado e lido pelos príncipes na sociedade de corte. Estes manuais deveriam pautar a conduta dos reis, através da instrução por parte de seus preceptores de acordo com o modelo teórico25. O terceiro e último elemento adotado nesta breve análise, está na elaboração de um sistema, por parte do cronista de uma antítese entre os francos em sua origem e os demais povos, através de um conceito de civilidade franca

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. Esta dualidade entre o

civilizado e a imagem do outro como bárbaro tem sido objeto de estudo de pesquisadores brasileiros que são referência a nível internacional sobre o tema da Antiguidade Tardia27. A crescente incursão de outros povos, possível a partir da desestruturação do império romano, apresentará a aculturação e aceitação, na medida em que a acomodação geográfica fará surgir novas fronteiras28 e reinos autóctones que evidentemente todos os escritos de propaganda, os tratados de boa conduta, os discursos edificantes, os manifestos, panfletos, sermões, elogios, epitáfios, as biografias de heróis exemplares, em suma, todas as expressões verbais que um meio social dá às virtudes que reverencia e aos vícios que reprova, e que lhe servem para defender e propagar a ética onde se apoia sua boa consciência. 24

Para uma análise detalhada da elaboração da figura de um herói exemplar no âmbito do século XIII, ver: MEDEIROS, Eduardo Luiz. Simon de Montfort e a figura do Vassalo Perfeito na obra Histoire Albigeoise de Pierre dês Vaux de Cernay. Trabalho Monográfico UFPR, Curitba, 2006. 25

FERNANDES, F. R. . Teorias políticas medievais e a construção do conceito de unidade. História (UNESP. Impresso), v. 28, p. 47, 2010. 26

Normanni vero língua Barbara homines septentrionales dicti sunt, eo quod primum ab illa mundi parte venerint. DELABORDE, H. François. Op. Cit. p-55 27

Entre eles podemos citar um dos trabalhos mais recentes de FRIGHETTO, Renan. A antiguidade tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II-VIII). Curitiba: Juruá, 2012, de maneira especial o capítulo IV da obra intitulada Da barbárie à civilização: os bárbaros e sua integração (séculos IV-VIII.) 28

Para uma análise do conceito de fronteira no âmbito medieval, vide: FERNANDES, F. R A nobreza, o rei e a fronteira no medievo peninsular. En la España Medieval, Espanha, v. 28, p. 155-176, 2005.

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surgirão deste contexto. O conceito bárbaro como instrumento de diferenciação cultural continuará sendo utilizado ainda no século XII pelos autores. A partir da cristalização do poder eclesiástico a partir do fortalecimento e centralização do papado 29, Esta diferenciação foi gradativamente substituída de bárbaros para hereges e infiéis, com o cerne de ordem e civilidade substituído de cidadão romano para cristão. A dualidade construída é notória no século XII com a utilização do arcabouço teórico originário do século IV 30, sendo revisto e atualizado para a realidade contextual, cultural e geográfica do medievo mediterrânico. Esta breve análise da historiografia contida na Crônica de Filipe Augusto, apresenta, através dos argumentos apresentados, uma releitura de elementos oriundos da patrística e de escritos da Antiguidade Tardia, apreendidos e atualizados para o contexto no qual escreve, legitimando o poder de um monarca através de uma descrição da origem de sua dinastia remontando a um passado mítico, mantendo sua descendência como elemento de aprovação divina a seu governo e o diferenciando dos demais grupos, originando-os em meio aos povos bárbaros para então atualizar o discurso, atribuindo aos francos à responsabilidade de manter e propagar a chama do cristianismo aos moldes da civilização romana como núcleo de ordem e civilidade, contra a desordem e infidelidade dos demais grupos. Este vínculo a um passado heroico, justifica ao mesmo tempo em que legitima as vitórias de Filipe Augusto e as derrotas de seus adversários que não tiveram uma origem tão nobre quanto a sua. Desta forma, tentamos mostrar alguns elementos teóricos que sustentem e nos auxilie a entender de que maneira os cronistas do século XII e XIII apresentavam suas escolhas, através da seleção de textos clássicos disponíveis e de que maneira estes textos auxiliavam na missão da legitimação do poder régio medieval. Não nos é possível, portanto, desprezar a herança clássica e tardo-antiga para um conhecimento satisfatório das fontes utilizadas pelos autores medievais.

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BARRACLOUGH, G. Os papas na Idade Média. Lisboa : Editorial Verbo, 1972.

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Bibliografia

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